quinta-feira, 23 de julho de 2020

Suaves Cavaleiros

Escrito por Orlando Vitorino


«O materialismo moderno surge quando parece alcançada a finalidade que Descartes preconizara à filosofia. O que fora desígnio mental de filósofo era agora uma bela convicção que todos perfilhavam: com a indústria, com a sua capacidade de produção regular e incessante ao abrigo das vicissitudes a que estão sujeitas as colheitas naturais, com a sua potencialidade de desenvolvimento ilimitado e de reprodução interminável, estaria enfim obtido o instrumento da fartura inesgotável, a abundância universal, a "riqueza das nações". A todos seria doravante dado tudo de que necessitassem e ficariam abolidas as divisões e dependências entre os homens, triste fruto das carências que não era possível satisfazer. Não haveria mais senhores e servos, liberdade e justiça seriam enfim reais.

Mas o que na dramática realidade se observava, se sofria e cada vez mais se veio acentuando, era precisamente o contrário de tão confiante expectativa. Com o triunfo do industrialismo, a desigualdade e servidão dos homens alargava-se a proporções nunca antes atingidas em sociedade alguma, até naquelas em que a distinção entre homens livres e escravos era atribuída a insondáveis desígnios da natureza ou a fatais consequências da guerra; e com a sua incessante expansão, o industrialismo sujeitou o mundo a uma fealdade e a uma poluição cada vez mais asfixiantes, adquiriu os mecanismos para destruir a natureza ou imediatamente ou num inexorável prazo, formulou as doutrinas que dão o estado de servidão como sendo a mesma liberdade, que subordinam tudo o que é superior ao inferior, que fazem da ignorância, da pequenez mental e da redução da acção humana à manufactura as detentoras da virtude e que levaram já a uma degenerescência da espécie humana.

Face a tais consequências - num aspecto para delas irresponsabilizar o industrialismo, noutro aspecto para as justificar - é que se vai erguer, entre a religiosa aceitação dos que se julgam mais desesperados ou impotentes, o materialismo moderno. Sua primeira expressão consiste, precisamente, em asseverar que, com o domínio da natureza que supõe, com o primado da vontade e prioridade da acção que representa e com a abundância que promete trazer a todos os homens, a produção industrial estabelece as condições para que a sociedade rejeite os vestígios da transcendência que tem em si e se conheça como aquilo que verdadeiramente é, como um materialismo. O método deste conhecimento será o materialismo dialéctico.

Pretende o materialismo dialéctico constituir uma tradução da dialéctica hegeliana também segundo a interpretação que dela fez Feuerbach. A dialéctica hegeliana tem por paradigma a formação do conhecimento no trânsito que vai do ser que se ignora ao ser que se conhece: no primeiro momento, o ser aí está em sua pura inocência ou total ignorância de si; no segundo momento, o ser nega-se a si para se fazer o outro de si; no terceiro momento, situado assim fora de si pela negação de si, o ser adquire de si mesmo, como outro, o conhecimento ou saber que no primitivo estado de inocência jamais poderia alcançar, e regressa então a si.

A tradução desta dialéctica do ser e do conhecimento em termos de materialismo obedece à interpretação e exemplificação que de tal dialéctica fez L. Feuerbach e é a seguinte: no primeiro momento, que será o do capitalismo, a sociedade aí está na inocência ou ignorância daquilo que é, do seu materialismo, ignorância que alimenta ou de que a si mesma se ilude atribuindo-se princípios transcendentes, origens religiosas, finalidades éticas, constituições jurídicas; no segundo momento, o da "crítica da economia política", a sociedade nega-se a si mesma, nega o que estava sendo no anterior momento de ignorância ou de capitalismo, para se fazer o outro de si, se analisar e conhecer como o materialismo que é; no terceiro momento, que será o do socialismo, a sociedade, adquirido o conhecimento do que é, regressa a si como saber de si.

Esta tradução materialista da dialéctica hegeliana constitui um claro exemplo daquilo a que Hegel chamou "intelecto abstracto" e "razão raciocinante", isto é, do intelecto e da razão que se fecham em si mesmos, nenhuma relação têm com a realidade de que se ocupam e operam com abstracções. Com efeito, nenhum sentido real tem a abstracta substituição do ser pela sociedade. Nada há de mais diverso. O ser é uma unidade substancial e indissolúvel, que não se compõe de partes. É todo ele que começa por estar na ignorância de si, e é todo ele, sempre permanecente na sua unidade ôntica, que se faz o outro de si para, também todo ele, regressar a si conhecendo-se. Se a dialéctica é a expressão deste movimento, não há dialéctica sem ontologia. [Para o pensamento da dialéctica, e de como é vã toda a dialéctica que não suponha uma ontologia, ler o admirável livro de José Marinho Teoria do Ser e da Verdade (Guimarães Editores, Lisboa, 1961)].

A sociedade, pelo contrário, é um composto de partes, uma colecção de indivíduos que se agregam movidos por causas e fins bem clara e previamente determinados. O seu começo, que o materialismo dialéctico pretende equivalente ao estado de inocência do ser, não é portanto um estado de ignorância de si, mas precisamente o contrário: é um estado que, como nenhum outro, tem presente o saber das causas e fins que fizeram que a sociedade existisse, que fizeram que os homens nela se agrupassem. Constitui, portanto, um absurdo pretender que alguma sociedade possa alguma vez ignorar-se a si, desconhecer as causas e fins que lhe deram origem e a mantêm; tal ignorância seria a sua inexistência. É é igualmente absurdo pretender que a sociedade se possa separar ou cindir de si, fazer-se o outro de si para se conhecer. A cisão numa sociedade, numa agregação de indivíduos, só poderá constituir a sua dissolução, a desagregação das suas partes, a dispersão dos indivíduos que a compõem.






O saber que a sociedade tem de si, das suas origens e fins, é o conteúdo, não da dialéctica, mas do direito, que, referindo aos princípios essas origens e fins, lhes confere um significado principial. Todavia, o desenvolvimento triunfante da filosofia moderna levou a sobrepor a economia ao direito no governos dos povos. Quando é o direito que detém o governo dos povos, os princípios não estão subordinados aos condicionalismos transitórios, circunstanciais e extrínsecos . Porque não serão, evidentemente, a verdade, a liberdade e a justiça que se hão-se conformar às acções dos homens, mas as acções dos homens que se terão de conformar aos princípios. E substituindo-se ao direito, a "economia política" não pode deixar de condicionar a realização dos princípios, por mais respeito que lhes dedique, aos meios, possibilidades e conveniências da produção e da riqueza. Todavia, o materialismo moderno viu na "economia política", não só a expressão daquele absurdo estado de ignorância de si que atribui à sociedade, como o obstáculo que se interpõe entre as virtualidades da produção industrial e a sua realização, o agente maléfico que desfaz as convicções e esperanças que os homens foram levados a depor no industrialismo, a barreira levantada à antropologia do "ser genérico". O materialismo moderno reveste, então, a forma de uma "crítica da economia política". [Depois de Engels escrever Esboço de uma Crítica da Economia Política (1843), livro que Marx diria ser "uma crítica genial das categorias económicas", sucessivamente elabora Marx, primeiro, uma crítica do direito moderno considerando-o na sua última sistematização filosófica, a A Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1844), domínio que significativamente logo troca pelo da economia; e, depois, três críticas da economia política: uma, que permaneceu inédita durante quase um século e veio a ser publicada com o título de Primeira Crítica da Economia Política (1844); outra, talvez a de discursividade menos obscura, que se apresenta apenas como Contribuição para a Crítica da Economia Política (1859); finalmente, O Capital, que se subintitula de Crítica da Economia Política (1867).

Como se vê trata-se sempre de crítica, designação na época prestigiosa graças à filosofia de Kant e que chegou a ser a designação geral com que os "hegelianos de esquerda", atribuindo-lhe um certo carácter de cientificidade, substituíam a palavra filosofia. O materialismo está longe de lhe dar, todavia, um sentido equivalente ao kantiano no qual a crítica se destina a estabelecer as condições do conhecimento ou os limites do conhecimento possível. Aqui, tem por finalidade a polémica - polémica contra a religião em Feuerbach e Bruno Bauer, polémica contra a sociedade e a moral em M. Stirner, polémica contra a filosofia, contra o direito, contra a economia, em Marx e Engels. Explicar-se-á, assim, a definição que dela dão, no livro A Ideologia Alemã (trad. port., Lisboa, 1975, p. 12) os próprios Marx e Engels: "o crítico, esse ordenador de casamentos e funerais"].»

Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»). Ver aqui e aqui


«Motivos vários, cuja investigação compete ao historiador da cultura, divulgaram entre nós o erro de que existe um método dialéctico de promoção do pensamento e de representação da realidade e, o que é pior, atribuíram a sua fundação a Hegel. (...) Chamam alguns vulgarizadores de doutrinas sociológicas dialéctica hegeliana à dialéctica de Fichte, ignorando ou esquecendo que foi o autor dos Grundlage der gesammten Wissenschaftslehere quem, da doutrina da oposição kantiana entre fenómenos e nómenos, desenvolveu a oposição do eu e do não eu, para formular a doutrina lógica da antítese e da síntese como factores de ciência. É evidente que Fichte cruza o esquema da judicação com o esquema da volição, no que se mostrou fiel ao pensamento germânico, acentuadamente violentista, energetista e pessimista. Fácil será verificar que à lógica de Fichte, e não à de Hegel, se subordinam os sistemas de Feuerbach e de Marx. Hegel não era um pensador dialéctico, mas um pensador dramático.»

Álvaro Ribeiro (« A Arte de Filosofar»).



«O industrialismo é, de certo modo, filho do espírito da mística cristã...»

Leonardo Coimbra («A Filosofia de Henri Bergson»).



«Os nominalistas e os terministas, imitando a abstracção matemática, deram ao problema dos universais uma solução que prepara a falácia do idealismo, e serviram assim o engenho de análise mortífera e de uniformidade industrial que lacera, em vez de redimir, a Natureza.»

Álvaro Ribeiro («Aristóteles e a Tradição Portuguesa»).


«Toda a doutrina política implica uma antropologia ou uma concepção do homem. E importa mais saber o que seja esta concepção do que saber o que seja o seu programa de governo.

Duas doutrinas disputam hoje a adesão ou o domínio dos povos: a doutrina da nova direita, que tem por núcleo central o liberalismo, e a doutrina da nova esquerda, que tem por núcleo central o comunismo. Em rigor, trata-se da oposição entre a concepção do homem do individualismo e a concepção do homem do socialismo.

É a primeira uma doutrina da liberdade humana. O liberalismo reconhece que cada ser, cada homem, possui uma singularidade que, além de irredutível, é indivisível ou individual. O primeiro atributo do liberalismo é, por conseguinte, o individualismo, e sua concepção do homem é a de que o ser humano real e vivente é necessariamente um ser singular e individual que não se pode reduzir nem a qualquer outro ser nem a qualquer generalidade, género ou espécie.



Ver aqui, aqui, aqui e aqui



A segunda doutrina, o comunismo, repudia toda a individuação (que, na terminologia da sua propaganda, identifica primariamente com o egoísmo) e recusa-se a reconhecer que o ser humano possua uma singularidade irredutível. Afirma, então, que o ser de cada homem não está nele mesmo mas reside na espécie ou no género, e neste sentido proclama que o homem é um "ser genérico".

A concepção liberalista do homem está assegurada por toda a realidade e o seu saber confunde-se com a mesma ciência antropológica. O que distingue o homem de todos os seres naturais, é a individuação. Esta individuação manifesta-se, não apenas, como acontece na generalidade dos seres humanos, na unidade isolada de sua forma ou corpo; não apenas, como acontece nos outros seres animais, na unidade orgânica, anímica ou movente da sua existência, mas sobretudo na faculdade de pensar. De todos os actos de que a vida é feita, o pensamento é aquele que só um ser uno, indiviso e irredutível tem a capacidade de assumir. A liberdade humana radica, deste modo, na liberdade de pensar.

A antropologia comunista, depois de repudiar a individuação, reduz cada ser humano ao género ou à espécie. Trata-se de uma concepção que só tem possibilidades de se exprimir com algum sentido dentro dos limites da sociabilidade, identificando o género com a colectividade. Cada ser humano nada será, portanto, em si mesmo mas, reduzido ao género, será aquilo que for a colectividade. Existência e acção humanas serão totalmente absorvidas na existência e na acção colectivas, e repudia-se tudo o que suscitar manifestação da singularidade: a divisão do trabalho, a competição e a concorrência e, fundamentalmente, o pensamento, origem e garantia da individuação. Repudiado o pensamento, repudia-se consequentemente a liberdade.

Enquanto a concepção liberalista do homem se identifica com o carácter científico da antropologia, a concepção comunista só recentemente adquiriu uma terminologia própria. Ao homem absorvido na colectividade deu ela a designação de "ser genérico", designação utilizada pela primeira vez por um tal Pierre Leroux, comunista francês dos inícios do século XIX, que a expôs num livro confuso e ridículo mas muito lido e exaltado pelos comunistas da época. Um exemplo: depois de ter declarado que "humanidade é um ser genérico", acrescenta: "Qu'est-ce donc encore une fois que l'humanité? Je dis que c'est l'homme humanité; c'est-à-dire c'est l'homme ou chaque homme dans son développment infini, dans sa virtualité qui le rend capable d'embrasser la vie entière de l'humanité et de réalizer en lui cette vie..." Ludwig Feuerbach foi quem, a seguir, fez do "ser genérico" a sua concepção do homem e desenvolveu-a no livro A Essência do Cristianismo de um modo literariamente mais correcto do que o do "criador" da designação mas, substancialmente, ainda mais confuso e errado: o "ser genérico" seria a ideia da divindade mas sem divindade. De Feuerbach colheu-a Karl Marx, e expõe-na no livro A Questão Judaica despindo-a das vestes anti-religiosas do seu predecessor e vestindo-a de roupagens comunistas.

De tão opostas concepções do homem resultam as igualmente opostas concepções da existência social. Enquanto o liberalismo, fundando-se na singularidade do indivíduo, suscita o aperfeiçoamento de cada um e a harmonia e o amor entre todos (pois só há harmonia e amor onde há singulares e diferentes), o comunismo, fundando-se no repúdio da singularidade de cada um e da diferença entre todos, apela para a passividade uniforme ou informe.»

Orlando Vitorino («Manual de Teoria Política Aplicada»). Ver aqui, aqui e aqui




Suaves Cavaleiros


1 - O que os governos idolatram 


O governo das sociedades contemporâneas é orientado segundo um princípio absolutizado e universalizado, a que tudo se deve subordinar: o princípio da economia.

O predomínio absoluto deste princípio começou por constituir a arma que conquistou para a burguesia o domínio das sociedades. Conquistado esse domínio, logo o princípio da economia se revelou instrumento da mais flagrante e dolorosa injustiça. Multiplicaram-se as suas vítimas vertiginosamente, até abrangerem a quase totalidade dos homens.

Quando essa injustiça, assim estabelecida, ficou patente e adquiriu as proporções de escândalo, procurou-se atribuir às modalidades e processos de aplicação do princípio, não ao próprio princípio, a sua origem e causa. Mantendo-se assim, no seu pedestal, esse princípio absoluto e único, reforçando-o e elevando-o até mais alto, dividiram-se em duas correntes principais os adoradores do ídolo - chamaram-se uns socialistas, chamaram-se outros capitalistas. O que os distingue é apenas a modalidade, o processo daquilo que ambos os grupos designam por «distribuição da riqueza», designação sarcástica pois do que efectivamente se trata é da «distribuição da pobreza». De qualquer modo, o ídolo é o mesmo, o princípio fica intocável e sua soberania continua a ser total.


2 - O contrário das revoluções inúteis 


Ora o que nos anos mais recentes começou a ser posto em causa foi o próprio princípio. Não apenas a sua soberania, mas ele mesmo, como princípio ordenador de classes, hierarquias e possibilidades de vida dos homens integrados nas organizações sociais.


Jesus Christo retratado como o Alfa e o Ómega nas Catacumbas de Roma (séc. IV d. C.)



Quem o põe em causa, sejam personalidades ou grupos que se vão manifestando aqui e além, sem propósito coordenado e prévio, logo sofre o ferrete social do réprobo, imediatamente se vê segregado. Como os cristãos refugiados nas catacumbas, como tudo o que os cristãos representaram na fase final do declínio de uma civilização e início de outra. E, ao contrário das revoluções inúteis - as que se destinam a mudar «o que isto é por aquilo que isto tem sido», ou as que se destinam a convencer-nos a todos de que «é preciso que todos mudem para que tudo fique na mesma» - ao contrário dessas espalhafatosas revoluções inúteis, os que põem agora em causa o princípio soberano da ordem e da injustiça fazem-no silenciosamente. Sem ruído, sem escândalo. Suaves cavaleiros.


3 - O regresso à natureza 


Uma das manifestações é o regresso à natureza. O princípio soberano da economia abomina e condena a natureza. Os próceres dele, no dealbar do seu domínio, logo a condenaram. Na origem, Lutero. Depois Kant pôde dizer: «Falam-me da beleza de um céu estrelado... A mim, um céu cheio de estrelas apenas me lembra um rosto picado de bexigas». E outro, Hegel: «Vale mais a mínima ideia que perpassa no cérebro de um homem, do que o mais deslumbrante espectáculo de natureza» ou «Que dizer das montanhas e sua beleza? Apenas isto: que elas aí estão». E logo outro, repetitivo, o sacerdote-mor da economia, Marx: «A vida rural? O idiotismo da vida rural!».

A natureza tem ritmos e cadências que só não desesperam os economistas e esta sua sociedade e civilização porque de vez os expulsaram dela e até julgaram tê-los expulso da real existência humana. A natureza, apenas a querem para lhe extrair as matérias-primas da indústria. Mais nada. Os ritmos sociais da vida humana devem ser, hão-de ser, são os industriais. Como industrial é toda a riqueza, toda a produção, todo o trabalho. Na indústria, sim, os ritmos são iguais, certos, inalteráveis; não estão sujeitos, como a natureza e os seus modos de criação, ao capricho imprevisível e à diversidade intolerável dos climas, estações, secretos ritmos e sopros. São planeáveis e contabilizáveis, introduzem-se em estatísticas, sujeitam-se ao cálculo e à previsão seguríssima.

Além disso, a natureza não pode ser o lugar do homem. O lugar do homem não é um lugar natural. O lugar do homem é a cidade - melhor, o burgo. Porque a cidade é romana e grega, sem muralhas em volta para a defender dos inimigos ou a proteger da natureza circundante. O lugar do homem é o burgo que nasce nas casas encostadas aos castelos e se alarga em ruas estreitas e sem praças, hoje só ruas para máquinas e rotundas para as máquinas virarem. Os campos em volta cortam-se de rodovias e cobrem-se de fábricas, e dos fumos e dos esgotos dessas fábricas. Industrializam-se.


4 - Marx está errado! 


O princípio económico começa, pois, a ser posto em causa. Claro que nunca ele foi reconhecido pelos que sabem: os que simplesmente sabem ou, concedamos, sabem do homem, de sua natureza e seu espírito. Agora, porém, são as vítimas que se começam a erguer.

O sinal mais ostensivo veio de um estado americano, a Califórnia, que só por si tem sido a quinta potência industrial do mundo. Foi aí que as populações, ricas e prósperas, primeiro se surpreenderam de já não possuírem a natureza de que sempre tinham usufruído; os mares poluídos, as praias transformadas em esgotos, a atmosfera saturada de fumos, os campos cobertos de casas e ruas a perder de vista. Depois, sobre o assim sensível aos olhos, o que é sensível à inteligência e à alma: a uniforme monotonia do trabalho industrial, a ausência de descanso, repouso ou remanso, a carência de valores espirituais e psíquicos. Ao lado de todo este vazio, de toda esta inutilidade humana, que vale a famosa prosperidade económica? Que representa ela? Por que preço se paga?

E em breves anos a população da Califórnia vê surgir, formar-se, ampliar-se as estruturas institucionais e políticas da quinta potência industrial do mundo, uma nova e perturbante espécie social. E verifica, com espanto, que há vozes que se erguem e se ouvem contra a industrialização, contra a idolatria do princípio económico, contra a monotonia do trabalho fabril, contra a sua próspera e oca produtividade. As vozes dirigem-se também aos possidentes e aos proletários, e procuram ser persuasivas. A minoria inicial alarga-se subitamente e representa quase um terço da população.

O governador do Estado (1), veterano do cinema e representante da velha sociedade ainda dominante, exprime bem o que é e o que representa quando, em discurso público, responde às novas e estranhas minorias:« Quem viu uma árvore, viu todas as árvores». E os operários mais irremediavelmente disciplinados e fartos, em coro: «estes tipos querem ensinar-nos aquilo de que havemos de gostar...».
















North Laguna Beach


South Laguna Beach







Localização de Laguna Beach em Orange County, Califórnia.


Entretanto, o que se torna grave e temível é que a minoria, inicialmente considerada utópica e louca, se põe a crescer e ameaça atingir um decisivo poder eleitoral. Durante dois anos o «establishment» organiza-se e promove uma vasta e persistente campanha, lançando contra ela os poderes que, consoante a nunca desmentida teoria marxista, constituem os dois únicos sectores ou classes de toda a sociedade burguesa: os proprietários e os proletários, uns e outros contentes e satisfeitos na metade da laranja onde foram instalados. Ora os novos bárbaros recusam instalar-se, quer numa, quer noutra metade, não se identificam ou sequer se aliam com uns ou com outros, antes a ambos e ao seu comum mundo industrializado, economicizado e politizado, igualmente repudiam. E veio isto acontecer quando, precisamente, esse tratado de Tordesilhas social, burguês e marxista, estava prestes a atingir a plena e perfeita realização, quando já parecia não haver no mundo senão proprietários e proletários, triturados já os entes intermédios situados naquilo que Hegel chamava o «espírito absoluto» e levou Marx a declarar invertido todo o Hegelianismo. Quando, assim, a calmaria da burguesia industrializada parecia já nada ter que a ameaçasse, toda a sociedade composta só, não de homens nem de indivíduos, mas de classes, e estas reduzidas a duas, as únicas possíveis e reais, eis que começam a proliferar pelo mundo os que recusam, refutam, contestam, repudiam toda essa bela e secular construção, e com um poder só atribuível a uma classe vêm ameaçar exactamente o Estado mais progressivo, mais próspero, mais acabado e perfeito, essa idílica Califórnia, de outrora vastas praias, outrora largos campos e aconchegadora atmosfera, num clima tépido, invejável, desejável e aprazível. Para mais, não constituem uma classe social - se atendermos ao que Marx ensinou sobre o que é uma classe social - definida pelas suas estruturas e factores económicos e, por eles, movendo sua actividade e delineando o seu modo de existir.

Marx, então, também está errado? O nosso avô Marx, de profusas barbas, profeta trovejante e criança ingénua, tão apto para papão dos capitalistas e paizinho russo dos socialistas, também está errado?! Uma minoria surge, ergue-se, seduz, amplia-se, e não podemos sequer encerrá-la nos quadros tão seguros de uma classe social? Uma minoria que conjuga tudo isso, todos esses - os que falam do espírito, da arte, do pensamento, dos deuses, coisas que tínhamos conseguido reduzir a um mero formalismo cerimonioso, que dizem que «o homem nasceu para ser feliz, ocioso e vário»? - tudo isso, todos esses que Marx nos prometera que seriam inexoravelmente repelidos, anulados, dissolvidos na evolução dialéctica, esmagados no choque das contradições dialécticas das duas únicas forças reais: os senhores e os servos, os capitalistas e os socialistas, os patrões e os operários???


5 - Os idólatras da liberdade matam os que são livres 


Da Califórnia partem os dois suaves cavaleiros, num filme com uma bela história contada em imagens que correram mundo e seduziram a imaginação dos mais jovens. «Easy Rider» se chamava o filme, e o que narra é, na grande tradição das narrativas iniciáticas, uma viagem, da Califórnia até à Flórida, que são os países mediterrânicos da América. Da Califórnia até à Flórida como, portanto, o herói homérico desde Troia até Ítaca. Mas o que eles cavalgando percorrem são domínios dos homens que vivem numa sociedade anquilosada, ainda não morta, mas já ressequida, dura, impiedosa e cruel.










Daytona Beach


Dormem, à noite, debaixo de árvores e do céu estrelado. Antes de adormecerem, conversam sobre esses homens e essa sociedade que os repele e segrega, os insulta e ameaça. «Eles falam muito da liberdade. Mas a liberdade é, para eles, só isso, isso de que se fala e que é só para se falar. Se encontram alguém que seja já efectivamente livre, logo o assassinam».

A meio caminho, junta-se-lhes um companheiro que saberá levá-los até onde é preciso que vão. Um templo? Um prostíbulo? Seguem-no, confiantes. O companheiro não só possui um segredo, como é alegre e feliz. Encontraram-no na prisão de uma cidade onde, por embriagado e apesar de ser filho-de-família burguês, o encerraram por uma noite. Como a eles. Saíram juntos da prisão e seguiram caminho juntos. Para irem até onde ele os saberia levar. Mas os homens por quem passaram farejam o perigo e, às portas disso a que ele os levava, quando dormiam esperando a madrugada para entrar, assassinaram-no à paulada. Assim, têm os outros de entrar sozinhos, lá onde entraram, templo ou prostíbulo, entre os cânticos do Kyrie Eleison. Depois, a rapariga que vem com eles apenas lhes diz: «Eu sou Maria». Há então um momento (breve ou longo?) de delírio. Entre os cânticos, confundem-se as imagens de rosas e de cruzes. E a si mesmo se surpreendem, mais tarde, outra vez suavemente cavalgando, easy rider, na estrada sem destino.

Os de um camião que passa, farejando o mesmo perigo que já tinham farejado no amigo morto, ficam possessos de ódio sem razão. Apontam as armas, disparam, e deixam-nos estoirados à beira da estrada. (in A Ilha, Suplemento Cultural, n.º 4, 1 a 14 de Janeiro de 1971).


(1) À época (Janeiro de 1970), o governador era Ronald Reagan.














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