quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Acerca do movimento e do primeiro motor

Escrito por André Cresson



«O movimento mais simples é a deslocação de corpos ou de corpúsculos observáveis no mundo sensível, e a representação mental da deslocação de puras figuras geométricas, preparatórias das operações sobre números. É a mudança de lugar, de estado ou de estação, o movimento segundo o lugar, no dizer de Aristóteles. A substância ou sujeito do movimento permanece idêntico, inalterável e imóvel. A moção provém de uma causa exterior, de um segundo princípio, ou de uma forma, pelo que a deslocação se desenha como movimento relativo, representável por uma linha e limitado entre dois pontos. O movimento relativo pressupõe assim uma força absoluta, que actua a distância e conserva o seu carácter maravilhoso. Nas principais leis da mecânica moderna essa força é anunciada pelos verbos que, apesar da sua acepção simples, conservam todavia oculto o elemento essencial. Impelir, atrair, gravitar, etc., são palavras cuja clareza resultante da nossa familiaridade com os fenómenos não produz claridade suficiente para a explicação científica.

O movimento de rotação, por ser aparentemente múltiplo e essencialmente uno, múltiplo na periferia e uno no centro, afigura-se a Aristóteles como particularmente simbólico de toda a representação universal. A translação rectilínea, diz o Filósofo, é contínua por imitação do movimento circular.

A substituição da circunferência pelas outras curvas das secções cónicas, conferiu à mecânica celeste dos astrónomos modernos maior acentuação da relatividade do movimento, sem que alterasse no valor filosófico a ciência tradicional que se conserva na obra de Aristóteles.»

Álvaro Ribeiro («Estudos Gerais»).


«Na física aristotélica, portanto referida aos corpos naturais ou, se se quiser, materiais, deparam-se e descrevem-se quatro formas de movimento: além da de deslocação, a de mudança, a de alteração e a de crescimento. Outras formas, porém, existem, se considerarmos outros domínios do real, como as da geração e corrupção no domínio da biologia. Todo o real, aliás, está em incessante movimento e seria absurdo pensar que o movimento de todo o real, de toda a infindável variedade do real, poderia caber na única forma, e a mais estreita, simples e pobre, da deslocação dos corpos. O movimento universal requer uma noção que, decerto inacessível à fixidez do conhecimento, só o pensamento pode inferir pois também o pensamento nela se envolve, o que explica que Álvaro Ribeiro tenha identificado movimento universal e evolução.

A noção de movimento universal, subjacente a todas as formas, mais ou menos particulares, de movimento, é a transição da potência ao acto. Então se verifica e compreende como a causa do movimento pode estar no que se move. “O movimento e os corpos”, diz Platão, “são definidos por suas razões”.

Até na deslocação dos corpos, a causa está neles mesmos, não no impulso recebido de outros. Se Aristóteles explica a queda dos graves dizendo que procuram o lugar natural, Newton tem o cuidado de acentuar que as suas medições e quantificações da gravitação ignoram completamente as causas ou razões dela, segredo que, segundo diz, Deus guarda. Whitehead comenta, como David Hume, o que nem sempre se tem presente no ensino das escolas, que o próprio Newton foi o primeiro a reconhecer: “Na essência de corpo material, na sua massa, seu movimento e sua forma, não há motivo para a lei da gravitação universal”».

Orlando Vitorino («As Teses da Filosofia Portuguesa»).



Estátua de  Ἀριστοτέλης


«Qualquer máquina, figuração singular e sensível de um mecanismo, estará subordinada ao fim preconcebido pelo construtor. As partes ou peças articulam-se para a unidade de um todo, mas coordenam-se e subordinam-se relativamente ao movimento, à força, à energia, que existe para além, ou para fora, da complexidade do engenho. A finalidade formal prevalece sobre a matéria figurativa, mensurável, resistente e fixa.

Admitamos, portanto, que o movimento relativo, próprio da mecânica, facilita a representação esquemática das coisas, mas reconheçamos também que ele depende de outros movimentos, ou de movimentos de outra categoria, e concluamos que, em doutrina física, sem finalidade não pode haver inteligibilidade. Aqui se vê a semelhança da inteligência com enteléquia e teleologia. A energia, que significa acto, e dynamus, que significa potência, completam a descrição explicativa do movimento próprio de cada ser. O movimento é já uma condição da liberdade, mas importa explicá-lo não só pela passagem através de sucessivos lugares, mas também pela aceitação dos modos de potência e acto.

Tal como o ser é dito com várias acepções, coordenáveis pelas categorias, também o agir se explica em vários verbos que caracterizam os modos de ser das substâncias. A prioridade lógica do acto é um princípio director da doutrina aristotélica. Depois do agir consideremos o poder agir, e verificaremos também que o poder está restrito por várias acepções que são os modos. De aí a flutuação semântica entre potência e possibilidade, entre os poderosos e os possíveis. A noção de potência refuta e anula a noção de não-ser, ou de nada, ainda porque a dialéctica impugna a noção de origem. Se a substância fosse inerte, se não existisse para uma finalidade de acção ou de paixão, não observaríamos no tempo algo mais importante do que o eventual fluir, o frustrado ou logrado trânsito da potência ao acto. A finalidade esconde o tempo, mas encerra-o no seu conceito, como predicado a revelar.

O verbo passar, designativo de deslocação e significativo pela série figurativa dos lugares, não responde nem corresponde ao movimento próprio das substâncias. Ilusório será o quadro estante das idades, ou das fases, se dissermos que através dele passa identicamente o ser vivo. Mais do que ilusório, porque também erróneo e enganador, se dentro dele situarmos o ser humano. É que a doutrina do movimento, ou fisiologia, apela pelo seu complemento que é a morfologia.

Chama-se morphe, ou forma, ou alma aquela força que dentro da substância produz a série teleológica das figuras. Nunca poderá inteligir este segredo natural quem não der preferência intelectiva à cinemática da morfologia sobre a estática da anatomia, porque o estudo dos processos ascendentes de geração devem preceder o dos processos descendentes de corrupção. Já na própria gramática a morfologia significa o estudo, ou a inteligibilidade, das flexões e das variações que a palavra pode assumir. Depois na botânica a noção de metamorfose adquire primado explicativo sobre a análise, a descrição e a classificação das figuras que afinal existem por serem resultados das formas. É na antropologia, porém, que a atenção à alma, ou à forma, ou a morphe, mais clarifica e justifica a transição da potência ao acto, e a realização do acto até ao fim.

O método introspectivo nos habilita a reconhecer que dentro de nós existe o princípio, a causa, a força ou a energia do movimento que por simpatia atribuímos também aos animais, aos vegetais e aos minerais. No estado pueril da mentalidade mecanista e voluntarista manifesta o homem aquela crueldade e criminalidade que caracteriza os entes ressentidos e incompletos. Na adolescência, porém, já a inteligência se abre para a verdade do hilozoísmo e do panpsiquismo que, por deficiência cultural, muitos confundem com o panteísmo. A adolescência é, porém, uma crise de que se libertam os homens capazes de inteligir que na razão animada está o princípio espiritual.»

Álvaro Ribeiro («Estudos Gerais»).



«A matéria é, para Aristóteles, aquilo de que (ex hoû) é feita uma coisa; a forma é aquilo que informa ou configura a matéria para constituir assim a coisa concreta individual (synolon). No momento porém de exemplificar isto, afirma que a matéria é o bronze, a forma a figura da ideia, e a substância composta de ambas a estátua; em outros lugares o exemplo é a mesa, etc. Como se vê, para Aristóteles a estrutura da substância aparece com clareza... onde propriamente não há substância, no ente artificial (apò téknes). Não seria tão fácil dizer qual a matéria de uma oliveira ou de um cavalo, de que são feitos; e quando isto pudesse parecer mais chão, por exemplo, se se refere à água ou à terra, seria problemático dizer qual é sua forma, em que consiste a forma ou eîdos que a constitui e configura. O esquema matéria-forma como explicação da substância é tanto menos aplicável quanto mais verdadeira é a substância de que se trata, e só é simples e claro quando se toma um produto humano artificial, que é de onde, em última análise, esse esquema procede.

Se nos limitarmos aos entes naturais, as coisas se complicam ainda mais. Aristóteles lança mão dos conceitos de potência (dynamis) e acto (entelékheia ou então enérgeia) para tentar explicar a fundo o que é o movimento. O ente se divide em ente em potência e em acto; uma mesma coisa, que actualmente é A, pode ser potencialmente B; mover-se ou mudar consiste em que essa coisa, que só em potência é B, passe a ser B em acto e plenamente; entenda-se bem: quem passa, quem se move ou muda, é a coisa que é A e B, não são A ou B como tais. Nessa coisa que agora é A, está presente de certo modo, como potencialidade ou virtualidade, B. Quando B é actual, a coisa é simplesmente B e já não é A, e temos um novo estado de repouso. Porém quando a potência ou possibilidade de ser B deixa de ser simples possibilidade e se está realizando, quando a coisa está sendo B, quando a potencialidade para ser B – e não B propriamente – se actualiza, dizemos que a coisa está em movimento. Por isso Aristóteles define este como sendo “a actualidade do possível enquanto possível".

Em outras palavras – talvez todas sejam poucas para questão tão espinhosa –: quando a coisa que pode ser B se limita a isso, é apenas A; mas quando está podendo ser B, é uma realidade móvel, que não é A nem B, mas sim um estranho ser em marcha, que a filosofia grega anterior a Aristóteles não pôde compreender. Mas com isto estamos apenas no começo.

Realmente, sob o nome de “potência” ocultam-se duas espécies bem diferentes, que Aristóteles indica no capítulo 5 do livro IX da Metafísica. Algumas potências são congénitas e outras adquiridas; por hábito, como o tocar flauta, ou por aprendizagem, como as técnicas; estas necessitam um exercício prévio, enquanto que as outras, de carácter passivo – como os sentidos –, não o requerem. Em segundo lugar, as potências podem ser racionais (metà lógou) ou irracionais (álogoi); aquelas residem necessariamente em um ente animado, estas podem residir indistintamente em um ente animado ou não. Nas potências irracionais, quando o agente e o paciente se aproximam, é necessário que um actue e outro padeça, necessidade que não se dá nas potências racionais. Isto é motivado pelo facto de que cada potência irracional produz um só efeito, enquanto que as racionais produzem os contrários, e se actuassem necessária e automaticamente, produziriam ambos ao mesmo tempo, o que é impossível. Não é suficiente, pois, a simples presença do agente e do paciente: é necessário o desejo (órexis) ou a escolha (proaíresis), pois só com estes as potências adquiridas se actualizam.»

Julián Marías («Biografia da Filosofia e Ideia da Metafísica»).

«Para manter a continuidade educativa no trânsito do ensino primário para o ensino liceal, convirá que no primeiro ano seja dada a revisão de todas as noções assentes em esquemas mnemónicos, matemáticos e mecânicos já com o processo de reflexão praticado pela filosofia pitagórica. As noções aprendidas de modo prático e utilitário refulgem de novo modo pela iluminação teorética. Os movimentos dos números, que em aritmética costumam ser denominados operações, já podem ser considerados como representativos ou simbólicos dos fenómenos naturais. As figuras denominadas ponto, recta (ou segmento de recta), ângulo trilátero, etc., deixam de ser vistas na sua imobilidade de moldes para o desenho ou de esquemas para a técnica, porque hão-de ser intuídas na expressão dos seus movimentos internos. Há, porém, no segmento de recta uma distância que pode ser percorrida em dois sentidos, e se não virmos a deslocação do móvel, poderemos conjecturar que o invisível corre dentro do fio ou tubo. As noções de vector e de série movimentam e animam os dados da matemática pitagórica. Estará então o adolescente apto a progredir, segundo o método aristotélico, do estudo do único movimento visível, que é a deslocação, para o estudo de todos os movimentos invisíveis, – cujas causas são denominadas forças, radiações e energias que os constituem, – nas máquinas de captação e detecção das causas ou coisas, nas representações algébricas do quantificável e do mensurável, nos esquemas lógicos das relações mais subtis. Convém, todavia, que este ensino técnico, científico e utilitário seja conduzido de modo a fortalecer e a comprovar a visão do mundo que é dada ao adolescente.  

Dentro dos mesmos tópicos ou quadros de repouso para a memória, cabem as representações de todos os movimentos, desde a mais simplista deslocação, contestada por Zenão de Eleia, até aos movimentos significativos da teologia de Aristóteles, culminante no motor imóvel. É a adolescência a idade própria para estudar de mente científica a acção da Natureza, não já nos fenómenos de simples aparecimento e desaparecimento, que são o nascer e o morrer, mas nos fenómenos complexos da nutrição e da excreção, com seu espectáculo de luta necessária entre os indivíduos, as espécies e os géneros.

A genética, a embriologia, a anatomia comparada, a hereditariedade, o transformismo e o evolucionismo são de incluir no programa científico de educação dos adolescentes. Convém aos adolescentes estudar o espectáculo infinito da Natureza com a serenidade própria de quem não faz interferir juízos de ordem moral, mas também com a inteligência de que entre fenómenos há relações que importa discernir, determinar e classificar, porque nem todas se reduzem ao condicionalismo intelectualista da mecânica, da geometria e da aritmética.»

Álvaro Ribeiro («Liceu Aristotélico»).

 

«Todos aqueles que afirmam (...) que a alma se compõe de elementos em virtude de ser ela capaz de conhecer e de se aperceber das coisas existentes, assim como também aqueles que a consideram o primeiro motor, não conseguem obter uma explicação satisfatória para todo o tipo de alma. A razão por que assim é reside no facto de nem todas as coisas com sensações poderem também possuir movimento. Alguns seres vivos parecem imóveis em relação ao lugar e, contudo, tal parece constituir o único tipo de movimento que pode a alma imprimir a esses mesmos seres vivos. Similarmente, o mesmo se verifica com aqueles que concebem o intelecto e a faculdade perceptiva como sendo exteriores aos elementos: as plantas parecem realmente viver sem se mover ou sem sentir e, além disso, muitos animais parecem não possuir a faculdade de pensar.

Por outro lado, supondo que para nós seria possível colocarmo-nos à margem de todas estas considerações e, então, assumir que o intelecto é parte da alma, do mesmo modo a faculdade perceptiva o seria também, e nem mesmo, por este modo, as suas teorias poderiam constituir uma explicação razoável e válida para todas as almas, ou para a totalidade de cada alma. A teoria apresentada nos intitulados Poemas de Orfeu apresenta as mesmas dificuldades: afirma que a alma, gerada pelos ventos e vinda do universo, penetra nos animais quando eles respiram. Realmente, isto não pode suceder no caso das plantas nem com certos animais, em virtude de nem todos respirarem, um aspecto que escapou àqueles que concordam com esta teoria. Além disso, mesmo quando pretendemos conceber a alma para além dos seus elementos, é praticamente desnecessário ser ela composta por todos os elementos, devido a ser apenas necessário um conjunto de contrários para determinar ela mesma e o seu contrário. É precisamente assim que nos é possível conhecer a linha recta em si mesma e a curva por intermédio da linha recta, já que a regra as julga a ambas (enquanto que a curva não pode julgar, ela mesma, nem a si própria nem a linha recta.»

Aristóteles («De Anima»).




«A lógica de Aristóteles, transcendentemente religiosa, encaminha o pensamento humano para os momentos daquela bem-aventurança que se encontra admiravelmente descrita numa página da Ética a Nicómaco. Este é que é o livro da primeira filosofia. Os cadernos mais tarde subordinados ao título não-aristotélico de Metafísica incluem um ensaio de teologia, no qual nos é apresentado Deus como o pensamento puro que só se pensa a si próprio, mas que imóvel procede como motor, atraindo incessantemente todos os espíritos juntos.»

Álvaro Ribeiro («Liceu Aristotélico»).



ACERCA DO MOVIMENTO E DO PRIMEIRO MOTOR

 

O Movimento

 

Em primeiro lugar, é preciso distinguir entre aquilo que existe apenas em acto e aquilo que existe, por um lado, em acto, e por outro, em potência, e isso quer no indivíduo determinado, quer na quantidade, quer na qualidade, e similarmente, para as outras categorias do ser.

Seguidamente, o relativo diz-se quer segundo o excesso e o defeito, quer segundo o activo e o passivo, quer, regra geral, segundo o motor e o móvel; com efeito, o motor é motor do móvel, e o móvel é móvel sob a acção do motor.

Depois, não existe movimento fora das coisas; com efeito, aquilo que muda, muda sempre ou substancialmente, ou quantitativamente, ou qualitativamente, ou localmente; ora, não é possível descobrir, como já o dissemos, um género comum a estes sujeitos da mudança que não seja ou indivíduo particular, ou quantidade, ou qualidade, ou qualquer um dos pontos da afirmação; por consequência, não haverá movimento ou mudança fora das coisas de que acabamos de falar, visto que nada existe fora dessas coisas.

Em seguida, cada um destes modos do ser vem a realizar-se em todas as coisas de uma dupla forma; por exemplo, relativamente ao indivíduo determinado, existe a sua forma e a ausência desta; e também na qualidade (branco e negro); e também na quantidade (o acabado e o inacabado); assim, tal acontece igualmente no caso do movimento local (o centrífugo e o centrípeto, ou o leve e o pesado). Logo, existem tantas espécies de movimento quantas as do ser.

Tendo em conta a distinção, relativamente a cada género, daquilo que existe em enteléquia e daquilo que existe em potência, o movimento é a enteléquia daquilo que existe em potência enquanto tal; por exemplo, do alterado, enquanto alterável, a enteléquia é alteração; daquilo que é susceptível de crescimento e do seu contrário, aquilo que é susceptível de diminuição (não existe um nome comum para os dois), é crescimento e diminuição; do gerável e do corruptível, é geração e corrupção; e daquilo que é móvel quanto ao lugar, é movimento local.

Que o movimento seja realmente isso, é perfeitamente claro em função do que se segue. Com efeito, quando o construtível, na medida em que o afirmemos enquanto tal, existe em enteléquia, ele constrói-se: e aí temos a construção; o mesmo sucede com a aprendizagem, a cura, a rotação, o salto, o crescimento, o envelhecimento.

Por outro lado, certas coisas existem simultaneamente em potência e em enteléquia, não em conjunto, é claro, nem sob a mesma relação, mas à semelhança daquilo que é quente em potência e frio em enteléquia; por conseguinte, terão lugar muitas acções e paixões recíprocas, porque tudo será simultaneamente activo e passivo. Consequentemente, o motor natural é móvel; com efeito, todo o ser deste género move ao mesmo tempo que ele próprio é movido (parece a alguns que todo o motor é movido; isso não é verdade, mas, a esse respeito, veremos alhures como as coisas se passam; porque existe um motor que é imóvel). Seja como for, o acto da coisa que existe em potência, quando a tomamos na enteléquia que possui enquanto existente em acto, não em si mesma mas como móvel, é movimento.

Por outro lado, eu digo «enquanto tal»; porque o bronze é estátua em potência, mas isso não significa, contudo, que a enteléquia do bronze, enquanto bronze seja movimento, porque a essência do bronze e a essência do ser, que, estando em determinada potência, é determinado móvel, não se confundem; porque se se confundissem de um modo absoluto, quanto à definição e não só quanto ao sujeito, a enteléquia do bronze, enquanto bronze, seria movimento; mas não se confundem, como já dissemos. E o mesmo se vê quando se consideram os contrários; com efeito, o facto de poder estar são é distinto do facto de poder estar doente, pois, caso contrário, o facto de estar doente seria o mesmo que estar são; ora, o sujeito relativamente ao qual se afirma a sanidade e a doença é uma só e mesma coisa, quer se trate de água ou de sangue; logo, o sujeito e os seus atributos não se confundem, do mesmo modo que a cor também não se confunde com o visível; consequentemente, vê-se que, se o movimento é uma enteléquia, é-o daquilo que existe em potência e na medida em que isso existe em potência.

Que assim seja o movimento e que o facto de ser movido só aconteça aos seres cuja enteléquia exista realmente neste estado, não lhe podendo ser, nem anterior, nem posterior, é algo de perfeitamente evidente: com efeito, cada coisa pode ou não existir em acto, como o construível; assim, o acto do construível, enquanto construível, é construção; porque o acto do construível ou é construção ou é a casa; mas quando é a casa já não é o construível; e o que se constrói é o construível. É, pois, necessário que a construção seja o seu acto, e a construção é um movimento. Agora, basta aplicar o mesmo raciocínio aos outros movimentos.


O primeiro motor


É possível que assim seja, pois, de outro modo, seria preciso dizer que tudo provém da noite, da confusão primitiva, do não-ser; estas dificuldades podem, pois, ser resolvidas. Existe algo que se move com um movimento contínuo, sendo esse movimento o movimento circular. E não é apenas o raciocínio que o aponta, mas o próprio facto. Portanto, também existe algo que move eternamente; e como há três espécies de seres, o que é movido, o que move e o meio termo entre o que é movido e o que move, trata-se de um ser que move sem ser movido, ser eterno, essência pura e actualidade pura.

Ora, eis como ele move. O desejável e o inteligível movem sem ser movidos, e o primeiro desejável é idêntico ao primeiro inteligível. Porque o objecto do desejo é aquilo que parece belo, e o objecto primeiro da vontade é aquilo que é belo. Nós desejamos uma coisa porque ela nos parece boa, não sendo por a desejarmos que ela assim nos parece; o princípio é aqui o pensamento. Ora, o pensamento é posto em movimento pelo inteligível, e a ordem do desejável é inteligível em si e por si; e, nesta ordem, a essência surge em primeiro lugar; assim, também entre as essências a essência primeira é a essência simples e actual. Mas o uno e o simples não são a mesma coisa: o uno designa uma medida comum a vários seres; o simples é uma propriedade do mesmo ser.




Assim, o belo e o desejável em si integram-se ambos na ordem do inteligível, e aquilo que é primeiro é sempre excelente, quer de um modo absoluto, quer de um modo relativo. A verdadeira causa final reside nos seres imóveis; é isso que nos mostra a distinção estabelecida entre a causa final absoluta e aquela que o não é. O ser imóvel move enquanto objecto do amor, e aquilo que move imprime o movimento e tudo o resto. Ora, para todo o ser que se move existe possibilidade de mudança. Portanto, se o movimento existe em acto, o ser que é movido pode mudar, senão quanto à essência, pelo menos quanto ao lugar. Mas, desde que haja um ser que move, permanecendo simultaneamente imóvel, ainda que exista em acto, esse ser não é susceptível de qualquer mudança. Com efeito, a mudança primeira é o movimento de translação, e o primeiro dos movimentos de translação é o movimento circular. Ora, o ser que imprime esse movimento é o motor imóvel. O motor imóvel é, pois, um ser necessário, pois ele é o bem e, por consequência, um princípio; porque eis quais são as acepções da palavra necessário: há a necessidade violenta, que é aquilo que constrange a nossa inclinação natural; depois, há a necessidade, que é a condição do bem; e, finalmente, o necessário, que é aquilo que existe de uma dada maneira e de um modo absoluto, não sendo susceptível de existir de outro modo.

Tal é o princípio do qual estão suspensos o céu e toda a natureza. Quanto a nós, só durante algum tempo é que nos é dado usufruir da perfeita felicidade. Mas ele possui-a eternamente, o que nos é impossível. Para ele, a fruição é a sua própria acção. E é por serem acções que a vigília, a sensação, a tentação, o pensamento, são os nossos maiores prazeres, pois a esperança e a recordação só são prazeres em função da sua relação com estes. Ora, o pensamento em si é o pensamento daquilo que é o melhor em si, e o pensamento por excelência é o pensamento daquilo que é o bem por excelência. A inteligência pensa-se a si mesma ao apreender o inteligível; porque, nesse contacto, nesse pensar, ela própria torna-se inteligível. Existe, pois, identidade entre a inteligência e o inteligível; porque a inteligência é a faculdade de compreender o inteligível e a essência, e a actualidade da inteligência é a posse do inteligível. Este carácter divino encontra-se, pois, ao mais alto grau na inteligência divina, e a contemplação é a suprema fruição e a soberana felicidade.

Se Deus usufrui eternamente desta felicidade que a nós é dado conhecer por instantes, ele é digno da nossa admiração; e é ainda mais digno dela se a sua felicidade for maior. Ora, a sua felicidade é efectivamente maior. A vida está em si, porque a acção da inteligência é uma vida, e Deus é a própria actualidade da inteligência; essa actualidade tomada em si, eis o que é a sua vida perfeita e eterna. Por isso, chamamos a Deus um animal eterno, perfeito. A vida e a duração contínua e perpétua pertencem, pois, a Deus; porque Deus é isso mesmo. Aqueles que pensam, como os Pitagóricos e Espeusipo, que o primeiro princípio não é o belo e o bem por excelência, porque os princípios das plantas e dos animais são causas, ao passo que o belo e o perfeito só se encontram naquilo que provém das causas, esses não possuem uma opinião bem fundamentada, porque a semente provém de seres perfeitos que lhe são anteriores, e o princípio não é a semente, mas o ser perfeito: é assim que se pode dizer que o homem é anterior à semente, não, como é evidente, o homem que nasceu da semente, mas aquele de que ela provém.

É evidente, após aquilo que acabámos de dizer, que existe uma essência eterna, imóvel e distinta dos objectos sensíveis. E ficou igualmente demonstrado que esta essência não pode possuir qualquer extensão, que não possui quaisquer partes e que é divisível. Com efeito, ela move durante um tempo infinito. Ora, nada de finito poderia ter uma potência infinita, pois toda a extensão ou é infinita ou é finita: por consequência, esta essência não pode ter uma extensão infinita; e, aliás, ela não tem uma extensão infinita, porque não existe, de um modo absoluto, qualquer extensão infinita. Acrescente-se, finalmente, que ela não admite modificação ou alteração, porque todos os movimentos são posteriores ao movimento no espaço.

Tais são os caracteres manifestos da essência em causa.

(In André Cresson, Aristóteles, Edições 70, 1981, pp. 64-68).  

    



Nenhum comentário:

Postar um comentário