terça-feira, 5 de setembro de 2023

O ultimato inglês (1890)

Escrito por Franco Nogueira


Alexandre de Serpa Pinto

«No início da década de 1880, [Portugal e a Inglaterra] andaram entretidos com uma disputa sobre o direito de ocupação dos territórios a norte do Ambriz, em Angola. Em causa estava o domínio sobre o Baixo Congo – ou Zaire –, uma das importantes vias de penetração no interior da África Ocidental. Portugal evocava os direitos históricos de descoberta e conquista sobre a região, embora estivesse longe de poder assegurar qualquer tipo de ocupação efectiva sobre a zona.

Os antagonismos com a Grã-Bretanha iriam atingir níveis elevados. Durante a Primavera de 1883, no parlamento de Londres, um deputado por Manchester, Jacob Bright, proferiu, alegadamente, algumas declarações menos abonatórias em relação a Portugal, acusando as elites políticas lusitanas de pertencerem e dirigirem uma nação de negreiros corruptos. A somar a estas polémicas afirmações, o parlamentar teria ainda afirmado que Portugal ocupava ilegalmente uma das margens do rio Zaire, comparando os nossos hábitos políticos aos da Turquia, tida então como o país mais atrasado da Europa. Quando se soube da denúncia em Lisboa, a oposição afecta ao Partido Progressista instou o Governo do Partido Regenerador a reagir diplomática e militarmente à ofensa, mas António de Serpa Pimentel, o ministro dos Negócios Estrangeiros da época, recusou-se a satisfazer os pedidos mais exaltados, que reclamavam o envio de um navio de guerra para a zona.

A região tinha despertado o interesse da comunidade internacional depois das expedições realizadas por Henry Stanley, ao serviço de Leopoldo II e da Associação Internacional Africana (1876), mas também por parte de Savorgnan Brazza. Este último, em 1880, conseguiu mesmo assinar um tratado com um rei local no Congo, facto que avivou a atenção do Governo de Londres, preocupado com o crescimento da influência francesa na região. Como vacina contra essa ascendência, os britânicos dispuseram-se a reconhecer a soberania lusitana sobre o Baixo Congo. Enquanto o Governo de Londres permitia a concessão em troca de vantagens comerciais em Angola e Moçambique, as autoridades portuguesas achavam que os seus oponentes mais não faziam do que reconhecer os evocados direitos históricos. Depois de negociações que duraram praticamente dois anos, a 26 de Fevereiro de 1884 ambos os países assinaram o chamado Tratado do Zaire.






Pelo acordo, os ingleses reconheciam a soberania portuguesa nos territórios das duas margens do rio Zaire até às fronteiras do emergente Estado do Congo, em troca de facilidades no comércio e navegação. Portugal, por este arranjo, alienava direitos de soberania no Norte da Zambézia, em Moçambique, sob o pretexto de dar combate ao tráfico de escravos com maior eficácia, problema que se irá manter quando, poucos anos mais tarde, Mouzinho de Albuquerque tentar dominar a região. Alegadamente, o Tratado do Zaire seria mais prejudicial para os interesses nacionais do que o anterior Tratado de Lourenço Marques porque concedia incomparáveis vantagens mercantis à Bélgica, à Inglaterra e à França, enquanto a soberania do nosso país na região era reduzida a uma expressão pouco mais do que nominal. Um jornal francês escreveu mesmo que algumas cláusulas do tratado foram submetidas à apreciação do rei dos belgas, Leopoldo II.

A 3 e a 13 de Março, o acordo seria apresentado nos parlamentos de Londres e Lisboa, respectivamente. Por momentos, a indignação nacional subiu de tom. Foram mais as vozes a contestar esta combinação do que aquelas que a aprovaram. Para além da discordância dos governos de França e Alemanha e de Leopoldo II, excluídos do negócio, na Grã-Bretanha, as associações comerciais e antiesclavagistas opuseram-se ao eventual estabelecimento de Portugal na região da foz do Zaire. Em termos domésticos, a oposição progressista ao Governo regenerador, que foi responsável pelo ajuste, veio para os jornais protestar com o argumento de que, afinal, os direitos históricos do país não tinham sido respeitados na íntegra. Neste contexto de falta de aprovação, o Executivo de Londres não chegou a submeter o tratado a ratificação parlamentar e o mesmo seria abandonado. A questão do Congo ficava por resolver.

Simultaneamente, como vimos, um novo actor emergia na cena internacional, chegando a vez da Alemanha recentemente unificada, nação tão admirada por Mouzinho de Albuquerque, entrar na disputa colonial. A ideia original partira do ministro português da Marinha e do Ultramar, Barbosa do Bocage, mas foi por sugestão do chanceler Otto von Bismarck que, em Outubro de 1884, o Governo alemão tomou a iniciativa de convocar uma grande reunião internacional, em que estivessem presentes representantes dos principais países, para regular as formas do comércio, sobretudo nas grandes vias de acesso ao interior do continente como eram os rios Níger e Congo e definir os princípios que iriam disciplinar as novas ocupações territoriais. A Conferência de Berlim teve início a 15 de Novembro de 1884 com os plenipotenciários de 14 países, entre os quais Portugal, representado por António de Serpa Pimentel (ministro dos Negócios Estrangeiros), por Luciano Cordeiro (em representação da Sociedade de Geografia) e pelo conde de Penafiel (embaixador em Berlim).


Captura de Gungunhana



Rapidamente chegaram notícias a Lisboa de que na capital germânica se estavam a dar passos no sentido de construir um novo direito internacional sobre a partilha de África. As nações mais fortes não se dispunham a aceitar os princípios vigentes, impondo-se aos países mais pequenos como Portugal, que apesar de evocarem os direitos históricos à ocupação de territórios, na prática, não se conseguiam afirmar através da cobrança de impostos ou da presença militar.

A acta final da [Conferência de Berlim] foi assinada a 26 de Fevereiro de 1885. Nela ficava definido o princípio da livre navegação e comércio nas bacias do rio Níger e Congo, passando-se, simultaneamente, a exigir a posse efectiva dos territórios e já não apenas a evocação vaga de um direito de precedência, como forma de prover à ocupação territorial apenas no litoral, mas não no interior, como raramente é referido. A Conferência de Berlim não procedeu à partilha do continente, como também é corrente afirmar-se, mas à margem dos encontros oficiais teve lugar uma intensa actividade diplomática que conduziu ao reconhecimento internacional do Estado Livre do Congo, entregue à tutela do rei dos belgas, Leopoldo II. Portugal ficou com a posse da margem esquerda do rio Zaire, assim como com os territórios de Cabinda e Molembo no Norte de Angola.

Em Portugal, estes resultados foram recebidos com natural desencanto, mas tiveram o condão de reavivar a atenção das elites dos governantes e da opinião pública para o estado de abandono a que estavam votadas as colónias. No quadro da corrida à posse efectiva dos territórios e já conhecedores do interesse manifestado pelas potências, tornava-se urgente para os líderes políticos portugueses proceder à ocupação dos vastos espaços situados no interior de Angola e Moçambique. Para além disso, tomava-se consciência de que tinha terminado de vez a era da hegemonia singular no campo colonial, até então assegurada pela Grã-Bretanha, passando-se para um mundo multipolar com a entrada em palco de novas potências ultramarinas como a Alemanha. Esta inversão da cena internacional iria obrigar Portugal a redesenhar os seus acordos diplomáticos com outros países cortando a tradicional dependência exclusiva em relação a Londres, que, aliás, tinha abandonado a representação lusitana à sua sorte durante a Conferência de Berlim.

A redefinição da política externa tendo em vista as disputas que se adivinhavam no campo colonial não comportava neste momento nenhum teor anti-britânico. O objectivo do Ministério português era procurar uma posição de força em futuras negociações com Londres. A subida ao poder, em Fevereiro de 1886, de um novo Governo, em Lisboa, entregue novamente ao Partido Progressista viria a tornar mais clara esta reorientação diplomática.


O novo ministro dos Negócios Estrangeiros era um antigo membro do Partido Reformista, uma força liberal radical cujo carácter nacionalista tinha ficado bem patente durante a crise ibérica de 1870. Henrique Barros Gomes, cujas simpatias germanófilas não eram segredo para ninguém, tentou introduzir um novo ponto de equilíbrio mais favorável às pretensões nacionais no contexto da aliança luso-britânica. O ministro não defendia o simples rompimento de aproximação histórica entre os dois países, mas achava que Portugal deveria apresentar as suas posições com mais firmeza, não afastando a hipótese de estabelecer acordos com a França ou até com a Alemanha, grandes rivais dos britânicos. Esta política predispunha-se a cumprir um duplo objectivo. Procurava-se garantir o apoio de Berlim para o projecto da construção de um Império na África Central, de Angola a Moçambique, concorrente dos interesses britânicos, representado pelo chamado "Mapa Cor-de-Rosa". Esta reprodução cartográfica tinha sido, refira-se, originalmente mandada realizar, em 1885, pelo ministro da Marinha e do Ultramar de então, Barbosa do Bocage, na sequência dos ajustes empreendidos pelo Governo regenerador com a França para a delimitação das possessões portuguesas e francesas na África Ocidental. Para além disso, pretendia-se lançar um conjunto de expedições militares e científicas no terreno, para negociar com a Inglaterra de acordo com os princípios da nova ordem colonial estabelecidos na Conferência de Berlim.

Assim, Barros Gomes, a partir de Fevereiro de 1886, “imaginou que os destinos da África haviam passado para as mãos do ex-chanceler do império [Bismarck]. E imediatamente se inaugurou essa política colonial que tinha por fim aliar Portugal à Alemanha, para assim haver um contrapeso à influência inglesa na África”. A opção viria a revelar-se desastrosa, uma vez que o Governo alemão apenas se serviu de Portugal “para obter vantagens coloniais da Inglaterra”, nunca manifestando a mínima intenção de arriscar um conflito com este país por causa do nosso. O ministro português limitou-se a ganhar a irritação de lorde Salisbury, o primeiro-ministro britânico, tido como irascível, sem proveito algum para o país.

Todavia, seria na costa atlântica que Portugal começava por perder terreno. Sumiu-se parte da soberania que se reclamava no Norte de Angola, em resultado das conclusões da Conferência de Berlim, para o chamado Estado Independente do Congo. Pretendia Leopoldo II que Luanda se constituísse como o 12.º distrito daquele Estado, com o nome de Cuango Oriental. Henrique Augusto Dias de Carvalho, um major de Artilharia, que entre 1884 e 1887 comandou uma expedição pelas terras de Luanda, como referimos, editou então um opúsculo, de onde resultou um apelo patriótico à imprensa portuguesa para que esta concentrasse argumentos na defesa dos direitos históricos dos portugueses em África. Mais tarde, o mesmo autor publicou um outro livro, onde reuniu um conjunto vasto de documentos que, supostamente, deveriam esclarecer a posse da Lunda em favor da soberania portuguesa, ao mesmo tempo que combateu e refutou as pretensões do rei dos belgas em constituir um Estado livre na região. De referir que, por decreto de 13 de Julho de 1895, o Governo português criou mesmo o distrito da Lunda, sendo Henrique Dias de Carvalho o seu primeiro governador.»

Paulo Jorge Fernandes («MOUZINHO DE ALBUQUERQUE. Um soldado ao serviço do Império»).


Monumento a Mouzinho de Albuquerque, na praça com o mesmo nome, em Lourenço Marques (anos 1940).



«No quadro do iberismo português, todavia, que sentimentos foram na altura expressos entre os intelectuais, os homens da cultura e da inteligência, o escol mental da Nação, em suma? Que atitudes assumiram perante o ultimatum? Como é que, em face deste, e tendo abandonado e até repudiado o iberismo, inverteram a sua marcha e se sentiram tentados a regressar ao ponto de partida?

Se se ergueu contra as violências do poder, António Enes nem por isso acolheu o iberismo, a que aliás jamais havia aderido. Mas que escreveu aquele homem, em substância, no momento rude do gesto britânico? Sentiu naturalmente a consciência nacional humilhada, e insurgiu-se. Numa longa série de artigos, Enes acompanhara o processo das conversações entre Londres e Lisboa; e apoiando os argumentos portugueses, não se eximia a dirigir as suas setas ao modo por que da parte de Lisboa era conduzido o assunto. Perante o ultimatum, escreveu no dia seguinte: a Inglaterra tornou-se “absolutamente impositiva” e “pôs-nos o revólver aos peitos, contando os minutos”. Defronta com energia Barros Gomes. Mas Enes coloca-se acima dos partidos e para além das paixões: é uma atitude nacional, e só nacional, e de homem de Estado. E é de salientar este exemplo de António Enes por haver sido único. Porque em verdade são inteiramente emotivas as reacções de quase todos os demais. Pela intensidade, sobressai a de Fialho de Almeida. Requinta no ultimatum o seu velho iberismo. Sarcástico, céptico, ressentido, afogado em complexos de inferioridade, o autor de Os Gatos vergasta agora a Grã-Bretanha: defende os direitos de Portugal; exalta o Ultramar português, as suas glórias, o seu carácter sacrossanto para a Nação; e qualifica os Ingleses de “carrascos do Tamisa”. E volta-se com fervor para o republicanismo. Escreve: “antes do ultimatum inglês e da revolução do Brasil, raros de nós poderiam fazer sondagens certas na profundeza e na eficácia da cruzada republicana que pregávamos: e maldispostos contra a Espanha, menos ainda nos sentíamos dispostos a enfunar o estandarte da ideia, com correntes de opinião sopradas do outro lado da fronteira”; mas “agora mudou tudo”; “os verdadeiros inimigos de Portugal desmascaram-se”; e “a linha que nos separa de Espanha é apenas uma ilusão óptica de políticos, filha de um erro histórico de sete séculos, que desviou a Península da sua missão de grande potência, e tem defraudado a família latina duma força que, virilizando-se, poderia ter disputado, quem sabe? a hegemonia do mundo às raças loiras”. Assim Fialho, em pleno desvairo, retoma e repete com arreganho um iberismo que havia abandonado, e é de novo imperial; mas mais tarde, na sua inconstância e versatilidade permanente, haveria de regressar ao patriotismo, quase à monarquia, quase ao repúdio do republicanismo jacobino que por um tempo fora o seu. Mas na vivacidade do seu sentimento, neste particular, não está Fialho isolado. Acompanha-o Guerra Junqueiro, “grande poeta do ódio e da dissolução nacional” (Fid. de Fig., Pref. Cit., p. 10). Este compõe o poema O Caçador Simão e dedica-o justamente a Fialho de Almeida [Como se sabe, Simão era um dos muitos nomes de baptismo do Rei D. Carlos]. Junqueiro procura pôr a ridículo a figura do monarca. Mas depois é a Inglaterra que o autor de A Morte de D. João fustiga numa linguagem desapiedada. Recordem-se estas linhas (a que não é lícito chamar versos e muito menos poesia) e que foram depois incluídas no Finis Patriae: “Ó Cínica Inglaterra, ó bêbada impudente / Que tens levado, tu, ao negro e à escravidão? / Chitas e hipocrisia, evangelho e aguardente, / Repartindo por todo o escuro continente / A mortalha de Cristo em tangas de algodão”. Como em todo o poema, não estamos evidentemente perante arte mas em face de um panfleto; e este desce à bitola do torpe, de uma emoção primária, que tem por raízes a exaltação partidária e a raiva à Grã-Bretanha. E também a peça-poema Pátria constitui um grito de cólera, de ataque, de desvairo. Elogia-se Fialho, elogiam-se Os Gatos, onde perpassam, diz Junqueiro, rugidos de tigre; proclama-se o republicanismo, e afirma-se que republicano e patriota são palavras sinónimas; à monarquia nada se poupa; e o Rei, porque aceitara o tratado de 20 de agosto de 1890 (entretanto negociado entre Londres e Lisboa), é qualificado por Junqueiro de miserável ou irresponsável. Estes e outros textos, de teor por igual edificante, são coligidos por Junqueiro em Horas de Luta. Mas aqui deparam-se-nos páginas que impõem destaque; de súbito, projecta-se um outro Junqueiro. Republicano? Decerto. Antibritânico? Sem dúvida. Iconoclasta de forma geral? Também. Demolidor do que é convencional? Igualmente. Mas naquelas páginas ressurge o Junqueiro patriota, nacionalista, medularmente português. Republicanos e iberistas, ainda por impulso da memória do ultimatum, organizaram em Badajoz, em 1892, um banquete de confraternização iberista com espanhóis, ou de confraternidade peninsular, como preferiu Teófilo Braga. A participar é convidado o autor de A Velhice do Padre Eterno; mas este alega falta de saúde, não assiste; e envia a sua mensagem. Recorde-se desta o essencial. Sim: há uma alma ibérica: mas tem duas metades: e vive cada uma em “corpos separados”, em “organismos distintos que a natureza irremediavelmente diferenciou, e que é necessário deixar em absoluta e livre independência, pois só assim cumprirão com harmonia e nobreza o seu papel e o seu destino”. E Junqueiro conclui: “E este sentimento português, de soberania e irredutível autonomia, sem restrições e sem equívocos, é em mim de tal maneira intransigente e natural, que eu sacrificaria, sendo necessário e podendo, os destinos completos da minha raça à completa independência do meu país. Unifiquemo-nos em espírito, mas conservemos as fronteiras, tal como estão no nosso território. Só da dualidade sem obstáculos pode nascer a confiança sem limites. Somos irmãos, mas não cabemos juntos na mesma casa”. E terá esta sido a posição definitiva de Guerra Junqueiro. E assim Fialho e Junqueiro são dois exemplos frisantes de uma espécie de iberismo português. Daquele que se entretece de emoção perante uma crise ou episódio hostil; que ignora as forças reais em presença e as realidades permanentes; que esquece a linha histórica constante; e que se deixa persuadir da boa-fé espanhola e que depois, quase de repente, é iluminado pelos propósitos reais de além-fronteiras; e que muitas vezes se julga em vésperas de um amplo mundo idílico e fraterno para logo a seguir mergulhar na desilusão acabrunhante. Mas em outros vultos grados do alto escol português também o ultimatum exerceu influência: diferente, contudo, da que sofreram os autores de O País das Uvas e de Os Simples.





Antero de Quental é um primeiro nome. Que texto enviou para a Anátema? Considera o presidente da Liga Patriótica do Norte que é positiva a intensa paixão nacional do povo português, desencadeada pelo ultimatum; mas tem por elementos negativos o descrédito das instituições, as práticas de governo, os actos dos responsáveis políticos. Para Antero, aquela paixão traduz inequívoca vitalidade nacional; tudo o mais é resultado da morbidez do organismo social português. Perante o choque brutal do ultimatum, Antero volve-se agora em firme anti-iberista, em nacionalista, em patriota tradicional. “Moralizar e nacionalizar o Estado, tal deve ser depois de passado o primeiro ímpeto de paixão, o fim consciente do movimento popular iniciado em 11 de Janeiro” (Prosas, III, 163). E isto porque “não é pelo desespero e abdicação que nos salvaremos”; “não é assim que quem está prostrado se levanta”; “sejamos nós mesmos”; “tenhamos esse valor, e tudo se tornará possível”; “antes de tudo, convém crermos em nós mesmos, no passado como no presente” (Prosas, II, 238-239). Teria o ultimatum constituído uma “expiação” dos vícios e erros nacionais (Prosas, III, 144-146). Há assim, para o autor dos Sonetos, um deplorável divórcio entre o sentimento nacional e o Estado, uma falta de acordo íntimo entre governo e governados. Como remediar este “funesto divórcio” produto que é de trinta anos de materialismo político? Pela revolução? Seria essa a maior das calamidades. Como, então? Pela constituição de “orgãos genuínos, semelhantes à Liga Patriótica do Norte”. Na presidência desta, Antero sente-se investido de uma missão que o transcende. Ao assumir funções, pronuncia um discurso de nota. É a Liga uma primeira pedra para o edifício da restauração das forças nacionais, e isso não deverá ser obra de entusiasmo momentâneo mas de paciência aturada; o protesto contra o insulto e a vilania da Inglaterra implica um esforço viril e persistente; e a subscrição nacional que foi aberta, momento de paixão nobilíssima, é apenas o início da obra da ressurreição do brio e das forças do povo português. Há que emendar erros, e que restabelecer uma natural harmonia entre o pensamento nacional e o seu orgão, que é o Estado. Estará a Liga acima dos partidos, praticando a verdadeira política, que é a “dos grandes interesses nacionais”, e fará assim ouvir aos poderes públicos a voz da Nação. Serão escutados todos os alvitres, e destes há-de emergir um plano de independência económica, de restruturação das forças produtoras, de levantamento do nível intelectual, de defesa da integridade nacional. Um plano, em suma, de ordem, justiça, moralidade. E o poeta resume: “a atitude que convém não é a do protesto violento e estéril: é a da concentração da vontade, aplicando-se indefesa até conseguir, pela força e independência reconquistadas, a desafronta, o sossego, e a dignidade”. Em síntese: “Coragem, paciência, e esforço: tal deve ser doravante a nossa divisa”. Antero pede ainda a retirada do cônsul  britânico no Porto, acusado de haver ofendido a juventude portuguesa. Nessa atitude é acompanhado por homens de primeira água: Rodrigues de Freitas, Vieira de Castro, Basílio Teles, Bento Carqueja, Luís de Magalhães, Conde de Resende, Ricardo Jorge, outros ainda. E em carta a Jaime de Magalhães Lima escrevia Antero: “Faça cada um o seu sacrifício no altar da pátria. Eu sacrifico a minha saúde, que naufragará de todo no meio disto, e muito provavelmente o meu nome, que antes de seis meses estará manchado. Não importa. Quero sacrificar a vida e morrerei contente se tiver vivido seis meses ao menos da verdadeira vida que é a da acção por uma grande causa”. E deste modo Antero não propõe, para superar a crise, o recurso ao iberismo quimérico ou político, nem a mitos ou milagres. Afirma que a solução assenta no retorno às genuínas raízes nacionais, ao patriotismo, à independência. E apela para a coragem, o esforço, o sacrifício dos Portugueses. Neste particular, sobressaem a boa-fé, a candura, a ilusão do poeta.






De um matiz aproximado é a atitude de Ramalho Ortigão. Como vê este vencido da vida a crise nacional? Diz nas Farpas a ramalhal figura: “Uma potência estrangeira, assinalada pelos instintos de mercantilismo e de rapacidade que caracterizam a sua missão histórica, disputa-nos palmo a palmo e dia a dia a posse do nosso domínio colonial”. Para Ramalho, Portugal é nação marítima e gloriosa; o império é “brasão da nossa raça”. Foi o ultimatum uma declaração de guerra; e de tudo tem culpa a sociedade portuguesa e seus vícios. Quais? Esclarece Ramalho: a parlamentarice dos últimos vinte anos, a baixa educação nacional, a desmoralização dos costumes políticos. E por outro lado os Portugueses haviam perdido o amor do trabalho, o espírito de aplicação e zelo, o empenho profissional, a paciência, a perseverança, a lenta economia. Por isso, afirma Ramalho, “isto não pode continuar assim”. E se o recente conflito africano, conclui o autor de A Holanda, puder ocasionar um movimento reformador de Portugal, então haveria que agradecer à Inglaterra, sem embargo de este país andar pelo mundo desonrando triunfantemente a Civilização e esbofeteando a Providência. Como Antero, o autor das Farpas encara a solução da crise nacional, não no iberismo ou outro mito (ainda que na obra de Ramalho perpassa de quando em quando um traço equívoco), mas na revitalização do espírito, da consciência, das virtudes portuguesas de antanho. Mas de Ramalho Ortigão podemos caminhar para outro vencido da vida, e amigo predilecto daquele: Eça de Queirós. Em toda a sua obra surgem alusões esporádicas a formas de iberismo; mas já vimos como tudo era parte de irreverência literária. Perante a crise nacional, sem personagens de ficção e de maneira responsável, Eça compõe um estudo: o Ultimatum. Tem a crise como a mais severa, acaso a mais decisiva da sua geração. Exprime o seu respeito, mesmo a sua compreensão pelos objectivos imperiais da Grã-Bretanha (onde Eça viveu longos anos), e pela tenacidade com que esta os conduz. Ora Portugal constituía para a Inglaterra um obstáculo: a posse de certos territórios junto ao Zambeze, ao Chire, ao Niassa, “excitava furiosamente a cobiça” dos Britânicos. E o autor de Os Maias observa: “Se nós fôssemos fortes, ou se ainda reinasse o direito internacional, este impedimento (para o caminho imperial inglês do Cairo ao Cabo) seria como montanha que se não transpõe”. Para Eça, portanto, o direito, a história, a razão pertenciam a Portugal. Mas nas conversações com Londres nem sempre haviam sido felizes os Portugueses, e o ministro inglês em Lisboa, escreve o autor de O Primo Basílio, “apresentou ao sr. Barros Gomes um ultimatum com aquela brutal surpresa com que outrora José do Telhado, ou outros dos nossos salteadores lendários, apontava, num pinheiral, o bacamarte ao peito de um marchante em jornada”. Enfim, foi a crise, é a crise – e agora que fazer? Injuriar a Inglaterra? De que serve? – pergunta Eça. Odiar a Inglaterra? Decerto é sentimento bem legítimo: mas o ódio é um “sentimento negativo que nada cria e tudo esteriliza”. Então, boicotar a Inglaterra? Será perfeito; mas ineficaz. Em completa isenção de espírito, e de olhos postos na nação portuguesa, Eça afirma que àquele movimento nacional de desagravo, nascido da alma da nação para proveito da nação, “nunca lhe cumpriria tomar por fim único o fazer mal à Inglaterra, mas antes de tudo, e sobretudo, fazer bem a Portugal”. Recomenda em suma Eça de Queirós: “Não se trata infelizmente de destruir a Inglaterra – mas de conservar Portugal”. E por isso o grito não deve ser: “Delenda Britania”. O grande grito a gritar, para Eça é: “Servanda Lusitania”. E por este modo Eça junta-se a Ramalho e a Antero no quadro da crise: os interesses portugueses têm de ser defendidos pelos portugueses: e não podem ser entregues a mitos, ou a mãos alheias.




Um outro grande vencido da vida impõe de novo destaque especial: Oliveira Martins. Já se percorreram os passos maiores do seu iberismo: era mitigado, inocente, de boa-fé; melhor compreensão das realidades e lúcida percepção dos objectivos espanhóis suscitaram sérias dúvidas ulteriores; e estas levaram ao repúdio final. E agora, perante a crise: foi modificada pelo ultimatum a atitude de Martins? Prostrado pela emoção, poucos dias após o gesto inglês, em artigo no Tempo, vai ao extremo de defender a aliança das duas monarquias peninsulares. E por muitos volumes e artigos seus podemos encontrar referências ao episódio dramático. Asserenado um tanto o seu ânimo, será talvez no Portugal em África que melhor se concentra e exprime o pensamento deste vencido da vida quanto ao ultimatum. Para Martins, mais do que as consequências imediatas da crise, importa analisar o futuro; e em qualquer caso, pela sua seriedade, a crise obriga a meditar. Talvez mais grave, e de emoção anda mais funda, foi a separação do Brasil, “um momento de desespero muito mais cruel do que pode vir a tornar-se a situação agora”. Mas a grandeza do perigo exaltou a energia nacional. Há que compreender a agitação popular; mas já se entende menos o seu aproveitamento para “interesses facciosos”; e isso porque, nos momentos solenes pelo risco, é “o patriotismo e não o partidarismo que deve falar”. Na circunstância, para Oliveira Martins, o Conselho de Estado e o Governo não podiam fazer senão o que fizeram, sob pena de, por retaliação inglesa, se perder uma parte importantíssima do Ultramar; e a manifestação feita contra Barros Gomes foi suma injustiça – para o ministro e para o Governo. Decerto: o ultimatum de 11 de Janeiro foi, escreve Oliveira Martins, “um destes actos odiosamente brutais que nem são das temeridades, nem dos arrojos, tantas vezes expiatórios de violência”; e impôs “a lei da força a quem só podia invocar o direito”; e a Inglaterra usou de “uma astúcia felina”, iludindo os Portugueses enquanto se mobilizavam meios navais para eventual assalto a posições portuguesas. E agora – o desagravo. Que desagravo? Há que fortalecer o Exército, e a Marinha; mas a “força que principalmente há-de sair da comoção nacional é a força filha do civismo e do juízo”. Cortar passo a passo os vínculos com os Ingleses, nada mais racional, sensato e patriótico; mas “isso não é o desagravo pleno e satisfatório”. Liquide-se o litígio com a Inglaterra pela melhor forma possível; e depois há que pôr a casa em ordem; e emancipar Portugal; e recuperar para os Portugueses o comércio; e extirpar em suma o “nosso desleixo e a nossa inércia”. E como remata Martins a sua visão da crise e do futuro? Recomenda o rearmamento de Portugal – e acaso a substituição, como propôs no Tempo sob o espinho do desespero, da aliança luso-britânica por uma aliança luso-espanhola. Neste último ponto, há assim um retorno de Martins a uma posição mental e psicológica anterior; e sucumbiu por instantes ao mesmo sentimento que a crise desencadeou em alguns espíritos mais frouxos, ou impressionáveis, ou precipitados. Cedo se refez Oliveira Martins, contudo, e se desencantou. Bem antes da sua morte prematura, espírito lúcido e patriótico que era, soube bem perscrutar as realidades. E manteve-se, ao fim e ao cabo, fiel à sua síntese: “amizade espanhola primeiro; pressão depois; violência final”. E em qualquer caso, como remédio para os males nacionais, este vencido da vida via apenas o civismo, o juízo, a reforma dos hábitos de desleixo e inércia, o patriotismo. Mas entre os nossos homens de génio do século XIX um nome está ainda omitido. Não foi um vencido da vida, no sentido de pertencer ao seu grémio. Mas acaso se poderá considerar o maior dos vencidos, e decerto o foi pelo drama e pela tragédia. Refiro-me naturalmente a Camilo Castelo Branco. Este homem, de tanto génio como infortúnio, está torturado pela ameaça de cegueira em fins de 1889, princípios de 1890. Nos começos de 90, justamente, escreve ao seu grande amigo Tomás Ribeiro: “Ainda não ceguei de todo; mas estou perdido, se não me acodes”. Pouco depois, nova carta: “Estou a cegar. Perdido! Vou fugir daqui para não me matar debaixo dos teus olhos e do teu amor”. Mas quando em 11 de Janeiro Portugal é agredido pelo ultimatum, aquele homem, que escrevia “estar sem olhos, sem pernas, sem cérebro”, reage, e lança-se num poema que intitula Extermínio da Inglaterra. E foi essa a contribuição camiliana para a Anátema, publicada em Coimbra. Uma outra parte dessa composição foi mais tarde inserida, por Abril de 90, no jornal República, do Porto. Camilo classifica o poema, de seiscentos e cinquenta versos, repetidos em quadras, como de trovas alegres. Mas não parece, ainda que haja sido sumária a minha investigação, que o contributo de Camilo para o protesto contra a Grã-Bretanha tenha ultrapassado aquele poema. E depois, em Maio de 90, de novo é o autor do Amor de Perdição solicitado para colaborar na imprensa antibritânica. Enfermo, martirizado pela cegueira, o desesperado de S. Miguel de Seide recusa-se. E escreve a Tomás Ribeiro uma carta de angústia: “Eu estou na cama em trevas cerradas e cortado de dores. Se houvesse Deus, eu já devia ter morrido pelo muito que lhe peço a morte. Não contribuo para o jornal contra a Inglaterra porque não sou inimigo dos Ingleses. Encontro-os com os primeiros Afonsos a conquistar o Sul de Portugal; achei-os em Aljubarrota defendendo os falsos direitos do Mestre de Avis contra D. João de Castela; encontrei-os em frente de Lisboa defendendo os direitos do rei português D. António contra Filipe II. No terramoto de 1755, a Inglaterra remeteu à desolada Lisboa uma frota com donativos superiores a quinhentos mil cruzados. Acho os Ingleses ligados a Portugal contra Napoleão e empenhados em restituírem D. João VI ao trono. Encontro ainda, no nossos dias, os Ingleses por mar e por terra batendo as forças do usurpador D. Miguel. Estes factos não me irritam patrioticamente contra a Inglaterra. Quanto aos macololos, sabes de mais que no fim do reinado de D. João III eram já perdidas as linhas hidrográficas de África. Depois de Alcácer Quibir, nem portugueses nem espanhóis pensaram mais nos cafres. Depois de 1640, nunca lá se mandaram missionários, nem protecção, nem educação. Tudo aquilo prescreveu como se a vaga de dois séculos lambesse os areais onde foram escritos os direitos de Portugal”. Não importa averiguar do rigor histórico de alguns pormenores desta carta. Convém reter esta conclusão, todavia: para o autor de Onde está a felicidade?, em momentos cruciais, fora com a Inglaterra, e não com potência continental europeia, que Portugal se deparara; e esta era a explicação da aliança luso-britânica. Porque os interesses permanentes de Portugal estavam mais próximos dos interesses permanentes daquele país do que de outro qualquer. E isso tinha um preço político, alto sem dúvida, mas inferior ao que resultaria da diluição na Península. Mas porque se torna pungente esta carta? Pelo estado de espírito em que foi escrita: cerca de quinze dias depois de a remeter a Tomás Ribeiro, a 1 de Junho de 1890, Camilo suicida-se em S. Miguel de Seide com um tiro de revólver.

No quadro do ultimatum inglês, ligado ao surto de iberismo, cumpriria referir o estudo de Moniz Barreto intitulado A Situação geral da Europa e a política exterior de Portugal, publicado algum tempo depois na Revista de Portugal. Moniz Barreto foi espírito tão gentil e lúcido como idealista; e no terreno político deixou-se envolver e arrebatar pela emoção, pelo ódio à Inglaterra; e como retaliação contra esta advogou uma conduta externa que inelutavelmente entregava, como dádiva, Portugal à Espanha. Este texto de Moniz Barreto teve as suas repercussões, e vastas. E estas haviam de repor todo o problema – na sua constante pendular.»

Franco Nogueira («Juízo Final»).




O ultimato inglês (1890)


Não cessavam na Europa as lutas pela hegemonia: simplesmente, a partir de meados do século XIX, aquelas lutas foram transferidas para outros continentes. Entre 1853-1856 realizava David Livingstone a sua viagem através da África Meridional. Foi-lhe atribuído um carácter missionário e cultural, e de exploração científica e geográfica. Contudo, Livingstone revelou principalmente que atravessava uma África «cruzada por largos rios, com grandes lagos, e um solo fértil que produzia excelente algodão, açúcar e outros produtos tropicais». «Os comerciantes ingleses ficaram encantados com tais possibilidades»; na City de Londres, ao vitoriar o explorador, declarava-se que as descobertas de Livingstone constituíam «largas aberturas para o comércio»; e que, se fosse enviado um navio a subir o Zambeze, decerto seria viável «carregá-lo com materiais valiosos para os industriais metropolitanos» [1]. Ficou a Europa, deste modo, em presença de uma realidade que a fascinou, e que desencadeou toda uma política europeia: foi a nova partilha de África. Fundamentalmente, três imperialismos europeus se encontraram envolvidos: França, Inglaterra, Alemanha. Não deixaram a Itália e a Bélgica de participar também. Eram económicos, militares, estratégicos os objectivos prosseguidos; subsidiariamente invocava-se a necessidade de disseminar a civilização, como pesada responsabilidade moral que cumpria aos europeus; e estava criada a doutrina do fardo do homem branco. Cada potência arrogava-se o direito e obrigação de assumir essas responsabilidades com a maior latitude. Do Mare Liberum de Grócio, que era o império em base jurídica e filosófica, apoiado pela força naval, caminha-se para o anti-esclavagismo que era o império em base económica e moral, apoiado na força política e militar; e deste evoluíra-se para a missão civilizadora, que era o império em busca de matérias-primas e de mercados, além de posições estratégicas, e sempre apoiado na força. E agora, na segunda metade do século XIX, começar-se-ia pelo Norte de África. A penetração económica e financeira foi a arma usada para obter o domínio político. Aberto o Canal de Suez, tornou-se vital o controle do Egipto; a Tunísia, para se desenvolver, deixou-se tentar pelos capitais estrangeiros; e o Kediva do Cairo e o Bey de Tunes, «inconscientes do perigo que implicava o recurso à finança europeia» [2], sucumbiriam à situação a que foram arrastados. O Egipto pagava as dívidas à França com dinheiro da Inglaterra; esta cobrava-se transformando aquele em colónia; e a França, com o assentimento da Grã-Bretanha e da Alemanha, transforma a Tunísia num protectorado que completava o domínio já exercido sobre a Argélia e que se ampliaria até Marrocos. Por seu lado, a Itália penetrava na Tripolitânia e iniciava a sua influência junto ao Mar Vermelho. Era uma alteração profunda na política do Mediterrâneo, com implicações militares; e era, além disso, uma barragem à expansão russa naquele mar e uma forma de vigiar e influir no futuro da Sublime Porta, então o doente da Europa. Mas a expansão ultramarina da França, da Inglaterra, da Bélgica e da Itália não deixou de despertar ideias semelhantes na Alemanha. Durante os longos anos de Bismarck, não acalentou este ambição quanto à África. O chanceler de Ferro concebia para o seu país um papel essencialmente continental; e a sua política externa era baseada na força e sobretudo numa «vontade de poder» nacional; e com excepção do mar, a Alemanha era superior em todos os domínios, desde a indústria e a economia até ao potencial militar terrestre. Para Bismarck constituíam objectivos fundamentais manter o enfraquecimento da França na Europa, evitar entendimentos desta com a Rússia, proporcionar motivos de atritos entre aquela e a Itália, e apaziguar a Áustria-Hungria. Mas sob pressão dos industriais e dos comerciantes o chanceler deu o seu acordo a que a Alemanha participasse da aventura africana: surgiu assim a colonização germânica na África Oriental (Tanganica), Austral (Sudoeste) e Tropical (Camarões, Togo). No entanto, só depois da demissão de Bismarck, com Guilherme II, iniciou a Alemanha uma política de expansionismo em escala mundial. E foi o problema da África Austral e da África Central que levantou atritos entre as potências. Lançaram-se estas na corrida às explorações, ocupações e delimitações. Fundaram-se Companhias, organizaram-se Sociedades científicas e culturais, enviaram-se para o interior expedições de militares, de sábios, de missionários, de comerciantes, de aventureiros. Como pano de fundo a toda esta actividade, estavam os interesses políticos, económicos, estratégicos.


David Livingstone




Estátua de António Francisco da Silva Porto.



Portugal suscitava, com os seus territórios, ambições desregradas. Estava enfraquecido pelas querelas internas; depauperado nos seus recursos; destituído de forças militares significativas; e os dirigentes, mais do que aos interesses nacionais, atendiam às lutas partidárias e às ideias alheias. Desde as invasões francesas que, por incúria ou incapacidade nossa, muitas posições nos haviam sido tomadas. E a partir de meados do século XIX éramos ameaçados por toda a parte. Não cessavam contra Portugal as acusações: desde as de trabalho forçado até às de intolerância religiosa. Salvo erros ou abusos isolados, não tinham fundamento. «As missões protestantes actuaram, neste período do descobrimento e da partilha de África, sempre ao serviço de interesses opostos aos interesses portugueses, e foram admiráveis instrumentos do imperialismo inglês» [3]. Viagens e explorações portuguesas eram ignoradas. Foram aclamados os feitos de Livingstone como se fossem os primeiros, e os maiores. E no entanto muito antes daquele haviam portugueses cruzado a África. Já ao findar do século XVIII Lacerda e Almeida subira até Cazembe. E agora, antes de David Livingstone, Correia Monteiro e Pedroso Gamito haviam repetido a mesma jornada, entre 1831 e 1832; e Rodrigues Graça penetrara em Katanga, entre 1846 e 1847; e por 1852 e 1853 já Silva Porto se encontrava no Bié e depois no alto Zambeze, onde acolhe Livingstone e o trata hospitaleiramente [4]. Silva Porto foi nesta época, sem dúvida, o maior sertanejo português: a sua pouca cultura era compensada por viva inteligência: e à falta de recursos materiais sobrepunha capacidade de improvisação e energia sem paralelo. Percorreu os sertões; em Cabinda cruzou-se com o americano Henry Stanley [5]; e internou-se até ao Reino de Barotze [6]. A estes, outros intrépidos viajantes portugueses se sucederam: é todo um grupo de exploradores, cientistas, militares, investigadores de que foi timbre o patriotismo, a bravura, o espírito de sacrifício, e o sentido nacional. Serpa Pinto, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens organizaram expedições entre a costa e a contra-costa e estudam as ligações entre o Zambeze e o Zaire. Alexandrino da Cunha e Bernardino Brochado atravessam vastas áreas; Paiva de Andrade e Vítor Cordon percorrem a África Central a partir de Moçambique; Augusto Cardoso e António Maria Cardoso reconhecem o Niassa; e Henrique de Carvalho explora a Lunda. Notícia destas viagens causava no reino funda emoção, e despertava interesse pelo ultramar e consciência da sua importância. Surge a Sociedade de Geografia. E um punhado de homens de governo, desinteressados da política partidária, devota a sua energia à defesa de Portugal em África: Sá da Bandeira foi vigoroso paladino dessa causa: e no seu rastro destacaram-se Mendes Leal, Latino Coelho, Luciano Cordeiro, Rebelo da Silva, Andrade Corvo, Pinheiro Chagas, Paiva Manso, outros ainda. Todos os empreendimentos possuíam um objectivo: assegurar a prioridade da presença portuguesa, garantir a ocupação efectiva. A instalação dos ingleses na África do Sul, em torno do Cabo, levara-os a ameaçar Moçambique, e a contestar os nossos direitos quanto a muitas áreas; Cecil Rhodes lançava a famosa ideia da ligação «do Cairo ao Cabo»; franceses e belgas impugnavam o nosso domínio no Zaire e em toda a bacia convencional do Congo; e a Grã-Bretanha reivindicava posições portuguesas na costa ocidental. Surgiram então duas crises graves. Em 1870, o Governo de Londres alegava direitos à ilha de Bolama. Ceder seria entregar a Guiné, e esta era vital para a liberdade das comunicações norte-sul. Com extremos de tacto e destreza, sugerimos a arbitragem internacional; correctamente, a Inglaterra aceitou-a; e o presidente dos Estados Unidos decidiu o pleito em nosso favor. Em 1875, nova disputa quanto à baía e porto de Lourenço Marques, e também com a Inglaterra. Foi adoptado idêntico procedimento; submeteu-se a divergência ao presidente francês Mac Mahon; e este confirmou o fundamento dos direitos portugueses [7]. Em boa verdade, todavia, e mais do que ao respeito internacional pela lei, ficámos devendo as nossas posições aos reforços militares, que então enviámos, e a uma administração mais cuidada.


Benjamim Disraeli, Conde de Beaconsfield.




Teve o Governo português lúcido entendimento da conjuntura. Produzia-se em África o embate dos grandes impérios da época. Era a Inglaterra de Disraeli, imperialista confesso, e de Gladstone, imperialista convertido, e de que Granville e Salisbury eram os representantes convictos no plano internacional. Era a França de Freycinet e de Jules Ferry, que procurava fora da Europa a compensação para o desaire de 1870. Era a Alemanha de Bismarck, que sempre preconizara uma política apenas continental e em direcção a leste, mas que nos últimos tempos do seu consulado se persuadira do interesse germânico em África [8]. Era a Bélgica de Leopoldo II, que a título pessoal desejava talhar-se no coração do continente um vasto império. Resolvidos a não lutarem na Europa, queriam também em África alargar os seus domínios: para o efeito, porém, era mais conveniente utilizar as áreas de um país enfraquecido como Portugal do que, sob pena de conflito, procurar arrancar aos fortes o que estes já possuíssem. Barbosa du Bocage era então ministro dos estrangeiros e pareceu-lhe que na confrontação dos grandes interesses poderia residir a salvação do ultramar. Era a ideia de uma larga reunião internacional. Todas as viagens e explorações, que havíamos empreendido ou estávamos realizando, tinham por objectivo criar-nos uma situação jurídica e de facto que nos permitisse mais eficaz defesa. Discutíamos com a Inglaterra a delimitação de fronteiras em numerosas áreas; a França e a Alemanha seguiam com atenção o desenrolar das conversações: e suscitaram objecções a entendimentos que julgavam ser-lhes prejudiciais. Em Outubro de 1884, o representante alemão em Lisboa convidava o governo a participar numa reunião internacional em que se debatessem os problemas da África negra: era a Conferência de Berlim. Aceitámos o convite: e confiámos a nossa representação a António de Serpa Pimentel, Luciano Cordeiro e marquês de Penafiel. Três pontos fundamentais constituíam a agenda proposta: a liberdade de comércio em toda a bacia do Congo e na sua foz; aplicação dos princípios do Congresso de Viena quanto a navegação livre nos rios internacionais; e definição de critérios para que se pudesse considerar válida a ocupação de quaisquer áreas no continente africano. Fomos a Berlim: e «fomos sós, e sós nos achámos lá» [9]. Defendemos tenazmente os nossos direitos; e procurámos jogar na rivalidade dos imperialismos. Em Fevereiro de 1885, era elaborado o acto geral de Berlim. Na essência, o documento estabeleceu: reconhecimento do Estado independente do Congo, cujo soberano era o rei dos belgas, a título pessoal; liberdade de comércio no perímetro designado por bacia convencional do Congo, muito mais extensa do que a bacia geográfica, pois se alongava dos litorais atlântico e índico até às fronteiras meridionais da Etiópia; necessidade de notificação às potências da ocupação prévia e efectiva antes de ser proclamada a anexação de um território. Dois pontos cruciais emergem do acto geral de Berlim: a consagração do princípio da internacionalização dos problemas africanos [10]; a proclamação de uma política de porta aberta quanto ao comércio e aproveitamento da mais rica zona de África e em que as potências europeias poderiam participar em igualdade jurídica. E um outro princípio foi adiantado, ainda de forma incipiente: no fim da conferência, o representante norte-americano entregou uns comentários em que se defendia o «direito das raças indígenas a disporem de si próprias e do seu solo hereditário» e a necessidade de obter o «consentimento voluntário dos habitantes» para ser internacionalmente relevante a ocupação de territórios, ainda que efectiva. Via ao longe o delegado americano: os Estados Unidos abriam-se, naquele ano de 1885, o caminho doutrinal da sua futura intervenção no continente africano. E uma última consequência derivou do acto de Berlim: a teoria das esferas de influência: completava a da missão civilizadora e a do fardo do homem branco: e assegurava, de forma tácita, a exclusividade dos impérios nas zonas em que pela força houvessem podido implantar-se antes de outros.

Conferência de Berlim (15 de Novembro de 1884 a 26 de Fevereiro de 1885).

Sofreu Portugal com a reunião de Berlim. Maior vítima poderíamos ter sido, no entanto, sem a previsão e o arrojo de cortarmos a África negra em todos os sentidos, com viajantes e exploradores. Continuámos essa política, e ainda com mais ousadia, após Berlim. E antes de tudo retomámos com vigor o sonho, que mergulhava no século XVIII, de ligar por terra Angola e Moçambique. Seria o mapa cor-de-rosa.

No discurso corajoso de 11 de Junho de 1885, Luciano Cordeiro, que tinha estado em Berlim, inquiria: «É tempo de perguntarmos o que sucedia em Portugal, durante esta sucessão rápida, impetuosa, de tantos factos, que de tão perto e fatalmente se relacionavam com os nossos interesses, com os nossos direitos, com as nossas tradições coloniais. Que fazíamos nós? Creio que fazíamos política, esta política que nos consome o tempo e as forças». Havia um sentimento de desagregação: entrava em crise o rotativismo: fragmentam-se os partidos: os dirigentes monárquicos, sem embargo de nobres intenções, pareciam destituídos de fé e coragem; viviam enredados nas pequenas questões e embevecidos pelo que se passava nos países mais adiantados em matéria de instituições políticas: e os homens que cuidavam do ultramar formavam um grupo à parte, inspirado nas tradições e firmado no apoio do rei e no sentir do povo, mas segregado da máquina política e administrativa. Depois de Berlim, e para salvaguardar o possível, iniciaram todas as medidas que pudessem, de harmonia com o acto geral, consolidar as posições e os direitos de Portugal. Barbosa du Bocage, já em Maio de 1885, escrevia a Pinheiro Chagas, ministro do Ultramar: «Unir Angola a Moçambique, cortar de um lado a outro o continente africano, foi o sonho dos nossos maiores, nobre aspiração a que algumas portentosas viagens deram alimento, e bem cabida era esta ambição num povo que abrira ao mundo o caminho de África, da Índia e do Brasil e que possuía, de um lado as embocaduras do Zaire, do Cuanza e do Cunene, do outro a foz do Limpopo, o delta do Zambeze e o curso do Rovuma. Quem melhor do que nós poderia realizar tão grandiosa obra? Parece azado o momento para empreender a realização da sonhada obra e propício o ensejo para chamar a colaborar connosco os capitais estrangeiros» [11]. Ao mesmo tempo, generalizávamos a negociação; ampliávamo-la a todos os países que tivessem pendências connosco em África; e era preciso, como notava Barbosa du Bocage, caminhar depressa para não darmos tempo a que outros se adiantassem e tornassem irrealizável a nossa obra. Pinheiro Chagas respondeu: estava «em perfeita conformidade de aspirações no tocante aos nossos domínios ultramarinos». No país considerou-se que se tratava de uma política nacional, e não partidária. Andrade Corvo começou a negociar em Paris. Surgiram dificuldades perante as pretensões francesas: mas cedemos em Casamansa contra o reconhecimento, por Paris, dos nossos direitos ao sul, em particular nos territórios que separam Angola e Moçambique. Foi o tratado luso-francês de Maio de 1886. Mas caiu o governo regenerador: formou-se uma administração progressista: e Bocage foi substituído por Barros Gomes. Concluiu a negociação com a Alemanha: com esta, estavam pendentes os limites de Angola pelo sul. Aceitámos o Cunene como fronteira meridional, e assim alguma coisa abandonávamos; mas Berlim reconhecia como esfera de influência portuguesa as demais áreas a que nos julgávamos com direito, incluindo o território entre Angola e Moçambique. Em Dezembro de 1886 era assinada a convenção luso-alemã. França e Alemanha procuravam estorvar a Inglaterra. E havia agora que negociar com esta última.

Vista de Lourenço Marques em 1895. Nesta data o mais importante aglomerado do Sul de Moçambique, elevado a cidade em 1887, contava apenas cerca de 3000 habitantes, dos quais aproximadamente 2000 seriam portugueses da Metrópole e da Índia.

Perante o mapa anexo aos acordos entre Portugal e a França e a Alemanha, protestou a Grã-Bretanha: e alegava que o documento incluía áreas sem vestígios de ocupação portuguesa, outras onde existiam estabelecimentos ingleses, outras ainda suscitavam a Londres um interesse muito particular. Considerava aquela carta, por isso, contrária à conferência de Berlim; porque esta apenas admitira poderes soberanos como resultado de ocupação efectiva: e esse não era o caso dos territórios abrangidos no mapa. Foi fácil a resposta de Barros Gomes: a carta indicava apenas as áreas sobre que a França e a Alemanha não tinham reivindicações; estavam ressalvados os direitos de terceiros; e a ocupação efectiva, tal como assente em Berlim, respeitava somente ao litoral e não ao interior. Por outro lado, não era exacto afirmar que na zona em causa não houvesse vestígios de ocupação portuguesa: desde o século XV, e seguramente desde o século XVII, que a vastíssima região fora sulcada por viagens de portugueses: e não era decerto mais efectiva do que a portuguesa a ocupação britânica. Tudo isto seria matéria de negociação entre os dois governos. Barros Gomes colocava o problema no terreno da história, do direito e da moral; mas Londres agia noutro plano. Eram os minérios – o cobre, o ouro, os diamantes – que estavam em causa; o comércio e as indústrias britânicas faziam pressão sobre o governo; e Cecil Rhodes prosseguia o projecto de ligar o Cairo ao Cabo [12]. Não se dispunha a Inglaterra, portanto, a desistir do seu intento.


Cecil Rhodes. Ver aquiaqui e aqui




Aos argumentos históricos e de facto, coligidos por Barros Gomes e apresentados no Foreign Office, replicou Lord Salisbury que, se a conferência de Berlim relacionara a efectividade da ocupação apenas com o litoral, nada impedia que o princípio constituísse base de direito internacional geral e se aplicasse portanto ao interior. E o subsecretário Fergusson declarou, em público, que o seu governo apenas reconheceria a nossa soberania onde existissem estabelecimentos portugueses e Portugal mantivesse jurisdição e ordem. Barros Gomes deu todas as garantias de protecção de súbditos, interesses e comércio britânicos na área que reivindicávamos. Transpirou a divergência, entretanto, para a opinião pública: há interpelações ao governo no Parlamento, a imprensa ocupa-se do assunto com emotividade. Do seu lado, Salisbury rejeita a documentação histórica: sarcasticamente, chama-lhe argumento arqueológico: e considera tudo irrelevante perante as ulteriores viagens de Livingstone, a actividade dos missionários ingleses na área, e sobretudo em face da situação política do momento. Surge assim claramente a indicação de que a disputa era só política: estavam em causa os interesses britânicos. E do lado português principiaram as alusões às alianças continentais europeias, que nos protegeriam dos pretensos amigos; propõe-se que intervenham na questão outras potências interessadas; e estabelece-se a prova pública da influência efectiva das autoridades portuguesas na zona e da absoluta prioridade na descoberta e exploração. Em fins de 1888, Barros Gomes e Sir George Petre, embaixador inglês, discutem o problema a fundo: repetem-se os argumentos: e à invocação do apoio germânico às pretensões portuguesas, o enviado britânico responde que o seu país considerava a Alemanha alheia ao caso. Continuavam em África as expedições portuguesas de Cardoso e Paiva de Andrade. E as estas foi adicionar-se a grande expedição do major Serpa Pinto, que havia vinte anos cruzava a África em mil sentidos. Endurece a atitude de Londres, e Salisbury afirma: «as boas relações entre os dois países não poderiam resistir por muito mais tempo à tensão a que estavam submetidas» [13]. Portugal repete, com velada ameaça, as alusões à eventual intervenção de terceiros, e alvitra que se proceda a delimitações sucessivas em várias fronteiras (regiões dos Machonos, dos Matabeles, dos Macololos) a fim de se resolver por fases a disputa; e mais uma vez, e agora por escrito, propõe um «acordo internacional entre todos os governos interessados» [14]. Salisbury rejeita. Serpa Pinto chega ao Lago Niassa; técnicos portugueses estão no Shire para estudar a construção de uma via férrea; e o cônsul britânico em Moçambique procura o oficial português e, afirmando-lhe o protectorado do seu país sobre os Macololos, intima-o a não avançar mais. Serpa Pinto, isolado, com recursos escassos, não se atemorizou: atravessou o Ruo, socorreu os técnicos portugueses atacados, ocupou o Shire, nomeou Azevedo Coutinho governador militar. Petre protesta em Lisboa; e a imprensa desencadeia uma campanha anti-britânica. Barros Gomes procura a conciliação: entrega uma nota em que se reiteram as garantias à protecção dos interesses legítimos da Inglaterra e se reafirma o sentimento de cordialidade que une os dois países. Em Lisboa a imprensa escrevia: «os direitos e a honra de Portugal foram mantidos contra a cobiçosa e absorvente política da sua aliada» [15]. Em fins de 1889, Sir George Petre dizia a Barros Gomes que a situação era grave: e isso porque Serpa Pinto continuava a avançar à frente de um exército, dominava os Macololos, não respeitava os estabelecimentos ingleses, ignorava o protectorado britânico. E concluía: a Inglaterra não podia ficar de braços cruzados perante o que entendia ser ofensa à sua honra e aos seus direitos: e era preferível que Portugal cedesse voluntariamente do que por outra maneira. Barros Gomes respondeu em forma «conciliadora e cortês sem contudo ceder a sua posição» [16], e demonstrou o exagero das alegações britânicas: no Shire havia paz e nenhum interesse directo inglês fora lesado. Entra-se em 1890. No dia 2 de Janeiro, Petre entrega nova nota: o Governo de Londres não reconhece os direitos portugueses, exige uma declaração imediata de que não serão solucionadas pela força as pendências territoriais, ameaça com o recurso a outras medidas se não fosse obtida satisfação, e fixa o dia 8 para uma resposta. Barros Gomes lamenta a marcação de um prazo, garante que não serão atacados estabelecimentos ingleses sob condição de reciprocidade de parte britânica e propõe a reunião de uma conferência dos signatários do acto de Berlim. E concluía: «se a Inglaterra tivesse reconhecido o direito histórico, constantemente invocado por Portugal, ao território do Chire e Niassa, nenhuma questão teria surgido». E no mesmo tempo em que assim respondia a Petre, Barros Gomes informava da situação todos os agentes diplomáticos portugueses no estrangeiro; encarregava estes de perguntar aos governos locais até que ponto, isolada ou colectivamente, estavam dispostos a empregar em favor de Portugal os seus bons ofícios. Com a resposta no dia 8, no entanto, não se deu por satisfeita a Inglaterra; e Salisbury, em linguagem já sem peias, exigiu a retirada da expedição Serpa Pinto e envio imediato de instruções de Lisboa nesse sentido. Depois de uma pressão feita no dia 10, em 11 de Janeiro de 1890 Petre entregava a Barros Gomes um novo memorial: «O governo de Sua Majestade não pode considerar satisfatórias ou suficientes, tal como as interpreta, as garantias prestadas pelo governo português. O cônsul interino de Sua Majestade em Moçambique, firmado em declaração do próprio Major Serpa Pinto, telegrafou que a expedição continuava a ocupar o Shire; e que Katunga e outros locais no território dos Macololos iam ser fortificados e guarnecidos. Aquilo que o governo de sua Majestade pretende, e em que tem de insistir, é o seguinte: que se enviem instruções telegráficas imediatas ao Governador de Moçambique no sentido de que sejam retiradas todas e quaisquer forças militares portuguesas que neste momento se encontrem no Shire, ou no território dos Macololos, ou no território dos Machonas. O governo entende que, sem isso, as garantias prestadas pelo governo Português são completamente ilusórias. O Sr. Petre, em face das suas instruções, está obrigado a sair imediatamente de Lisboa, com os membros da sua Legação, a menos que uma resposta satisfatória à precedente instância seja por si recebida durante a tarde; e o navio de Sua Majestade «Enchantress» encontra-se em Vigo esperando as suas ordens» [17]. Era um ultimato.


António Enes

Estátua a António Enes na Baixa de Lourenço Marques (cerca de 1929).

Perante a situação dramática, exalta-se e emociona-se a opinião pública. Reúne-se de emergência o Conselho de Estado. Barros Gomes é partidário da resistência; Barjona de Freitas recomenda a retirada de Serpa Pinto; e Serpa Pimentel defende a cedência sob condição da Inglaterra aceitar arbitragem ou conferência internacional. José Luciano, o conde de S. Januário, João Crisóstomo, inclinavam-se para a rendição. Depois de debate, e ainda no prazo solicitado por Petre, o Conselho decide cumprir o ultimato, embora quanto aos direitos de Portugal fizesse reserva académica. Demite-se o governo progressista, que não partilhava do parecer do Conselho de Estado; e toma o poder António de Serpa. Este envia a Londres Barjona de Freitas: tenta-se recompor os destroços. Iniciam-se conversações que levam em Agosto de 1890 a um projecto de tratado. Mas este por sua vez é atacado com violência, e de novo cai o governo; João Crisóstomo assume a presidência. Barbosa du Bocage retorna aos Estrangeiros. Não é ratificado aquele projecto; e continuam as negociações. No reino, não pode ser mais profunda a mágoa, nem mais acerba a indignação. Antero de Quental, o iberista que descria do seu país, invoca a «intensa paixão patriótica do povo português» que considera «inequívoca manifestação da vitalidade nacional»; julga o momento de «humilhação e de ansiedade»; e preside à Liga Patriótica do Norte. Fulmina então o «insulto e a vilania» da Inglaterra; pede um «esforço viril e persistente para sermos de facto independentes»; e recomenda que no «altar da pátria» todos os particularismos e ressentimentos sejam sacrificados. Rodrigues de Freitas, António Vieira de Castro, Bento Carqueja, Basílio Teles, Luís de Magalhães, Ricardo Jorge, conde de Resende, Joaquim de Vasconcelos, Ezequiel Vieira de Castro, José de Sampaio, outros ainda, e Antero de Quental, dirigem ao presidente do Conselho, Serpa Pimentel, uma representação de protesto e de orgulho, e em que solicitam a retirada do cônsul inglês no Porto, Oswald Crawfur [18]. António Enes, no Dia, acumulava argumentos em defesa dos direitos e dos interesses de Portugal, e pretendia que se seguisse serenamente o nosso caminho, «suceda o que suceder». Oliveira Martins aconselha o governo a não recuar, e a repudiar semelhante conselho, se alguém lho desse; e entende que a questão do ultramar é vital para o país, e não pode ser descurada nem um momento, em nome destes ou daqueles interesses, destas ou daquelas conveniências de ocasião [19]. Fialho de Almeida, o céptico, o sarcástico, o ressentido, o iberista saudoso, fustiga em Os Gatos a atitude britânica; e defende vigorosamente os direitos de Portugal em África, qualifica os ingleses de «carrascos ruivos do Tamisa», e exalta o ultramar português, as suas glórias e o seu carácter sagrado para a Nação [20]. Alfredo Keil compõe um novo hino patriótico; e Guerra Junqueiro, em verso e em prosa, publica violentas apóstrofes contra a Inglaterra. Basílio Teles reage com veemência. E traça o quadro desse dia: «O efeito foi prodigioso. Num relance, magotes movediços e frementes manchavam o pavimento das ruas e das praças; os cafés da baixa, repletos, estavam em ardente ebulição; as vociferações, os protestos, as injúrias, as propostas mais radicais e extravagantes entraram a cair, como granizo, comunicando e agravando a efervescência. O rei e os “cobardes” que tinham subscrito as exigências do gabinete de Inglaterra eram, literalmente, esfarrapados nestes primeiros golpes de língua» [21]. Assaltava-se a redacção das Novidades, consideradas jornal progressista; e a Gazeta de Portugal, havida como orgão regenerador, era aclamada. Nas salas do Tempo, Oliveira Martins exprimia a sua cólera; e Emídio Navarro bradava a sua raiva, cravando murros nas mesas. Lançava-se uma subscrição pública para a compra de armas; e Eduardo de Abreu cobre de crepes negros a estátua de Camões. No Café Martinho, João Chagas e Magalhães Lima gritavam vivas à república, e à frente de grossa multidão, que como no tempo de Fernão Vasques e Álvaro Pais vinha do largo de S. Domingos e do Rossio, dirigiam-se ao Século, cujo republicanismo era conhecido. Perante todo este estremecimento do país, e rejeitado o acordo de 1890, continuam as conversações com Londres. Em 11 de Junho de 1891, era assinado e ratificado o Tratado definitivo. Sir George Petre não ocultava o seu júbilo; e Cecil Rhodes, que também se havia oposto ao acordo de 1890, exultava agora com o documento de 1891. Hintze Ribeiro, nas câmaras, salientava que este era menos favorável que o de Agosto de 90, e perguntava: «valeria a pena, enfim, ter abandonado o tratado de 20 de Agosto para, depois de tantos revezes e de tão fundas provações, chegarmos à conclusão de ter de aceitar este tratado?» Barros Gomes defendia-se: «Eu não fui o autor do mapa cor-de-rosa». Declinava a responsabilidade da crise; mas associava-se à política iniciada por Barbosa du Bocage. E exclamava: «Presto homenagem aos intuitos patrióticos que o animaram e que eram justificáveis na época em que o mapa referido foi condenado». E fazia depois uma justificação rigorosa da sua atitude: não deixava dúvida na câmara sobre o seu bom fundamento. Mas a realidade poderosa impunha-se: o sonho da ligação por terra entre Angola e Moçambique, firmado em direitos que vinham do século XVII, estava em escombros; e a Grã-Bretanha abria caminho do Cairo ao Cabo e recolhia no seu império toda a África Central e Austral.


Ernesto Hintze Ribeiro



Se se quiser analisar a crise de 1890, facilmente se deduz que os direitos portugueses eram incontestáveis, e foram comprovados. Mas cometemos três erros capitais. Negociámos em separado com a França e a Alemanha: deveríamos tê-lo feito simultaneamente com a Inglaterra. Depois, não mostrámos, no plano interno, possuir força militar e económica, nem uma unidade de opinião: Londres compreendeu que podia aproveitar divisões intestinas [22]. Por fim, e com ingenuidade, persuadimo-nos de que a França e a Alemanha nos apoiariam contra a Inglaterra, e que a Europa viria em nosso socorro defender os nossos interesses: mas perante o ultimato britânico o continente europeu cerrou os olhos muito cerrados [23]. E Oliveira Martins já antes chegara a essa conclusão: «é para nós positivo que nenhuma das potências europeias dispararia um tiro em nossa defesa» [24]. Na raiz de tudo, a nossa fragilidade económica, militar e política.

(In Franco Nogueira, As Crises e os Homens, Livraria Civilização Editora, 2.ª edição, 2000, pp. 211-223). Ver aqui e aqui



[1] Livingstone, African Journal (1853-1856), introdução, pp. 12 e 13.

[2] Pierre Renouvin, Histoire des Relations Internationales, VI, 80.

[3] Professor Doutor Marcello Caetano, Portugal e a Internacionalização dos Problemas Africanos, p. 107, 4.ª ed., 1971.

[4] Deve registar-se por ser verdade, que mais tarde os historiógrafos ingleses reconheceram a prioridade dos exploradores portugueses, embora continuassem a atribuir maior valor documental aos relatos de Livingstone.

[5] Henry Stanley deixou relatos minuciosos: How I found Livingstone, Through the Dark continent; e In Darkest Africa, 2 vols. É patente a pouca simpatia que lhe merecem os portugueses.


Ilustração do encontro entre Henry Morton Stanley (esq.) e David Livingstone (dir.) ocorrido na localidade de Ujiji (Tanzânia), em 1871.


Livingstone Memorial

[6] Hoje parte da República da Zâmbia.

[7] Ver José de Almada, Tratado de 1891, p. 81.

[8] Sobre a oscilação do povo germânico entre uma política continental e uma política mundial, há um ensaio excelente e profundo de A. J. P. Taylor, The course of German history, Londres, 1945.

[9] Luciano Cordeiro, Discurso, de 16 de Junho de 1885.

[10] Sobre este problema é fundamental o volume do Professor Marcello Caetano, Portugal e a Internacionalização dos Problemas Africanos, em que se analisam os factores internacionais à luz dos interesses portugueses, Lisboa, 4.ª ed., 1971.

[11] Texto em Professor Doutor Marcello Caetano, ob. cit., p. 121.

[12] Sobre este período das relações luso-britânicas na África Austral existe numerosa bibliografia inglesa. Um dos melhores e mais bem documentados volumes é o de Philip R. Warhurst, Anglo-Portuguese Relations in South-Central África, 1890-1900, Londres, 1962.

[13] José de Almada, Tratado de 1891, p. 278.

[14] Nota de 20 de Fevereiro de 1889.

[15] José de Almada, ob. cit., 295.

[16] José de Almada, ob. cit., 297.




[17] Desde 1890, tem-se utilizado em Portugal sempre a mesma tradução do inglês do ultimato; e isso tanto em publicações oficiais como particulares; e essa tradução é indubitavelmente incorrecta. A tradução que acima se apresenta é nova, e penso que a versão sobre que até agora os historiadores têm trabalhado constitui um simples aportuguesamento das palavras inglesas, sem ter em conta o seu espírito e o seu sentido profundo, e sem que se tivesse procurado encontrar as palavras portuguesas correspondentes a esse espírito e a esse sentido. Toda a nota inglesa tem sido mal traduzida. O ponto mais importante, porém, respeita ao uso da palavra intimation no texto inglês. Tem sido traduzida sempre por intimação. O governo português da época, Basílio Teles, Marques Guedes, Alfredo Pimenta, historiadores e escritores portugueses, todos, que eu saiba, têm aceite uma tal tradução. Dão-lhe e tem-lhe sido dado o mesmo conteúdo e alcance que tem na língua portuguesa, para significar uma ordem emanada de uma autoridade soberana, e por isso não é passível de discussão ou resistência: é assim que falamos de uma intimação judicial ou intimação policial, a que qualquer de nós tem de obedecer, pois que, se o não fizer, será fisicamente constrangido ao cumprimento de tal intimação. Ora a palavra intimation não corresponde a intimação. Intimation, do verbo to intimate, quer dizer informar, anunciar, dar a entender indirectamente, fazer pressão no sentido de, dar a perceber, instar, revelar por forma não explícita a intenção real, etc. Desde que, todavia, se traduziu na altura intimation por intimação, criou-se um infundado sentimento público de ofensa e humilhação, considerámos que Londres se nos dirigia como se fôssemos seus súbditos. Verdadeiramente, a nota inglesa urge o Governo Português a actuar de uma certa forma; insta para que o faça; e dá a perceber, de forma indirecta e clara, que seriam gravíssimas as consequências se o não fizesse. Mas não intima. Por isso julgo que no caso a tradução correcta de intimation é instância. Nada disto, porém, retira à nota britânica o carácter de ultimato. José de Almada, apesar de acolher a versão de intimação, parece duvidar de que assim seja, pois fala no «chamado ultimatum» (ob. cit. 308). Mas trata-se efectivamente, como muito bem salienta o Professor Doutor Marcello Caetano (ob. cit. 129), de um ultimato. O Professor Doutor Marcello Caetano também acolhe a versão clássica e até agora corrente; mas não é nesse aspecto que funda o seu parecer. O que caracteriza um ultimato é a apresentação de uma exigência para cuja satisfação se marca um prazo-limite sob pena de sanções; e isso contém a nota de Petre. Para se ser justo, portanto, haverá que dizer que recebemos um ultimato inglês, duro e firme, sem que no entanto a Inglaterra tivesse ao mesmo tempo procurado ofender e humilhar Portugal. Note-se que na própria resposta de Barros Gomes a Petre também se aceita a intimação: fala-se na intimação que me dirigia. Aliás, a resposta portuguesa, do ponto de vista político, não podia ser mais desastrosa e inábil. Na desorientação do momento, não foi aprofundado o sentido e o significado real das palavras da nota inglesa; e durante oitenta anos nenhuma revisão foi feita de um processo cujo estudo está ainda imperfeito. Acentue-se por último que o Conselho de Estado, ao debater o assunto, tratou o documento de Petre como memorandum e não como ultimatum. Pelas razões acima, não há dúvida, no entanto, de que continha um ultimato o documento de 11 de Janeiro de 1890.

[18] Citações de Quental extraídas de Prosas, II e III.

[19] Oliveira Martins, Política e História, II, 214-215.

[20] Fialho de Almeida, Os Gatos, III, 35-45.

[21] Basílio Teles, Do ultimatum ao 31 de Janeiro, 96.

[22] Das calamidades da nação todos os estrangeiros se apercebiam. Escreve um autor inglês com justiça: «Corrupção, política frouxa, falta de espírito público carcomiam os fundamentos do Estado». Warhust, ob. cit. 152.

[23] Desde que não se soube evitar o ultimato, não se afigura possível que fosse outra a decisão do Conselho de Estado. Decerto a Inglaterra atacaria posições portuguesas – Cabo Verde, por exemplo – e o que perdesse não seria mais recuperado.

[24] Oliveira Martins, Jornal, 228, ed. de 1960.






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