Escrito por António Quadros
«(...) não foi sem razão que Dante tomou como guia, para o fim da sua viagem celeste, a São Bernardo, que estabeleceu a regra da Ordem do Templo; e parece ter querido indicar, assim, que era apenas por meio deste que era tornado possível, nas condições próprias da sua época, o acesso ao supremo grau de hierarquia espiritual.»
René Guénon («O Esoterismo de Dante»).
«Nos quadros do Catolicismo ortodoxo, havia, de facto, lugar para uma realização de tipo contemplativo, mais ou menos platónico, e muitos dogmas e símbolos da tradição católica eram susceptíveis de ser vivificados com base nela. Aliás, há várias razões para pensar que os Fiéis d’Amor não teriam pretendido nada de inconciliável – em princípio – com um Catolicismo purificado e dignificado, e que a pedra de Dante não teria nada a ver com o Graal, mas seria simplesmente a Igreja Católica, de que Pedro é a pedra angular; e o dizer-se que essa pedra, outrora branca, se tornara negra, “a sua cor totalmente alterada”, aludiria somente à corrupção, por causa da qual a Igreja se teria tornado uma espécie de túmulo da doutrina viva de Cristo, de que deveria, pela contrário, ter sido a pura guardiã. Os Fiéis d’Amor não teriam, portanto, hostilizado a Igreja na qualidade de expoentes duma tradição essencialmente diversa, mas porque, para eles, a Igreja já não estava à altura da pura doutrina cristã. Se isto é verdade, Dante e os Fiéis d’Amor não poderiam ser postos na mesma linha que os cavaleiros do Graal. A “Viúva”, de que eles falam, não teria sido a tradição solar do Império, mas uma tradição já alterada e enfraquecida, “lunar”, e, portanto, não completamente inconciliável com as premissas de um Catolicismo purificado.
Uma prova disto é a concepção dantesca das relações entre a Igreja e Império. Como já referimos ela baseia-se numa dualismo limitativo, numa alternância entre vida contemplativa e vida activa. Ora se, partindo desse dualismo, Dante se lança violentamente contra a Igreja, por ela não se restringir à vida contemplativa e, pelo contrário, se tornar ávida de bens e poderes temporais, desconhecendo o supremo direito do Império no domínio da vida activa e tentando usurpar-lhe as prerrogativas – logicamente, com base nas mesmas premissas, Dante deveria ter alimentado uma igual aversão pela tendência oposta, ou seja, por toda a tentativa do Império no sentido de afirmar integralmente a sua dignidade no campo sobrenatural, onde a Igreja afirmava o seu exclusivo direito: direito esse, que Dante lhe reconhece. Na mesma medida em que combatia o guelfismo, Dante deveria ter atacado o gibelinismo integral, contrário à concepção transcendente do Imperium: isto, segundo uma teoria inicial, com caracteres “heterodoxos” em relação bastante menos a um Catolicismo purificado, do que à Tradição primordial “real”. Por isso, contra a tendência de alguns para sobrevalorizar o “esoterismo” de Dante, e apesar da presença efectiva deste esoterismo em muitas das suas concepções, no plano que tratamos aqui ele aparece muito mais como um poeta e um combatente, do que como defensor duma doutrina sem compromissos. Ele mostra demasiada paixão e espírito partidário, enquanto militante, ao passo que é demasiado cristão e contemplativo, quando passa ao domínio espiritual. Daí, várias confusões e oscilações, por exemplo, Frederico II confinado aos Infernos e, ao mesmo tempo, uma defesa dos Templários contra Filipe, o Belo. Em geral, tudo parece indicar-nos que, apesar de tudo, o ponto de partida de Dante foi a tradição católica, que ele se esforçou por elevar a um plano relativamente iniciático (suprarreligioso), em vez de estar directamente ligado aos representantes de tradições superiores e anteriores ao Cristianismo e ao Catolicismo, como é o caso, na nossa opinião, das principais fontes de inspiração do ciclo do Graal e também, como veremos, da literatura hermética.
Considerada no seu conjunto, a corrente dos Fiéis d’Amor aparece como um grupo gibelino de carácter iniciático, possuindo, assim, um saber mais elevado do que a doutrina ortodoxa da Igreja, mas com uma concepção da ideia imperial já despojada e fruto de um compromisso. O aspecto mais positivo desta corrente é aquele em que a Corte de Amor assume as características de um reino, ou feudo imaterial sendo os “Fiéis” simples personalidades que se entregam a uma realização supra-racional extática, constituindo uma cadeia colocada essencialmente sob o signo dessa realização. Dum certo ponto de vista, isto corresponde, de forma ideal, à conclusão pessimista da saga do Graal que se torna de novo invisível, a Parsifal que, de rei, se faz asceta. É sobretudo sob essa forma que se conservará a tradição no período seguinte, abandonando cada vez mais o aspecto militante, mas fazendo, de qualquer modo, revivescer filões mais profundos e originais.
Quanto à corrente dos Fiéis d’Amor, ela parece ter sido continuada em Itália até Boccacio e Petrarca, assumindo, porém, características sempre mais humanísticas, até que o aspecto “arte” prevaleceu decididamente sobre o aspecto esotérico. Os símbolos transformaram-se então em meras alegorias, o seu significado deixou de ser compreendido até por aqueles que continuaram a usá-los na sua poesia. No começo do séc. XVII, o princípio vital da tradição parece ter-se esgotado completamente, não só no conjunto, mas também em cada autor individual.»
Julius Evola («O Mistério do Graal»).
«Vejamos (...) o que diz [Éliphas Lévi] na sua “Histoire de la Magie”: “Multiplicaram-se os comentários e os estudos sobre a obra de Dante e ninguém, que nós saibamos, assinalou o seu verdadeiro carácter. A obra do grande gibelino é uma declaração de guerra ao Papado pela revelação ousada dos mistérios. A epopeia de Dante é joanita e gnóstica; é uma aplicação ousada das figuras e dos números da Kabbala aos dogmas cristãos e uma negação secreta de tudo o que há de absoluto nestes dogmas. A sua viagem através dos mundos sobrenaturais efectua-se como a iniciação nos mistérios de Elêusis e de Tebas. É Virgílio quem o conduz e o protege nos círculos do novo Tártaro, como se Virgílio, o terno e melancólico profeta dos destinos do filho de Polion, fosse aos olhos do poeta florentino o pai ilegítimo mas verdadeiro, da epopeia cristã. Graças ao génio de Virgílio, Dante escapa a este abismo, na porta do qual tinha lido uma sentença de desespero; escapa-lhe pondo a cabeça no lugar dos pés e os pés no lugar da cabeça, ou seja tomando o contrário do dogma, e então volta à luz servindo-se do próprio demónio como de uma monstruosa escada; escapa ao terror à custa do terror, ao horrível à custa do horror. O Inferno, parece, só é um impasse para aqueles que não sabem voltar para trás; ele toma o diabo a contraponto, se me é permitido utilizar aqui esta expressão familiar, e emancipa-se pela sua audácia. É já o protestantismo ultrapassado, e o poeta dos inimigos de Roma adivinhou já Fausto subindo ao Céu sobre a cabeça de Mefistófeles vencido”.
Na realidade, a vontade de "revelar os mistérios", supondo que isso seja possível (e não o é, porque não existe verdadeiro mistério senão o inexprimível) e o preconceito de "tomar o contrário do dogma", ou de inverter conscientemente o sentido e o valor dos símbolos, não seriam as marcas de uma muito alta iniciação. Felizmente, nós não vemos, pela nossa parte, nada disso em Dante, cujo esoterismo se envolve, pelo contrário, num véu dificilmente penetrável, ao mesmo tempo que se apoia em bases estritamente tradicionais; fazer dele um precursor do protestantismo, e talvez também da Revolução, simplesmente porque ele foi um adversário do Papado no campo político, é desconhecer inteiramente o seu pensamento e nada compreender do espírito da sua época.»
René Guénon («O Esoterismo de Dante»).
«Julgo que a razão deriva do elemento aquático e paulino que há em mim (embora me sinta muito mais vinculado a João do que a Paulo e, claro, a Pedro), a necessidade de estar sempre em campanha, em luta, em navegação, talvez em conquista, numa cavalaria em que o Graal é a filosofia portuguesa, a filosofia de Leonardo ou de Álvaro, a pátria, a tradição, as raízes, um futuro à altura destas, a demanda do Espírito de Verdade, etc..
Orlando Vitorino e António Quadros |
Também muito só (estamos sós, os discípulos dos nossos mestres, em Estremoz ou em Lisboa, porque vimos uns infiéis, outros desistentes, outros frágeis, outros vencidos, outros trânsfugas para o inimigo), não sei onde vou buscar energia para trabalhar tanto. Só peço a Deus que me dê tempo, força e cabeça para concluir as obras que tenho projectadas: o 3.º e o 4.º volumes de “Portugal, Razão e Mistério”; um livro sobre a filosofia portuguesa, de Bruno ao Orlando (quase concluído, devido à preparação que tive de fazer para o seminário do Rio de Janeiro), um outro livro também quase feito sobre “O Primeiro Modernismo Português – Da Vanguarda à Tradição”, e ainda outros que já tenho na cabeça.
A vida que podemos viver não dá tempo. Ou somos nós que não o merecemos: o tempo...
Também lhe queria dizer duas palavras sobre o problema catolicismo – ocultismo (...). A verdade é que não vejo contradição entre os dois termos: catolicismo e ocultismo. É claro que as heterodoxias marcam grandes divergências em relação às ortodoxias. Mas estas também não são estáveis, têm um percurso sinuoso. Além de tudo o mais, se eu leio os ocultistas, não significa que vá concordar com tudo. Mas... a verdade é que há muito a aprender.
Sou, digamo-lo, um católico liberal. Não me sinto no mínimo inibido, em minha liberdade espiritual. Nem clericalista nem anti-clericalista. Faço hoje uma vida de sacramentos, embora o meu espírito flutue muito e se dirija para paragens aventurosas, faço-o fundamentalmente porque os sinto como constituindo laços vivos, concretos, tradicionais com o sagrado, com Deus, exigindo da nossa parte reverência e humildade, uma aproximação do povo, dos simples que só por aí acedem a uma vida de espírito superior à dos interesses quotidianos. Como o pão que Cristo partilhou com os apóstolos e sinto-me sentado à sua mesa. Ajuda-me a vencer o egocentrismo e a sujeição aos interesses próprios. E isto é difícil: é custoso renunciar assim a assuntos como mulheres ou tendências da imaginação, subjectiva ou outra. Isto não quer dizer que em minha vida tenha sido sempre fiel a tais disposições: pelo contrário. É uma luta em que se ganha e se perde. Mas travo-a sem dramatismo. O que importa quanto a mim é uma linha geral para o alto, não importando muito os acidentes de percurso. Concebo um Deus-Espírito, muito superior às nossas pequenas contabilidades e prejuízos terrestres. Muito superior às nossas estreitas ortodoxias, que aliás já foram heterodoxias para outros, ou são-no.
A Sua revelação está nos profetas, nos evangelistas, nos místicos, na Igreja, e está também na filosofia, e no esoterismo dos que quiseram ou querem ir mais longe do que o quadro mental oferecido eclesiasticamente e escolasticamente. A Sua revelação está também na linguagem, na ciência, na natureza, dentro de cada um de nós.
Você verá talvez melhor a minha posição no vol. II de “Portugal...”, onde defendo um trinitarismo de predominância paraclética, mas... sem heresia, como penso que foi o de Dinis e Isabel, dos franciscanos espirituais e da Ordem de Cristo. Coincidindo pois com o que você diz sobre os templários e sobre a aproximação do catolicismo e do ocultismo – pelo menos do ocultismo de sinal cristão, isto é, não-oriental, embora eu penda pessoalmente mais para um criacionismo cristão-liberal.»
António Quadros para António Telmo (Carta XV, Cascais, 29.1.87, in António Quadros e António Telmo: Epistolário e Estudos complementares).
«A propósito fiquei contentíssimo ao ler na sua carta o que já julgara saber, isto é, o seu repúdio do ocultismo oriental e a sua ligação com o ocultismo de sinal cristão. De resto, tudo quanto me diz sobre a sua posição religiosa que admite a evolução dos dogmas pela sua concepção de Deus como puro Espírito está, julgo eu, na linha exacta da Tradição portuguesa. “Para mim, Deus é o Espírito Santo”, costumava dizer o Álvaro Ribeiro nos últimos dias. A sua perspectiva da Trindade Cristã é a d’“Arte de Filosofar”. A cristianização do “orientalismo” é tratada, contra a filosofia alemã, no prefácio a um livro de Nietzsche e integrada na significação dos Descobrimentos».
António Telmo para António Quadros (Carta XVI, de 2 de Fevereiro de 1987, in António Quadros e António Telmo: Epistolário e Estudos complementares).
«A tese de Nietzsche sobre A Origem da Tragédia é muito mais um estudo sobre a decadência de um género teatral do que propriamente uma investigação histórica ou uma incursão mítica na esfera da vida sobrenatural. O interesse da tese está no desenvolvimento do paradoxo: pessimismo é a cultura socrática, optimismo era a tragédia grega. Afastado, como todos os cientistas do seu tempo, da filosofia de Aristóteles, pensa Nietzsche que quanto mais se afirma o princípio de individuação e, com ele, a liberdade, tanto mais o homem cultiva a sua angústia e o seu desespero. Coerentemente, Nietzsche, pensador mediterrâneo, se condena Sócrates também condena Cristo, mas parece desconhecer as verdades que pertenciam já ao ciclo da filosofia atlântica, da filosofia dos europeus que por via marítima chegaram ao Oriente.
A superioridade da filosofia portuguesa sobre a cultura da Europa Central mais uma vez se afirma ao interpretar o Cristianismo e ao situar o mistério da Encarnação no quadro mais adequado à especulação teológica, evitando assim dificuldades como as que necessariamente irritavam o pensamento crítico de Frederico Nietzsche. Teólogos e apologetas que se preocupam demais com os problemas da Reforma e da Contra-Reforma não prestam a devida atenção ao significado evangélico e universal dos Descobrimentos, porque do meridiano de Roma não é fácil ver a superioridade do simbolismo do barco sobre o simbolismo do túmulo. A tais defensores da ortodoxia parecerá talvez que o Anti-Cristo de Nietzsche seja um livro sacrílego, execrável e merecedor de fogueira, mas para os cristãos que actualizam a fé, a esperança e a caridade não há escritos profanos que perturbem ou alterem a verdade garantida pelo Espírito Santo. O cristão não estranha que até entre os cristãos haja quem ofenda a Cristo, e bem sabe que não há livro tão mau que contenha mais blasfémias do que as que foram ouvidas por Jesus. O desespero de Nietzsche tem outro significado que foi já surpreendido por alguns teólogos da Alemanha, entre os quais é lícito mencionar Carlos Barth e Alberto Schweitzer. Para os pensadores de tradição portuguesa, este aspecto da obra de Nietzsche representa um momento já ultrapassado pela consciência religiosa que ascendendo evolui para Deus. Não sem razão foi dito que no S. Paulo de Teixeira de Pascoaes se encontra a melhor refutação do anti-cristianismo de Nietzsche. Para bem compreender a profunda religiosidade portuguesa é indispensável a demorada leitura de todos os livros do Novo Testamento, e não só dos Evangelhos.
Meditando nas doutrinas dos apóstolos, e, consequentemente, nas dos missionários, não estranharemos que a filosofia portuguesa seja mais especulativa do que teorética, menos contemplativa do que actuante. Erros de disciplina no ensino dos seminários impediram que não chegasse ainda à fase de evidência a tese da superioridade da filosofia portuguesa como instrumento de interpretação da teologia católica; seria, aliás, estultícia desejar que tão nobre verdade estivesse ao alcance daqueles que só acreditam em cartilhas estrangeiras.
Se a filosofia portuguesa, mais por suas verdades cifradas do que pelos seus livros publicados, é superior à filosofia alemã, como explicaremos a inegável predilecção dos católicos portugueses pelas obras de Frederico Nietzsche? Cremos que tal interesse significa a natural reacção contra o racionalismo crítico e utópico que a cultura francesa propagou em certos meios eclesiásticos, e corresponde ao desejo de procurar, para além dos paradoxos germânicos, as verdades que não puderam ser bem formuladas nos sistemas clássicos da mentalidade moderna. Efectivamente, quem estudar a antropologia de Nietzsche ver-se-á liberto de todos os preconceitos daquela “psicologia” geral e experimental que infelizmente ainda é de ensino público, e poderá enunciar os problemas humanos nos termos tão sinceros como verdadeiros de mais alta escatologia. Não os resolverá, porém, no quadro da filosofia alemã nem do de qualquer outra filosofia da Europa Central. A leitura de Nietzsche é uma prova e uma provação. Reagindo, como representante de uma tradição superior, o pensador português vai a pouco e pouco desprendendo-se de preconceitos continentais, para ir reconhecendo que o seu horizonte cultural está no Ocidente, no Além-Mar. Que o simbolismo do barco, ou da arca, tem ainda de ser superado por outro mais apocalíptico, quer dizer, mais revelador, integrando toda a fenomenologia numa ontologia do inefável, eis o que, depois de haverem lido a obra de Nietzsche, sabem todos quantos levantam a âncora da filosofia portuguesa.»
Álvaro Ribeiro («Frederico Nietzsche»).
«Também tive alguns convites interessantes, mas não sei se dá para tudo: uma semana na Madeira para dar um pequeno curso de filosofia portuguesa, organizado pela Universidade Popular da Madeira... mas em Dezembro; pedi para mudarem a data e alargarem o tema; dois colóquios sobre Antero de Quental: em Setembro no Recife, e em Outubro na Universidade dos Açores. Se eu tivesse tempo para estudar devidamente Antero, o que nunca fiz a sério, seria até uma oportunidade, com vista ao livro A Filosofia Portuguesa do Século XX, que planeio para 1992 – se Deus me der vida e saúde, como bem diz o povo. Enfim, em Julho, em Cerisy, um colóquio sobre a obra de Gilbert Durand, que ele próprio me mandou, Traditions et Post-Modernisme, só que neste caso é “pagantibus” da minha parte e não é para eu falar; o português que fala é o Lima de Freitas.
Tudo isto é muito interessante mas o que me importa de momento é o III vol. de Portugal, Razão e Mistério, em que tenho trabalhado afincadamente, mas que... avança a passo de boi. Parece que há um bloqueio, um obstáculo que não consigo ultrapassar! Escrevo e volto a escrever, rasgo, volto atrás, não há meio: se calhar o tema supera-me! O título que tinha era A Esmeralda da Última Tarde, mas como me pareceu que ficava muito Spielberg, passei-o para O Cálice da Última Tarde, baseando-me em epígrafes de Duarte Pacheco Pereira sobre D. Manuel, do Goethe e de uma das versões da Demanda do Graal. Este último título é um pouco mais fraco esteticamente falando, mas dá talvez melhor o vaso do Graal, o vaso filosófico da alquimia, o athanor, etc., embora a taça do Graal numa das versões fosse de esmeralda, o que justificava o primeiro título, talvez mais belo.
Calcule que, ao retomar este livro, saiu-me, positivamente saiu-me um longo prólogo autobiográfico, evocando o meu itinerário, a
faculdade, o “ideal português”, o “57”, os nossos mestres, os meus encontros
com Eliade na juventude, a filosofia portuguesa, como lá cheguei, as minhas
fases literata e existencialista, etc., etc.
Seria despropositado? Julgo apesar de tudo que o vou incluir.»
António Quadros para António Telmo (Carta XXXII, 19.2.91, in António Quadros e António Telmo: Epistolário
e Estudos complementares). Ver aqui e aqui
Estátua de Gualdim Pais e a torre da Igreja de S. João Baptista. Ver aqui |
Castelo de Tomar |
O Templo e o Graal
Se na sua primeira fase a acção templária em Portugal foi principalmente de combate, no apoio a D. Afonso Henriques e na luta contra os mouros, terá sido quanto a nós a partir de 1160, com a construção do Castelo e da Igreja de Tomar, que iniciou a sua fase por assim dizer espiritual.
Gualdim Pais era um velho companheiro de D. Afonso Henriques, que aos 21 anos tomara parte na batalha de Ourique, onde fora armado cavaleiro. Pouco depois, partira como cruzado para a Palestina, aqui permanecendo cinco anos e aqui se distinguindo na famosa batalha de Ascalona e na conquista de Sidon. Foi na Palestina que ingressou na Ordem do Templo, sendo de crer que os seus feitos e a sua forte personalidade o tenham elevado até junto da mais alta hierarquia templária. Aí foi certamente iniciado na doutrina joanina da Ordem, aí compreendeu que a acção da cavalaria de Deus visava muito mais do que a defesa física dos lugares santos.
Ao regressar a Portugal, está compenetrado da missão que lhe cabe, se é que dela não foi conscientemente incumbido. Primeiro Comendador em Braga e depois em Sintra, sob o mestrado de D. Pedro Arnaldo, quando este renuncia em 1157, é ele que será investido no cargo. É o 6.º Mestre da Ordem Templária portuguesa.
Pouco depois, a 1 de Março de 1160, D. Gualdim Pais lança os fundamentos do Castelo de Tomar, que será a Sede dos Templários. O templo que imediatamente constrói não tem, na sua forma, tradição conhecida entre nós. É um templo octogonal, tendo no interior uma capela igualmente octogonal, quase circular pela disposição dos pilares, no centro da qual está o altar. Havia primitivamente uma única porta, que dava directamente para o Convento, sendo a única serventia dos cavaleiros [1]. Tal como outras igrejas templárias, teve por modelo a igreja do Santo Sepulcro de Jerusalém mas, em relação às restantes, requintou no paradigma siríaco e bizantino, até nos arcos da abóbada. As colunas que sustentam a cobertura, marcando o espaço da capela interior são encimados por capitéis de inspiração orientalista ou fitomórfica, tendo um deles, hoje voltado para a nave aberta por D. Manuel I, a cruz templária, gravada e realçada a vermelho.
Nas cerimónias litúrgicas ou quando em oração, os templários dispunham-se pois em círculo, segundo o arquétipo dos cavaleiros da távola redonda, buscadores do Graal.
A charola de Tomar forma como que um círculo, sendo o central o do altar, da mesa ou da távola, em redor do qual se alinhavam os cavaleiros; é uma távola redonda. E tão poderosa é esta tradição entre nós que dois séculos mais tarde Fernão Lopes compara D. João I ao Rei Artur e diz ter sido Galaaz o modelo de Nun’Álvares [2].
Ver aqui |
Como se sabe, nos romances da Demanda do Santo Graal, os templários são os guardiões do Graal, ou indirectamente aludidos, como no Perlevaux do ciclo de Robert de Boron (pois usavam a cruz vermelha sobre uma túnica branca), ou directamente nomeados na sua veste branca com a cruz vermelha ao peito, como no Persifal, de Wolfram von Eschenbach, onde se narram as aventuras deste cavaleiro que no final da novela parte para o domicílio desconhecido do Santo Graal num barco em cuja vela branca se vê uma cruz vermelha [3], prenunciando as futuras caravelas portuguesas com a Cruz de Cristo.
Salta à vista a relação das igrejas templárias octogonais de plano central com os templos megalíticos solares; Stonehenge figura aliás numa das novelas principais do ciclo de Robert de Boron, quando o mago Merlin desafia os cavaleiros do rei Artur a levantarem os megalitos do templo [4].
Mas a igreja templária não foi concebida propriamente a partir de um modelo arquitectónico histórico, porque depende principalmente de um cânone simbólico. Como se sabe, o plano ideal canónico de qualquer igreja cristã é o círculo, representação da unidade ilimitada de Deus, da Sua Infinitude da Sua Perfeição [5]. Tradicionalmente, o processo de fundação de uma igreja era, depois da determinação do ponto ideal, o traçado de um círculo a partir de um mastro central. Dava-se depois, a quadratura do círculo, no quadrado resultante se inserindo uma cruz grega, de quatro lados iguais. O quadrado é a representação da Imutabilidade ou da Eternidade divina. Quanto a Jean Hani, o facto de a maioria das igrejas cristãs, sobretudo no Ocidente, serem em cruz latina, isto é, em forma de rectângulo atravessado por outro rectângulo, o transepto, ou ladeado por dois quadrados, em nada altera a significação profunda do rito da fundação, porque o rectângulo, em geometria, não passa de uma variedade do quadrado, e inscreve-se quase sempre num círculo director [6]. Na realidade não haverá nesta evolução um certo plano inclinado do símbolo?
A Charola do Convento de Christo. |
Planta (Interior da Charola). |
Arco entre a nave (igreja/coro) e a charola. |
O certo é que a cruz templária, também de quatro braços iguais, mas indicando pela sua forma peculiar a disposição das forças numa circunferência [7] a partir de um ponto central, tendo estas forças representação esquemática triangular, aproxima-se muito do cânone original, estando na origem e constituindo o plano da charola templária de Tomar e em geral das igrejas templárias deste tipo. O octógono é, na realidade uma figura geométrica mais próxima do círculo do que o quadrado e o rectângulo.
Se nos lembrarmos da relativa exiguidade desta igreja, constituída por dois octógonos concêntricos, tendendo à circulatura, facilmente reconheceremos estar em presença de um templo que não foi concebido para as multidões, mas para um pequeno número de cavaleiros-monges admitidos na Ordem, ou seja, um templo iniciático. Esta disposição reforçava as ideias de eleição, de escolha e de missão essenciais à vivência destes cavaleiros que, tal como os do rei Artur (citando a novela Morte Darthur, de Malory), se sentiam mais benditos e dignos de veneração, do que se houvessem obtido metade do Mundo. E deixam os seus pais, os seus parentes, as suas esposas e os seus filhos para seguir a Ordem [8].
A cruz templária, formada por quatro triângulos rectângulos arredondados é na verdade uma cruz de oito pontas. Prolongando-se os dois lados, forma-se o polígono exterior, enquanto a cruz propriamente dita forma o polígono-circular central.
Esta cruz também chamada cruz das oito beatitudes, supondo alguns que constituía a grelha criptográfica de um alfabeto em código usado pelos templários nas suas transacções financeiras ou nas mensagens secretas [9], exprimia pois, para além de toda a carga simbólica da cruz cristã, também o número quatro (quatro triângulos), que é número cósmico, significando os quatro pontos cardeais e os quatro elementos; o número três número divino (cada braço da cruz é um triângulo), significando a trindade suprema, Pai, Filho e Espírito Santo; e enfim o número oito (os octógonos), o número da Harmonia, da Renovação e da Regeneração, constituindo uma espécie de apelo simbólico e silencioso para a Regeneração da Humanidade, para o seu restabelecimento no estado anterior ao Pecado, para a Cristificação pelo Amor [10].
Esta interpretação da simbólica da charola templária condiz exactamente aliás, com as palavras de S. Bernardo sobre os Templários no texto doutrinário de base da Ordem, o De laude novae militiae, onde se pode ler efectivamente que uma nova cavalaria apareceu na Terra da Incarnação. É nova, direi, e ainda não experimentada no mundo, onde faz um duplo combate, ora contra os adversários da carne e do sangue, ora contra o espírito do mal nos céus. E que os seus cavaleiros resistam pela força dos seus corpos contra inimigos corporais, não o creio maravilhoso porque não o julgo raro. Mas que façam a guerra pelas forças do espírito contra os vícios e os demónios, acho-o não apenas maravilhoso, mas digno de todos os elogios ao religioso... É verdadeiramente sem medo e sem mácula o cavaleiro que protege a sua alma pela armadura da Fé, tal como cobre o seu corpo com uma cota de malha. Seguramente aquele que deseja morrer não teme a morte. E como temeria morrer ou viver, esse para quem a vida é o Cristo, e a morte a recompensa [11]?
Decerto que há uma relação a estabelecer entre o templarismo e a Demanda do Graal, o principal ciclo literário da Idade Média, fornecendo padrões e modelos ideais à sociedade do tempo. Assinala Julius Evola que todos os textos do ciclo surgem entre o último quartel do século XII e o primeiro do século XIII, correspondendo este período ao apogeu da tradição medieval, ao período de ouro do gibelismo, à alta cavalaria, às Cruzadas e aos Templários... Logo a seguir, aduz, extingue-se ou atenua-se a criação romanesca e cavalheiresca relacionada com o Graal, o que faz pensar numa corrente subterrânea que aflora num momento dado mas que em seguida se retira, tornando-se de novo invisível, como se deparasse com um obstáculo ou um perigo preciso [12]. Por outras palavras, o poder crescente da Igreja teria feito refluir a emergência do que Evola e os esoteristas chamam a tradição primordial.
Já vimos que os guardiões do Graal, nalguns dos ciclos romanescos, são identificados com os templários. Mas o mais surpreendente é a analogia do perfil psicológico e espiritual dos cavaleiros da demanda com o perfil dos templários, se nos lembrarmos do retrato ideal que destes últimos fez S. Bernardo, conforme o passo atrás descrito.
Na sua essência, escreve Almir de Campos Brunetti no seu excelente livro A Lenda do Graal no contexto heterodoxo do pensamento português, o Graal representa a possibilidade de realização daquilo que o homem tem de melhor na sua natureza e que o leva aos planos espirituais de união mística com a Divindade. É uma visão de alguma coisa que está colocada além de, por detrás e dentro do fluxo das coisas imediatas; é algo de real e ao mesmo tempo representa uma possibilidade remota de realização; é algo que empresta significado a tudo o que passa e não obstante furta-se a uma apreensão; é algo cuja posse representa o bem último, mas que, ao mesmo tempo, se conserva fora do nosso alcance; é aquilo que cristaliza o mais perfeito ideal que o homem persegue numa busca sem fim [13].
Abade de Claraval |
Da pureza, do despojamento, do idealismo templário falou eloquentemente o Abade de Claraval quando, noutro trecho, disse, ainda: vão e vêm a um sinal do seu comandante; usam os trajes que lhes dão, não procurando nem outros trajes nem alimentação. Desconfiam de todo o excesso, desejando apenas o necessário. Vivem todos juntos, sem mulheres ou crianças... Na sua companhia não se encontram preguiçosos ou inúteis: quando não estão de serviço (o que só acontece raramente) ou quando não comem o seu pão dando graças a Deus, ocupam-se a remendar os seus trajes e os seus arreios rasgados ou despedaçados [14].
A sua vida quotidiana era ascética e dura: vinte e seis orações às matinas, duas horas antes da aurora; missa todos os dias pela madrugada e ainda pelo menos catorze orações de manhã; à tarde as vésperas e ainda dezoito orações; o jantar era acompanhado de catorze orações, após as quais se impunha a regra do silêncio até final. Numerosos jejuns, proibição de carne três vezes por semana, etc. – tudo isto temperava o espírito do templário numa escola de elevação espiritual, segundo a regra bernardina.
O Graal, o Sangreal (Santo Graal ou Sangue Real), que ora é o cálice com o sangue de Cristo, trazido para a Europa por José de Arimateia, como nos romances de Robert de Boron e de Chrétien de Troyes, ora é uma pedra luminosa como nos de Wolfram von Eschenbach, ora é por vezes um objecto imaterial, é defendido pelos cavaleiros e, quando é perdido, é procurado incessantemente, sendo exigida a absoluta pureza interior dos heróis da demanda ou da questa, o que parece só ter acontecido com Galaaz que, já o vimos, René Guénon diz ser um herói concebido à imagem do próprio S. Bernardo.
Tem virtudes excepcionais: é luminoso e ilumina, relacionando-se em Robert de Boron com o Espírito Santo; na Morte Darthur, a manifestação do Graal é acompanhada de um raio solar sete vezes mais deslumbrante do que a luz do dia e nesse momento todos foram iluminados pela graça do Espírito Santo [15]. Por outro lado, alimenta, dá a vida, chegando, como Jesus, a multiplicar os pães (Grand St. Graal); cura as feridas mortais e prolonga sobrenaturalmente a vida; confere força e dá a vitória nas batalhas; é capaz de fulminar os impuros.
Para Evola, a questa está ligada basicamente à procura de um poder primordial [16], o que a seu ver está ligado a um «mysterium tremendum que pouco tem a ver com o “pathos” cristão» [17].
Sem embargo, é difícil desligá-lo da vivência cristã e cruzada da época, muito embora saibamos que há uma vida dos arquétipos e dos mitos, que não é propriamente anterior, porque transcende as próprias religiões reveladas. Podemos dizer, sim, que promana da mesma fonte, que é o Espírito, no seu mistério.
Digamos que defender a Palestina, lutar pela verdade e pela justiça de Deus, contra as forças do mal, é uma acção terrena que tem de nascer de uma purificação interior, de uma ascese, que não é só uma luta, porque é uma demanda. O Graal, o vaso ou a pedra de Cristo, é o objecto da procura e a sua deambulação labiríntica pelo mundo é o sinal de que todo o mundo é a Terra Santa, muito embora sem a sua presença vivificadora seja a terre gaste, onde estiola a árvore seca, que só florescerá quando o Rei do Graal, Rei do Mundo, tiver recuperado a sua majestade e o seu poder pela posse do talismã maravilhoso.
The Damsel of the Sanct Grael, por Dante Gabriel Rossetti (1828-1882). |
Evola acentua muito o gibelismo essencial da Demanda, remetendo para a tradição antiquíssima do Imperador-Pontífice desaparecido ou do Dux, mensageiro de Deus, que um dia reconstruirá o Império estilhaçado e em ruínas, do que são símbolos a árvore e a Águia de Dante. Neste sentido, a Demanda seria anti-Papa ou anti-Roma, relacionando-se com os Fiéis do Amor, tal como os Templários teriam uma iniciação secreta e esotérica, o que aliás constituía uma das acusações de Filipe o Belo e (embora relutantemente) do Papa Clemente V, sediado em Avignon e de algum modo na dependência do ambicioso rei francês, no processo que levou à extinção da Ordem em 1314. Abundando neste sentido diz Sampaio Bruno num dos seus ensaios –, incluído no livro póstumo e incompleto intitulado Os Cavaleiros do Amor –, Amor seria a antítese de Roma, duas palavras que têm em português as mesmas letras, mas significativamente se podem escrever ao contrário, originando conceitos segundo o autor antagónicos. Os Fiéis do Amor, os Cavaleiros do Amor, seriam os trovadores que cifravam o seu anti-romanismo quando pareciam falar do amor cortês [18].
Julius Evola recorda a tradição dinamarquesa do Ciclo de Orgier. Este, diz, é um fac-símile do imperador gibelino jamais morto: é um herói nacional sequestrado no mais profundo de um monte ou na parte subterrânea do castelo de Kronberg, mas que reaparecerá quando a sua terra necessite de um salvador [19].
Orgier, paladino de Carlos Magno, salvador da cristandade e conquistador universal, consegue chegar ao reino do Preste João, identificado como a ilha arturiana de Avalon. No Parsifal, de Wolfram von Eschenbach, o Preste João é conceptuado como um descendente da dinastia do Graal [20]. Ele, soberano misterioso do enigmático Oriente, é o rei dos reis, designando-se pelo seu nome, não uma pessoa, mas uma função.
É fora de dúvida que, se entre as várias Ordens de cavalaria, a dos Templários, escreve Julius Evola, foi a que mais ultrapassou a dupla limitação constituída, por um lado, pelo simples ideal guerreiro da cavalaria laica, e por outro lado, pelo ideal simplesmente ascético do cristianismo e das suas ordens monásticas: aproximando-se assim sensivelmente do tipo da «cavalaria espiritual do Graal». Além disso a sua doutrina interna tinha um carácter iniciático [21] (...) Pois bem, a cavalaria templária foi tipicamente uma Ordem na qual o combate e, sobretudo, a «guerra santa» equivaliam a uma via de ascese e de libertação. Assumia exteriormente o cristianismo, mas no seu mais alto mistério, embora reservado, como é verosímil, a um círculo interno, superava-o, rejeitando a cristolatria e as principais devoções de ordem devocional; tendendo pouco a pouco a ligar os princípios da suprema autoridade espiritual a um centro diferente de Roma, centro a que convinha a designação, menos de Igreja do que de Templo, mais augusta e mais universal [22].
Algumas interpretações do livro de Evola parecem-nos excessivas, como a do anti-romanismo da tradição templária secreta, que pessoalmente antes ligaríamos com a ideia de uma Igreja mais depurada e mística, interior à Igreja visível, mas complementar. Seria como já vimos a Igreja de João, a Igreja do Espírito Santo, a Igreja do Preste João, que os Portugueses procuraram incansavelmente na sua demanda marítima, já que o próprio nome do misterioso Preste ou Presbítero João, Imperador-Pontífice, parece remeter-nos directamente para a herança espiritual de S. João, o autor do Evangelho do Espírito Santo e do Apocalipse.
Observemos como toda esta gama de conotações está presente no próprio tecido cultural português, influindo nos seus valores éticos e heróicos, na orientação da sua vida, na própria filosofia política da nação. Se, como diz Evola, os textos principais do ciclo da Demanda do Graal, surgem entre o último quartel do século XII e o primeiro do século XIII, o certo é que as suas versões peninsulares (tendo Rodrigues Lapa determinado a prioridade do texto português), são de meados deste último século [23].
Para o graalista Bohigas y Balaguer, o conhecimento do Graal só teria entrado na Península nos princípios do século XIV, pois as duas citações precisas de textos do Graal, que presumem conhecimento directo do romance, são de dois trovadores da corte de D. Dinis, Estevam de Guarda e Fernand’Esguio [24], mas o nosso filólogo demonstrou brilhantemente no seu trabalho, apoiando-se em dados linguísticos exaustivamente analisados, que o texto português prioritário é de meados ou do 3.º quartel do século XIII [25], o que aliás não contraria a validade da tese dionisíaca, pois o reinado do Lavrador iniciou-se em 1278.
A partir daqui, a simbólica do Graal torna-se determinante em Portugal, não só indo ao encontro naturalmente do nosso templarismo joanino, mas atingindo esferas mais amplas, como, já o vimos, a corte de D. Dinis e mais tarde o círculo de D. João I, com Fernão Lopes e os príncipes de Avis.
Não será preciso elaborar muito para referir o papel que a demanda do Preste João (relacionada com a do Graal) tem na gesta portuguesa dos Descobrimentos. O desiderato de encontrar o reino do Preste percorre toda a nossa epopeia marítima, desde o Infante até D. João II e D. Manuel I, sendo problema controverso o saber se se procurava a aliança com um Imperador poderoso, oriental ou africano ou o contacto com um Imperador-Pontífice, soberano, no temporal e no espiritual, de um almejado Reino de Graal ou do Espírito Santo, onde houvesse sido privilegiada a herança paraclética de João.
Enfim, note-se que ideia do Dux, do Rei ou do Imperador encoberto é um arquétipo do que será muito mais tarde o Sebastianismo português, mito que não apenas se refere, como o julgou a interpretação mais artificial, ao sonho do regresso do D. Sebastião histórico, em si próprio ou como em avatar, num sentido nacionalista de restauração da pátria ocupada e diminuída, mas também à regeneração de um ideal de Monarquia ou de Império, qual o teorizado por Dante, iniciado por D. Dinis, construído pedra a pedra pela casa de Avis, desde D. João I e os seus sucessores até D. Manuel, ideal que o Desejado estaria vocacionado para fazer ressurgir, depois do interregno renascentista, jesuítico, clerical, inquisitorial, castelhanista de D. João III e da regente D. Catarina de Áustria, antes da maioridade do príncipe.
Outros laços invisíveis a olho nu, mas perfeitamente detectáveis, unem Templarismo, Joanismo e Graalismo. Almir Brunetti recorda que o castelo do Graal, ora é baseado no Templo de Salomão por influência dos Templários (na tese de Urban T. Holmes e de Sister M. Amélia Klenke), ora é identificado com o mosteiro de Claraval, o que não é de estranhar, aduz, depois de todos os estudos que ligam o Graal ao pensamento místico de S. Bernardo [26], o autor da regra templária.
Perceval |
Neste ponto será interessante observar a teia de conotações de que parece ter sido centro a cidade de Troyes. Foi sob o impulso e a égide do Conde de Troyes, que se fundou o Mosteiro de Claraval. Foi no Concílio de Troyes, em 1128, que a Ordem dos Templários foi definitivamente aprovada, sendo aí oficializada a sua regra, escrita por S. Bernardo, de que demos já alguns excertos.
Foi em Troyes que Chrétien de Troyes (o Cristão de Troyes, o Cristão do Três ou da Trindade), escreveu entre 1150 e 1190, o Perceval ou Conte del Graal, o primeiro dos romances do ciclo, que contam as aventuras dos cavaleiros do rei Artur que chegam ao Castelo do Graal por acaso ou depois de intensa procura [27].
E é em Troyes que se encontra a Catedral por excelência canonicamente joanina. O Livro joanino, escreve efectivamente Jean Hani, parece dominar a inspiração deste edifício, porque outras colunas, à excepção das do coro, têm 6 pés e 6 polegadas e a igreja possuía 66 colunas para sustentar abóbadas. Isto entra em relação com outro número do Apocalipse: 666, que é o da Fera (Apoc. 13, 11 e 18) que as colunas (simbolizando os Apóstolos) devem esmagar. Depara-se-nos um terceiro número joanino: 144 000, o número dos eleitos. Há, com efeito, no Trifório, 144 janelas, de onde irradiam, da parte circundante à rosácea ocidental, todos os que ostentam o selo do Cordeiro [28].
Além do número 666, o outro número que estrutura a simbólica da Catedral de Troyes, é o 888, número de Cristo segundo a gematria [29]. Efectivamente, o Cordeiro degolado e o Cristo triunfante estão figurados nos fechos da abóbada do coro a essa altura de 88,8 e a algumas toesas do vitral em que São João escreveu a sua profecia. O número de 888 encontra-se igualmente em volta do altar (símbolo de Jesus): o santuário está rodeado por 8 colunas e as suas aberturas dão para 7 absides pentagonais que representam a irradiação das 7 igrejas do Apocalipse.
Em suma, o conceito joanino, ou melhor, a expressão joanina da profecia de Jesus Cristo que fundamentou a teologia do Deus trinitarista e que anunciou a vinda do Espírito Santo ou do Divino Paráclito é por assim dizer consubstancial ao ideário profundo da Ordem do Templo, ao ciclo literário da Demanda do Graal e à arquitectura sagrada de Tomar e de Troyes, centros espirituais onde se cruzam Claraval, o Templarismo e a Demanda.
O Portugal templário é pois um Portugal cavaleiresco, joanino, trinitarista e graalista onde, por intermédio dos cavaleiros do Templo, dos cistercienses e dos franciscanos, facilmente se vai implantar a teoria das três Idades, de Joaquim de Flora, veiculada pelo Culto e pelas festas do Espírito Santo, fundadas pelos reis D. Dinis e Santa Isabel de Aragão.
Brasão de Armas da Galiza |
Com o rei que fez tudo quanto quis, todos os ingredientes dessa nobilíssima herança templária, revificados pela influência joanina e pelas doutrinas complementares de Arnaldo de Vilanova e de Raimundo Lúlio, atingem o ponto de sublimação que será o projecto áureo do Império do Espírito Santo. Portugal reassumirá a partir de então (se nos lembrarmos do seu primeiro ciclo, o ciclo atlante), a direcção de um movimento universal de fundo para a efectivação da profecia antiga do Apocalipse de S. João: a vinda da nova Jerusalém, da Cidade Santa onde já não haverá templo algum, porque Deus Todo-Poderoso é o seu templo...
(In António Quadros, Portugal,
Razão e Mistério, I, Guimarães Editores, 1988, pp. 186-196).
[1] José António dos Santos, Monumento das Ordens Militares do Templo e
de Christo em Tomar, Lisboa, 1982.
[2] Crónica de D. João I, II Parte, Cap, 76; Crónica do Condestabre, IV.
[3] Julius Evola, El Mistério del Graal, trad. Espanhola,
Ed. Plaza e Janes, S. A., Barcelona, 1975, p. 183.
[4] Ibid., p. 53.
[5] Jean Hani, O Simbolismo do Templo Cristão, trad. portuguesa, Edições 70,
Lisboa, 1981, p. 33.
[6] Ibid., p. 32.
[7] Juan Eduardo Cirlot, Dicionário de Símbolos, Ed. Labor. S. A., Barcelona, 1969, p. 161.
[8]
Julius Evola, Ibid., p. 52.
[9] J. H. Probst-Biraben, Les
Mystères des Templiers, obr. cit., Cap. Cryptographie
et Croix des Huit Beatitudes, pp. 69 a 80.
[10] Ibid., p. 78.
[11] Cit, in Les Templiers, de
Albert Olivier, Ed. de
Seuil, Paris, 1958, pp. 16 a 18.
[12] Julius Evola, obr. cit., p. 85.
[13] Almir de Campos Brunetti, A Lenda do Graal no contexto heterodoxo do
pensamento português, Ed. Soc. Expansão Cultural, Lisboa, 1974. p. 23.
[14] Les Templiers, obr. cit., p. 21.
[15] Cit. por Evola, obr. cit., p.
96.
[16] Ibid., p. 103.
[17] Ibid., p. 94.
[18] Os Cavaleiros do Amor, Guimarães Ed., Lisboa.
[19] Julius Evola, obr. cit., p. 73.
[20] Ibid., p. 75.
[21] Ibid., p. 182.
[22] Ibid., p. 184.
[23] Rodrigues Lapa, «A Demanda do Santo Graal» – a Prioridade do
Texto Português, Lisboa, 1930, pp. 15 e 16.
[24] Ibid., p. 15.
[25] Ibid., p. 16.
[26] Almir de Campos Brunetti, obr.
cit., p. 68.
[27] Almir Brunetti, ibid., p. 27.
[28] Jean Hani, O Simbolismo do Templo Cristão, obr. cit., p. 43.
[29] «A gematria é a ciência tradicional que se propõe interpretar
simbolicamente as palavras pelo valor numérico correspondente ao das suas
letras», ibid., 42 e 43. O número 666, por ex., o da Besta, corresponde ao
nome de César Néron.
Nenhum comentário:
Postar um comentário