domingo, 20 de agosto de 2023

A ideia do iberismo entre políticos e intelectuais portugueses

Escrito por Franco Nogueira 


Os domínios de Filipe II na Europa em 1581.

«O ideal dominante de D. João II era achar terras e, designadamente, a Índia, com objectivos económicos e de proselitismo religioso, sem cupidez ou fúria, segundo mostrou em Marrocos, na Mina e no Congo, como se a curiosidade geográfica sublimasse a uma esfera superior de especulação as violências do restaurador da autoridade e a intolerância necessária da catequese.

Em Filipe II, pouco lembrado do império que uma plêiade de heróis e aventureiros brindara aos seus antecessores, o ideal dominante era a defesa e guarda da fé católica, na sua forma de reacção batalhadora, principalmente depois do concílio de Trento e da Liga Santa do Mediterrâneo, que teve sua hora triunfal em Lepanto – 1571, a véspera dos Lusíadas!

(...) Mas quando Filipe II perseguia tudo que podia quebrantar a majestade do catolicismo e a majestade do seu poder, que fazia senão continuar lógica e consequentemente a política do seu pai, Carlos I, perseguidor de turcos, mouros e “comuneros”, como Carlos I continuava já uma obra dos avós, os Reis Católicos, introdutores da Inquisição e perseguidores dos judeus, que haviam desempenhado o último acto da cruzada peninsular com a conquista do derradeiro reino mouro, o de Granada, e encenado o primeiro acto da cruzada americana, atravessando-se com a aventura de Colombo nos meditados planos de D. João II? E os Reis Católicos que faziam senão coroar toda a longa obra de opor uma barreira aos progressos da invasão muçulmana, de reconquistar a terra ibérica aos mouros e de incorporar os estados que iam brotando desse lento e tergiversante processo histórico? E todas essas monarquias cristãs, que desde Covadonga se foram formando, fundindo e pulverizando de novo, ao acaso de alianças matrimoniais, testamentos e batalhas, eram apenas cristalizações episódicas dessa cruzada e herdeiras do espírito político-religioso do império visigótico.

Foi sob a teocracia dos visigodos que se definiram as características políticas e sociais da vida medieva peninsular. A unidade política consegue-a Leovegildo em 585, incorporando os suevos; o cristianismo é adoptado como religião do Estado após a conversão de Recáredo, em 589; e o império visigótico tomba num choque de credos religiosos em 711. A doutrina da monarquia vitalícia e hereditária, de unção divina, orientada pelos concílios eclesiásticos e adornada de impressionantes pompas externas, veio-se formando lentamente durante a ocupação visigótica, desde o patronato militar e através da monarquia electiva até à sua sistematização teórica e prática na Renascença.

Portanto, de longe vinham as dominantes características da filipização de Espanha: unidade política e unidade religiosa, em mútua influência reforçadora. Somente, coexistindo o seu reinado com a maior crise do catolicismo e sendo o império da Casa de Áustria o maior do tempo, Filipe II, mais fiel aos compromissos do passado que sensível à novidade dos horizontes que a América e a Reforma lhe abriam, quis e pode constituir-se em ardoroso paladino do catolicismo. E os seus terços aguerridos cruzaram e talaram a Europa. E teve ainda veleidades sobre a Inglaterra, uma vez pacificamente pelo seu casamento com Maria Tudor, outra com o formidável esforço da armada de 1588, tão prontamente desbaratada. Napoleão, cujos exércitos também assolaram a Europa, disfarçando a sua orgia militar com a difusão do evangelho revolucionário, diz, no Memorial de Santa Helena, que serão precisos milhares de anos para que se repita um conjunto de circunstâncias como o que tornou possível o seu triunfo. Sem génio e sem o magnetismo prestigioso do corso, Filipe II é também produto da convergência rara de circunstâncias e não careceu, por igual, de nimbo lendário e deformador.»

Fidelino de Figueiredo («As Duas Espanhas»).

 

«Na realidade, do iberismo como teoria, como doutrina, ou do anti-iberismo como posição política ou como sentimento popular, encontramos mil expressões durante toda a segunda metade do século XIX. São quadros sucessivos que se sobrepõem, ou continuam os quadros que ficaram resumidos. Persiste na sua actividade a Liga-Hispano-Lusitana: afirma-se uma associação para disseminar o pensamento da união ibérica: e sugere que se comece, entre outros domínios, pela união postal, telegráfica, pedagógica, construção de estradas, e pelo estabelecimento de propriedade literária e artística em comum. Surge o Porvir Hispano-Lusitano, publicado em Vigo, que advoga o estreitamento de relações entre os dois países (iniciativa análoga foi agora tomada (1992) pelo Faro de Vigo e secundada do lado português, para publicação de um jornal Sem Fronteiras); e é O Iberismo ou a Fusão das nacionalidades, editado em Madrid por Nuñez Amor. Também em Portugal: é a Confederação ibérica – bases para um tratado de aliança ofensiva e defensiva, e liberdade de comércio entre Portugal e a Hespanha; é a União Ibérica, ou reflexões sobre a união dos dois povos da Península, de Joaquim Ribeiro; é a colectânea de artigos do Arquivo Nacional sobre a União Ibérica, precedida de “considerações” feitas pelo “Ex.mo Sr. Conselheiro Latino Coelho, actual ministro da Marinha de Portugal”, publicado no Rio de Janeiro. Muitas outras manifestações se poderiam citar. Tudo suscita em Portugal uma reacção vigorosa, e hostil. Destaquem-se os Ecos de Aljubarrota, de Guilherme Braga; o Opúsculo Anti-ibérico, de Luciano Cordeiro; a Pátria contra a Ibéria, de Eugénio de Castilho; a Lyra Civica, de Alberto Pimentel, que se apresenta como poesia anti-ibérica; o Brado contra a Ibéria, poesia de Batista Machado, declamada no Variedades pelo actor Abel; e a esmo pululam os protestos, as refutações, as respostas, em defesa da independência nacional. Muito se poderia citar. No seu Dicionário, tomo X, Inocêncio menciona cerca de cento e cinquenta títulos, entre livros, manifestos, separatas, folhetos, mil outras publicações similares.»

Franco Nogueira («Juízo Final»).




«(...) a História da Civilização Ibérica não historia a civilização ibérica. Também na História de Portugal se não conta a história da nacionalidade portuguesa. Ambas as obras são, a despeito dos seus títulos e mais ainda a primeira que a segunda, simples ensaios interpretativos de dois longos dramas históricos ou, melhor, de um drama histórico e de uma pormenorização lateral, desse vasto conjunto. Quem não conhecer a civilização ibérica, pouco ou nada aprenderá nessa obra, cujo escopo principal foi apresentar a visão de Oliveira Martins, que é também uma demonstração, a primeira que se produziu, de uma unidade típica e circunscrita à península hispânica, na qual se fundem as várias evoluções nacionais, contidas nesse quadro geográfico. E não se estranhe que só na segunda metade do século XIX surgisse tal demonstração. O sentimento geográfico da unidade peninsular tardou séculos a formular-se e vitalizar-se em força política, mesmo em determinante de coalescência interna. Pois o sentimento histórico dessa unidade em quanto ao drama encenado no quadro geográfico foi ainda mais demorado em se fazer sentir. E nunca chegou ao pleno reconhecimento. As guerras civis do século XIX e do XX, e a legislação das duas repúblicas, a de 1873 e a de 1931, claro mostram que as recordações das velhas nacionalidades eram ainda muito vivas e estavam prontas a irromper e volver-se em reivindicações particularistas.

Em 1873, quando apareceu a História da Civilização Ibérica, estava muito presente no espírito de todos a agitação do cantonismo espanhol que matara a primeira república. E em Portugal ainda não acalmara de todo a tempestade de protestos suscitados pelas veleidades unitárias dos homens da república e pela possível candidatura do rei D. Fernando Coburgo ao trono espanhol. Basta consultar o Dicionário Bibliográfico, de Inocêncio, para ajuizar da abundância verbal dessa discussão exaltada. No campo literário havia algumas vozes de independência e ponderação, tais como Antero de Quental e Latino Coelho, mas não chegavam para constituir corrente avultada de opinião crítica. Por isso a publicação desse ensaio de filosofia da história dos povos peninsulares, considerados no seu paralelismo e na sua travação dinâmica, foi um acto de coragem mental – embora muito menor do que se afigure a um leitor moderno, que não conheça a amplitude da liberdade intelectual do século XIX.

O êxito da obra foi pleno. Os portugueses encontravam nela uma larga síntese ao gosto do tempo, síntese muito simplista e mnemónica, e corrigida quanto a excessos de abstracção por largas pinceladas de flagrante caracterização colorista. Era verdadeiramente cómoda aquela simbolização da história paralela dos dois povos irmãos nalguns sucessos e nalgumas figuras. Tinha a aparência de demonstração de coisa quase evidente, a que só faltasse a relevância sedutora, que lhe dava a magia da pena do escritor. Apesar de todos se encontrarem nessa quase evidência, a obra tinha muito carácter pessoal, era coisa bem ensaística, não na extensão, mas nesse cunho das ideias próprias, do prejuízo pessimista e da preocupação prática de reforma política imediata. E era pedra de um grande edifício. Em vinte anos, este homem que não chegou a atingir a cinquentena, ergueu uma das mais imponentes construções de pensamento de toda a nossa história intelectual. Assimilando num prodigioso esforço de estudo, com que exemplificou nele mesmo o poder da vontade, a que levantou calorosas apologias no decurso da sua obra, assimilando as ciências novas do seu tempo, que ministravam uma outra compreensão do homem, a antropologia, a arqueologia pré-histórica, e etnologia, a etnografia, a sociologia comparada, a hierologia, a economia, dominando toda a evolução histórica da humanidade nas suas relações com a geografia e na sua obediência aos imperativos económicos, tomou para aplicação das suas ideias três tipos de evolução política e social: o helénico e o romano, de que todos na Europa descendemos, e o ibérico ou o do seu sangue, cujos problemas candentes se erguiam à vista dos seus olhos. Essa a origem ou o lugar da História da Civilização Ibérica na sua grande arquitectura historiográfica. Depois veio a pormenorização concreta da fisionomia portuguesa dessa civilização servida por dois verbos principais, até chegar aos planos de acção que o levaram à política, ao ministério e à desilusão.

Para os espanhóis a obra era uma espécie mais a acrescentar à literatura da decadência da pátria, um tema obsessionador desde os últimos soberanos da Casa de Áustria. Nos séculos XVII e XVIII essa literatura concentrara-se na terapêutica política ou nos expedientes governativos que haviam de restituir a Espanha ao antigo esplendor do tempo de Filipe II – compreendendo-se nesse regresso ao velho esplendor a recuperação de Portugal, já se deixa ver... É aquela grossa linhagem dos chamados “iberistas”, cujas ideias correm uma larga escala, desde os razoáveis planos de governo, em que se pressupõe que os decretos dos reis são tudo na vida dos povos, até às invencionices mais absurdas. No século XIX o arbitrismo cede o lugar à crítica da história; faz-se diagnóstico, mas também se faz etiologia da doença e propõe-se alguma solução terapêutica, já dominada por sentido da realidade. Há uma evolução sequente nas ideias sobre a decadência espanhola. E aparecem os cronistas dessa evolução. E quando o desastre nacional de 1898-1900 dá acuidade emotiva à discussão desse vital problema, surge uma geração de ensaístas, que partindo de Ganivet e Unamuno, da sua polémica sobre “el porvenir de España”, do Idearium Español, de En torno al casticismo, e do apostolado de Joaquín Costa, há-de renovar a vida mental de Espanha e erguê-la a grande nível. A sua influência estender-se-á até à morte da segunda república.»

Fidelino de Figueiredo (in Prefácio a Oliveira Martins, «História da Civilização Ibérica»).




A ideia do iberismo entre políticos e intelectuais portugueses


Não era somente nos recantos dos altos enredos internacionais e em Espanha, todavia, que mergulhava as suas raízes o iberismo. Entre políticos e intelectuais portugueses, como em 1380, ou 1580, ou outros períodos menos agudos, fazia alguma carreira a ideia. Saldanha, acaso sem absoluta consciência das forças históricas, foi um dos seus paladinos. Mas do iberismo, nesta fase da vida nacional, é talvez Oliveira Martins o seu mais sistemático expositor.

Poeta eloquente da história, Oliveira Martins considerava que Portugal findara como nação independente em 1580; admirava as conquistas e navegações, mas o império do Oriente fora uma «montanha de ignomínias»; e depois o reino vivera, titubeante e exausto, segundo os caprichos do concerto europeu. Escreve a História da Civilização Ibérica: não escreve a História da Civilização Peninsular: e o pormenor tem significado. Nessa obra, confundem-se expressamente os dois países da Península; Albuquerque e Cortez, João de Castro e Pizarro são produto do mesmo génio peninsular; e os Lusíadas são o testamento da Espanha. Em Espanha, Oliveira Martins é acolhido de braços abertos: sócio da Academia Real de História, membro do Ateneu de Madrid, grã-cruz de uma ordem espanhola: e surge o plano da «Liga Ibérica». E então teoriza o seu iberismo no Portugal Contemporâneo: e apresenta os dilemas que entrevê. Para Martins, «mais ou menos, um ou outro dia, todas as nações pequenas tiveram a recear a perda da independência»; e quanto a Portugal «sucede que, no decurso de uma história de já quase oitocentos anos, é constante o sentimento, ou de medo, ou de esperança em uma fusão no corpo da nação vizinha». Esta a tese: e para a justificar põe as dúvidas e as contradições. «Estamos à mercê do concerto europeu, que pode decretar o nosso desaparecimento e encarregar a Espanha de cumprir o decreto»; é exacto também, todavia, «que a sentença apenas se executaria por vontade nossa». Por outro lado, «o português emigra, desnacionaliza-se; mas remete para o reino muito dinheiro. Defende-nos a protecção da Inglaterra; mas também nos defendem sete séculos de história, e uma língua diferenciada, e um Camões. Para nos fundirmos com a Espanha, somos demasiados; e para um dualismo em pé de igualdade, somos poucos. Lisboa é pedra fundamental neste quadro: o porto, o estuário, a situação geográfica, a alma da cidade, justificam e impõem uma nação em seu derredor: e Cádiz e Vigo não tolerariam que ali se estabelecesse a capital peninsular». Entretanto, «vamos indo, vamos vivendo». Mas o tempo corre: Oliveira Martins estuda, esclarece-se: é homem íntegro, sincero, de boa-fé: e começa a ver as realidades a outra luz. Num volume de Dispersos, escreve: «A união ibérica não é hoje o programa de nenhum dos partidos espanhóis, mas é o instinto de todos»; e a «ambição inconsciente de hoje é o plano de amanhã, para ser o propósito do dia seguinte»; e «à medida que a ideia se define, acentua-se a energia da acção: amizade primeiro, pressão depois, violência final». E protesta: «Se, bem governados, tivéssemos alguma centelha de patriotismo sério e firme, e algum vislumbre de discrição suficiente, não havia talvez que temer para breve. Mas se, pelo contrário, somos nós próprios, os nossos capitais e as nossas companhias, que fazemos o jogo de Espanha!» [1]. Com a sabedoria e a serenidade dos anos, Oliveira Martins resumiria mais tarde um outro pensamento, e noutro volume dos Dispersos escreveu: «Importa pouco ou nada à Europa que a Espanha tenha dois reinos ou um só. É para nós positivo que nenhuma das potências europeias dispararia um tiro em nossa defesa: é óbvio, pois, que o interesse recíproco da Espanha e de Portugal está em que nenhum de nós pense, nem de longe, em aventuras perigosas para o futuro de ambos. União de pensamentos e de acção, independência de governo: eis, a nosso ver, a fórmula actual, sensata e prática do iberismo». Oliveira Martins atenta no Ultramar português, nos seus problemas, na sua valorização: e temos Portugal nos Mares, Portugal em África, o Brasil e as Colónias portuguesas. É um nacionalista que encara as dificuldades à luz pura do interesse nacional. Mas sobrevém o ultimato inglês de 1890; é geral a indignação perante a injustiça; e Oliveira Martins imprime novo desvio ao seu iberismo. Defende a aliança com a Espanha, por ser a única «fecunda, natural e duradoura»; repudia a aliança inglesa, que foi «sempre para nós um protectorado mais ou menos disfarçado»; mas não aceita tão-pouco o seu federalismo inicial pois a aliança espanhola deve ser baseada na força e na vontade portuguesa. E então, já na última quadra da existência, Oliveira Martins muda de novo e apenas encontra refúgio final e sacia o espírito nos grandes temas do patriotismo português: dá-nos uma Vida de Nun’Álvares, uns Filhos de D. João I, um Príncipe Perfeito, um Camões, mesmo um Febo Moniz: era a galeria dos grandes portugueses. Tomara consciência das realidades, certificara-se dos interesses, adquiria uma visão histórica: tornara-se um patriota tradicional. E quando escreve as suas Cartas Peninsulares, com amizade e ternura pela Espanha, não as designa todavia por Cartas Ibéricas. De Espanha passou a receber críticas acerbas, e os seus amigos de ontem compraziam-se em apontar os seus erros históricos. 



Se do plano da política e da historiografia passarmos ao estudo da literatura, também encontramos manifestações iberistas. Latino Coelho, na sua juventude e antes de ser ministro da Marinha, foi um dos seus arautos. Ao estudar no Vasco da Gama e no Fernão de Magalhães as navegações e conquistas, mostra-se deslumbrado com os feitos dos homens e as glórias de um povo; em algumas das suas Páginas Escolhidas considera, no entanto, que esse povo entrara no ocaso; e no seu Cervantes inclui explicitamente Portugal na Espanha. Também Teófilo Braga considerava ser a divisão da raça latina a causa do seu enfraquecimento: e via a salvação num federalismo amplo, e ibérico antes de mais. Para Antero de Quental, eram três os motivos da decadência: catolicismo, absolutismo, conquistas e navegações. Para o autor dos Sonetos, a «nossa fatalidade era a nossa história»; havia que repudiar o «espírito moral do passado»; estava-se agora perante a «transição para o novo mundo industrial», a que «pertencia o futuro»; éramos uma «raça decaída por termos rejeitado o espírito moderno», e estava-se à beira de «uma sociedade nova», de «um mundo novo», que substituiriam quanto era velho. E como os factores de decadência eram comuns a Portugal e Espanha, num federalismo ibérico reconstituído via Antero de Quental a ressurreição da Península. Eça de Queirós, ao verberar a degradação portuguesa, não deixou de exprimir através de alguns personagens uma nota de iberismo, emocional, literário e irreverente; mas na serenidade da sua última fase reencontrou o Portugal tradicionalista, no que este possuía de heróico, empreendedor e tenaz. Também foi iberista Fialho de Almeida: mas o seu iberismo era abstractamente saudosista: tinha pena do que poderia ter sido e não foi. Separar Portugal da Espanha fora «um erro deplorável». Porque os «dois países reunidos ficariam na carta com uma massa de território maior que a França e as suas colónias somadas dariam um domínio colonial superior ao da Inglaterra» [2]. Da Espanha, separava-nos apenas «uma ilusão de óptica de políticos»; juntos, seria a «pujança de uma espécie de Rússia do ocidente» composta de «pequenas repúblicas solidárias e autónomas»; e se tudo se ligasse à França seria um «colosso novo», «regulador dos destinos do mundo», «com esquadras temerosas», «pitorescas cidades», todas «as riquezas da indústria e da arte» e rejuvenescido «pelas águas lustrais da democracia pura» [3]. Deste modo visionário, o iberismo de Fialho era um complexo de republicanismo, de literatura, de gosto em ofender as classes dirigentes e burguesas, de ressentimento, e de perfeita inconsciência da história e suas realidades. Mas assume outro teor o iberismo de Moniz Barreto. Olhando a história, conclui que aos reinados de D. João II a D. Sebastião e de Fernando e Isabel a Filipe II corresponde o período de «maior prosperidade e grandeza dos povos peninsulares», em que «a consciência da força própria suprime desconfianças e temores», e a «identidade de aspirações e sentimentos cimenta as bases de uma aliança em que compartilhamos com a Espanha a hegemonia no Mediterrâneo ocidental e nos dois oceanos». Em conflitos entre potências «a neutralidade é uma ilusão quando não é garantida ou pelo isolamento geográfico ou pelo desenvolvimento de forças imponentes». Contra os perigos, não nos protege a aliança inglesa, porque a Inglaterra pretende «absorver os nossos domínios da África Oriental e se for possível os da África Ocidental». Contra esta «eventualidade a aliança espanhola é o único expediente exequível e é uma garantia suficiente» [4]. Este iberismo de Moniz Barreto provinha de duas fontes: o ressentimento pela atitude da França no caso de «Charles et George»; e a indignação pelo ultimato dos ingleses que classificava de «filibusteiros da África Austral». Mas Moniz Barreto, na sua sinceridade, tropeça com dois obstáculos: a «desproporção entre os interesses» dos dois países; e «desastrosa administração de Filipe IV que provocou a separação dos dois povos peninsulares». Quanto ao primeiro, é irremovível porque imutável, dado o condicionalismo geográfico; e quanto ao segundo não encontra Moniz Barreto forma de garantir que se não repetissem um Filipe IV e o seu conde-duque de Olivares.


Filipe II de Espanha, por António Mouro.


Retrato de Filipe II numa moeda emitida em 1566 (Guelders, Países Baixos).

Com o findar do século XIX expandia-se a propaganda republicana, e entre os republicanos muitos partilhavam do iberismo. Decerto estavam de boa-fé, e iludidos, e no desconhecimento das realidades fundamentais e permanentes: mas no interesse partidário desejam entender-se por cima das fronteiras, com os republicanos espanhóis. No Verão de 1893 promoveram estes um comício em Badajoz, e para a manifestação convidaram portugueses seus companheiros de ideal. Muitos aceitaram: em Badajoz compareceram Eduardo de Abreu, Jacinto Nunes, Cunha e Costa, Magalhães Lima, Alves Correia, Teixeira Bastos, outros mais: e republicanos de Lisboa, Braga, Porto, Leiria, enviaram mensagens de adesão. Teófilo Braga publicou um manifesto. Guerra Junqueiro, convidado a participar, não o fez por doença. Mas remeteu o texto do seu discurso. Afirmava os seus sentimentos de liberdade, de republicanismo; e celebrava as glórias dos dois países. Mas findava com estes períodos: «E este sentimento português de soberana e irredutível autonomia, sem restrições e sem equívocos, é em mim de tal maneira intransigente e natural, que eu sacrificaria, sendo necessário e podendo, os destinos completos da minha raça à completa independência do meu país. Unifiquemo-nos em espírito, mas conservemos as fronteiras, tal como estão no nosso território. Só da dualidade sem obstáculos pode nascer a confiança sem limites. Somos irmãos, mas não cabemos na mesma casa» [5]. Era outro iberismo. Em Oliveira Martins, acabara por ser esclarecido, raciocinado, consciente, informado pela história e pela observação dos factos. Em Antero de Quental, era ingénuo, poético, produto de um espírito impressionável e confiante, e que da história possuía uma visão rudimentar. Em Fialho era todo literatura, ressentimento, ódio aos poderes. Em Junqueiro, era emocional, vibrante, arrebatado. Nos restantes, era oportunismo político, ou deslumbramento provinciano, ou embevecimento primário, ou simpleza de espírito, e mais nada. Não deixou, sem embargo, de desempenhar uma acção nefasta nos últimos anos da monarquia e primeiros tempos da República.

(In Franco Nogueira, As Crises e os Homens, Livraria Civilização Editora, 2.ª edição, 2000, pp. 193-197).




[1] Oliveira Martins referia-se ao financiamento que tínhamos feito do caminho de ferro de Salamanca, na ilusão de que traria benefícios ao Porto, o que não se verificou.

[2] Fialho de Almeida, Ave Migradora, 213.

[3] Fialho de Almeida, Os Gatos, I, 249-250.

[4] Moniz Barreto, Estudos Dispersos, 190-192. Defende a sua tese no artigo A situação geral da Europa e a política exterior de Portugal. Este artigo foi o inspirador de António Sardinha que mais tarde quase se limitará a decalcar as ideias, e a ampliar argumentos, sem verdadeiramente acrescentar qualquer coisa de novo ou substancial.

[5] Guerra Junqueiro, Horas de Luta, 104.



Brasão de D. João IV, O Restaurador.



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