quinta-feira, 30 de julho de 2020

«Portugal teve de resistir a Castela para manter o seu direito de ser»

Escrito por Agostinho da Silva
















«Como arma de ataque ou de defesa, o pau é uma forma tão simples que a etnologia, em geral, não o inclui na categoria das "armas que se seguram com as mãos". No entanto, um bom jogador de pau não receia enfrentar qualquer adversário que use essas outras armas. Põe-se assim o problema de saber se o uso do pau como arma representa apenas um aspecto do uso do pau como implemento de carácter geral, ou se, pelo contrário, o uso do pau em geral representa a ampliação a outras funções daquilo que principalmente e basicamente era apenas uma arma.»

Nuno Russo («Esgrima Lusitana»).


«Era já dia claro; e o sol alto, por essas manhãs de Agosto, começa logo a morder. De castelhanos não havia notícia. Para além do Lena, as dobras do terreno, fechadas de mato, escondiam horizontes. O rei, trazendo sobre a armadura um loudel bordado com palmas verdes cercando escudos de São Jorge, na cabeça o bacinete cilíndrico [o que se conserva no tesouro da Batalha], armava cavaleiros: entre eles Vasco da Lobeira, futuro autor do Amadis de Gaula, tronco dos romances de cavalaria peninsulares. Tinha ao lado o arcebispo de Braga, D. Lourenço, nosso conhecido, pitorescamente arranjado; levava no elmo, em vez de pluma, uma imagem da Virgem, e o roquete de bispo por loudel sobre a cota de armas. Diante dele um clérigo erguia a cruz primacial, à imitação do seu predecessor que fora ao Salado com o Santo Lenho de Portel. Havia a maior extravagância nas armas e armaduras: bacinetes de camal, com caras ou sem elas, solhas, loudéis, cotas, faldões, panceiras, lanças, fachas de ferro e de chumbo, machados: todas as armas, de todos os feitios, mostrando, na sua variedade confusa, a desordem com que tudo se improvisara à vontade de cada qual: desordem, porém, sob que palpitava um pensamento firme e criador.

Ao inverso do que sucedia no magnífico exército castelhano em que a ordem era só aparente, aqui era-o só a desordem. Lá, o exército avançava trazido por um rei enfermo, cercado de povo inexperiente. Aqui, o rei era um rapaz educado pela vida, friamente forte; e o Condestável, escolhendo o lugar do combate, dera a medida do seu génio, até por se defender contra o medo dos seus, encurralando-os num local de onde não havia que fugir senão para o inimigo. As debandadas provocadas pelo pânico eram impossíveis nessa chapada cercada de despenhadeiros, fechada nas costas por uma garganta breve.

Arvorada a sua bandeira santa, aquela que primeiro se desfraldara ao sul do Tejo, quanto partia para os Atoleiros, Nun'Álvares, junto dessa garganta estreita, de joelhos, rezava fervorosamente. Trazia uma jaqueta de lã verde bordada de rosas sobre a armadura completa; à cinta levava a espada que o alfageme lhe corregera em Santarém, e uma adaga que só tirava quando ouvia missa. Orava fervorosamente, prometendo à Virgem um templo em Seiça, ao pé de Ourém, a São Jorge outro, ali mesmo, no lugar que os seus joelhos pisavam. [A igreja de Santa Maria de Seiça começou-a em 1393; a ermida de São Jorge existe ainda na aldeia desse nome].

(...) Foi então o grande alarido da batalha [de Aljubarrota]. Apertados num estreito lugar, a cavalo e a pé, homens-de-armas e peões, cruzavam os golpes. Os portugueses de Castela, vindo do centro da vanguarda e ficando por isso à frente do magote estavam no coração da peleja, que, dos lados, os ginetes castelhanos, destacados, acirravam. Mas o enorme vulcão de homens, cavalos, armas, cobertos por uma nuvem de dardos e setas, revolvia-se impenetrável na sua fúria. Os inimigos, achando uma luta corpo a corpo, tinham deitado fora as longas lanças de combate, ou tinham-lhes partido os contos; pelejavam com fachas, espadas e estoques. Os episódios homéricos repetiam-se, e os milagres, povoando o ar, traziam das nuvens os santos à peleja. Nun'Álvares via uma lança descer do céu e bater em cheio em seu irmão Pedro Álvares, o Mestre de Calatrava, que tombava morto. Revolvia-se a mó dos combatentes em torno da capela de São Jorge: ao lado flutuava ao vento, desfraldada, a bandeira mística do condestável. Uma cutilada fizera voar o elmo encimado pela Virgem: o elmo do nosso arcebispo D. Lourenço, que tinha um gilvaz na cara e a orelha cortada, deitando ribeiradas de sangue. Guevara, o roncador Guevara, untava a face com sangue, dizendo que se tingia com a gente que matava. D. Pedro, ouvindo-o, deu-lhe um golpe de través que o decapitou. Velásquez, o grande caçador, Sanchez de Toledo, o letrado, Galvez, o Sem-medo, Montachez, Oropesa, Mondonedo, acabaram todos num feixe às mãos de um só, o António. Salazar, o grão taful, o mais célebre rufião de Sevilha, abandonado pela amante e arruinado, investiu com o Gaspar que o levantou nos braços e o matou, a pernear, com a própria espada dele. Hilário morreu murmurando o nome da sua Antónia. O Lopo e o Vicente, Orestes e Pílades de Lisboa, que tinham jurado morrer juntos, acabaram abraçados. O Giraldo, sem escudo, das muitas cutiladas que levara, tomou-o do Perez, matando-o; e mataram-no a ele, rompendo-lhe o mesmo escudo com uma estocada, e metendo-lhe em hastilhas pela barriga dentro. Mem Rodrigues, lavado em sangue, deixava um rasto por onde passava. O Telo era morto; os Tabordas, Gonçalo Vasques, D. João, senhor de Galiza, Pêro Dias, o conde de Vilalpandos, Manrique: castelhanos e portugueses de Castela, caíam por terra agonizantes. D. Pedro, Conde de Vilhena e condestável, jogava a vida a golpes de facha com os Vasconcelos e com Vasco Martins de Melo, que o mataram.

E quando a vanguarda portuguesa cedia, Nun'Álvares, fitando a sua bandeira desfraldada ao vento, via-a cercada por um bando de pombas brancas que o enchiam de valorosa esperança. O rei vinha correndo da retaguarda em seu auxílio, guiado pela Senhora de Oliveira, de braços abertos... São Bernardo aparecia também, empunhando o báculo num braço de monge, donde caía um paludamento retinto em sangue. O céu abria-se para guiar a ideia alucinada pelo fragor da luta e o braço hirto nos crispamentos do instinto orgânico. Vinha o rei correndo e combatendo no meio da horrenda batalha, quando o Sandoval, aparando-lhe um golpe de facha, o desarmou, fazendo-o cair de joelhos. Estava por terra: ia morrer? Não; ergueu-se num salto, a investir; mas já o Macedo varara o castelhano com uma estocada deixando-o estendido. E com o socorro da retaguarda, reforçada pelas alas, todos os portugueses, reunidos, repeliram gradualmente os inimigos triturando gente e cavalos, castelhanos e franceses, numa confusão medonha de ver.

Observando que a balança pendia contra ele, o rei de Castela, içado em braços a uma mula, ardendo em febre, ordenou que a segunda linha avançasse, desenvolvendo em crescente, à moda dos árabes, para envolver os portugueses. Mas essa segunda linha não estava formada ainda; ainda o couce do exército com muita peonagem não concluíra a marcha; avizinhava-se a noite; e o movimento para avante chocava-se com o movimento de recuo, já declarado nos combatentes.







O Mestre de Alcântara, porém, com a sua cavalaria de homens-de-armas e ginetes, que torneara, como vimos, o arraial português por leste, assaltava-lhe, entretanto, sem êxito, a estacada de couce, no curral das bagagens onde os besteiros e peões se viam em perigo. A batalha que se vencia na frente, podia tornar-se em derrota pelas costas. Nun'Álvares correu lá. Estava a pé: tomou o cavalo do comendador-mor de Cristo, Pêro Botelho. Foi lá, restabeleceu os ânimos, repeliu os assaltantes, conjurou o perigo. E tornando à vanguarda, excitando o valor até à loucura, impeliu-a contra o inimigo, obrigando-o a retroceder. Restabeleciam-se as linhas de batalha; oscilava favoravelmente a grande seara de gente em armas; pendia do lado de Castela, começando a fraquejar e a ceder... A vitória estava ganha. Encerrado no seu fojo, o Condestável obtinha a vitória, nesse dia que ia caindo rapidamente, realizadas, uma a uma, as suas previsões, desde o instante em que, rompendo com o conselho e com o rei, abalara de Abrantes, disposto a impedir aos castelhanos a marcha sobre Lisboa.

E toda esta batalha, tão longa a contar: momento de vida intensa em que as linhas valem por anos, durara apenas meia hora. Anoitecia. A hesitação na vanguarda tornara-se em retirada.

- Já fogem!, já fogem! - gritavam do lado de cá; e a retirada transformava-se num debandar doido, procurando cada qual a sua besta para correr mais rápido, perdendo-se pelos matos, assustando o crepúsculo com um sussurro monstruoso de gritos de aflição e interjeições de ansiedade. A bandeira de Castela tombara por terra: o dragão mordia o pó, as divisas dilacerava-as o mato espezinhado, retinto em sangue. Os largos campos para os lados de Alcobaça palpitavam com a gente dispersa fugitiva, escondendo-se pela charneca, envolvendo-se nas dobras do manto da noite que vinha descendo. Acordavam as aldeias dos coutos de Alcobaça, e os aldeões, que o medo fechara em casa, saíram a ceifar na seara aflita dos desgarrados, matando e roubando. A padeira, em Aljubarrota, dizia-se que matara sete com a pá do forno.»

Oliveira Martins («A Vida de Nun'Álvares»).


«Depois que faleceram sem descendência os filhos de Filipe o Belo, foi dada a coroa de França ao sobrinho deste monarca, Filipe VI, filho do Conde de Valois. Assim foi a linha directa dos Capetos substituída no trono pela de Valois (1328). [A dinastia dos Capetos fora inaugurada por Hugo Capeto (987-996). A este seguiram-se em França os seguintes monarcas: Roberto (996-1031), Henrique I (1031-1060), Filipe I (1060-1108), Luís VI (1108-1137), Luís VII (1137-1180), Filipe Augusto (1180-1223), Luís VIII (1223-1226), Luís IX, mais conhecido por S. Luís (1226-1270), Filipe III (1270-1285), Filipe IV o Belo (1285-1314), Luís X (1314-1317), Filipe IV (1317-1322), e Carlos IV (1322-1328). Os três últimos eram filhos de Filipe o Belo].

Eduardo III, rei de Inglaterra, neto de Filipe o Belo por sua mãe Isabel, julgou-se lesado. [Contra as pretensões de Eduardo III foi invocada a lei sálica, que era uma colecção de costumes políticos e judiciários dos francos sálios e chegou a ser considerada como uma das leis fundamentais da monarquia francesa. Essa lei proibia a sucessão na linha feminina]. Nesta oposição de interesses teve origem uma guerra que devia prolongar-se por mais dum século (1337-1453).»

Fortunato de Almeida («Curso de História Universal», Vol. II).


«Esperava-se que a intervenção inglesa rematasse decisivamente a obra da independência iniciada pela dinastia nova, e assente já sobre os alicerces de duas campanhas reais: a de 1384, vencida pela Providência que desencadeara a peste; e a de 1385, vencida em Aljubarrota pela arte de Nun'Álvares. Seguindo a questão da herança de D. Pedro, o Cruel, Portugal, explorando a sua posição marítima, pedia por mar auxílio à Inglaterra, para se defender contra o Estado central da península hispânica. E Castela pedia-o à França vizinha, que nesses tempos, invadida pelos ingleses, mais ameaçada e quase perdida estaria, se a coroa castelhana fosse cair sobre a cabeça de um dos duques saxónicos. Por tal forma, a questão de Portugal era, pela primeira vez, o que tantas vezes foi depois: um episódio na grande contenda da influência ocidental europeia, debatida entre a França e a Inglaterra, quando o mundo culto podia dizer-se limitado aquém-Reno; e quando, no equilíbrio das nações modernas, nem a Alemanha, nem a Rússia, intervinham predominantemente.

A política internacional de D. João I estava indicada, e até imposta pelas circunstâncias. A aliança inglesa era a âncora que prendia à praia lusitana a nau imperfeita da nação portuguesa, ameaçada de naufrágio com os temporais de leste. Convidando o duque de Lencastre a vir tomar conta da coroa castelhana, talvez D. João I nem acreditasse completamente no êxito da empresa, nem sequer o desejasse; mas os ingleses, que vinham reivindicar para si próprios o trono, eram inimigos novos do seu inimigo, e aliados na campanha ainda não resolvida, apesar da série de vitórias que assinalavam os dois anos de guerra. Por isso, imediatamente satisfez o pedido de navios, e, de par em par, abriu os braços à expedição anunciada, preparando-se para cooperar com ela. Quer perdessem, quer ganhassem, o proveito para Portugal era certo: acaso seria maior ainda se perdessem, do que se ganhassem. Se Castela caísse nas mãos de ingleses, a sorte da França ficaria arriscada; e perante uma tal grandeza de forças, Portugal baquearia.

A aliança inglesa, portanto, servia para conter as ambições castelhanas: mas só para isto. O procedimento posterior de D. João I, sempre aberto à paz, sem abusar da vitória, sempre retraído perante os ingleses, sem faltar aos pactos da aliança: mostra como, no seu alto espírito político, a situação particular de Portugal se desenhava nitidamente. Era necessário conservar o trono castelhano, mas enfraquecido; e para isso era mister dar a mão ao inglês, mas contendo-lhe as ambições.




Por seu lado, os ingleses não podiam desconhecer que serviço estavam prestando à revolução portuguesa, permitindo o aliciamento de tropas e organizando a expedição do Lencastre; e sabendo-se que importância tinha já a marinha portuguesa, então sem dúvida superior à dos futuros dominadores dos mares, compreende-se a razão de ser da primeira convenção com Ricardo II, celebrada em Londres pelos representantes de Portugal. Por virtude dela, D. João I prestava ao seu aliado o auxílio de forças navais para as empresas em que andava empenhado. Não há, com efeito, compensação no corpo do tratado pois a compensação real estava nos factos simultâneos, cujo alcance para o êxito da quase temerária revolução portuguesa era palpável, e num sentido decisiva.»

Oliveira Martins («A Vida de Nun'Álvares»).


«O fiel de Deus já se acha no guerreiro, ao modo de como se acha em Elias, nas violentas guerras contra os sacerdotes de Baal. Elias arde em zelo pelo Senhor Deus dos Exércitos, Nun'Álvares apresenta-se como o "capitão devoto" que, afastado das tropas, ora e invoca o seu Deus, "suma e trina essência", em favor da sua causa, que ele tinha como justa, por ser causa da unidade católica. A sua vocação não é a guerra pela guerra, a sua vocação é a paz. Homem de confiança, vive-a e transmite-a aos súbditos, na refrega da batalha. E, vencedor, "sempre castiga como pai, e como juiz nunca". A imagem, assim proposta como que em antinomia, tem que se lhe diga: castiga como pai, não julga como juiz. Leia-se: a justiça acha-se limitada pela misericórdia. No essencial, a justiça; no resto, o amor.»

Pinharanda Gomes («O Galaaz do Carmelo», in «S. Nuno de Santa Maria - Nuno Álvares Pereira. Antologia de Documentos e Estudos sobre a sua Espiritualidade»).


«Venerado como santo, divinizado como herói, pela imaginação de um povo inteiro, Nun'Álvares, cuja fé realizou o milagre de remir, para lhe dar um posto na história da humanidade, marcou-lhe ao mesmo tempo o destino, quando, acabada a empresa, foi sepultar-se na cova de um mosteiro. Também Portugal, rematada a campanha heróica da sua expansão ultramarina pela catástrofe com que terminou o século XVI, se condenou ao sepulcro frio de uma devoção extenuante e dissolvente. Só os indivíduos podem aniquilar-se esteticamente: os povos, finando-se, desorganizam-se.

A revolução de 1383 e a dura guerra a que assistimos, mantendo a autonomia política do Estado português, deram-lhe porém uma nova alma: fizeram deste principado uma nação consciente da sua vontade colectiva; pelo mesmo tempo em que, na Castela vizinha, se ia definindo claramente o destino que a assinalava para a hegemonia, e afinal, para a unificação dos Estados peninsulares. Até então, em toda a Espanha, não houvera nações, na rigorosa expressão da palavra, mas sim apenas reinos, ou principados autónomos, nascidos no tumulto da reconquista, delimitados pela força das coisas, variando as fronteiras à mercê da arte, ou do valor dos soberanos. Desde a queda dos visigodos, a Espanha ficara decapitada, e as guerras entre os Estados cristãos são de facto guerras civis. Em cada Estado, as classes, incluindo a nobreza, eminente numa classe quase exclusivamente militar, não se sentem estrangeiras perante as vizinhas, e combatem por um ou por outro lado, instigadas por motivos vários: nunca pelo sentimento de solidariedade nacional.

Com o findar do século XIV mudam as coisas, e os sentimentos novos que se definem preparam o regime posterior do dualismo, em que o antigo Reino de Castela, passando mais tarde a chamar-se a Espanha, exprime com uma palavra só o pensamento unitário da sua existência. Na Espanha ficava todavia Portugal, e depois do baptismo de 1385, Portugal era também uma nação; e também no espírito dos seus monarcas principiaram a florir as ambições de realizar a unidade a seu benefício.

Ao problema propriamente geográfico acresceu desde logo o problema orgânico, pois a ideia nova de Nação diferia por completo do facto espontâneo dos Estados medievais. Eram, estes, agregados de famílias nobres e de vilas burguesas; existiam, federativamente, por justaposição, indiferentes às condições de proporção: a grandeza estava no esplendor das façanhas heróicas! Agora, a nação surgia com os caracteres de um ser uno e vivo, tendo como cérebro o Pensamento, incarnado na pessoa simbólica do rei. Das proporções do Estado dependia a sua grandeza; da sua grandeza a possibilidade de satisfazer à missão magnífica em que se sentia investido. Impossibilitado de se expandir na Península, Portugal viu-se forçado a embarcar. Ceuta foi a primeira viagem: Alcácer-Quibir a última.

É impossível reconstruir a história com hipóteses; mas a imaginação pára inquieta perguntando, se, com efeito, o sonho de Campanella não poderia ter sido um facto, caso o filho de D. João II não tivesse morrido de uma queda estúpida. O herdeiro do trono de Avis, monarca de toda a Península, senhor de todo o mundo extra-europeu, poria talvez sobre a cabeça a coroa de um império maior e mais firme do que foi o de Carlos V. Unificando-se politicamente a Península pelo ceptro de um rei português, enfeixando-se todos os Reinos da Espanha no período ascensional da sua fortuna, é possível que a Portugal sucedesse como ao Aragão; ao passo que, depois, quando, sobre uma catástrofe, a união se fez, o povo que num século atingira a plenitude da glória, identificou a união com a desgraça, chorando nas mesmas lágrimas a independência perdida e a fortuna dissipada. E se o acidente fatal de 1491, quando a princesa Isabel de Castela ficou viúva, não tivesse malogrado a ambição ingente do maior homem, talvez, que em Portugal nasceu, a coroa do herdeiro de D. João II, rutilante com as visões diamantinas de Nun'Álvares, que foi o Paracleto português: a coroa rutilante de Avis não teria, é quase certo, rolado pelos areais de Alcácer-Quibir, dispersando as suas pedras desengastadas como lágrimas soltas na face adusta da aflição cruciante de um povo.







Essa aflição, esse doloroso martírio com que nós, portugueses, pagámos e ainda pagamos, um instante de fortuna incomparável, não devem hoje surpreender-nos, pois uma das verdades sabidas é que os momentos de bem-aventurança na Terra são expiados sempre por largos tempos de amargura. O homem não nasceu para a felicidade, por isso mesmo que a natureza lhe deu a imaginação com que se eleva acima do mundo: a felicidade é o estado próprio dos seres apenas vegetativos. Tempo houve, porém, em que desta própria amargura da vida, a imaginação humana fez a escada mística por onde subia, das portas da morte, às visões luminosas do Céu.

Exemplo superior da concepção cristã da vida, e por isso venerado como santo, Nun'Álvares é porventura o tipo culminante da energia própria desta nossa raça peninsular ibérica, idealista na alma, e afirmativamente heróica. O heroísmo encontrou objecto no sentimento histórico da independência que transformou em consciência nacional; o idealismo vasou-se no credo religioso que havia de abrasar toda a Espanha, produzindo um dos fenómenos mais extraordinários da alucinação colectiva.

Históricas, ou transactas, as formas em que a sua energia e o seu pensamento se moldaram, por isso mesmo Nun'Álvares se levanta no passado remoto como o representante eminente do tempo em que existiu. Herdeiros das lições do passado, filhos de um mundo envelhecido, não podemos, é certo, repetir no seu objecto a devoção quase histérica dos santos medievais; mas havemos de aprender com os heróis, qual foi Nun'Álvares, de quanto o homem é capaz, desde que obedece aos impulsos generosos do seu coração e aos movimentos decididos da sua vontade enobrecida.

A alucinação medieval desfez-se logo que outra vez se ouviu, na Renascença, a voz diamantina da razão, e o encanto da beleza encheu de novo o mundo, repovoando os ares e os campos com os génios antigos da harmonia. Morrer bem: tal foi a sabedoria suprema de todos os tempos. À eutanásia dos gregos sucedeu o suicídio claustral com a esperança numa ultravida recheada de piedosa fortuna; mas a ideia que hoje fazemos da morte parece-se mais com a mais distante. Por isso as tebaidas, os claustros, os eremitérios, caíram em ruína; nem por isso, todavia, a noção da vaidade universal das coisas é para nós menor do que era para Nun'Álvares, apesar de ter descido voluntariamente do sólio onde se sentava à Távola Redonda da glória e da grandeza, para se esconder com humildade na sombra espessa do claustro. A certeza do prémio transcendente diminui o mérito da abnegação; e neste sentido o fim de Sócrates vale tanto como o dos santos; e talvez a tragédia de Útica valha mais do que muitos sacrifícios.

Nos tempos modernos, ninguém soube a Vida melhor do que nós, os povos da Espanha: isto é, ninguém afirmou tão superiormente a energia da vontade humana. Ninguém tão-pouco melhor soube morrer, do que o povo que incarnou em si, paradoxalmente, a teoria da morte no seio do Eterno: esse pensamento agudo como a lâmina de uma espada que, dobrando-se e traspassando o mundo, na sua redondeza, veio cravar-se-nos no coração para no-lo dessangrar. A Espanha foi vítima de um erro de definição; e se um dia os homens atinarem com a verdadeira teoria da Vida, ninguém, tão-pouco, saberá morrer por ela como o povo de entre todos gerado para o heroísmo.»

Oliveira Martins («A Vida de Nun'Álvares»).






Capelas Imperfeitas


Portugal teve de resistir a Castela para manter o seu direito de ser


«Oh que formosa coisa era de ver...»

FERNÃO LOPES


Se, porém, está marcado nos destinos que se seja ao mesmo tempo fraterno e universal, o que muitas vezes sucede é que se tenha de começar por pôr de lado aquilo que é apenas uma falsa fraternidade e repousa no desejo que têm os outros de exercer as suas escravaturas, tanto mais perigosas e difíceis de evitar quanto, na maior parte das vezes, se acobertam com os pretextos de uma irmandade que é necessário não quebrar. E Portugal teve, quase logo de início, de tomar a sua definida atitude em face de uma Castela que se não resignava a deixar que cumprisse seu particular destino uma daquelas regiões periféricas sem as quais a vida material lhe seria extraordinariamente difícil. Portugal teve de resistir a Castela para manter o seu direito de ser; teve, por obediência ao pai que o concitava com o seu chamamento, de ser aquela espada que fala o Evangelho e começar por actos de guerra a missão que era, afinal, essencialmente de paz; teve, para poder unir mais tarde, se separar primeiro.

Fê-lo como logo de princípio se constituíra em nacionalidade, apoiado nas características físicas de sua terra, toda em brando declive até o mar; apoiado no voluntarismo de sua gente, disposta a talhar-se um domínio que fosse não o contrário, mas o domínio daquela Santa Maria, a quem o Rei entregara o território; o único domínio sobre o mundo daquela que nada tivera enquanto o universo pagão se sustentara vivo e continuava a nada ter numa Europa que, no fundo, pagã continuava; o domínio daquela que representava a porção virgem da alma que sempre persiste em todo o homem e em que sempre se pode renovar o milagre de nascer um Deus; finalmente apoiado, pelo que respeitava ao irmão-corpo, numa economia que era das mais importantes para a Europa e que, por outro lado, se imbricava perfeitamente em todo o jogo da economia inglesa.

E é por este lado que a guerra da independência de Portugal é, paradoxalmente, ao mesmo tempo que o faz voltar as costas à Europa, o único momento em que Portugal está fundamentalmente interessado numa guerra europeia. Atoleiros, Trancoso, Aljubarrota e Valverde são episódios da Guerra dos Cem anos. Aos espanhóis aliados da França se opõem os portugueses aliados de Inglaterra; e, neste ponto, a vinda dos arqueiros ingleses significa o primeiro dos desembarques que, de vez em quando, para defender sua insularidade, a Inglaterra tem de realizar na Europa. Mas não só politicamente Portugal se opõe à Europa, não só militarmente, e pondo de parte todos os desencontros de terreno e de tempo, Nunálvares está contra Joana d'Arc. Em toda a sua luta, jamais o Português tomou uma atitude que pudesse de algum modo envolver uma quebra da unidade da Igreja. Porque a realidade era essa: todo o atentado contra a unidade da Igreja, todo o gesto por menor que fosse para impedir que Roma, pelo menos espiritualmente, governasse todo o Ocidente da Europa como ponto de partida para governar o mundo, era efectivamente um atentado contra o cristianismo; para o pormos mais claro no vocabulário moderno, contra o catolicismo.

As objurgatórias de Camões contra os outros povos que se denominavam cristãos e estavam por suas lutas internas enfraquecendo o cristianismo têm aqui o seu ponto de arranque. O infiel perdurará na medida em que essa fraternidade cristã se quebrar. O bárbaro continuará existindo na terra na medida em que o civilizado se dividir. E que estava fazendo apesar de tudo Joana d'Arc? Estava dando, quando tomava para si o direito de interpretar pessoalmente, segundo seu sentimento e sua razão, as vozes do Céu, estava dando a primeira base para o protestantismo germânico; e estava dando, quando defendia uma França contra uma Inglaterra, o primeiro reconhecimento daquele nacionalismo que tão anticristão se haveria depois de mostrar; tão protestante, de igual modo. Por esse lado se explica que um tribunal eclesiástico a condenasse. E se explica depois que a Igreja a canonizasse: porque na sua luta dramática, quando tudo parecia conluiar-se para a desesperar, Joana jamais deixou de ser humilde; como S. Francisco, defendendo doutrinas tão semelhantes às de Valdus, humilde fôra e, por humilde, santo; Valdus, porém, por seu orgulho, herege.


Mas Nunálvares estava, por uma parte, claramente obediente a um Papa de Roma, enquanto o castelhano, cismático, defendia o Papa de Avinhão; por outra parte, ele não estava batendo-se por uma nação portuguesa contra uma nação espanhola. Em primeiro lugar porque não havia uma nação espanhola, embora as tropas que invadiram o país não fossem exclusivamente castelhanas; em segundo lugar porque mesmo muito tempo depois de terminada a guerra, nunca os portugueses negaram que fossem espanhóis no sentido de pertencerem à Península: espanhóis, sim, mas espanhóis de Portugal, não espanhóis de Castela; espanhóis, mas espanhóis que defendiam, contra um estilo de vida de opressão e de fanatismo e de pura cobiça, um estilo de vida de liberdade, de compreensão e de cooperação que deveria ter sido, por suas razões históricas e por suas tradições, o verdadeiro estilo de vida da Península; espanhóis, mas espanhóis que defenderiam com o seu sangue e quantas vezes fosse preciso, atravessando os martírios de Almada ou de Lisboa, o direito de determinarem o seu próprio destino: e que, graças à geografia de seu território, graças à qualidade de sua gente, graças à fieira de seus portos marítimos, graças à sua plataforma de excelente pesca, graças a seus verões de excelente sal, podiam realizar as façanhas de que não seriam capazes nem o Sul, nem a Galiza, nem Catalunha. A guerra da independência não é uma guerra entre grupos nacionais, mas uma guerra entre irmãos: a guerra que o Evangelho já previra.

Quanto à aliança inglesa também não era ela, no seu aspecto histórico, uma aliança fundamental ou o reconhecimento de uma irmandade superior à irmandade peninsular ou, digamos, mais real do que ela. A aliança inglesa era, por uma parte, uma aliança de interesses, e é bem sintomático que seu primeiro acto tivesse sido comercial, e muito mais sintomático que, de um lado, o tivesse assinado o Rei de Inglaterra e, do outro lado, um negociante ou armador do Porto; era como se do lado de Portugal, o comércio fosse uma actividade particular naturalmente útil ao País e que ele não podia dispensar, mas de que o soberano, como seu representante supremo, não tomava conhecimento oficial; e como se, do lado da Inglaterra, o comércio fosse uma actividade nacional, profundamente intrínseca à nação e, como tal, sancionada pelo Rei; coisa que de jeito nenhum foi desmentido pelo que se seguiria na história da expansão britânica.

Mas era também como uma aliança de esperanças. O carácter português e o carácter inglês alguma coisa tinham de semelhante, talvez, abrindo porventura mais crédito do que elas merecem a hipóteses étnicas, pelo que em ambos havia de céltico. O lirismo, como uma das qualidades mais nitidamente estabelecidas em ambos, em ambos igualmente se disfarçava pela discrição e pelo rendido respeito à pessoa humana, inclusive à própria; a aventura do comércio e da navegação a ambos tentava, como igualmente os atraía a terra nevoenta e misteriosa em que se sumira o Rei Artur e em que D. Sebastião se viria a sumir; romances de cavalaria de um a outro passavam e em ambas as terras encontravam o mesmo interesse, mais do que interesse, o mesmo poético toque de inclusão da ficção na vida; a mesma infantaria, provocada por causas semelhantes se levantava contra uma cavalaria que as circunstâncias democráticas, logo depois duramente reprimidas em quase toda a Europa, condenavam para a história. Se juntarmos a isto a perfeita coordenação das duas economias como, pelo que podemos reconstituir através de raros documentos, um país fornecendo ao outro o cereal que lhe faltava, em troca das frutas, dos peixes e dos vinhos, podemos compreender que, para além dos interesses momentâneos, pudesse ter passado em cérebros portugueses, tão afeitos às largas concepções políticas, a ideia de uma aliança que envolvesse o mundo numa tessitura cristã. Ideia que ainda hoje não estaria totalmente perdida se se pudesse aproveitar Goa como ponto único de enlace entre uma Commonwealth britânica e uma comunidade de nações de língua portuguesa.

Igreja da Nossa Senhora da Imaculada Conceição em Goa.


Simplesmente, os fados ou as ideias humanas, outros caminhos ordenaram. A Inglaterra, que já entrara na luta contra a França, não para defender o seu direito de ser livre, mas para conquistar territórios em que se não falava a sua língua, amplamente merecera que Joana a batesse; acabou por defender, e penosamente, o direito de possuir uma insularidade, que, por vezes, tanto desajudou o mundo, mas que seria o seu sólido porto de armamento e o seu abrigo inexpugnável durante o período de aventuras ultramarinas. Por outro lado, e como consequência fatal do seu primeiro impulso, e sem que possamos dizer onde um é causa e o outro efeito, mas antes os tomando como dupla manifestação de uma mesma realidade, como uma espécie de corpo e alma de uma certa época da história o capitalismo e o protestantismo vão-se apossar da Inglaterra. Vão separá-la de Roma; e, por a terem separado de Roma, vão-na separar, não diremos para sempre, porque afinal todo o pecado é remissível, mas pelo menos para muito tempo, daquela humanidade que anseia, acima de tudo, por que finalmente se estabeleça na terra um regime de fraterno viver.

Mas com Portugal não é isso que sucede; Portugal entra na guerra e sai da guerra como o grande defensor da unidade da Igreja; a vitória da véspera de Santa Maria é igualmente a vitória de Roma sobre Avinhão e jamais se quebra a fidelidade portuguesa à Santa Sé, mesmo quando parece errar o Rei ou quando parece errar o Papa. E Portugal entra na guerra e sai da guerra não defendendo insularidade alguma, não defendendo isoladamente algum; o que ele ganha e faz reconhecer é o seu direito ao Atlântico, é o seu direito de ser irmão dos outros povos do mundo. E o ganha contra as tentadas opressões de uma tirania, que tanta vez depois assaltará Portugal, ou de dentro ou de fora, e que no fundo o que procurava ou tem procurado é isso mesmo: fazer de Portugal não um país dos sete mares mas um país das pequenas províncias, quando muito de estreito conforto burguês; cortar a sua vocação missionária; pautar o seu viver não pela epopeia, mas pela contabilidade.

É esse surto magnífico de vida; essa vitória do que é santo contra o que é temporal; essa unidade da nação em defender o futuro, que vai ser de sacrifícios, de saudades e lágrimas, segundo o seu signo inicial; é esse apostar-se à História Trágico-Marítima, quando podia ter pactuado e se rendido; é esse ser do ser, arriscando o que é, que vão dar a eloquência, a emoção, a piedade, a sensibilidade e a força, a inteligência e a poesia, a veracidade, a criação de um Fernão Lopes, que vão fazer dele, não diremos talvez o autor de um novo Evangelho, mas pelo menos de novos Actos dos Apóstolos; dos Apóstolos que nascem ali para a preparação de um catolicismo universal. O que faz que Fernão Lopes bata Ayala, ou Froissart é que ele conta o seu país, e o seu país daquela hora única no mundo, não conta uma Espanha ou uma França, tão vulgares, apesar de toda a sua grandeza, como em qualquer outro tempo; é grande o artista; maior, porém, por detrás dele, Portugal. (in Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa, Guimarães Editores, Lisboa, pp. 45-54).




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