Escrito por Franco Nogueira
Alexandre de Serpa Pinto |
«No início
da década de 1880, [Portugal e a Inglaterra] andaram entretidos com uma disputa
sobre o direito de ocupação dos territórios a norte do Ambriz, em Angola. Em causa
estava o domínio sobre o Baixo Congo – ou Zaire –, uma das importantes vias de penetração
no interior da África Ocidental. Portugal evocava os direitos históricos de
descoberta e conquista sobre a região, embora estivesse longe de poder
assegurar qualquer tipo de ocupação efectiva sobre a zona.
Os
antagonismos com a Grã-Bretanha iriam atingir níveis elevados. Durante a
Primavera de 1883, no parlamento de Londres, um deputado por Manchester, Jacob
Bright, proferiu, alegadamente, algumas declarações menos abonatórias em
relação a Portugal, acusando as elites políticas lusitanas de pertencerem e
dirigirem uma nação de negreiros corruptos. A somar a estas polémicas
afirmações, o parlamentar teria ainda afirmado que Portugal ocupava ilegalmente
uma das margens do rio Zaire, comparando os nossos hábitos políticos aos da Turquia,
tida então como o país mais atrasado da Europa. Quando se soube da denúncia em
Lisboa, a oposição afecta ao Partido Progressista instou o Governo do Partido Regenerador
a reagir diplomática e militarmente à ofensa, mas António de Serpa Pimentel, o
ministro dos Negócios Estrangeiros da época, recusou-se a satisfazer os pedidos
mais exaltados, que reclamavam o envio de um navio de guerra para a zona.
A região
tinha despertado o interesse da comunidade internacional depois das expedições
realizadas por Henry Stanley, ao serviço de Leopoldo II e da Associação
Internacional Africana (1876), mas também por parte de Savorgnan Brazza. Este
último, em 1880, conseguiu mesmo assinar um tratado com um rei local no Congo,
facto que avivou a atenção do Governo de Londres, preocupado com o crescimento
da influência francesa na região. Como vacina contra essa ascendência, os
britânicos dispuseram-se a reconhecer a soberania lusitana sobre o Baixo Congo.
Enquanto o Governo de Londres permitia a concessão em troca de vantagens comerciais
em Angola e Moçambique, as autoridades portuguesas achavam que os seus
oponentes mais não faziam do que reconhecer os evocados direitos históricos.
Depois de negociações que duraram praticamente dois anos, a 26 de Fevereiro de 1884
ambos os países assinaram o chamado Tratado do Zaire.
Pelo
acordo, os ingleses reconheciam a soberania portuguesa nos territórios das duas
margens do rio Zaire até às fronteiras do emergente Estado do Congo, em troca
de facilidades no comércio e navegação. Portugal, por este arranjo, alienava
direitos de soberania no Norte da Zambézia, em Moçambique, sob o pretexto de
dar combate ao tráfico de escravos com maior eficácia, problema que se irá manter
quando, poucos anos mais tarde, Mouzinho de Albuquerque tentar dominar a
região. Alegadamente, o Tratado do Zaire seria mais prejudicial para os
interesses nacionais do que o anterior Tratado de Lourenço Marques porque
concedia incomparáveis vantagens mercantis à Bélgica, à Inglaterra e à França,
enquanto a soberania do nosso país na região era reduzida a uma expressão pouco
mais do que nominal. Um jornal francês escreveu mesmo que algumas cláusulas do
tratado foram submetidas à apreciação do rei dos belgas, Leopoldo II.
A 3 e a 13
de Março, o acordo seria apresentado nos parlamentos de Londres e Lisboa,
respectivamente. Por momentos, a indignação nacional subiu de tom. Foram mais
as vozes a contestar esta combinação do que aquelas que a aprovaram. Para além da
discordância dos governos de França e Alemanha e de Leopoldo II, excluídos do
negócio, na Grã-Bretanha, as associações comerciais e antiesclavagistas
opuseram-se ao eventual estabelecimento de Portugal na região da foz do Zaire.
Em termos domésticos, a oposição progressista ao Governo regenerador, que foi
responsável pelo ajuste, veio para os jornais protestar com o argumento de que,
afinal, os direitos históricos do país não tinham sido respeitados na íntegra.
Neste contexto de falta de aprovação, o Executivo de Londres não chegou a
submeter o tratado a ratificação parlamentar e o mesmo seria abandonado. A
questão do Congo ficava por resolver.
Simultaneamente,
como vimos, um novo actor emergia na cena internacional, chegando a vez da
Alemanha recentemente unificada, nação tão admirada por Mouzinho de
Albuquerque, entrar na disputa colonial. A ideia original partira do ministro
português da Marinha e do Ultramar, Barbosa do Bocage, mas foi por sugestão do
chanceler Otto von Bismarck que, em Outubro de 1884, o Governo alemão tomou a
iniciativa de convocar uma grande reunião internacional, em que estivessem
presentes representantes dos principais países, para regular as formas do
comércio, sobretudo nas grandes vias de acesso ao interior do continente como
eram os rios Níger e Congo e definir os princípios que iriam disciplinar as
novas ocupações territoriais. A Conferência de Berlim teve início a 15 de
Novembro de 1884 com os plenipotenciários de 14 países, entre os quais Portugal,
representado por António de Serpa Pimentel (ministro dos Negócios Estrangeiros), por Luciano Cordeiro (em representação da Sociedade de Geografia)
e pelo conde de Penafiel (embaixador em Berlim).
Captura de Gungunhana |
Rapidamente
chegaram notícias a Lisboa de que na capital germânica se estavam a dar passos
no sentido de construir um novo direito internacional sobre a partilha de
África. As nações mais fortes não se dispunham a aceitar os princípios
vigentes, impondo-se aos países mais pequenos como Portugal, que apesar de
evocarem os direitos históricos à ocupação de territórios, na prática, não se
conseguiam afirmar através da cobrança de impostos ou da presença militar.
A acta
final da [Conferência de Berlim] foi assinada a 26 de Fevereiro de 1885. Nela
ficava definido o princípio da livre navegação e comércio nas bacias do rio
Níger e Congo, passando-se, simultaneamente, a exigir a posse efectiva dos
territórios e já não apenas a evocação vaga de um direito de precedência, como
forma de prover à ocupação territorial apenas no litoral, mas não no interior,
como raramente é referido. A Conferência de Berlim não procedeu à partilha do
continente, como também é corrente afirmar-se, mas à margem dos encontros
oficiais teve lugar uma intensa actividade diplomática que conduziu ao
reconhecimento internacional do Estado Livre do Congo, entregue à tutela do rei
dos belgas, Leopoldo II. Portugal ficou com a posse da margem esquerda do rio
Zaire, assim como com os territórios de Cabinda e Molembo no Norte de Angola.
Em
Portugal, estes resultados foram recebidos com natural desencanto, mas tiveram
o condão de reavivar a atenção das elites dos governantes e da opinião pública
para o estado de abandono a que estavam votadas as colónias. No quadro da
corrida à posse efectiva dos territórios e já conhecedores do interesse
manifestado pelas potências, tornava-se urgente para os líderes políticos
portugueses proceder à ocupação dos vastos espaços situados no interior de
Angola e Moçambique. Para além disso, tomava-se consciência de que tinha
terminado de vez a era da hegemonia singular no campo colonial, até então
assegurada pela Grã-Bretanha, passando-se para um mundo multipolar com a entrada
em palco de novas potências ultramarinas como a Alemanha. Esta inversão da cena
internacional iria obrigar Portugal a redesenhar os seus acordos diplomáticos
com outros países cortando a tradicional dependência exclusiva em relação a
Londres, que, aliás, tinha abandonado a representação lusitana à sua sorte durante
a Conferência de Berlim.
A
redefinição da política externa tendo em vista as disputas que se adivinhavam
no campo colonial não comportava neste momento nenhum teor anti-britânico. O
objectivo do Ministério português era procurar uma posição de força em futuras
negociações com Londres. A subida ao poder, em Fevereiro de 1886, de um novo
Governo, em Lisboa, entregue novamente ao Partido Progressista viria a tornar
mais clara esta reorientação diplomática.
O novo
ministro dos Negócios Estrangeiros era um antigo membro do Partido Reformista,
uma força liberal radical cujo carácter nacionalista tinha ficado bem patente
durante a crise ibérica de 1870. Henrique Barros Gomes, cujas simpatias
germanófilas não eram segredo para ninguém, tentou introduzir um novo ponto de
equilíbrio mais favorável às pretensões nacionais no contexto da aliança
luso-britânica. O ministro não defendia o simples rompimento de aproximação
histórica entre os dois países, mas achava que Portugal deveria apresentar as
suas posições com mais firmeza, não afastando a hipótese de estabelecer acordos
com a França ou até com a Alemanha, grandes rivais dos britânicos. Esta
política predispunha-se a cumprir um duplo objectivo. Procurava-se garantir o
apoio de Berlim para o projecto da construção de um Império na África Central,
de Angola a Moçambique, concorrente dos interesses britânicos, representado
pelo chamado "Mapa Cor-de-Rosa". Esta reprodução cartográfica tinha
sido, refira-se, originalmente mandada realizar, em 1885, pelo ministro da
Marinha e do Ultramar de então, Barbosa do Bocage, na sequência dos ajustes
empreendidos pelo Governo regenerador com a França para a delimitação das
possessões portuguesas e francesas na África Ocidental. Para além disso,
pretendia-se lançar um conjunto de expedições militares e científicas no
terreno, para negociar com a Inglaterra de acordo com os princípios da nova
ordem colonial estabelecidos na Conferência de Berlim.
Assim, Barros
Gomes, a partir de Fevereiro de 1886, “imaginou que os destinos da África
haviam passado para as mãos do ex-chanceler do império [Bismarck]. E
imediatamente se inaugurou essa política colonial que tinha por fim aliar
Portugal à Alemanha, para assim haver um contrapeso à influência inglesa na
África”. A opção viria a revelar-se desastrosa, uma vez que o Governo alemão
apenas se serviu de Portugal “para obter vantagens coloniais da Inglaterra”,
nunca manifestando a mínima intenção de arriscar um conflito com este país por
causa do nosso. O ministro português limitou-se a ganhar a irritação de lorde
Salisbury, o primeiro-ministro britânico, tido como irascível, sem proveito algum
para o país.
Todavia, seria na costa atlântica que Portugal
começava por perder terreno. Sumiu-se parte da soberania que se reclamava no
Norte de Angola, em resultado das conclusões da Conferência de Berlim, para o
chamado Estado Independente do Congo. Pretendia Leopoldo II que Luanda se constituísse
como o 12.º distrito daquele Estado, com o nome de Cuango Oriental. Henrique
Augusto Dias de Carvalho, um major de Artilharia, que entre 1884 e 1887
comandou uma expedição pelas terras de Luanda, como referimos, editou então um
opúsculo, de onde resultou um apelo patriótico à imprensa portuguesa para que
esta concentrasse argumentos na defesa dos direitos históricos dos portugueses em África. Mais tarde, o mesmo autor publicou um outro livro, onde reuniu um
conjunto vasto de documentos que, supostamente, deveriam esclarecer a posse da
Lunda em favor da soberania portuguesa, ao mesmo tempo que combateu e refutou
as pretensões do rei dos belgas em constituir um Estado livre na região. De
referir que, por decreto de 13 de Julho de 1895, o Governo português criou
mesmo o distrito da Lunda, sendo Henrique Dias de Carvalho o seu primeiro
governador.»
Paulo Jorge
Fernandes («MOUZINHO DE ALBUQUERQUE. Um soldado ao serviço do Império»).
Monumento a Mouzinho de Albuquerque, na praça com o mesmo nome, em Lourenço Marques (anos 1940). |
«No quadro
do iberismo português, todavia, que sentimentos foram na altura expressos entre
os intelectuais, os homens da cultura e da inteligência, o escol mental da
Nação, em suma? Que atitudes assumiram perante o ultimatum? Como é que, em face deste, e tendo abandonado e até
repudiado o iberismo, inverteram a sua marcha e se sentiram tentados a regressar
ao ponto de partida?
Se se
ergueu contra as violências do poder, António Enes nem por isso acolheu o
iberismo, a que aliás jamais havia aderido. Mas que escreveu aquele homem, em
substância, no momento rude do gesto britânico? Sentiu naturalmente a
consciência nacional humilhada, e insurgiu-se. Numa longa série de artigos,
Enes acompanhara o processo das conversações entre Londres e Lisboa; e apoiando
os argumentos portugueses, não se eximia a dirigir as suas setas ao modo por
que da parte de Lisboa era conduzido o assunto. Perante o ultimatum, escreveu no dia seguinte: a Inglaterra tornou-se “absolutamente impositiva” e “pôs-nos o revólver aos peitos, contando os minutos”.
Defronta com energia Barros Gomes. Mas Enes coloca-se acima dos partidos e para
além das paixões: é uma atitude nacional, e só nacional, e de homem de Estado.
E é de salientar este exemplo de António Enes por haver sido único. Porque em
verdade são inteiramente emotivas as reacções de quase todos os demais. Pela intensidade,
sobressai a de Fialho de Almeida. Requinta no ultimatum o seu velho iberismo. Sarcástico, céptico, ressentido,
afogado em complexos de inferioridade, o autor de Os Gatos vergasta agora a Grã-Bretanha: defende os direitos de
Portugal; exalta o Ultramar português, as suas glórias, o seu carácter
sacrossanto para a Nação; e qualifica os Ingleses de “carrascos do Tamisa”. E volta-se com fervor para o republicanismo.
Escreve: “antes do ultimatum inglês e da revolução do Brasil, raros de
nós poderiam fazer sondagens certas na profundeza e na eficácia da cruzada
republicana que pregávamos: e maldispostos contra a Espanha, menos ainda nos
sentíamos dispostos a enfunar o estandarte da ideia, com correntes de opinião
sopradas do outro lado da fronteira”; mas “agora mudou tudo”; “os
verdadeiros inimigos de Portugal desmascaram-se”; e “a linha que nos separa de Espanha é apenas uma ilusão óptica de
políticos, filha de um erro histórico de sete séculos, que desviou a Península
da sua missão de grande potência, e tem defraudado a família latina duma força
que, virilizando-se, poderia ter disputado, quem sabe? a hegemonia do mundo às
raças loiras”. Assim Fialho, em pleno desvairo, retoma e repete com arreganho
um iberismo que havia abandonado, e é de novo imperial; mas mais tarde, na sua inconstância
e versatilidade permanente, haveria de regressar ao patriotismo, quase à
monarquia, quase ao repúdio do republicanismo jacobino que por um tempo fora o
seu. Mas na vivacidade do seu sentimento, neste particular, não está Fialho
isolado. Acompanha-o Guerra Junqueiro, “grande poeta do ódio e da dissolução
nacional” (Fid. de Fig., Pref. Cit., p. 10). Este compõe o poema O Caçador Simão e dedica-o justamente a
Fialho de Almeida [Como se sabe, Simão era um dos muitos nomes de baptismo do
Rei D. Carlos]. Junqueiro procura pôr a ridículo a figura do monarca. Mas
depois é a Inglaterra que o autor de A Morte
de D. João fustiga numa linguagem desapiedada. Recordem-se estas linhas (a
que não é lícito chamar versos e muito menos poesia) e que foram depois
incluídas no Finis Patriae: “Ó Cínica Inglaterra, ó bêbada impudente /
Que tens levado, tu, ao negro e à escravidão? / Chitas e hipocrisia,
evangelho e aguardente, / Repartindo por todo o escuro continente / A mortalha
de Cristo em tangas de algodão”. Como em todo o poema, não estamos
evidentemente perante arte mas em
face de um panfleto; e este desce à
bitola do torpe, de uma emoção primária, que tem por raízes a exaltação
partidária e a raiva à Grã-Bretanha. E também a peça-poema Pátria constitui um grito de cólera, de ataque, de desvairo.
Elogia-se Fialho, elogiam-se Os Gatos,
onde perpassam, diz Junqueiro, rugidos de tigre; proclama-se o republicanismo,
e afirma-se que republicano e patriota são palavras sinónimas; à monarquia nada
se poupa; e o Rei, porque aceitara o tratado de 20 de agosto de 1890 (entretanto
negociado entre Londres e Lisboa), é qualificado por Junqueiro de miserável ou
irresponsável. Estes e outros textos, de teor por igual edificante, são
coligidos por Junqueiro em Horas de Luta.
Mas aqui deparam-se-nos páginas que impõem destaque; de súbito, projecta-se um
outro Junqueiro. Republicano? Decerto. Antibritânico? Sem dúvida. Iconoclasta
de forma geral? Também. Demolidor do que é convencional? Igualmente. Mas naquelas
páginas ressurge o Junqueiro patriota, nacionalista, medularmente português.
Republicanos e iberistas, ainda por impulso da memória do ultimatum,
organizaram em Badajoz, em 1892, um banquete de confraternização iberista com
espanhóis, ou de confraternidade peninsular, como preferiu Teófilo Braga. A
participar é convidado o autor de A
Velhice do Padre Eterno; mas este alega falta de saúde, não assiste; e
envia a sua mensagem. Recorde-se desta o essencial. Sim: há uma alma ibérica:
mas tem duas metades: e vive cada uma em “corpos
separados”, em “organismos distintos
que a natureza irremediavelmente diferenciou, e que é necessário deixar em
absoluta e livre independência, pois só assim cumprirão com harmonia e nobreza
o seu papel e o seu destino”. E Junqueiro conclui: “E este sentimento português, de soberania e irredutível autonomia, sem
restrições e sem equívocos, é em mim de tal maneira intransigente e natural,
que eu sacrificaria, sendo necessário e podendo, os destinos completos da minha
raça à completa independência do meu país. Unifiquemo-nos em espírito, mas
conservemos as fronteiras, tal como estão no nosso território. Só da dualidade
sem obstáculos pode nascer a confiança sem limites. Somos irmãos, mas não
cabemos juntos na mesma casa”. E terá esta sido a posição definitiva de Guerra Junqueiro. E assim Fialho e Junqueiro são dois exemplos frisantes de uma espécie de iberismo português. Daquele que se entretece de emoção perante
uma crise ou episódio hostil; que ignora as forças reais em presença e as
realidades permanentes; que esquece a linha histórica constante; e que se deixa
persuadir da boa-fé espanhola e que depois, quase de repente, é iluminado pelos
propósitos reais de além-fronteiras; e que muitas vezes se julga em vésperas de
um amplo mundo idílico e fraterno para logo a seguir mergulhar na desilusão
acabrunhante. Mas em outros vultos grados do alto escol português também o ultimatum exerceu influência: diferente,
contudo, da que sofreram os autores de O
País das Uvas e de Os Simples.
Antero de Quental é um primeiro nome. Que texto enviou para a Anátema? Considera o presidente da Liga Patriótica do Norte que é positiva a intensa paixão nacional do povo português, desencadeada pelo ultimatum; mas tem por elementos negativos o descrédito das instituições, as práticas de governo, os actos dos responsáveis políticos. Para Antero, aquela paixão traduz inequívoca vitalidade nacional; tudo o mais é resultado da morbidez do organismo social português. Perante o choque brutal do ultimatum, Antero volve-se agora em firme anti-iberista, em nacionalista, em patriota tradicional. “Moralizar e nacionalizar o Estado, tal deve ser depois de passado o primeiro ímpeto de paixão, o fim consciente do movimento popular iniciado em 11 de Janeiro” (Prosas, III, 163). E isto porque “não é pelo desespero e abdicação que nos salvaremos”; “não é assim que quem está prostrado se levanta”; “sejamos nós mesmos”; “tenhamos esse valor, e tudo se tornará possível”; “antes de tudo, convém crermos em nós mesmos, no passado como no presente” (Prosas, II, 238-239). Teria o ultimatum constituído uma “expiação” dos vícios e erros nacionais (Prosas, III, 144-146). Há assim, para o autor dos Sonetos, um deplorável divórcio entre o sentimento nacional e o Estado, uma falta de acordo íntimo entre governo e governados. Como remediar este “funesto divórcio” produto que é de trinta anos de materialismo político? Pela revolução? Seria essa a maior das calamidades. Como, então? Pela constituição de “orgãos genuínos, semelhantes à Liga Patriótica do Norte”. Na presidência desta, Antero sente-se investido de uma missão que o transcende. Ao assumir funções, pronuncia um discurso de nota. É a Liga uma primeira pedra para o edifício da restauração das forças nacionais, e isso não deverá ser obra de entusiasmo momentâneo mas de paciência aturada; o protesto contra o insulto e a vilania da Inglaterra implica um esforço viril e persistente; e a subscrição nacional que foi aberta, momento de paixão nobilíssima, é apenas o início da obra da ressurreição do brio e das forças do povo português. Há que emendar erros, e que restabelecer uma natural harmonia entre o pensamento nacional e o seu orgão, que é o Estado. Estará a Liga acima dos partidos, praticando a verdadeira política, que é a “dos grandes interesses nacionais”, e fará assim ouvir aos poderes públicos a voz da Nação. Serão escutados todos os alvitres, e destes há-de emergir um plano de independência económica, de restruturação das forças produtoras, de levantamento do nível intelectual, de defesa da integridade nacional. Um plano, em suma, de ordem, justiça, moralidade. E o poeta resume: “a atitude que convém não é a do protesto violento e estéril: é a da concentração da vontade, aplicando-se indefesa até conseguir, pela força e independência reconquistadas, a desafronta, o sossego, e a dignidade”. Em síntese: “Coragem, paciência, e esforço: tal deve ser doravante a nossa divisa”. Antero pede ainda a retirada do cônsul britânico no Porto, acusado de haver ofendido a juventude portuguesa. Nessa atitude é acompanhado por homens de primeira água: Rodrigues de Freitas, Vieira de Castro, Basílio Teles, Bento Carqueja, Luís de Magalhães, Conde de Resende, Ricardo Jorge, outros ainda. E em carta a Jaime de Magalhães Lima escrevia Antero: “Faça cada um o seu sacrifício no altar da pátria. Eu sacrifico a minha saúde, que naufragará de todo no meio disto, e muito provavelmente o meu nome, que antes de seis meses estará manchado. Não importa. Quero sacrificar a vida e morrerei contente se tiver vivido seis meses ao menos da verdadeira vida que é a da acção por uma grande causa”. E deste modo Antero não propõe, para superar a crise, o recurso ao iberismo quimérico ou político, nem a mitos ou milagres. Afirma que a solução assenta no retorno às genuínas raízes nacionais, ao patriotismo, à independência. E apela para a coragem, o esforço, o sacrifício dos Portugueses. Neste particular, sobressaem a boa-fé, a candura, a ilusão do poeta.
De um matiz
aproximado é a atitude de Ramalho Ortigão. Como vê este vencido da vida a crise nacional? Diz nas Farpas a ramalhal figura:
“Uma potência estrangeira, assinalada
pelos instintos de mercantilismo e de rapacidade que caracterizam a sua missão
histórica, disputa-nos palmo a palmo e dia a dia a posse do nosso domínio
colonial”. Para Ramalho, Portugal é nação marítima e gloriosa; o império é “brasão da nossa raça”. Foi o ultimatum uma declaração de guerra; e de
tudo tem culpa a sociedade portuguesa e seus vícios. Quais? Esclarece Ramalho:
a parlamentarice dos últimos vinte anos, a baixa educação nacional, a
desmoralização dos costumes políticos. E por outro lado os Portugueses haviam
perdido o amor do trabalho, o espírito de aplicação e zelo, o empenho
profissional, a paciência, a perseverança, a lenta economia. Por isso, afirma
Ramalho, “isto não pode continuar assim”.
E se o recente conflito africano, conclui o autor de A Holanda, puder ocasionar um movimento reformador de Portugal,
então haveria que agradecer à Inglaterra, sem embargo de este país andar pelo
mundo desonrando triunfantemente a Civilização e esbofeteando a Providência.
Como Antero, o autor das Farpas
encara a solução da crise nacional, não no iberismo ou outro mito (ainda que na
obra de Ramalho perpassa de quando em quando um traço equívoco), mas na
revitalização do espírito, da consciência, das virtudes portuguesas de antanho. Mas de Ramalho Ortigão podemos caminhar para outro vencido da vida, e amigo predilecto daquele: Eça de Queirós. Em
toda a sua obra surgem alusões esporádicas a formas de iberismo; mas já vimos
como tudo era parte de irreverência literária. Perante a crise nacional, sem
personagens de ficção e de maneira responsável, Eça compõe um estudo: o Ultimatum. Tem a crise como a mais
severa, acaso a mais decisiva da sua geração. Exprime o seu respeito, mesmo a
sua compreensão pelos objectivos imperiais da Grã-Bretanha (onde Eça viveu
longos anos), e pela tenacidade com que esta os conduz. Ora Portugal constituía
para a Inglaterra um obstáculo: a posse de certos territórios junto ao Zambeze,
ao Chire, ao Niassa, “excitava
furiosamente a cobiça” dos Britânicos. E o autor de Os Maias observa: “Se nós
fôssemos fortes, ou se ainda reinasse o direito internacional, este impedimento
(para o caminho imperial inglês do Cairo ao Cabo) seria como montanha que se
não transpõe”. Para Eça, portanto, o direito, a história, a razão pertenciam
a Portugal. Mas nas conversações com Londres nem sempre haviam sido felizes os
Portugueses, e o ministro inglês em Lisboa, escreve o autor de O Primo Basílio, “apresentou ao sr. Barros
Gomes um ultimatum com aquela brutal
surpresa com que outrora José do Telhado, ou outros dos nossos salteadores
lendários, apontava, num pinheiral, o bacamarte ao peito de um marchante em
jornada”. Enfim, foi a crise, é a crise – e agora que fazer? Injuriar a
Inglaterra? De que serve? – pergunta Eça. Odiar a Inglaterra? Decerto é
sentimento bem legítimo: mas o ódio é um “sentimento
negativo que nada cria e tudo esteriliza”. Então, boicotar a Inglaterra?
Será perfeito; mas ineficaz. Em completa isenção de espírito, e de olhos postos
na nação portuguesa, Eça afirma que àquele movimento nacional de desagravo,
nascido da alma da nação para proveito da nação, “nunca lhe cumpriria tomar por fim único o fazer mal à Inglaterra, mas
antes de tudo, e sobretudo, fazer bem a Portugal”. Recomenda em suma Eça de
Queirós: “Não se trata infelizmente de
destruir a Inglaterra – mas de conservar Portugal”. E por isso o grito não
deve ser: “Delenda Britania”. O
grande grito a gritar, para Eça é: “Servanda
Lusitania”. E por este modo Eça junta-se a Ramalho e a Antero no quadro da
crise: os interesses portugueses têm de ser defendidos pelos portugueses: e não
podem ser entregues a mitos, ou a mãos alheias.
Um outro
grande vencido da vida impõe de novo
destaque especial: Oliveira Martins. Já se percorreram os passos maiores do
seu iberismo: era mitigado, inocente, de boa-fé; melhor compreensão das
realidades e lúcida percepção dos objectivos espanhóis suscitaram sérias
dúvidas ulteriores; e estas levaram ao repúdio final. E agora, perante a crise:
foi modificada pelo ultimatum a
atitude de Martins? Prostrado pela emoção, poucos dias após o gesto inglês, em
artigo no Tempo, vai ao extremo de defender a aliança das duas monarquias
peninsulares. E por muitos volumes e artigos seus podemos encontrar referências
ao episódio dramático. Asserenado um tanto o seu ânimo, será talvez no Portugal em África que melhor se
concentra e exprime o pensamento deste vencido
da vida quanto ao ultimatum. Para
Martins, mais do que as consequências imediatas da crise, importa analisar o
futuro; e em qualquer caso, pela sua seriedade, a crise obriga a meditar.
Talvez mais grave, e de emoção anda mais funda, foi a separação do Brasil, “um momento de desespero muito mais cruel do
que pode vir a tornar-se a situação agora”. Mas a grandeza do perigo
exaltou a energia nacional. Há que compreender a agitação popular; mas já se
entende menos o seu aproveitamento para “interesses
facciosos”; e isso porque, nos momentos solenes pelo risco, é “o patriotismo e não o partidarismo que deve
falar”. Na circunstância, para Oliveira Martins, o Conselho de Estado e o
Governo não podiam fazer senão o que fizeram, sob pena de, por retaliação inglesa,
se perder uma parte importantíssima do Ultramar; e a manifestação feita contra
Barros Gomes foi suma injustiça – para o ministro e para o Governo. Decerto: o ultimatum de 11 de Janeiro foi, escreve
Oliveira Martins, “um destes actos
odiosamente brutais que nem são das temeridades, nem dos arrojos, tantas vezes
expiatórios de violência”; e impôs “a
lei da força a quem só podia invocar o direito”; e a Inglaterra usou de “uma astúcia felina”, iludindo os
Portugueses enquanto se mobilizavam meios navais para eventual assalto a
posições portuguesas. E agora – o desagravo. Que desagravo? Há que fortalecer o
Exército, e a Marinha; mas a “força que
principalmente há-de sair da comoção nacional é a força filha do civismo e do
juízo”. Cortar passo a passo os vínculos com os Ingleses, nada mais
racional, sensato e patriótico; mas “isso
não é o desagravo pleno e satisfatório”. Liquide-se o litígio com a
Inglaterra pela melhor forma possível; e depois há que pôr a casa em ordem; e
emancipar Portugal; e recuperar para os Portugueses o comércio; e extirpar em
suma o “nosso desleixo e a nossa inércia”.
E como remata Martins a sua visão da crise e do futuro? Recomenda o rearmamento
de Portugal – e acaso a substituição, como propôs no Tempo sob o espinho do
desespero, da aliança luso-britânica por uma aliança luso-espanhola. Neste último
ponto, há assim um retorno de Martins a uma posição mental e psicológica anterior;
e sucumbiu por instantes ao mesmo sentimento que a crise desencadeou em alguns
espíritos mais frouxos, ou impressionáveis, ou precipitados. Cedo se refez Oliveira
Martins, contudo, e se desencantou. Bem antes da sua morte prematura, espírito lúcido e patriótico que era, soube bem perscrutar as realidades. E manteve-se, ao fim
e ao cabo, fiel à sua síntese: “amizade
espanhola primeiro; pressão depois; violência final”. E em qualquer caso,
como remédio para os males nacionais, este vencido
da vida via apenas o civismo, o juízo, a reforma dos hábitos de desleixo e
inércia, o patriotismo. Mas entre os nossos homens de génio do século XIX um
nome está ainda omitido. Não foi um vencido
da vida, no sentido de pertencer ao seu grémio. Mas acaso se poderá
considerar o maior dos vencidos, e decerto o foi pelo drama e pela tragédia.
Refiro-me naturalmente a Camilo Castelo Branco. Este homem, de tanto
génio como infortúnio, está torturado pela ameaça de cegueira em fins de 1889,
princípios de 1890. Nos começos de 90, justamente, escreve ao seu grande amigo
Tomás Ribeiro: “Ainda não ceguei de todo;
mas estou perdido, se não me acodes”. Pouco depois, nova carta: “Estou a cegar. Perdido! Vou fugir daqui
para não me matar debaixo dos teus olhos e do teu amor”. Mas quando em 11
de Janeiro Portugal é agredido pelo ultimatum,
aquele homem, que escrevia “estar sem
olhos, sem pernas, sem cérebro”, reage, e lança-se num poema que intitula
Extermínio da Inglaterra. E foi essa a contribuição camiliana para a Anátema, publicada em Coimbra. Uma outra
parte dessa composição foi mais tarde inserida, por Abril de 90, no jornal República, do Porto. Camilo classifica o
poema, de seiscentos e cinquenta versos, repetidos em quadras, como de trovas alegres. Mas não parece, ainda
que haja sido sumária a minha investigação, que o contributo de Camilo para o
protesto contra a Grã-Bretanha tenha ultrapassado aquele poema. E depois, em
Maio de 90, de novo é o autor do Amor de
Perdição solicitado para colaborar na imprensa antibritânica. Enfermo,
martirizado pela cegueira, o desesperado de S. Miguel de Seide recusa-se. E
escreve a Tomás Ribeiro uma carta de angústia: “Eu estou na cama em trevas cerradas e cortado de dores. Se houvesse
Deus, eu já devia ter morrido pelo muito que lhe peço a morte. Não contribuo
para o jornal contra a Inglaterra porque não sou inimigo dos Ingleses.
Encontro-os com os primeiros Afonsos a conquistar o Sul de Portugal; achei-os
em Aljubarrota defendendo os falsos direitos do Mestre de Avis contra D. João
de Castela; encontrei-os em frente de Lisboa defendendo os direitos do rei
português D. António contra Filipe II. No terramoto de 1755, a Inglaterra remeteu
à desolada Lisboa uma frota com donativos superiores a quinhentos mil cruzados.
Acho os Ingleses ligados a Portugal contra Napoleão e empenhados em restituírem D. João VI ao trono. Encontro ainda, no nossos dias, os Ingleses por mar e por
terra batendo as forças do usurpador D. Miguel. Estes factos não me irritam
patrioticamente contra a Inglaterra. Quanto aos macololos, sabes de mais que no
fim do reinado de D. João III eram já perdidas as linhas hidrográficas de África.
Depois de Alcácer Quibir, nem portugueses nem espanhóis pensaram mais nos cafres.
Depois de 1640, nunca lá se mandaram missionários, nem protecção, nem educação.
Tudo aquilo prescreveu como se a vaga de dois séculos lambesse os areais onde
foram escritos os direitos de Portugal”. Não importa averiguar do rigor
histórico de alguns pormenores desta carta. Convém reter esta conclusão,
todavia: para o autor de Onde está a
felicidade?, em momentos cruciais, fora com a Inglaterra, e não com
potência continental europeia, que Portugal se deparara; e esta era a
explicação da aliança luso-britânica. Porque os interesses permanentes de Portugal
estavam mais próximos dos interesses permanentes daquele país do que de outro
qualquer. E isso tinha um preço político, alto sem dúvida, mas inferior ao que
resultaria da diluição na Península. Mas porque se torna pungente esta carta?
Pelo estado de espírito em que foi escrita: cerca de quinze dias depois de a
remeter a Tomás Ribeiro, a 1 de Junho de 1890, Camilo suicida-se em S. Miguel
de Seide com um tiro de revólver.
No quadro
do ultimatum inglês, ligado ao surto
de iberismo, cumpriria referir o estudo de Moniz Barreto intitulado A Situação geral da Europa e a política
exterior de Portugal, publicado algum tempo depois na Revista de Portugal. Moniz Barreto foi espírito tão gentil e lúcido
como idealista; e no terreno político deixou-se envolver e arrebatar pela emoção,
pelo ódio à Inglaterra; e como retaliação contra esta advogou uma conduta
externa que inelutavelmente entregava, como dádiva, Portugal à Espanha. Este
texto de Moniz Barreto teve as suas repercussões, e vastas. E estas haviam de
repor todo o problema – na sua constante pendular.»
Franco Nogueira
(«Juízo Final»).
O ultimato inglês (1890)
Não
cessavam na Europa as lutas pela hegemonia: simplesmente, a partir de meados do
século XIX, aquelas lutas foram transferidas para outros continentes. Entre
1853-1856 realizava David Livingstone a sua viagem através da África
Meridional. Foi-lhe atribuído um carácter missionário e cultural, e de
exploração científica e geográfica. Contudo, Livingstone revelou principalmente
que atravessava uma África «cruzada por
largos rios, com grandes lagos, e um solo fértil que produzia excelente
algodão, açúcar e outros produtos tropicais». «Os comerciantes ingleses ficaram encantados com tais possibilidades»;
na City de Londres, ao vitoriar o explorador, declarava-se que as descobertas
de Livingstone constituíam «largas
aberturas para o comércio»; e que, se fosse enviado um navio a subir o
Zambeze, decerto seria viável «carregá-lo
com materiais valiosos para os industriais metropolitanos» [1].
Ficou a Europa, deste modo, em presença de uma realidade que a fascinou, e que
desencadeou toda uma política europeia: foi a nova partilha de África. Fundamentalmente, três imperialismos europeus
se encontraram envolvidos: França, Inglaterra, Alemanha. Não deixaram a Itália
e a Bélgica de participar também. Eram económicos, militares, estratégicos os
objectivos prosseguidos; subsidiariamente invocava-se a necessidade de
disseminar a civilização, como pesada responsabilidade moral que cumpria aos
europeus; e estava criada a doutrina do fardo
do homem branco. Cada potência arrogava-se o direito e obrigação de assumir
essas responsabilidades com a maior latitude. Do Mare Liberum de Grócio, que era o império em base jurídica e
filosófica, apoiado pela força naval, caminha-se para o anti-esclavagismo que era o império em base económica e moral,
apoiado na força política e militar; e deste evoluíra-se para a missão civilizadora, que era o império
em busca de matérias-primas e de mercados, além de posições estratégicas, e
sempre apoiado na força. E agora, na segunda metade do século XIX,
começar-se-ia pelo Norte de África. A penetração económica e financeira foi a
arma usada para obter o domínio político. Aberto o Canal de Suez, tornou-se
vital o controle do Egipto; a Tunísia, para se desenvolver, deixou-se tentar
pelos capitais estrangeiros; e o Kediva do Cairo e o Bey de Tunes, «inconscientes do perigo que implicava o
recurso à finança europeia» [2],
sucumbiriam à situação a que foram arrastados. O Egipto pagava as dívidas à
França com dinheiro da Inglaterra; esta cobrava-se transformando aquele em
colónia; e a França, com o assentimento da Grã-Bretanha e da Alemanha,
transforma a Tunísia num protectorado que completava o domínio já exercido
sobre a Argélia e que se ampliaria até Marrocos. Por seu lado, a Itália
penetrava na Tripolitânia e iniciava a sua influência junto ao Mar Vermelho.
Era uma alteração profunda na política do Mediterrâneo, com implicações
militares; e era, além disso, uma barragem à expansão russa naquele mar e uma
forma de vigiar e influir no futuro da Sublime Porta, então o doente da Europa. Mas a expansão
ultramarina da França, da Inglaterra, da Bélgica e da Itália não deixou de
despertar ideias semelhantes na Alemanha. Durante os longos anos de Bismarck,
não acalentou este ambição quanto à África. O chanceler de Ferro concebia para
o seu país um papel essencialmente continental; e a sua política externa era
baseada na força e sobretudo numa «vontade
de poder» nacional; e com excepção do mar, a Alemanha era superior em todos
os domínios, desde a indústria e a economia até ao potencial militar terrestre.
Para Bismarck constituíam objectivos fundamentais manter o enfraquecimento da
França na Europa, evitar entendimentos desta com a Rússia, proporcionar motivos
de atritos entre aquela e a Itália, e apaziguar a Áustria-Hungria. Mas sob
pressão dos industriais e dos comerciantes o chanceler deu o seu acordo a que a
Alemanha participasse da aventura africana: surgiu assim a colonização
germânica na África Oriental (Tanganica), Austral (Sudoeste) e Tropical
(Camarões, Togo). No entanto, só depois da demissão de Bismarck, com Guilherme II,
iniciou a Alemanha uma política de expansionismo em escala mundial. E foi o
problema da África Austral e da África Central que levantou atritos entre as
potências. Lançaram-se estas na corrida às explorações, ocupações e
delimitações. Fundaram-se Companhias,
organizaram-se Sociedades científicas
e culturais, enviaram-se para o interior expedições de militares, de sábios, de
missionários, de comerciantes, de aventureiros. Como pano de fundo a toda esta
actividade, estavam os interesses políticos, económicos, estratégicos.
David Livingstone |
Estátua de António Francisco da Silva Porto. |
Portugal
suscitava, com os seus territórios, ambições desregradas. Estava enfraquecido
pelas querelas internas; depauperado nos seus recursos; destituído de forças
militares significativas; e os dirigentes, mais do que aos interesses nacionais,
atendiam às lutas partidárias e às ideias alheias. Desde as invasões francesas
que, por incúria ou incapacidade nossa, muitas posições nos haviam sido
tomadas. E a partir de meados do século XIX éramos ameaçados por toda a parte.
Não cessavam contra Portugal as acusações: desde as de trabalho forçado até às
de intolerância religiosa. Salvo erros ou abusos isolados,
não tinham fundamento. «As missões
protestantes actuaram, neste período do descobrimento e da partilha de África,
sempre ao serviço de interesses opostos aos interesses portugueses, e foram
admiráveis instrumentos do imperialismo inglês» [3]. Viagens e explorações portuguesas eram ignoradas. Foram
aclamados os feitos de Livingstone como se fossem os primeiros, e os maiores. E
no entanto muito antes daquele haviam portugueses cruzado a África. Já ao
findar do século XVIII Lacerda e Almeida subira até Cazembe. E agora, antes de
David Livingstone, Correia Monteiro e Pedroso Gamito haviam repetido a mesma
jornada, entre 1831 e 1832; e Rodrigues Graça penetrara em Katanga, entre 1846
e 1847; e por 1852 e 1853 já Silva Porto se encontrava no Bié e depois no alto
Zambeze, onde acolhe Livingstone e o trata hospitaleiramente [4].
Silva Porto foi nesta época, sem dúvida, o maior sertanejo português: a sua pouca cultura era compensada por viva inteligência: e à falta de recursos materiais
sobrepunha capacidade de improvisação e energia sem paralelo. Percorreu os
sertões; em Cabinda cruzou-se com o americano Henry Stanley [5]; e
internou-se até ao Reino de Barotze [6]. A
estes, outros intrépidos viajantes portugueses se sucederam: é todo um grupo de
exploradores, cientistas, militares, investigadores de que foi timbre o
patriotismo, a bravura, o espírito de sacrifício, e o sentido nacional. Serpa
Pinto, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens organizaram expedições entre a
costa e a contra-costa e estudam as ligações entre o Zambeze e o Zaire.
Alexandrino da Cunha e Bernardino Brochado atravessam vastas áreas; Paiva de
Andrade e Vítor Cordon percorrem a África Central a partir de Moçambique; Augusto Cardoso e António Maria Cardoso reconhecem o Niassa; e Henrique de
Carvalho explora a Lunda. Notícia destas viagens causava no reino funda emoção,
e despertava interesse pelo ultramar e consciência da sua importância. Surge a Sociedade de Geografia. E um punhado de
homens de governo, desinteressados da política partidária, devota a sua energia à defesa de Portugal em África: Sá da Bandeira foi vigoroso paladino dessa
causa: e no seu rastro destacaram-se Mendes Leal, Latino Coelho, Luciano
Cordeiro, Rebelo da Silva, Andrade Corvo, Pinheiro Chagas, Paiva Manso, outros
ainda. Todos os empreendimentos possuíam um objectivo: assegurar a prioridade
da presença portuguesa, garantir a ocupação efectiva. A instalação dos ingleses
na África do Sul, em torno do Cabo, levara-os a ameaçar Moçambique, e a
contestar os nossos direitos quanto a muitas áreas; Cecil Rhodes lançava a
famosa ideia da ligação «do Cairo ao Cabo»; franceses e belgas impugnavam o
nosso domínio no Zaire e em toda a bacia convencional do Congo; e a
Grã-Bretanha reivindicava posições portuguesas na costa ocidental. Surgiram
então duas crises graves. Em 1870, o Governo de Londres alegava direitos à ilha
de Bolama. Ceder seria entregar a Guiné, e esta era vital para a liberdade das
comunicações norte-sul. Com extremos de tacto e destreza, sugerimos a
arbitragem internacional; correctamente, a Inglaterra aceitou-a; e o presidente
dos Estados Unidos decidiu o pleito em nosso favor. Em 1875, nova disputa
quanto à baía e porto de Lourenço Marques, e também com a Inglaterra. Foi
adoptado idêntico procedimento; submeteu-se a divergência ao presidente francês
Mac Mahon; e este confirmou o fundamento dos direitos portugueses [7].
Em boa verdade, todavia, e mais do que ao respeito internacional pela lei,
ficámos devendo as nossas posições aos reforços militares, que então enviámos,
e a uma administração mais cuidada.
Benjamim Disraeli, Conde de Beaconsfield. |
Teve o
Governo português lúcido entendimento da conjuntura. Produzia-se em África o
embate dos grandes impérios da época. Era a Inglaterra de Disraeli,
imperialista confesso, e de Gladstone, imperialista convertido, e de que Granville
e Salisbury eram os representantes
convictos no plano internacional. Era a França de Freycinet e de Jules Ferry,
que procurava fora da Europa a compensação para o desaire de 1870. Era a
Alemanha de Bismarck, que sempre preconizara uma política apenas continental e
em direcção a leste, mas que nos últimos tempos do seu consulado se persuadira
do interesse germânico em África [8].
Era a Bélgica de Leopoldo II, que a título pessoal desejava talhar-se no
coração do continente um vasto império. Resolvidos a não lutarem na Europa,
queriam também em África alargar os seus domínios: para o efeito, porém, era
mais conveniente utilizar as áreas de um país enfraquecido como Portugal do
que, sob pena de conflito, procurar arrancar aos fortes o que estes já
possuíssem. Barbosa du Bocage era então ministro dos estrangeiros e pareceu-lhe
que na confrontação dos grandes
interesses poderia residir a salvação do ultramar. Era a ideia de uma larga
reunião internacional. Todas as viagens e explorações, que havíamos empreendido
ou estávamos realizando, tinham por objectivo criar-nos uma situação jurídica e
de facto que nos permitisse mais eficaz defesa. Discutíamos com a Inglaterra a
delimitação de fronteiras em numerosas áreas; a França e a Alemanha seguiam com
atenção o desenrolar das conversações: e suscitaram objecções a entendimentos
que julgavam ser-lhes prejudiciais. Em Outubro de 1884, o representante alemão
em Lisboa convidava o governo a participar numa reunião internacional em que se
debatessem os problemas da África negra: era a Conferência de Berlim. Aceitámos
o convite: e confiámos a nossa representação a António de Serpa Pimentel,
Luciano Cordeiro e marquês de Penafiel. Três pontos fundamentais constituíam a
agenda proposta: a liberdade de comércio em toda a bacia do Congo e na sua foz;
aplicação dos princípios do Congresso de Viena quanto a navegação livre nos
rios internacionais; e definição de critérios para que se pudesse considerar
válida a ocupação de quaisquer áreas no continente africano. Fomos a Berlim: e «fomos sós, e sós nos achámos lá» [9].
Defendemos tenazmente os nossos direitos; e procurámos jogar na rivalidade dos
imperialismos. Em Fevereiro de 1885, era elaborado o acto geral de Berlim. Na essência, o documento estabeleceu:
reconhecimento do Estado independente do Congo, cujo soberano era o rei dos belgas,
a título pessoal; liberdade de comércio no perímetro designado por bacia convencional do Congo, muito mais
extensa do que a bacia geográfica, pois se alongava dos litorais atlântico e
índico até às fronteiras meridionais da Etiópia; necessidade de notificação às
potências da ocupação prévia e efectiva antes de ser proclamada a anexação de
um território. Dois pontos cruciais emergem do acto geral de Berlim: a consagração do princípio da internacionalização dos problemas africanos [10];
a proclamação de uma política de porta aberta quanto ao comércio e
aproveitamento da mais rica zona de África e em que as potências europeias
poderiam participar em igualdade jurídica. E um outro princípio foi adiantado,
ainda de forma incipiente: no fim da conferência, o representante
norte-americano entregou uns comentários em que se defendia o «direito das raças indígenas a disporem de
si próprias e do seu solo hereditário» e a necessidade de obter o «consentimento voluntário dos habitantes»
para ser internacionalmente relevante a ocupação de territórios, ainda que
efectiva. Via ao longe o delegado americano: os Estados Unidos abriam-se,
naquele ano de 1885, o caminho doutrinal da sua futura intervenção no
continente africano. E uma última consequência derivou do acto de Berlim: a
teoria das esferas de influência:
completava a da missão civilizadora e
a do fardo do homem branco: e
assegurava, de forma tácita, a exclusividade dos impérios nas zonas em que pela força houvessem podido implantar-se
antes de outros.
Conferência de Berlim (15 de Novembro de 1884 a 26 de Fevereiro de 1885). |
Sofreu Portugal com a reunião de Berlim. Maior
vítima poderíamos ter sido, no entanto, sem a previsão e o arrojo de cortarmos
a África negra em todos os sentidos, com viajantes e exploradores. Continuámos
essa política, e ainda com mais ousadia, após Berlim. E antes de tudo retomámos
com vigor o sonho, que mergulhava no século XVIII, de ligar por terra Angola e
Moçambique. Seria o mapa cor-de-rosa.
No discurso
corajoso de 11 de Junho de 1885, Luciano Cordeiro, que tinha estado em Berlim,
inquiria: «É tempo de perguntarmos o que
sucedia em Portugal, durante esta sucessão rápida, impetuosa, de tantos factos,
que de tão perto e fatalmente se relacionavam com os nossos interesses, com os
nossos direitos, com as nossas tradições coloniais. Que fazíamos nós? Creio que
fazíamos política, esta política que nos consome o tempo e as forças».
Havia um sentimento de desagregação: entrava em crise o rotativismo: fragmentam-se os partidos: os dirigentes monárquicos,
sem embargo de nobres intenções, pareciam destituídos de fé e coragem; viviam
enredados nas pequenas questões e embevecidos pelo que se passava nos países
mais adiantados em matéria de instituições políticas: e os homens que cuidavam
do ultramar formavam um grupo à parte, inspirado nas tradições e firmado no
apoio do rei e no sentir do povo, mas segregado da máquina política e
administrativa. Depois de Berlim, e para salvaguardar o possível, iniciaram
todas as medidas que pudessem, de harmonia com o acto geral, consolidar as
posições e os direitos de Portugal. Barbosa du Bocage, já em Maio de 1885,
escrevia a Pinheiro Chagas, ministro do Ultramar: «Unir Angola a Moçambique, cortar de um lado a outro o continente
africano, foi o sonho dos nossos maiores, nobre aspiração a que algumas
portentosas viagens deram alimento, e bem cabida era esta ambição num povo que
abrira ao mundo o caminho de África, da Índia e do Brasil e que possuía, de um
lado as embocaduras do Zaire, do Cuanza e do Cunene, do outro a foz do Limpopo,
o delta do Zambeze e o curso do Rovuma. Quem melhor do que nós poderia realizar
tão grandiosa obra? Parece azado o momento para empreender a realização da
sonhada obra e propício o ensejo para chamar a colaborar connosco os capitais
estrangeiros» [11].
Ao mesmo tempo, generalizávamos a negociação; ampliávamo-la a todos os países
que tivessem pendências connosco em África; e era preciso, como notava Barbosa
du Bocage, caminhar depressa para não darmos tempo a que outros se adiantassem
e tornassem irrealizável a nossa obra. Pinheiro Chagas respondeu: estava «em perfeita conformidade de aspirações no
tocante aos nossos domínios ultramarinos». No país considerou-se que se
tratava de uma política nacional, e
não partidária. Andrade Corvo começou a negociar em Paris. Surgiram
dificuldades perante as pretensões francesas: mas cedemos em Casamansa contra o
reconhecimento, por Paris, dos nossos direitos ao sul, em particular nos territórios que separam Angola e
Moçambique. Foi o tratado luso-francês de Maio de 1886. Mas caiu o governo
regenerador: formou-se uma administração progressista: e Bocage foi substituído
por Barros Gomes. Concluiu a negociação com a Alemanha: com esta, estavam
pendentes os limites de Angola pelo sul. Aceitámos o Cunene como fronteira meridional,
e assim alguma coisa abandonávamos; mas Berlim reconhecia como esfera de influência portuguesa as
demais áreas a que nos julgávamos com direito, incluindo o território entre Angola e Moçambique. Em Dezembro de
1886 era assinada a convenção luso-alemã. França e Alemanha procuravam estorvar
a Inglaterra. E havia agora que negociar com esta última.
Perante o
mapa anexo aos acordos entre Portugal e a França e a Alemanha, protestou a
Grã-Bretanha: e alegava que o documento incluía áreas sem vestígios de ocupação
portuguesa, outras onde existiam estabelecimentos ingleses, outras ainda
suscitavam a Londres um interesse muito particular. Considerava aquela carta,
por isso, contrária à conferência de Berlim; porque esta apenas admitira
poderes soberanos como resultado de ocupação efectiva: e esse não era o caso
dos territórios abrangidos no mapa. Foi fácil a resposta de Barros Gomes: a
carta indicava apenas as áreas sobre que a França e a Alemanha não tinham
reivindicações; estavam ressalvados os direitos de terceiros; e a ocupação
efectiva, tal como assente em Berlim, respeitava somente ao litoral e não ao
interior. Por outro lado, não era exacto afirmar que na zona em causa não
houvesse vestígios de ocupação portuguesa: desde o século XV, e seguramente desde
o século XVII, que a vastíssima região fora sulcada por viagens de portugueses:
e não era decerto mais efectiva do que a portuguesa a ocupação britânica. Tudo
isto seria matéria de negociação entre os dois governos. Barros Gomes colocava
o problema no terreno da história, do direito e da moral; mas Londres agia
noutro plano. Eram os minérios – o cobre, o ouro, os diamantes – que estavam em
causa; o comércio e as indústrias britânicas faziam pressão sobre o governo; e
Cecil Rhodes prosseguia o projecto de ligar o Cairo ao Cabo [12].
Não se dispunha a Inglaterra, portanto, a desistir do seu intento.
Cecil Rhodes. Ver aqui, aqui e aqui |
Aos
argumentos históricos e de facto, coligidos por Barros Gomes e apresentados no
Foreign Office, replicou Lord Salisbury que, se a conferência de Berlim relacionara
a efectividade da ocupação apenas com o litoral, nada impedia que o princípio
constituísse base de direito internacional geral e se aplicasse portanto ao
interior. E o subsecretário Fergusson declarou, em público, que o seu governo
apenas reconheceria a nossa soberania onde existissem estabelecimentos
portugueses e Portugal mantivesse jurisdição e ordem. Barros Gomes deu todas as
garantias de protecção de súbditos, interesses e comércio britânicos na área
que reivindicávamos. Transpirou a divergência, entretanto, para a opinião
pública: há interpelações ao governo no Parlamento, a imprensa ocupa-se do assunto
com emotividade. Do seu lado, Salisbury rejeita a documentação histórica:
sarcasticamente, chama-lhe argumento
arqueológico: e considera tudo irrelevante perante as ulteriores viagens de
Livingstone, a actividade dos missionários ingleses na área, e sobretudo em
face da situação política do momento. Surge assim claramente a indicação de que
a disputa era só política: estavam em causa os interesses britânicos. E do lado
português principiaram as alusões às alianças
continentais europeias, que nos protegeriam dos pretensos amigos;
propõe-se que intervenham na questão outras
potências interessadas; e estabelece-se a prova pública da influência efectiva
das autoridades portuguesas na zona e da absoluta prioridade na descoberta e exploração.
Em fins de 1888, Barros Gomes e Sir George Petre, embaixador inglês, discutem o
problema a fundo: repetem-se os argumentos: e à invocação do apoio germânico às
pretensões portuguesas, o enviado britânico responde que o seu país considerava
a Alemanha alheia ao caso. Continuavam em África as expedições portuguesas de
Cardoso e Paiva de Andrade. E as estas foi adicionar-se a grande expedição do
major Serpa Pinto, que havia vinte anos cruzava a África em mil sentidos. Endurece
a atitude de Londres, e Salisbury afirma: «as
boas relações entre os dois países não poderiam resistir por muito mais tempo à
tensão a que estavam submetidas» [13].
Portugal repete, com velada ameaça, as alusões à eventual intervenção de
terceiros, e alvitra que se proceda a delimitações sucessivas em várias
fronteiras (regiões dos Machonos, dos Matabeles, dos Macololos) a fim de se
resolver por fases a disputa; e mais uma vez, e agora por escrito, propõe um «acordo internacional entre todos os
governos interessados» [14].
Salisbury rejeita. Serpa Pinto chega ao Lago Niassa; técnicos portugueses estão
no Shire para estudar a construção de uma via férrea; e o cônsul britânico em
Moçambique procura o oficial português e, afirmando-lhe o protectorado do seu
país sobre os Macololos, intima-o a não avançar mais. Serpa Pinto, isolado, com
recursos escassos, não se atemorizou: atravessou o Ruo, socorreu os técnicos
portugueses atacados, ocupou o Shire, nomeou Azevedo Coutinho governador
militar. Petre protesta em Lisboa; e a imprensa desencadeia uma campanha
anti-britânica. Barros Gomes procura a conciliação: entrega uma nota em que se reiteram as garantias à protecção dos interesses legítimos da Inglaterra e se
reafirma o sentimento de cordialidade que une os dois países. Em Lisboa a
imprensa escrevia: «os direitos e a honra
de Portugal foram mantidos contra a cobiçosa e absorvente política da sua
aliada» [15].
Em fins de 1889, Sir George Petre dizia a Barros Gomes que a situação era
grave: e isso porque Serpa Pinto continuava a avançar à frente de um exército, dominava os Macololos, não respeitava os
estabelecimentos ingleses, ignorava o protectorado britânico. E concluía: a
Inglaterra não podia ficar de braços
cruzados perante o que entendia ser ofensa à sua honra e aos seus direitos:
e era preferível que Portugal cedesse voluntariamente do que por outra
maneira. Barros Gomes respondeu em forma «conciliadora
e cortês sem contudo ceder a sua posição» [16],
e demonstrou o exagero das alegações britânicas: no Shire havia paz e nenhum
interesse directo inglês fora lesado. Entra-se em 1890. No dia 2 de Janeiro, Petre
entrega nova nota: o Governo de Londres não reconhece os direitos portugueses,
exige uma declaração imediata de que não serão solucionadas pela força as
pendências territoriais, ameaça com o recurso a outras medidas se não fosse obtida
satisfação, e fixa o dia 8 para uma resposta. Barros Gomes lamenta a marcação de
um prazo, garante que não serão atacados estabelecimentos ingleses sob condição
de reciprocidade de parte britânica e propõe a reunião de uma conferência dos
signatários do acto de Berlim. E concluía:
«se a Inglaterra tivesse reconhecido o
direito histórico, constantemente invocado por Portugal, ao território do Chire
e Niassa, nenhuma questão teria surgido». E no mesmo tempo em que assim respondia
a Petre, Barros Gomes informava da situação todos os agentes diplomáticos
portugueses no estrangeiro; encarregava estes de perguntar aos governos locais
até que ponto, isolada ou colectivamente, estavam dispostos a empregar em favor
de Portugal os seus bons ofícios. Com a resposta no dia 8, no entanto, não se
deu por satisfeita a Inglaterra; e Salisbury, em linguagem já sem peias, exigiu
a retirada da expedição Serpa Pinto e envio imediato de instruções de Lisboa
nesse sentido. Depois de uma pressão feita no dia 10, em 11 de Janeiro de 1890
Petre entregava a Barros Gomes um novo memorial: «O governo de Sua Majestade não pode considerar satisfatórias ou
suficientes, tal como as interpreta, as garantias prestadas pelo governo
português. O cônsul interino de Sua Majestade em Moçambique, firmado em
declaração do próprio Major Serpa Pinto, telegrafou que a expedição continuava
a ocupar o Shire; e que Katunga e outros locais no território dos Macololos iam
ser fortificados e guarnecidos. Aquilo que o governo de sua Majestade pretende,
e em que tem de insistir, é o seguinte: que se enviem instruções telegráficas
imediatas ao Governador de Moçambique no sentido de que sejam retiradas todas e
quaisquer forças militares portuguesas que neste momento se encontrem no Shire,
ou no território dos Macololos, ou no território dos Machonas. O governo
entende que, sem isso, as garantias prestadas pelo governo Português são
completamente ilusórias. O Sr. Petre, em face das suas instruções, está
obrigado a sair imediatamente de Lisboa, com os membros da sua Legação, a menos
que uma resposta satisfatória à precedente instância seja por si recebida
durante a tarde; e o navio de Sua Majestade «Enchantress» encontra-se em Vigo esperando as suas
ordens» [17].
Era um ultimato.
António Enes |
Estátua a António Enes na Baixa de Lourenço Marques (cerca de 1929). |
Perante a
situação dramática, exalta-se e emociona-se a opinião pública. Reúne-se de
emergência o Conselho de Estado. Barros Gomes é partidário da resistência;
Barjona de Freitas recomenda a retirada de Serpa Pinto; e Serpa Pimentel defende
a cedência sob condição da Inglaterra aceitar arbitragem ou conferência
internacional. José Luciano, o conde de S. Januário, João Crisóstomo,
inclinavam-se para a rendição. Depois de debate, e ainda no prazo solicitado
por Petre, o Conselho decide cumprir o ultimato, embora quanto aos direitos de
Portugal fizesse reserva académica. Demite-se o governo progressista, que não
partilhava do parecer do Conselho de Estado; e toma o poder António de Serpa.
Este envia a Londres Barjona de Freitas: tenta-se recompor os destroços.
Iniciam-se conversações que levam em Agosto de 1890 a um projecto de tratado.
Mas este por sua vez é atacado com violência, e de novo cai o governo; João
Crisóstomo assume a presidência. Barbosa du Bocage retorna aos Estrangeiros.
Não é ratificado aquele projecto; e continuam as negociações. No reino, não
pode ser mais profunda a mágoa, nem mais acerba a indignação. Antero de
Quental, o iberista que descria do seu país, invoca a «intensa paixão patriótica do povo português» que considera «inequívoca manifestação da vitalidade
nacional»; julga o momento de «humilhação
e de ansiedade»; e preside à Liga
Patriótica do Norte. Fulmina então o «insulto
e a vilania» da Inglaterra; pede um «esforço
viril e persistente para sermos de facto independentes»; e recomenda que no
«altar da pátria» todos os
particularismos e ressentimentos sejam sacrificados. Rodrigues de Freitas,
António Vieira de Castro, Bento Carqueja, Basílio Teles, Luís de Magalhães,
Ricardo Jorge, conde de Resende, Joaquim de Vasconcelos, Ezequiel Vieira de
Castro, José de Sampaio, outros ainda, e Antero de Quental, dirigem ao
presidente do Conselho, Serpa Pimentel, uma representação de protesto e de
orgulho, e em que solicitam a retirada do cônsul inglês no Porto, Oswald
Crawfur [18].
António Enes, no Dia, acumulava argumentos em defesa dos direitos e dos
interesses de Portugal, e pretendia que se seguisse serenamente o nosso
caminho, «suceda o que suceder». Oliveira Martins aconselha o governo a não
recuar, e a repudiar semelhante conselho, se alguém lho desse; e entende que a
questão do ultramar é vital para o país, e não pode ser descurada nem um
momento, em nome destes ou daqueles interesses, destas ou daquelas
conveniências de ocasião [19].
Fialho de Almeida, o céptico, o sarcástico, o ressentido, o iberista saudoso,
fustiga em Os Gatos a atitude britânica; e defende vigorosamente os direitos de
Portugal em África, qualifica os ingleses de «carrascos ruivos do Tamisa», e exalta o ultramar português, as
suas glórias e o seu carácter sagrado para a Nação [20]. Alfredo
Keil compõe um novo hino patriótico; e Guerra Junqueiro, em verso e em prosa,
publica violentas apóstrofes contra a Inglaterra. Basílio Teles reage com
veemência. E traça o quadro desse dia: «O
efeito foi prodigioso. Num relance, magotes movediços e frementes manchavam o
pavimento das ruas e das praças; os cafés da baixa, repletos, estavam em
ardente ebulição; as vociferações, os protestos, as injúrias, as propostas mais
radicais e extravagantes entraram a cair, como granizo, comunicando e agravando
a efervescência. O rei e os “cobardes” que tinham subscrito as exigências do
gabinete de Inglaterra eram, literalmente, esfarrapados nestes primeiros golpes
de língua» [21].
Assaltava-se a redacção das Novidades,
consideradas jornal progressista; e a Gazeta
de Portugal, havida como orgão regenerador, era aclamada. Nas salas do Tempo, Oliveira Martins exprimia a sua
cólera; e Emídio Navarro bradava a sua raiva, cravando murros nas mesas.
Lançava-se uma subscrição pública para a compra de armas; e Eduardo de Abreu
cobre de crepes negros a estátua de Camões. No Café Martinho, João Chagas e Magalhães Lima gritavam vivas à república, e à
frente de grossa multidão, que como no tempo de Fernão Vasques e Álvaro Pais
vinha do largo de S. Domingos e do Rossio, dirigiam-se ao Século, cujo republicanismo era conhecido. Perante todo este
estremecimento do país, e rejeitado o acordo de 1890, continuam as conversações
com Londres. Em 11 de Junho de 1891, era assinado e ratificado o Tratado
definitivo. Sir George Petre não ocultava o seu júbilo; e Cecil Rhodes, que
também se havia oposto ao acordo de 1890, exultava agora com o documento de
1891. Hintze Ribeiro, nas câmaras, salientava que este era menos favorável que
o de Agosto de 90, e perguntava: «valeria
a pena, enfim, ter abandonado o tratado de 20 de Agosto para, depois de tantos
revezes e de tão fundas provações, chegarmos à conclusão de ter de aceitar este
tratado?» Barros Gomes defendia-se: «Eu
não fui o autor do mapa cor-de-rosa». Declinava a responsabilidade da
crise; mas associava-se à política iniciada por Barbosa du Bocage. E exclamava:
«Presto homenagem aos intuitos
patrióticos que o animaram e que eram justificáveis na época em que o mapa
referido foi condenado». E fazia depois uma justificação rigorosa da sua
atitude: não deixava dúvida na câmara sobre o seu bom fundamento. Mas a
realidade poderosa impunha-se: o sonho da ligação por terra entre Angola e
Moçambique, firmado em direitos que vinham do século XVII, estava em escombros;
e a Grã-Bretanha abria caminho do Cairo ao Cabo e recolhia no seu império toda
a África Central e Austral.
Ernesto Hintze Ribeiro |
Se se
quiser analisar a crise de 1890, facilmente se deduz que os direitos
portugueses eram incontestáveis, e foram comprovados. Mas cometemos três erros
capitais. Negociámos em separado com a França e a Alemanha: deveríamos tê-lo
feito simultaneamente com a Inglaterra. Depois, não mostrámos, no plano
interno, possuir força militar e económica, nem uma unidade de opinião: Londres
compreendeu que podia aproveitar divisões intestinas [22].
Por fim, e com ingenuidade, persuadimo-nos de que a França e a Alemanha nos
apoiariam contra a Inglaterra, e que a Europa viria em nosso socorro defender
os nossos interesses: mas perante o ultimato britânico o continente europeu
cerrou os olhos muito cerrados [23].
E Oliveira Martins já antes chegara a essa conclusão: «é para nós positivo que nenhuma das potências europeias dispararia um
tiro em nossa defesa» [24].
Na raiz de tudo, a nossa fragilidade económica, militar e política.
(In Franco Nogueira, As
Crises e os Homens, Livraria Civilização Editora, 2.ª edição, 2000, pp.
211-223). Ver aqui e aqui
[1] Livingstone, African Journal (1853-1856), introdução,
pp. 12 e 13.
[2] Pierre Renouvin, Histoire des Relations Internationales,
VI, 80.
[3] Professor Doutor Marcello
Caetano, Portugal e a Internacionalização
dos Problemas Africanos, p. 107, 4.ª ed., 1971.
[4] Deve registar-se por ser
verdade, que mais tarde os historiógrafos ingleses reconheceram a prioridade
dos exploradores portugueses, embora continuassem a atribuir maior valor
documental aos relatos de Livingstone.
[5]
Henry Stanley deixou relatos minuciosos: How
I found Livingstone, Through the Dark continent; e In Darkest Africa, 2 vols. É
patente a pouca simpatia que lhe merecem os portugueses.
Ilustração do encontro entre Henry Morton Stanley (esq.) e David Livingstone (dir.) ocorrido na localidade de Ujiji (Tanzânia), em 1871. |
Livingstone Memorial |
[6] Hoje parte da República da
Zâmbia.
[7] Ver José de Almada, Tratado de 1891, p. 81.
[8] Sobre a oscilação do povo
germânico entre uma política continental e uma política mundial, há um ensaio
excelente e profundo de A. J. P. Taylor, The course of German history, Londres, 1945.
[9] Luciano Cordeiro, Discurso, de 16 de Junho de 1885.
[10] Sobre este problema é
fundamental o volume do Professor Marcello Caetano, Portugal e a Internacionalização dos Problemas Africanos, em que se
analisam os factores internacionais à luz dos interesses portugueses, Lisboa,
4.ª ed., 1971.
[11] Texto em Professor Doutor
Marcello Caetano, ob. cit., p. 121.
[12] Sobre este período das relações
luso-britânicas na África Austral existe numerosa bibliografia inglesa. Um dos
melhores e mais bem documentados volumes é o de Philip R. Warhurst, Anglo-Portuguese Relations in South-Central
África, 1890-1900, Londres, 1962.
[13] José de Almada, Tratado de 1891, p. 278.
[14] Nota de 20 de Fevereiro de 1889.
[15] José de Almada, ob. cit., 295.
[17] Desde 1890, tem-se utilizado em
Portugal sempre a mesma tradução do inglês do ultimato; e isso tanto em
publicações oficiais como particulares; e essa tradução é indubitavelmente
incorrecta. A tradução que acima se apresenta é nova, e penso que a versão sobre
que até agora os historiadores têm trabalhado constitui um simples aportuguesamento das palavras inglesas,
sem ter em conta o seu espírito e o seu sentido profundo, e sem que se tivesse
procurado encontrar as palavras portuguesas correspondentes a esse espírito e a
esse sentido. Toda a nota inglesa tem sido mal traduzida. O ponto mais
importante, porém, respeita ao uso da palavra intimation no texto inglês. Tem sido traduzida sempre por intimação. O governo português da época,
Basílio Teles, Marques Guedes, Alfredo Pimenta, historiadores e escritores
portugueses, todos, que eu saiba, têm aceite uma tal tradução. Dão-lhe e
tem-lhe sido dado o mesmo conteúdo e alcance que tem na língua portuguesa, para
significar uma ordem emanada de uma autoridade soberana, e por isso não é
passível de discussão ou resistência: é assim que falamos de uma intimação judicial ou intimação policial, a que qualquer de
nós tem de obedecer, pois que, se o não fizer, será fisicamente constrangido ao cumprimento de tal intimação. Ora a
palavra intimation não corresponde a intimação. Intimation, do verbo to intimate, quer dizer informar, anunciar, dar a entender indirectamente, fazer pressão no
sentido de, dar a perceber, instar, revelar por forma não explícita a intenção
real, etc. Desde que, todavia, se traduziu na altura intimation por intimação,
criou-se um infundado sentimento público de ofensa e humilhação, considerámos
que Londres se nos dirigia como se fôssemos seus súbditos. Verdadeiramente, a
nota inglesa urge o Governo Português
a actuar de uma certa forma; insta
para que o faça; e dá a perceber, de forma indirecta e clara, que seriam
gravíssimas as consequências se o não fizesse. Mas não intima. Por isso julgo
que no caso a tradução correcta de intimation
é instância. Nada disto, porém, retira
à nota britânica o carácter de ultimato. José de Almada, apesar de acolher a
versão de intimação, parece duvidar de que assim seja, pois fala no «chamado ultimatum» (ob. cit. 308). Mas trata-se
efectivamente, como muito bem salienta o Professor Doutor Marcello Caetano (ob. cit. 129), de um ultimato. O
Professor Doutor Marcello Caetano também acolhe a versão clássica e até agora
corrente; mas não é nesse aspecto que funda o seu parecer. O que caracteriza um
ultimato é a apresentação de uma exigência para cuja satisfação se marca um
prazo-limite sob pena de sanções; e isso contém a nota de Petre. Para se ser
justo, portanto, haverá que dizer que recebemos um ultimato inglês, duro e firme,
sem que no entanto a Inglaterra tivesse ao mesmo tempo procurado ofender e
humilhar Portugal. Note-se que na própria resposta de Barros Gomes a Petre também
se aceita a intimação: fala-se na intimação que me dirigia. Aliás, a
resposta portuguesa, do ponto de vista político, não podia ser mais desastrosa
e inábil. Na desorientação do momento, não foi aprofundado o sentido e o
significado real das palavras da nota inglesa; e durante oitenta anos nenhuma
revisão foi feita de um processo cujo estudo está ainda imperfeito. Acentue-se
por último que o Conselho de Estado, ao debater o assunto, tratou o documento
de Petre como memorandum e não como ultimatum. Pelas razões acima, não há
dúvida, no entanto, de que continha um ultimato o documento de 11 de Janeiro
de 1890.
[18] Citações de Quental extraídas de
Prosas, II e III.
[19] Oliveira Martins, Política e História, II, 214-215.
[20] Fialho de Almeida, Os Gatos, III, 35-45.
[21] Basílio Teles, Do ultimatum ao 31 de Janeiro, 96.
[22] Das calamidades da nação todos
os estrangeiros se apercebiam. Escreve um autor inglês com justiça: «Corrupção, política frouxa, falta de espírito
público carcomiam os fundamentos do Estado». Warhust, ob. cit. 152.
[23] Desde que não se soube evitar o
ultimato, não se afigura possível que fosse outra a decisão do Conselho de
Estado. Decerto a Inglaterra atacaria posições portuguesas – Cabo Verde, por
exemplo – e o que perdesse não seria mais recuperado.
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