quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Templarismo e Joanismo

Escrito por António Quadros




«O Álvaro Ribeiro, acompanhando as palavras com aquele inteligente sorriso, sinceramente bondoso e malicioso, que todos lhe conhecemos, dizia-me muitas vezes nos últimos tempos: - António Telmo, em Portugal só há a Igreja Católica; ou somos contra ou somos a favor. Admiro o Papa que, na profecia de S. Malaquias, recebe a legenda “De Labore Solis”, o papa viajante e vigilante, que perturba os que estão à esquerda e à direita, porque àqueles diz infalivelmente “tradição” e a estes infalivelmente diz “revolução”.»

António Telmo para António Quadros (Carta XVIII. Estremoz, 7-4-87, in António Quadros e António Telmo: Epistolário e Estudos complementares).


«Receei na verdade que você, ou não tivesse recebido o livro, ou nada me quisesse dizer a seu respeito por o achar demasiado cristão, católico.

Aliás, você foi direito a um dos tópicos mais controversos, uma pedra de toque, a questão dos Jesuítas. Na realidade, julgo ser um livre-pensador, só que não quero perder a ligação directa, vivencial, a uma Igreja pontifícia. A ponte com o sobrenatural pode decerto dispensar a Igreja, como sucede com os místicos e os gnósticos, mas, não me sentindo ou não sendo agraciado com tais faculdades, ao menos situo-me na ponte entre o hoje existencial e o eterno divino, representado na herança de Cristo Jesus a Pedro e aos Pontífices. Contudo, é ainda mais funda (embora dificilmente expressável) a minha ligação também pontifícia, à Igreja de João e do Espírito Santo, o que me defende de cair no clericalismo e no dogmatismo. Há aqui um acto de humildade, como penso que terá sido o de Leonardo, na sua conversão pública. A metanóia era muito, muito anterior. Mas, com a sua conversão pública, não quis ele diminuir o ego e juntar-se ao povo que não tem acesso a outras pontes, senão a ponte por Pedro?

No fundo, este meu segundo volume foi (ao menos para mim) um livro luminoso.

Que vai ser o terceiro (que ainda não comecei a escrever), se é no terceiro que tenho de defrontar os problemas da Contra-Reforma e depois do Iluminismo? Julgo que vai ser um livro labiríntico, de luz-sombra ou de sombra-luz, mas mais sombrio do que aquele.

Pensei muito em si, quando, espectacularmente, marquei as datas de 1321-1521 para o projecto áureo. Claro, isto foi um pouco de provocação, pois as vidas não se podem datar com tanta precisão. O fim do ciclo é a morte de D. Manuel (como eu marquei) ou a época infamante em que D. Manuel, por ambição, cede aos Reis Católicos, obriga à conversão artificial dos Judeus, à figura do Cristão Novo, à expulsão dos Judeus Velhos, como no seu conceito, caro António?

Pois apesar de tudo forço na figura de D. Manuel, não só porque acho que ele quis sobretudo enganar os espanhóis, para obter o trono das Espanhas, mas também porque ele era da Ordem de Cristo e lhe devemos a Arte Manuelina e Gil Vicente. Mas fi-lo em dúvida íntima!

Que significa, aqui, passar da Ordem de Cristo à Companhia de Jesus? Eis um tema em que tenho de lutar corpo a corpo. Eu não faço propriamente uma distinção entre os Jesuítas espanhóis e os portugueses. Os portugueses da primeira vaga, da geração de Loyola, foram de facto iguais aos espanhóis.

Põe-se-me no entanto a dúvida quanto aos das vagas seguintes. É que, com o período filipino, eles descobriram-se portugueses – e daí Vieira, a quem F. Pessoa chamou Mestre da Ordem dos Templários! Estiveram na luta pela restauração, colaboraram na expansão, lutaram contra holandeses e ingleses, e, na luta contra Pombal, de que lado deveremos estar? Aí eles defenderam o tomismo e o aristotelismo contra a filosofia das luzes e a reforma de Verney.

Como vê, são temas para os quais estou desperto e para os quais não tenho de momento solução pronta. Vai ser um dos pontos mais difíceis do vol. III. Uma coisa é certa: serei tão objectivo e livre-pensador quanto possível. D. João III e a Inquisição são imperdoáveis. Os Jesuítas... a questão é ambígua e controversa. Preciso de estudar melhor o problema, pelo que a sua ajuda seria preciosa. Como vê você os problemas que levantei? Mas a minha conclusão final será sempre criacionista. A regeneração passa, depois da fase dos mitos, pela fase do criacionismo filosófico, por uma filosofia teleológica, segundo o magistério dos nossos mestres.»

António Quadros para António Telmo (Carta XXI, Cascais, 8.7.87, in António Quadros e António Telmo: Epistolário e Estudos complementares).



Templarismo e Joanismo


Muito embora sujeitos à regra religiosa de Cister e à sua própria, redigida por S. Bernardo, obedientes pois a Roma no espiritual e cristãos sobre os quais nunca impendeu ou se provou heresia, pois a Ordem foi dissolvida pelo Papa Clemente V a instâncias de Filipe o Belo, sem que os seus membros tenham sido excomungados, os Templários formaram uma sociedade iniciática.

O mesmo é dizer que tiveram uma espiritualidade própria e procuraram realizar um projecto, para além do lado exterior e visível da sua acção. Entre outras formalidades da sua iniciação na Ordem, os Cavaleiros deviam responder Sim, se Deus quiser, às perguntas sucessivamente feitas pelo Mestre: se estavam dispostos a todas a tribulações, a partir a qualquer momento para a Palestina ou para a Síria, sem nunca discutir as ordens superiores, se acederiam a ser privados de comida, de sono, do luxo do seu vestuário e das suas armas, do seu tempo e da sua pessoa, se renunciariam ao pecado para servir a Deus, se fariam profissão de pobreza e obediência para merecer a salvação. O iniciando deveria ainda, sobre o Evangelho aberto no cânone da Missa, jurar que não era casado, não esteve noivo, não tinha dívidas, não pertencia a outra Ordem, gozava de boa saúde, não era padre, era de boa linhagem e não era excomungado.

Se não houvesse objecções dos irmãos presentes, o suplicante deveria prometer obediência total ao Mestre e Superiores, pobreza e respeito estrito pelas regras, fidelidade à religião, ajuda total e leal à conquista da Terra Santa ou à protecção e defesa das pessoas e bens da cristandade.

Em seguida, depois do Canto do Salmo Ecce quam bonum, era recitada a Oração do Espírito Santo e parece que era dado o beijo da paz na boca do novo irmão, com o sentido de comunicação do sopro divino, do sopro do Divino Paráclito. Antes de terminar a recepção, era-lhe oferecida uma corda sem nós, que a partir daí devia trazer sempre em volta da cintura, no duplo sentido de ligação à Ordem e de isolamento das forças maléficas.

No final da cerimónia, eram indicados ao neófito as punições que receberia no caso de transgressão, que podiam ir desde a fustigação até à expulsão da Ordem [1].

Um das faltas mais graves era a da cobardia perante o inimigo. Para melhor compreender o espírito templário, vale a pena transcrever esta página em que Alexandre Herculano, a propósito da batalha em volta de Alcácer do Sal, no tempo de D. Afonso II, descreve não só a atitude guerreira dos Templários, mas ainda os castigos que receberiam se acaso fraquejassem na luta: Os esquadrões do Templo ao formarem-se para a batalha guardavam profundo silêncio, que só era cortado pelo ciciar do balsão bicolor (negro e branco) que os guiava despregado ao vento e dos longos e alvos mantos dos cavaleiros que se agitavam. À voz do mestre uma trombeta dava o sinal e os freires, erguendo os olhos ao céu, entoavam o Hymno de David: Não a nós, Senhor, não a nós! Mas dá glória ao teu nome! – Então,  abaixando as lanças e esporeando os ginetes, arrojavam-se ao inimigo, como a tempestade, envoltos em turbilhões de pó. Primeiros no ferir, eram os últimos a retirar-se quando assim lh’o ordenavam. Desprezando os combates singulares, preferiam acommeter as colunnas cerradas, e para elles não havia recuar: ou as dispersavam ou morriam. A morte era, de feito, mais bella para o templário que vida comprada com a cobardia. Bastava que não atingisse ao typo de valor humano, como os velhos guerreiros da ordem o concebiam, para ser punido por fraco. A cruz vermelha, distinctivo da corporação, sobre o manto branco sobre que estava bordada tiravam-se-lhes ignominiosamente, e ele ficava separado dos seus irmãos como um empestado. Obrigavam-no a comer sobre o chão nu: não lhe era lícito o desforço das injúrias e nem sequer castigar um cão que o maltratasse. Só depois de um anno, se o capítulo julgava a culpa expiada, o desgraçado cingia de novo o cíngulo militar para ir, talvez na primeira batalha, afogar no próprio sangue a memória de um anno de affrontas e de suplício [2].




Devido a este idealismo, a esta convicção, a este rigor e a esta eficácia, a Ordem dos Templários, tornou-se uma das instituições mais fortes da Europa, onde chegou a ter cerca de 10 000 comandarias, castelos fortificados e domicílios. Foram os depositários dos reis e senhores, inventaram as cartas de crédito e um sistema bancário que enriqueceu a Ordem, muito embora os seus membros tivessem o dever da pobreza voluntária. Dentro da Ordem, os Cavaleiros eram uma minoria, pois cerca de nove décimos eram escudeiros, serventes ou capelães.

Participaram do espírito e do projecto templários D. Afonso Henriques, Cavaleiro do Templo, bem como os seus sucessores, no reinado dos quais, até D. Afonso III, se fez a conquista e a consolidação do território, expulsando os islamitas e defendendo-o das suas investidas, bem como das ambições territoriais vizinhas, sempre com a ajuda fiel dos templários, a quem foram concedidos constantemente novos privilégios e que a partir de 1288, sob D. Dinis, com o Mestre D. João Fernandes, se separaram de Leão e de Castela, passando a ter total autonomia [3].

Ora tal espírito e projecto não se resumiram, nem só à defesa dos lugares santos da Palestina, nem apenas, mais tarde, à conquista dos territórios ibéricos sob domínio muçulmano. A Cavalaria do Templo, mesmo depois de abandonado aquele e de atingido este objectivo (pelo menos em Portugal), preserverou num combate que agora já não tinha adversários tão facilmente visíveis e nomeáveis. Neste combate por assim dizer invisível, travado na frente de toda a Europa e para além dela, tomou parte, como um dos principais protagonistas, o templarismo português, ou seja, o núcleo cavalheiresco mais poderoso e idealista que trabalhava no interior da nossa sociedade, junto às elites e à coroa, em colaboração decerto com a Igreja, mas com uma missão específica.

O essencial da missão ecuménica templária, transcendendo os objectivos imediatos e até os interesses nacionalistas das suas sedes nos cristãos, foi a nosso ver a preparação no temporal para a Jerusalém Celeste, cuja descida sobre a terra foi profetizada por S. João no Apocalipse e cuja teologia escatológica foi teorizada por Santo Agostinho (inspirador da sua primeira regra, em Jerusalém) na Cidade de Deus.

O selo do Grão-Mestre da Ordem do Templo representava o Templo de Salomão, o que significava muito provavelmente uma alusão ao Templo destruído pelos romanos, mas antes ao Templo ideal, o da Luz e o do Espírito, destruído pelos filhos das Trevas e da Matéria [4], que os templários estavam missionados para reconstruir. Ordem da Cavalaria do Templo de Salomão, também chamada Milícia de Cristo. O Templo de Salomão reconstruído simbolizava a futura Jerusalém Celeste, cujo advento se tornara possível depois da Encarnação e da Paixão de Cristo, quando os povos se lhe convertessem ou, como tudo parece indicar, quando as grandes religiões do mundo, nomeadamente as monoteístas, a cristã, a judaica e a islâmica, estabelecessem entre si a Novíssima Aliança, unindo no futuro escatológico profetizado por S. João, os seus universalismos separados, as suas teologias, as suas escatologias. Seria o tempo do Espírito Santo, anunciado no Evangelho de S. João.


João de Patmos, por Alonso Cano (1640).

Ilha de Patmos


Localização da ilha de Patmos.

Já vimos que os Templários, no momento da sua iniciação, rezavam precisamente a Oração do Espírito Santo. Além disso, era sobre este Evangelho, aberto sobre a primeira página, onde diz Ao princípio era o Verbo e o Verbo era com Deus e o Verbo era Deus, que faziam os seus juramentos [5].

Acrescentemos que o bastão de comando do Grão-Mestre tinha na extremidade um globo soprepujado por uma cruz templária dentro de um círculo [6], sinal da sua missão ecuménica e mundial. Se o conotarmos com um grafitti do Castelo de Chinon, estudados por Probst-Biraben, representando um globo terrestre cingido de uma banda e que devia estar sobrepujado por uma cruz, denotativa do Poder imperial [7], (que a outro nível o hermeneuta relaciona com o signo oriental Yin-Yang, pela divisão em dois do mundo, formando um equilíbrio de contrários) não haverá aqui uma prefiguração da esfera armilar manuelina, ligada à Ordem de Cristo, sucessora do Templo?

O outro sinete templário ostenta como se sabe dois cavaleiros montados num único cavalo. Esta imagem seria para a maioria dos comentadores uma alegoria à pobreza voluntária desta Ordem de Cavalaria, o que não condiz muito, no entanto, com a realidade. Os cavaleiros, todos de origem aristocrática, tinham abandonado os seus bens mas a Ordem foi sempre protegida pela Igreja, pelos cruzados, pelo poder temporal na Palestina e pelo poder real, dados os seus inestimáveis serviços. Tinham em geral três cavalos e um escudeiro ao seu serviço, por vezes mais em casos excepcionais. O Grão-Mestre tinha quatro cavalos e quando saía ia sempre acompanhado de dois cavaleiros, um de cada lado, tendo ainda no séquito pessoal um capelão, um secretário-intérprete (em geral islamita, quando na Palestina), um cozinheiro, um ferreiro e vários serventes para cuidar dos seus cavalos, das suas instalações ou da sua pessoa [8].

A significação dos dois cavaleiros deve ser, segundo se nos afigura o mais plausível de acordo com a linguagem simbólica em uso na época, referida à dupla fidelidade templária, isto é, à Jerusalém Celeste. A primeira é o centro espiritual visível da Cidade dos Homens, é o axis mundi, centro também da Igreja Cristã e Católica, substituindo na idealidade das Cruzadas, a própria Roma, onde o Sumo Pontífice estava sediado provisoriamente, até que a Terra Santa fosse conquistada, pacificada, tornada segura. Um dia o Papa tomaria o seu lugar de direito na Jerusalém palestina, na Jerusalém Terrestre, eixo eclesiástico do mundo. Quanto à segunda, é a Cidade de Deus, para a qual está ordenada a Cidade dos Homens, no pensamento de Santo Agostinho, porque a vinha de Cristo na sua carne com todas as maravilhas que surgiram na sua pessoa, ou foram realizadas em seu nome, o arrependimento dos homens e a conversão das suas vontades a Deus, a remissão dos pecados, a graça que justifica, a fé dos santos e por toda a terra essa multidão de homens que acreditam na verdadeira divindade (...) conduzirão ao reino eterno de Deus no gozo imortal da sua presença visível, conforme foi predito e prometido nos escritos sagrados [9].

Estes escritos sagrados, estas Sagradas Escrituras em que se abona o Bispo de Hipona são o Evangelho e o Apocalipse de S. João.

No primeiro se pode ler, efectivamente, na página em que Jesus faz a profecia sobre a vinda do Espírito Santo Paráclito: (...) Convém-vos que eu vá; porque se Eu não for, o Consolador não virá e se Eu for, enviar-vo-lo-ei. E, quando ele vier, convencerá o mundo do pecado, da justiça e do juízo. (...) Quando vier o Espírito da Verdade, Ele guiar-vos-á para a verdade total, porque não falará de Si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e anunciar-vos-á o que há-de vir [10].

Este anúncio é conotável com o recebido pelo próprio S. João, muito mais tarde, entre 93 e 96 d. C. na ilha de Patmos, em visão que descreve no Apocalipse: (...) E vi a cidade santa, a nova Jerusalém que descia do Céu, de junto de Deus, bela como uma esposa que se ataviou para o seu esposo. E ouvi outra grande voz, que saía do trono e que dizia: «Eis aqui o tabernáculo de Deus entre os homens! Habitará com eles, serão o seu povo e o próprio Deus estará com eles. Ele enxugará as lágrimas dos seus olhos; não haverá mais morte, nem pranto, nem gritos, nem dor» [11].

Pentecostes, por Giotto.

E ainda: «Então um dos sete anjos, que tinham as sete taças cheias dos sete flagelos, veio ter comigo e disse-me: Vem e mostrar-te-ei a noiva, a esposa do Cordeiro.» Transportou-me em espírito ao cimo de uma alta montanha e mostrou-me a Cidade Santa, Jerusalém, que descia do Céu, de junto de Deus, resplandecendo da glória de Deus [12] (...).

A concluir o passo, estas palavras justificativas de toda uma filosofia providencialista da história: Não vi templo algum na cidade, porque o Senhor, Deus Todo-Poderoso, é o seu Templo, assim como o Cordeiro. A cidade não necessita de Sol nem de Luz para a iluminar, porque é iluminada pela glória de Deus e a sua Luz é o Cordeiro. As nações caminharão à sua luz e os reis da terra virão trazer-lhe os seus tesouros. As suas portas nunca se fecharão porque não haverá mais noite na cidade [13]...

O joanismo, por via agustiniana e bernardina, parece dominar efectivamente o pensamento templário.

Na última página da Cidade de Deus, obra que ficou inconclusa e que coube ao bracarense Paulo Orósio complementar, como vimos, propunha-se Santo Agostinho expor o que lhe parecia dever ser dito sobre as duas cidades que se interpenetram e se inter-influenciam respectivamente no século actual, falar da sua origem, da sua história e dos fins que a esperam [14].

A ideia das duas cidades, a de Caim e a de Abel, a dos Homens e a de Deus, ambas no entanto se interpenetrando, coexistentes como o princípio do fim e o fim do princípio em simultânea vida axiológica e escatológica, justificará a esotérica posição avançada por alguns comentadores, de que teria havido dois Pontificados, o descendente de Pedro, construído sobre a pedra angular do Cristo incarnado, e o ascendente de João, erguido sobre o Reino novo do Paráclito, do Consolador, do Espírito Santo? Ou seja, o da Igreja visível de Pedro e dos Papas, e o da Igreja invisível de João e de um Superior desconhecido que poderia ser o Preste João ou um Imperador-Pontífice?

Julgamo-la excessiva, exorbitante, pois tal implicaria dois poderes diferentes, uma dupla hierarquia religiosa, levando inevitavelmente ao conflito e à cisão dentro da Jerusalém Terrestre.

Mas já nos parece plausível, sim, atendendo aos próprios textos joaninos e aos seus comentários por Stº Agostinho e S. Bernardo, entre outros, que tenha havido e haja a missão de Pedro e dos Bispos num mundo ainda dominado pelo erro, pelo pecado e pelo demónio, na Cidade dos Homens ou dos filhos de Caim, com um sentido eclesiástico, cultural, catequístico, disciplinar, hierárquico e moral, como princípio da construção espiritual da Cidade de Deus, em ordem à escatologia da Salvação; e ao mesmo tempo a missão subtil de João e dos seus discípulos, preparando as nações para o tempo vindouro do Espírito Santo, quer pelo ascetismo contemplativo e pela meditação, quer pela luta terrena em prol dos valores cristãos e paracléticos, o que corresponderia às teleologias convergentes de Cister e do Templo.

Ambas as missões, complementarmente, conduziriam os povos para o período apocalíptico da descida da Jerusalém Celeste, simbolizada pelo Templo desaparecido de Salomão, mas que já não terá Templo algum na cidade, porque se terá dado a divinização do espaço terrestre.

Pedro e João; a missão da Igreja de Roma (depositária da Igreja de Jerusalém) e as missões de Cister e do Templo; a Jerusalém terrestre existencial e a Jerusalém Celeste profetizada pelo Apóstolo S. João, o amigo dilecto; a Cidade dos Homens e a Cidade de Deus interpenetradas; o serviço da Salvação pela Igreja dos Bispos e o serviço da Ordem de Cristo e do Espírito Santo pela cavalaria de Deus, em relação estreita entre a Segunda e a Terceira Pessoa, porque, no lugar do Cordeiro Degolado, sacrificando-se pelos homens, no seu lugar ficou o Paráclito, o Espírito Santo guiando os homens para a verdade total e final – eis as duas faces e as duas missões que subjazem ao simbolismo do selo templário.

Igreja do Santo Sepulcro (Cidade Antiga de Jerusalém).

Como escreve Probst-Biraben, o joanismo templário, caracteriza-se por um certo número de símbolos que se ligam a S. João e ao seu Evangelho [15]. Sem esta chave arriscar-nos-íamos a tomar à letra as designações de Jerusalém e da Terra Santa, quando significam a cidade e o país do Senhor, onde está o seu túmulo, centro visível de uma grande religião, e ao mesmo tempo a Jerusalém Celeste, a terra suprema e o centro espiritual invisível... Os templários, sendo simultaneamente protectores e servidores do Templo visível e do Santo Sepulcro, bem como da respectiva região geográfica, e do Templo místico ideal, um dos Centros do Mundo, são de Roma, pois, em tudo o que diz respeito à disciplina religiosa, à Fé, à Caridade, à protecção dos cristãos, e são da Jerusalém Celeste em tudo quanto não é das atribuições dos discípulos de Pedro. Mesmo quando a derrota dos Cruzados os forçou a deixarem materialmente a Terra Santa da Palestina, continuaram a ser a Milícia da Jerusalém Celeste, da Terra Santa invisível [16].

Quando se dá em 1291 a queda de São João de Acre, sendo os Cristãos expulsos da Palestina, nem por isso cessa o cruzadismo templário, não só se expandindo em outras frentes, como sobretudo desenvolvendo o seu fundamental joanismo e paralectismo.

O que se veio a chamar a Sinarquia templária e sobre que não muito se sabe, parece ter sido um plano de governo mundial, através de uma Federação de Estados autónomos, sob a direcção de dois chefes supremos, um espiritual, o Papa, o outro político, o Imperador [17]. Tendo ao seu serviço a Milícia do Templo e a extraordinária organização financeira que tinha criado, esta Sinarquia, plano grandioso de construção da Cidade de Deus sobre a Terra, far-se-ia sobre a reconciliação definitiva e a cooperação dos três grupos humanos monoteístas e herdeiros da tradição bíblica: cristãos, muçulmanos e judeus, o que parece comprovado pelas enigmáticas relações dos templários com os ismaelitas da Palestina, em especial com a organização mais ou menos secreta dos Assaci ou Assacine (do termo Assas, guardião), chefiados pelo Cheikh el Djebel, o Velho da Montanha, sobre o qual a Milícia cristã parece ter sido moldada na sua hierarquia e composição; ou ainda pela existência de Sinagogas judaicas em áreas de influência templária, sendo aí o seu culto protegido, até mesmo em períodos difíceis, como é o caso, entre muitos outros, da Sinagoga de Tomar, ainda hoje uma das poucas conservadas e intactas no nosso país. Estes factos constaram das acusações de Filipe o Belo e de Clemente V muito embora o seu significado houvesse sido na ocasião intencionalmente deturpado.

Os templários, compondo um exército internacional, destinado a obrigar os agressores a depor as armas, a evitar os conflitos, a manter a ordem entre as nações [18], teriam querido suprimir a hereditariedade das monarquias, como que antecipando as teorias de Dante no De Monarchia. Formar-se-ia um Império unificador sob um soberano dos outros monarcas, electivo e não hereditário, escolhido por uma assembleia de pares, semelhante aos capítulos templários.

Tal nas suas linhas gerais simplificando muito, o que terá sido a colaboração templária na preparação para a Jerusalém Celeste. Obreiros do futuro na fronteira entre a Cidade dos Homens e a Cidade de Deus, eles foram o fermento activo, lutando no tempo e com as armas do tempo, mas guiados por uma finalidade transcendente ao tempo.

A prova mais cabal de que este templarismo joanino e paracletiano ganhou raízes fundas e ímpeto criacionista em terra lusíada reside porventura, como veremos no II Vol., nas visões, mitos e concepções filosófico-teológicas da história que, sobretudo a partir de D. Dinis, foram vividas e assumidas entre nós com grande força de convicção: o Culto, o Império e as festas do Espírito Santo, instituídas por este monarca e pela Rainha Santa Isabel; o plano e depois o mito do Quinto Império, atribuído a Portugal, porventura também no reinado de D. Dinis; e enfim, a doutrina defendida por Fernão Lopes de que D. João I, monarca não-hereditário, abrira uma nova era universal, em interpretação ousadíssima da concepção agostiniana, a sétima idade do mundo.

(In António Quadros, Portugal, Razão e Mistério, I, Guimarães Editores, 1988, pp. 177-185).


Santa Isabel de Portugal Curando as Feridas de uma Enferma (Francisco José de Goya y Lucientes, 1799).



[1] J. H. Probst-Biraben, Les Mystères des Templiers, Ed. Cahiers Astrologiques, Nice, 1947, pp. 21 a 24. De todos os numerosos livros que consultámos sobre o templarismo, a maioria dos quais sem qualidade ou mesmo seriedade, este é sem dúvida o melhor e o mais fundamentado.

[2] Alexandre Herculano, História de Portugal, Tomo IV, Liv. Bertrand, 9.ª ed., Lisboa, sem data, pp. 87 e 88.

[3] Vieira Guimarães, A Ordem de Christo, obr. cit., p. 50.

[4] J. H. Probst-Biraben, Les Mystères des Templiers, obr. cit., p. 17.

[5] Ibid., p. 48.

[6] Ibid., p. 29.

[7] Ibid., p. 145.

[8] Ibid., p. 27.

[9] Santo Agostinho, La Cité de Dieu, trad. francesa, Libr. Garnier, Paris, 1946, Tomo II, Livro X, Cap. XXXII, p. 509.

[10] João, 16, 7, 8, 13, in Bíblia Sagrada, Ed. Verbo, Lisboa, 1982, p. 1226.

[11] Apocalipse, 21, 2 a 4, in Bíblia Sagrada, obr. cit, p. 1416.

[12]  Ibid., 21, 9 a 11, p. 1417.

[13] Ibid., 21, 22 a 27.

[14] Santo Agostinho, La Cité de Dieu, obr. cit., p. 511.

[15] J. H. Prosbt-Biraben, Les Mystères des Templiers, obr. cit., p. 52.

[16] Ibid., p. 53.

[17] Ibid., p. 107.

[18] Ibid., p. 111.



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