Escrito por Frederico Hayek
«Deve-se a
Aristóteles a elaboração conceptual e sistemática das categorias económicas. De
acordo com os étimos da palavra – “governo da casa” –, a economia é um “saber
doméstico” pois na “casa” se satisfazem as carências elementares dos homens: morar,
vestir e comer. Foi esse o saber que Aristóteles compendiou nos breves Livros Económicos e que, nas Éticas e na Política, ampliou à discussão do regime dos bens, à justificação da
propriedade e à definição das categorias do mercado e do dinheiro, das leis da
oferta e da procura e da distinção entre valor de uso e valor de troca. A
Aristóteles, mais ou menos declaradamente, é levado a recorrer todo o saber
economista sempre que tem de reflectir sobre as suas noções fundamentais, seja
ao transmiti-las em termos escolares ou pragmáticos, seja ao sujeitá-las à
discussão a que o obrigam as circunstâncias históricas, culturais ou
religiosas. [“Mais ou menos declaradamente”, dizemos no texto: Um exemplo: é
logo no 1.º capítulo da sua Riqueza das
Nações que A. Smith estabelece a distinção entre valor de uso e valor de
troca, aliás na sequência de todo o saber tradicional, mas sem aludir à origem
aristotélica da distinção. É com a mesma distinção que K. Marx abre a sua “crítica
da economia política”, mas tendo o cuidado de anotar que ela se deve a
Aristóteles. Vivia-se, então, uma época em que, nos meios mais cultos, a referência
a Aristóteles era o que havia de mais suspeito. Em vida de A. Smith, o Marquês
de Pombal decretava, entre nós, que a filosofia de Aristóteles era "abominável". Compreende-se, portanto, a prudência de A. Smith e compreende-se
também que K. Marx, apostado em repudiar a “economia política”, não tenha
deixado de lembrar a origem de uma distinção que constitui o seu ponto de
partida]».
Orlando Vitorino
(«Refutação da Filosofia Triunfante»).
«Parece
também terem sido os gregos, e especialmente os filósofos estóicos com as suas
concepções cosmopolitas, os primeiros a formular a tradição moral que os
romanos propagariam mais tarde no seu Império. Esta tradição gerou forte
resistência, como já sabemos e voltaremos a ver repetidamente. Na Grécia foram,
com certeza, sobretudo os espartanos quem ofereceu maior resistência à
revolução comercial, recusando a propriedade individual, mas permitindo e até
encorajando o roubo. Chegaram até nós como o protótipo de selvagens que
rejeitaram a civilização (para apreciações representativas do século XVIII
acerca deles, ver o Dr. Samuel Johnson na obra de Boswell The Life of Samuel Johnson ou o ensaio de Friedrich Schiller Über die Gesetzgebung des Lykurgos und Solon.
Já em Platão e Aristóteles, deparamos, no entanto, com um anseio nostálgico de
retorno à prática espartana e esse anseio persiste até hoje. É um anelo para
uma microordem regulada pela visão panorâmica de uma autoridade omnisciente.
É verdade
que, durante algum tempo, as grandes comunidades mercantis que tinham crescido
no Mediterrâneo foram protegidas, de modo esporádico, de saqueadores pelos
romanos de índole ainda mais marcial que, como Cícero nos conta, conseguiram
dominar a região submetendo os centros comerciais mais avançados de Corinto e
Cartago que tinham sacrificado a perícia militar à "mercandi et navigandi cupiditas" ("à cupidez de mercadores e navegadores")
(De re publica, 2, 7-10). Mas,
durante os últimos anos da República e os primeiros séculos do Império,
governada por um Senado cujos membros tinham grandes interesses comerciais,
Roma deu ao mundo o protótipo do direito privado assente na concepção mais
absoluta de propriedade exclusiva. O declínio e colapso final desta primeira
ordem alargada deu-se depois de a administração central em Roma se sobrepor ao
empreendimento livre. Esta sequência repetiu-se uma e outra vez: a civilização
pode alastrar-se, mas não avançará muito mais sob um governo que assume a
direcção dos assuntos correntes dos seus cidadãos. Dir-se-ia que nenhuma
civilização avançada se desenvolveu até agora na ausência de um governo que
assuma como seu propósito essencial a protecção da propriedade privada e que a ulterior
evolução e crescimento a que deu origem foi, repetidamente, bloqueada por um
governo “forte”. Governos suficientemente fortes para proteger os indivíduos
contra a violência dos seus semelhantes tornam possível a evolução de uma ordem
crescentemente complexa de cooperação espontânea e voluntária. Cedo ou tarde,
todavia, acabam por abusar desse poder e suprimir a liberdade que anteriormente
garantiram para impor a sua presumida superior sabedoria e não permitir que as "instituições sociais se desenvolvam de modo casual", para adoptar uma
expressão característica que se encontra no verbete “engenharia social” do Fontana/Harper Dictionary of Modern Thought
(1977).
Se o
declínio romano não pôs termo aos processos de evolução na Europa, começos
similares na Ásia (e posteriormente de forma independente na Mesoamérica) foram
travados por governos poderosos (similares, mas excedendo o poder dos sistemas
feudais na Europa) que de forma também eficaz suprimiram a iniciativa privada.
No mais notável desses sistemas, a China imperial, grandes avanços civilizacionais
e de tecnologia industrial sofisticada ocorreram durante sucessivas “épocas de
desordem” quando o controlo governamental enfraquecia temporariamente. Mas essas
rebeliões ou desvios eram regularmente suprimidos pelo poder de um estado
empenhado na preservação literal da ordem tradicional (J. Needham, 1954).
O mesmo é
bem exemplificado pelo Egipto, onde dispomos de muito boa informação acerca do
papel desempenhado pela propriedade privada no crescimento inicial desta grande
civilização. No seu estudo das instituições e do direito privado egípcios,
Jacques Pirenne descreve o carácter essencialmente individualista da lei da Terceira Dinastia quando a
propriedade era “individual e inviolável, na posse total do proprietário”
(Pirenne, 1934: II, 338-339), mas assinala o início da sua decadência logo na
Quinta Dinastia. Isto conduziu ao socialismo de estado da Décima Oitava
Dinastia, descrito noutro trabalho francês publicado no mesmo ano (Dairaines,
1934), que prevaleceu nos dois mil anos seguintes, explicando em boa parte a
estagnação da civilização egípcia durante esse período.
Quanto ao renascimento
da civilização europeia no final da Idade Média pode dizer-se, de igual modo,
que a expansão do capitalismo e da civilização europeia têm na anarquia
política as suas origens e raison d’être.
(Baechler, 1975: 77). Não foi sob a alçada de governos mais poderosos, mas nas
cidades da Itália do Renascimento, do Sul da Alemanha e dos Países Baixos e, por
fim, na Inglaterra sem uma máquina governativa pesada, isto é, sob o domínio da
burguesia em vez de guerreiros, que cresceu a moderna industrialização. A
protecção da propriedade exclusiva, não a determinação do seu uso pelo governo,
lançou as bases para o crescimento de uma densa rede de troca de serviços que
deu forma à ordem alargada.
Nada é mais
enganador, portanto, do que as fórmulas convencionais de historiadores que
apresentam o estabelecimento de um estado poderoso como o culminar da evolução
cultural quando, frequentemente, marcou o seu fim. Neste particular, os estudiosos
das épocas históricas mais antigas deixaram-se impressionar em demasia e foram
largamente induzidos em erro por monumentos e documentos deixados pelos
detentores do poder político, enquanto os verdadeiros construtores da ordem
alargada, que por via de regra criaram a riqueza que tornou possíveis os
monumentos, deixaram testemunhos menos tangíveis e ostentatórios das suas
realizações.»
Friedrich A. Hayek («Arrogância Fatal: Os Erros do Socialismo»).
«A cidade é
uma criação da natureza.»
Aristóteles
(«Política»).
«Na
história primitiva da Grécia encontramos, de qualquer modo, a importante
instituição do xenos, o
amigo-convidado, que garante a entrada individual e protecção em território
estrangeiro. O comércio deve ter-se, de facto, desenvolvido com base em relações
marcadamente pessoais, mesmo que a aristocracia guerreira o tenha disfarçado
como mera troca mútua de presentes. Não apenas os ricos tinham capacidade para
acolher os membros de certas famílias noutras regiões: tais relações também
podiam enriquecer quem proporcionasse canais para satisfação de necessidades
importantes das suas comunidades. O xenos
em Pilos e Esparta a quem se dirige Telémaco para se informar do regresso do “seu
bem viajado pai Odisseu” (I, 93/94) era provavelmente um parceiro comercial que se tornara
rei graças à sua riqueza.
Essas
oportunidades acrescidas para trato vantajoso com forasteiros contribuíram certamente para acentuar o afastamento para com a solidariedade, propósitos
comuns e colectivismo dos pequenos grupos originais. Seja como for, alguns
indivíduos romperam com – ou foram libertos – a tutela e obrigações da pequena
comunidade, e começaram não somente a fundar novas comunidades como, ainda, a
lançar os fundamentos para uma rede de ligações com membros de outras
comunidades, que, por fim, através de infinitos desdobramentos e ramificações,
cobriu todo o globo. Esses indivíduos contribuíram, ainda que de forma inconsciente e não intencional, para a construção de uma ordem mais
complexa e alargada – uma ordem muito para além do seu próprio alcance e dos
seus contemporâneos.
Para criar
essa ordem, tais indivíduos tinham de ser capazes de usar informação para
propósitos que apenas eles conheciam. Não o poderiam ter feito sem aproveitar
certos costumes, como o do xenos, partilhado com grupos distantes. Esses costumes
teriam de ser partilhados, mas o conhecimento específico e propósitos dos
diversos indivíduos podiam variar e assentar em informação privilegiada. Isso,
por sua vez, teria estimulado a iniciativa individual.
Só um
indivíduo, e não o seu grupo, podia obter a entrada pacífica em território
estrangeiro e, consequentemente, adquirir conhecimento não acessível aos seus
conterrâneos. O comércio não podia assentar num conhecimento colectivo; apenas
num conhecimento próprio individual.
Apenas o reconhecimento crescente da propriedade exclusiva poderia ter possibilitado tal
uso da iniciativa individual. Os navegantes e outros comerciantes eram
motivados pelo ganho pessoal, mas, em breve, a riqueza e o modo de vida da população em crescimento das suas cidades natais, resultante da busca do ganho comercial
e não da produção, só seria sustentável graças à sua persistência na descoberta
de novas oportunidades.
Para que o
que acabámos de escrever não seja mal interpretado, cumpre lembrar que a razão
pela qual os homens adoptam determinado novo costume ou inovação é de importância secundária. O mais importante é que para um costume ser preservado
se exigem dois pré-requisitos distintos. Primeiro, devem ter existido certas condições
que tornaram possível a preservação ao longo das gerações de determinados
costumes cujos benefícios não foram necessariamente compreendidos ou apreciados.
Em segundo lugar, para manter tais costumes devem ter sido adquiridas vantagens
particulares por esses grupos, permitindo, por isso, a sua expansão mais rápida
em relação a outros e, por fim, a superação ou absorção de quem não possuísse
costumes similares.»
Friedrich A. Hayek («Arrogância Fatal: Os Erros do Socialismo»).
«As “rebeliões
dos pobres” são um fenómeno cíclico na história e ressurgem sempre que uma
revivescência, como a que o industrialismo trouxe, das imagens míticas da idade
de ouro, do paraíso terrestre ou das núpcias do céu e da terra, coincide com uma
situação de miséria mais patente e de agregação das populações como a que o
industrialismo também suscitou. Sempre
fazem elas emergir a desesperada convicção de que a existência de ricos constitui
o único obstáculo à abundância para todos e sempre acompanhadas do propósito de
abolir a propriedade – propósito que já Aristóteles diz suscitar grandes
entusiasmos – e da elaboração de leis e reformas agrárias como as do espartano
Licurgo e dos romanos Gracos.
O estado de
pobreza, como o de riqueza, são estados particulares e concretos dos quais a
experiência, ou “o saber só de experiência feito”, é o positivo mas unilateral
saber que possuem aqueles que, como a generalidade dos pobres e dos ricos, não
exercem o pensamento que, para lá da experiência, ascende a um saber global.
Limitadas à experiência, a pobreza e a riqueza são imagens que oscilam entre a
caridade da sacristia paroquial e a filantropia da retórica revolucionária, imagens que inibem os homens de associar, por exemplo, a riqueza à fortuna, que
é composta de dons, e a pobreza à sensação de uma carência que é também uma
dádiva, como quando se fala dos “pobres de espírito” que são, não os
carecentes, mas os insaciáveis de espírito.
Em termos
mais comuns, mais do domínio da vulgar sociologia, lembraremos como até o
campeão materialista do industrialismo, o próprio Marx, observava que “as
classes não se demarcam pelo tamanho do porta-moedas” ou como é impossível
assinalar os limites onde a pobreza acaba e começa a riqueza. Ver-se-á mais
adiante como os gregos, ao falarem de fortuna em vez de riqueza, nela abrangiam
numerosas virtudes e dons que nada têm a ver com o “porta-moedas”: a fortaleza,
a generosidade, o sentido da convivência, a dedicação à comunidade, etc. Por
sua vez, a pobreza, na projecção social do que se implica em “pobreza de
espírito”, não é tanto um estado de carência sem meios de a satisfazer como um
estado de apetência que se pode viver de muitos modos. A distinção entre pobres
e ricos cobre, portanto, uma distinção mais radical e profunda, e a sua limitação
à penúria e à abundância de bens tem, entre outras consequências, a de impedir
a realização da justiça.
Até nos
mais vulgares cálculos económicos é evidente que o valor da produção da grande
maioria dos homens está longe de equivaler aos benefícios – meios de subsistência,
meios de ociosidade, meios de civilização – que recebem em troca do que
produzem, o que tão verdadeiro é para o que recebe pouco como para o que recebe
muito. Mais significativa do que a diferença entre receber muito e receber
pouco, é a distância entre o valor do que se recebe e o valor do que se produz.
E uma vez que o primeiro é, em geral, superior ao segundo, tem de se concluir
que os homens dependem, nisso que recebem, de algum outro ou de alguma coisa,
não de si próprios; tem de se concluir que a maioria dos homens se encontra num
estado de inevitável e invencível dependência. Diremos que aquilo de que os
homens dependem é, em primeiro lugar, a fecundidade da natureza, em segundo
lugar, o conjunto dos meios de civilização e cultura que se acumularam ao longo
das gerações, e, finalmente, aquela minoria de homens que se dedicam a
actualizar e prolongar a cultura e a civilização, delas adquirem o saber e a
arte e nelas fazem participar activamente aqueles muitos que delas têm a
compreensão, embora não o saber, e também, esses passivamente, aqueles muitos mais
que, encerrados no humanismo estreito que as aglomerações urbanas favorecem,
vivem sem o sentido sequer da fecundidade da natureza, do valor da civilização
e cultura, da importância do saber e da arte. São estes os que engrossam as
multidões sempre irremediavelmente insatisfeitas, os que, por ignorarem aquilo
de que dependem nem disso terem o sentido, figuram o seu estado de dependência
como um estado de pobreza e isso de que dependem como a posse de bens. A sua
rebelião pode então apresentar-se como uma “rebelião dos pobres” e tomar por
fim destruir ou abolir a posse dos bens. O que, todavia, efectivamente visam é
a destruição da natureza e da cultura, e isso explica que nenhuma “rebelião dos
pobres” tenha sido levada até ao fim pois o seu fim seria, pelo menos, a
destruição da civilização à qual os “pobres” iniludivelmente pertencem, e dela
vivem. Ao aproximarem-se do triunfo, apercebem-se de como o seu triunfo é a sua
perdição e, sobre os inúmeros sofrimentos que causaram e padeceram, suspendem e
cessam a rebelião. Os únicos benefícios que de tantos males se poderão colher
são o instante de consciência ou de saber, que nos insatisfeitos aflorou, de
como a dependência faz parte da sua condição humana, o reconhecimento, que em
breve se abandonará, de como em ambas as hostes do conflito igualmente se juntaram
pobres e ricos, contraprova de que não é a pobreza e a riqueza de bens o que
está em jogo, e a consequente observação de como são ineficazes e inúteis as
ingénuas precauções políticas destinadas a evitar a rebelião sempre latente
por meio do enriquecimento dos pobres. [Admirável ficção poética das condições
propiciatórias das “rebeliões dos pobres”, é o episódio do “Velho do Restelo”
do Canto V de Os Lusíadas. Quando as
naus de Vasco de Gama abrem as velas para uma das mais fecundas “descobertas”
de que toda a humanidade beneficiou, um Velho ergue a sua voz dentre as “massas”
que se aglomeram em terra e, falando “com um saber só de experiência feito”,
insurge-se contra quem “tanto privou” da “idade de ouro” os homens, invectiva
tudo o que seja “glória” e “fama”, “nomes com que o povo néscio se engana”,
condena toda a acção que é guiada pela “honra”, que afronta “os perigos e as
mortes” e que “consome as fazendas”]».
Orlando Vitorino («Refutação da
Filosofia Triunfante»).
«A despeito
da cegueira de Aristóteles quanto à importância do comércio e de carecer de
qualquer compreensão da evolução, o seu pensamento, a partir do momento em que
foi incorporado no sistema de Tomás de Aquino, fundamentou a orientação
anticomercial da Igreja medieval e do início da era moderna e só bastante mais
tarde, sobretudo entre os pensadores franceses dos séculos XVII e XVIII,
tiveram lugar diversos desenvolvimentos importantes que, em conjunto, começaram
a desafiar efectivamente os valores fulcrais e as instituições da ordem
alargada.
O primeiro
desses desenvolvimentos foi a importância crescente, associada ao progresso da
ciência moderna, de uma forma particular de racionalismo a que chamo “construtivismo”
ou “cientismo” (a partir do francês), destinada nos séculos seguintes a
prevalecer de modo absoluto em todas as análises sérias acerca da razão e do
seu papel nos assuntos humanos. Esta forma específica de racionalismo foi o
ponto de partida das investigações que levei a cabo nos últimos 60 anos,
visando demonstrar que é sumamente falaciosa ao sustentar uma teoria falsa da
ciência e da racionalidade, abusiva
da razão, e, mais importante ainda, conduzindo invariavelmente a uma interpretação
errónea da natureza e da aparição das instituições humanas. Essa interpretação
acaba por levar os moralistas, em nome da
razão e dos mais altos valores de civilização, a bajular os que foram relativamente
malsucedidos e a incitar as gentes a satisfazerem os seus desejos primitivos.
Herdeira no
período de René Descartes, esta forma de racionalismo não só descarta a
tradição como alega, ademais, que a razão pura pode, por si só, satisfazer os
nossos desejos sem qualquer intermediação, sendo capaz de construir um mundo
novo, uma nova moral, um direito novo e, inclusivamente, uma nova e mais pura
língua. A teoria é redondamente falsa (ver também Popper, 1934/1959, e
1945/66), mas ainda domina o pensamento de muitos cientistas e, também, de grande
número de literatos, artistas e intelectuais.»
Friedrich A. Hayek («Arrogância Fatal: Os Erros do Socialismo»).
«Infelizmente,
não há fome de saber como há fome de alimentos, e ao contrário do esfomeado que
até ao último alento ainda procura a nutrição, o ignorante contenta-se a si
mesmo com a sua ignorância, revê-se nela, ostenta-a vazio e orgulhoso e
impõe-na a todo o mundo. Transitando imediatamente do estado natural em que
nasce para o estado teocrático em que vive, o homem está já arriscado, se não já
condenado, a não mais encontrar motivo para abandonar a ignorância.
Com o repúdio
do saber, repudia-se a verdade, pois o saber é sempre saber a verdade. E
perdida a relação com a verdade, perde-se a relação com todos os princípios.
Impedido do exercício da liberdade e do reconhecimento da justiça, o homem
ainda pode manter-se incólume na individuação que directamente radica no absoluto.
Mas perdida a verdade, nada se mantém: nem “as mais elevadas e nobres
propriedades do homem”, nem as virtudes éticas, nem a capacidade de pensar.
Como na desolação de um campo que as fúrias saturninas devastaram, tudo são
vias abertas aos “vícios do homem”, de que fala Malthus, à “sedição e ao crime”,
de que fala Aristóteles, à “tirania dos homens demasiado envilecidos”, que é a teocracia
sem Deus. E os vestígios que ainda restam do direito, apenas estarão sendo,
agora, os contentores da catástrofe final.
Assim
atingirá o homem o abismo até onde o levaram uma certa concepção da vontade,
que negou o primado do pensamento, uma certa concepção da matéria, que repudiou
a transcendência, e uma certa concepção da verdade, que negou a realidade do
espírito.»
Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»).
«A
representação não é, para os aristotélicos, apenas modificação dos estados de
consciência. O ideísmo, o subjectivismo e o individualismo dos pensadores “modernos”,
de Descartes a Kant, são nítidas tentativas de oposição àquela solidariedade
biológica e cosmológica, digamos assim, que dá significação à palavra Universo. As categorias de Aristóteles
relacionam a psicologia com a cosmologia. A alma interior é a forma do corpo exterior. O que
observamos nos outros viventes, observamo-lo também nos homens. O pensamento
aristotélico está muito longe de uma antropologia que, como a platónica, tende
a admitir a alma sem corpo, a completa desencarnação. O pensamento aristotélico
está muito perto do que mais tarde se chamou evolucionismo, doutrina que se supõe demonstrar com argumentos das
ciências de observação uma tese implícita nas superiores tradições religiosas.
A ascensão do homem pela escala zoológica, se for provada por argumentos
paleológicos, comprovará o cativeiro e a remissão, a queda resultante do pecado
original – o que é muito diferente daquele evolucionismo que outrora foi
divulgado para negar o criacionismo do Génesis.
O
evolucionismo é uma doutrina mediadora que deixa insolutos os problemas do
princípio e do fim. Vale, porém, pelo estímulo teleológico, pelo ímpeto que
explica o movimento. Se o intelecto humano, no dizer do autor da Psicologia, é activo e passivo, e se
consequentemente não pode pensar sem representação, nada obsta a que,
transformando em imaginação a fantasia, a existência actual se transforme em
essência possível. Todo o psicodinamismo tem de ser revisto depois de apuradas
as noções de acto e potência, já que neste esquema os
intérpretes procederam a uma confusão análoga à de forma com figura,
esquecendo que a matéria corresponde ao feito, ao perfeito, à perfeição.
Não nos é
lícito interpretar o aristotelismo em termos de mecanismo, porque contra tal
interpretação conspiram a letra e o espírito das obras de Aristóteles. Vemos,
aliás, que na Física de Aristóteles
se passa da dinâmica para a cinemática, e da cinemática para a estática, em
gradação ascendente da Terra para o Céu, ao contrário da mecânica ensinada nos
tempos modernos. O ideal “moderno” da física parece ter sido contrariado pela
classificação dos movimentos, das forças e das energias que figura na obra
aristotélica; mas no nosso tempo, em que os fenómenos magnéticos, eléctricos e
luminosos por sua vez contrariam o determinismo mecanista e materialista, já os
esquemas aristotélicos ressurgem para cingirem, melhor do que os outros, a
onda, a emissão e a explosão que configuram os principais fenómenos físicos. Se
o fenómeno nos é descrito por uma série de fases, entre a aparição e a
aparência se restabelece um nexo lógico que permite a inteligibilidade do
universo. Não houve revolução a Aristóteles, no decurso dos séculos XIX e XX,
porque revolução significa
revolvimento, retorno, regresso. Houve, sim, o reconhecimento de um modo perene
de filosofar, e portanto a possibilidade de ver na mesma enciclopédia o
progresso das ciências filosóficas.»
Álvaro Ribeiro («Aristóteles e a Tradição Portuguesa»).
«Para o
desenvolvimento espiritual do homem qual será a prioridade mais importante?
Será a da natureza, berço da forma humana e de toda a sensibilidade que por
destino de génese lhe é inerente, ou será a da lógica matemática que abstrai da
natureza simplificando as coisas em ideias gerais, e que nos faz nessa
simplificação, acreditar que penetramos nas substâncias de que essas coisas são
feitas? Quanto mais gerais são as ideias mais abstracto e vazio é o grau da sua
realização mental, mais rarefeita a sustentação da nossa dialéctica. As ideias
gerais são o conceber, e só existem enquanto conceitos, na medida rítmica do
nosso pessoal entendimento. Não existem em profundidade para a abstracção pura,
mas apenas nesta podem ser teorizadas, como virtualidade subjectiva. A
intervenção matemática interfere artificialmente com a génese natural das
coisas físicas, porque o seu momento lógico de aplicação não será o do tempo,
como instante ôntico do movimento, mas o da ocasião útil entendível, dentro da
ordem externa da sucessividade. Assim conclui sabiamente o Estagirita que “as
coisas matemáticas que não estão separadas, pensamo-las no entanto em separado
quando as temos em mente”. Há sempre pois um não esclarecido ponto cego de
esvaziamento ontológico, que só a lógica natural pode evitar, porque sustenta a
transmissão permanente desse vínculo em que o ser diz e se predica, superando
as distorções extensivas do pensamento matemático.»
Luís
Furtado («Do Conceber para o Lugar do Conceber. Ensaio de Hipotipose»).
«A atenção
à multiplicidade exige por método lógico a indução. A metodologia científica de
Aristóteles é fundamentalmente indutivista. Posto que a indução perfeita só
seria possível depois da colecção perfeita, enuncia-se o problema lógico não já
com palavras da experiência mas com palavras de razão. O processo indutivo
parece não legitimar a certeza e a verdade, pelo que terá apenas valor
provisório enquanto um processo superior não o converter por necessidade. Nesta
crítica, muitas vezes feita, ao raciocínio indutivo se abre atalho para
contradizer o pensamento de Aristóteles.
A indução
tem por fim o conceito. Induzir para conceber. Considerados no intelecto humano
os aspectos passivo e activo, nada nos custa a entender a fecunda passividade
do intelecto perante o que é móvel, múltiplo, contingente. De repetirmos a
mesma operação intelectual, tantas vezes quantas as requeridas, nos surge
gratuitamente o conceito que merecíamos em prémio da nossa fadiga.
Se, pelo
contrário, julgarmos que a indução tem por fim o juízo, a relação ou lei,
desvirtuaremos o significado da palavra inferência, cairemos fora da lógica
aristotélica. A lógica do conceito é uma lógica realista. Os nominalistas e os
terministas, imitando a abstracção matemática, deram ao problema dos universais
uma solução que prepara a falácia do idealismo, e serviram assim o engenho de
análise mortífera e de uniformidade industrial que lacera, em vez de redimir, a
Natureza.»
Álvaro Ribeiro («Aristóteles e a Tradição Portuguesa»).
A cegueira do filósofo
Quão pouco
a riqueza dos principais centros de comércio gregos, especialmente de Atenas e
mais tarde de Corinto, foi o resultado de uma política governamental
deliberada, e quão pouco a verdadeira fonte dessa prosperidade foi
compreendida, talvez seja melhor ilustrado pela total incompreensão de
Aristóteles da ordem de mercado avançada em que viveu. Ainda que, por vezes,
ele seja citado como o primeiro economista, limitou-se a abordar como oikonomia a gestão de uma casa ou, no
máximo, de uma empresa familiar como uma quinta. Em relação às iniciativas
aquisitivas do mercado, cujo estudo denominou chrematistika, manifestava apenas desprezo. Embora a vida dos
atenienses seus contemporâneos dependesse do comércio cerealífero com países
distantes, a sua ordem ideal era ainda a auto-suficiência, autarkos. Celebrado como biólogo, Aristóteles não tinha qualquer
percepção de dois aspectos cruciais da formação de qualquer estrutura complexa,
nomeadamente, a evolução e a autoformação da ordem. Como Ernst Mayr (1982: 306)
indica: «A ideia de que o universo pudesse desenvolver-se a partir de um caos
original ou de que fosse possível organismos superiores evoluírem a partir de
inferiores, era em absoluto alheia ao pensamento de Aristóteles. Reiterando,
Aristóteles opunha-se a qualquer tipo de evolução.» Ele parece não se ter
apercebido do sentido de «natureza» (ou physis)
ao descrever o processo de crescimento (...) e parece também desconhecer
diversas distinções entre ordens autogeradas familiares aos filósofos
pré-socráticos, como a diferença entre um kosmos
de crescimento espontâneo e uma ordem deliberadamente organizada, como um
exército, que pensadores anteriores denominavam taxis (Hayek, 1973: 37). Para Aristóteles, toda a ordem das
actividades humanas era taxis,
resultando da organização propositada por uma mente sistematizadora da acção individual. Como vimos
anteriormente (capítulo I), afirmou de forma expressa que a ordem só poderia
ser atingida num espaço suficientemente pequeno para se ouvir o pregão do
arauto, um local facilmente esquadrinhável (eusynoptos,
Politeia: 1326b e 1327a). «Um número excessivamente elevado», escreveu (1326a),
«não pode participar na ordem».
Para
Aristóteles, somente as necessidades reconhecidas de uma população existente
ofereciam justificação natural ou legítima para o esforço económico. Considerava
a Humanidade e até a natureza como se sempre tivessem existido na forma actual.
Esta visão estática excluía uma concepção de evolução e impedia-o de
interrogar-se sequer acerca do aparecimento das instituições existentes. Nunca
lhe ocorreu que a maioria das comunidades existentes e certamente a maior parte
dos atenienses seus contemporâneos nunca teriam visto a luz do dia se os seus
antepassados se tivessem contentado com a mera satisfação de necessidades
imediatas. O processo experimental da adaptação a mudanças inesperadas
obedecendo a regras abstractas que, quando bem-sucedido, resulta num aumento
numérico e na formação de padrões regulares, era-lhe, igualmente, alheio.
Aristóteles estabeleceu também o padrão para uma visão da teoria ética que
ignora as pistas disponibilizadas pela história acerca da utilidade das normas
e em que está totalmente ausente a análise da utilidade económica – dado que o
teorizador ignora os problemas cujas soluções podem encontrar-se nessas normas.
Na medida
em que apenas actos em benefício de
outrem eram, no entender de Aristóteles, moralmente aceitáveis, actos
exclusivamente em proveito próprio eram considerados maus. O facto de
considerações de índole comercial poderem não afectar o quotidiano de muitas
pessoas não significa, no entanto, que, considerando períodos mais latos, as
suas vidas excluam a dependência do comércio para satisfazer a compra de bens
essenciais. A produção visando um ganho, que Aristóteles denunciou como
antinatural, tinha-se tornado – muito antes do seu tempo – no fundamento de uma
ordem alargada, transcendendo em muito as necessidades conhecidas de outras
pessoas.
Como sabemos
hoje em dia, o lucro funciona, na evolução da estrutura das actividades
humanas, como um sinal orientador no sentido da selecção do que seja mais proveitoso
para o homem; somente o que se revele mais lucrativo permitirá, em regra, alimentar
maior número de pessoas, dado que sacrifica menos do que aquilo que aporta. Isto
pelo menos, foi intuído por alguns gregos antes de Aristóteles. De facto, no
século V, portanto antes de Aristóteles, o primeiro historiador verdadeiramente
grande iniciou a sua História da Guerra
do Peloponeso com uma reflexão sobre os povos dos «tempos antigos», quando
«não havia qualquer troca comercial nem se misturavam sem medo essas gentes
entre si, nem por terra nem por mar, limitando-se cada um a cultivar, no terreno
onde estava, o bastante para viver, sem que obtivessem acumulação de riqueza
por não plantarem as terras com culturas permanentes», o que os levava a mudar
«de lugares e, por isso, não eram fortes nem na dimensão das cidades, nem em
quaisquer outros recursos» (Tucídides, Livro I, 1, 2). Aristóteles ignorou, não
obstante, esta visão.
Tivessem os
atenienses seguido o alvitre de Aristóteles – cego quer à economia, quer à
evolução –, a sua cidade rapidamente teria acabado reduzida a uma aldeia, pois a
visão da ordem humana partilhada pelo Estagirita levou-o a formular uma ética
apropriada apenas, e se tanto, a um estado estacionário. As suas doutrinas, no
entanto, viriam a dominar o pensamento filosófico e religioso nos dois milénios
subsequentes, apesar do facto de a maior parte dessas reflexões se ter
desenrolado numa ordem altamente dinâmica e em rápida expansão.
As repercussões
da sistematização por Aristóteles da moral da microordem foram ampliadas pela
adopção do pensamento aristotélico no século XIII por Tomás de Aquino, o que
resultou, posteriormente, na proclamação da ética aristotélica como a doutrina
praticamente oficial da Igreja Católica Romana. A atitude anticomercial da Igreja
medieval e moderna, condenando o lucro como usura, a sua doutrina do justo
preço e a atitude desdenhosa para com o ganho, é aristotélica de uma ponta à
outra.
No século
XVIII, obviamente, a influência de Aristóteles nessas matérias, bem como
noutras, estava em declínio. David Hume observou que o mercado torna possível
«prestar um serviço a outrem sem comportar efectivamente uma gentileza para com
essa pessoa» (1739/1886: II, 296), desconhecendo inclusivamente a sua
identidade, ou mesmo agir «em vantagem pública ainda que tal não fosse o
propósito» (1739/1886: II, 296), numa ordem em que era do «interesse, até mesmo
de homem vis, agir para o bem público». Estas perspectivas levaram ao reconhecimento
do conceito de estrutura auto-organizada que se tornou desde então a base da
nossa compreensão de todas as ordens complexas que até aí surgiam como
milagres, obra exclusiva de certas versões super-humanas da nossa mente. Então,
começou a ser gradualmente compreendido como o mercado possibilita que cada
qual, no âmbito de determinados limites, faça uso do seu conhecimento pessoal para
propósitos particulares, ainda que ignorando a maior parte da ordem a que tem
de adequar os seus actos.
A despeito
disso e ignorando em absoluto este imenso avanço, uma visão ainda marcada pelo
pensamento aristotélico, uma visão do mundo ingénua e infantilmente animista
(Piaget, 1929: 359), acabou por dominar a teoria social, sendo o fundamento do
pensamento socialista.
(In Friedrich A. Hayek, Arrogância Fatal: Os Erros do Socialismo, Guerra e Paz, 1.ª Edição, Novembro de 2022, pp. 69-72).
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