sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Apologia de Leonardo Coimbra

Escrito por José Marinho




«De facto os aplausos e a admiração que Leonardo Coimbra colhia (como ele não podia deixar de o perceber) eram puramente espectaculares, dirigidos apenas à sua personalidade exterior de tribuno e homem estranho: na realidade, ninguém o compreendia; e o homem de valor o que deseja é que participem das suas preocupações e não que admirem a sua figura, ou timbre de voz, ou facilidade de palavra; o que ele quer, em suma, é que o compreendam e não que o aplaudam. Leonardo Coimbra sentia com nitidez a sua incomunicabilidade, e sofria como todos os homens superiores a têm sofrido, em todos os tempos e lugares, e sofrerão sempre; sob a máscara do tribuno que frequentemente subia aos estrados para falar, falar, falar, dando-se o ar de homem que tinha a satisfação de transferir as suas ideias, havia o rictus secreto, cheio de amargura, do pensador que sabia que as suas obras somente eram vendidas nas feiras do livro a preços irrisórios, para não serem vendidas a peso. Quantas vezes nos últimos anos, quando os amigos lhe perguntavam de longe a longe se andava a pensar algum livro, ele replicava com rápida mordacidade – “ – Mas para quê? Neste país não se pensa: neste país...».

Sant´Anna Dionísio («Leonardo Coimbra»).

 

«A obra filosófica de Leonardo Coimbra, como a de Bruno, carece de estilo clássico, no sentido de uma forma constante, rigorosa e severa. Entretanto, podemos preguntar-nos: ao lado de uma filosofia mais especulativa e noética, não existirá uma filosofia ética ou estética ou religiosa, mais próxima daquelas formas de ser, sentir ou pensar que não são susceptíveis de verificação fácil e geralmente acessível? Pode ser única a forma de filosofias em que é diversa a origem, diversos os caminhos de conceber?

O pensamento de Leonardo Coimbra vale pelo seu contraste fortemente acusado: nenhum outro filósofo português realizou a sua filosofia com consciencialização tão ampla e profunda do saber científico, com tão ampla informação das várias formas de cultura; mas nenhum também considerou tão reflexiva e intensamente o drama de ser, nenhum foi tão profunda e consequentemente caracterizado pela inquietação religiosa. A este contraste importa meditar com atenção, pois tudo depende disso.

Acentuando ainda como a forma do pensamento é adequada ao pensamento que traduz, poderemos atender com proveito às diferenças entre Bruno e Leonardo subsistentes, apesar de todas as afinidades. Bruno pertence, pelo contrário, ao grupo de pensadores que vivem na constante exigência, mais ou menos dolorosa, de exprimirem uma ideia remota e obscura, sempre fugitiva. Nada disto se revela, pelo menos com constância, na obra do pensador que estudamos. O seu pensamento é espontâneo e rápido, e a obra que deixou apresenta sinais disso. Apesar dessa espontaneidade, ou por virtude dela, Leonardo Coimbra, como os pensadores do seu tipo, tem uma unidade na sua obra que ao unilateral critério formalista escapará. Os seus livros têm de uns para os outros relações tão próximas, quer pareçam facilmente apreensíveis, quer mais dificilmente, por mais profundas, que o espanto não pode deixar de surgir em quem, vencidas as dificuldades da forma ou formas de expressão, penetra no âmago especulativo. Tais correlações não se apresentam apenas se atendermos ao pensamento geral e essencial, ao enigma que o suscita e aos problemas propostos, pois são neste caso muito visíveis –, tais correlações surgem-nos também quanto aos problemas tratados em cada escrito e à maneira como são postos noutro, ao tema de cada livro, sempre antecipado, de alguma maneira, no que precede, sempre correlacionado com o anterior ou posterior.»

José Marinho («O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra»).


«Nas lições e nas conferências, Leonardo Coimbra não se demorava a enunciar o problema nos seus melhores termos, a enumerar as soluções apresentadas, a eliminar pela crítica as hipóteses mais fracas, e a fazer, por fim, o encómio da tese sobrevivente. Nada havia na sua oração que recordasse os métodos escolares, porque perorava de maneira tal que parecia estar criando a própria ciência na presença dos ouvintes admirados. Eis porque, descurando os efeitos práticos, menos se ocupava com o grau de instrução, a capacidade do auditório e parecia por vezes esquecer, perdido, as circunstâncias exteriores do local onde fazia as suas conferências e lições.

De milhares de discursos aventados por Leonardo Coimbra, resistiram ao esquecimento os poucos proferidos na Câmara dos Deputados, entre os quais figura, como obra-prima de eloquência, aquele que ficou conhecido pela designação de A Questão Universitária. A mesma rapidez do orador eloquente se manifestava no modo por que o pensador escrevia artigos para os jornais e revistas e, bem assim, alguns dos trabalhos de menor tomo. Esta facilidade, que por vezes lhe foi condenada como um desleixo, representa, porém, riqueza e fluência de expressão, testemunha uma caridosa resposta a várias solicitações, mas significa também a séria atitude do filósofo que sabe que a sua missão não é escrever.

Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes

A atitude sempre juvenil de Leonardo Coimbra era manifestada pela irreverência perante as hierarquias postiças, especialmente por aquelas de que poderia ser beneficiado, pois temia a sonolência da consideração social como pressão contra a liberdade da inteligência. Desde o anarquismo que se exercitava a inverter paradoxalmente a ordem dos valores consagrados, embora na intimidade da alma se conservasse muito fiel à axiologia cristã. Não se julgava mais sábio por adquirir a mestria de refutar os argumentos dos seus adversários, nem por chegar a posições sociais excessivamente altas para o alcance da crítica, porque não confundia o envelhecimento mundano com o progresso da filosofia. 

Leonardo Coimbra escreve sempre como um homem moço, como quem ainda não está ciente das diferenças de memória entre velhas e novas gerações. Todo o mundo do pensamento lhe parece viver em estação primaveril, compreendido e assimilado no instante primeiro da criação, sem as cores amarelentas da história e sem a poeira das antecedências revolvida por cansativo labor de homens decepcionados. Não cura, pois, da ciência ou da ignorância dos seus leitores, inibe-se de apresentar as credenciais de todas as ideias que vai sucessivamente descobrindo, e se, por vezes, desenvolve, descreve ou narra, em súmulas expressivas, assim procede apenas para a sua comodidade de expositor.

É de observar que o erudito Leonardo Coimbra pouco tinha de estilo paleográfico, pois nas páginas dos seus livros raramente aparecem parágrafos transcritos de livros alheios e, muito menos, lugares comuns de citações, frases bíblicas, versos latinos, locuções francesas, enfim, quaisquer vestígios banais daquela cultura de segunda mão com que costumam enfeitar seus textos os escritores facilmente compreendidos e vulgarmente celebrados. Leonardo Coimbra não ignorava a deontologia da citação e bem sabia, portanto, que a citação pressupõe a leitura de todo o livro a que o texto pertence e obriga à indicação da fonte bibliográfica, geralmente omitida nos livros de menor valia. Porque se manteve mais leal para com os leitores do que fiel para com os autores, e sobretudo porque da filosofia não sobrevalorizava os livros, nem sequer os seus, mas o pensamento vivo e influente, limitava as suas referências de erudito apenas ao nome do pensador visado, não se demorando a ir buscar à estante o livro que comprovaria a sua extraordinária erudição.» 

Álvaro Ribeiro («A Arte de Filosofar»).


«O pensamento de Leonardo Coimbra não é, entretanto, aquele dinâmico ser do espírito que visa à quietude do absoluto. Nenhuma síntese definitiva o espera, a nenhum conhecimento pode atingir que semelhe o terreno lago de águas plácidas onde se remirasse o céu imóvel. Por isso o pensamento permanece indefinidamente aberto, “avançando na síntese progressiva que é a sua vida e encerrando-se, não no sistema estático do conhecimento, mas nas próprias fecundas entranhas, para se apreender como infinito, eterno e criador.» 

José Marinho («O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra»).


«O pensamento medieval construía a realidade com as noções dum Aristóteles emagrecido.

Era um coisismo dessas noções. O materialismo é também um coisismo de noções.

(...) Quando o pensamento sossega na ruminação das noções elaboradas, há um período de distinções formais, uma escolástica, que acaba de sentir a impossibilidade dum perpétuo movimento sem novo combustível; surge, então, o grito de regresso à Natureza.»

Leonardo Coimbra («O Criacionismo»).


«Enquanto formos homens, não podemos escapar de ser, em grande medida, aristotélicos, pois... em muitos assuntos, pensar correctamente é pensar como [ou porventura com] Aristóteles; e somos seus discípulos querendo ou não, embora possamos não sabê-lo.»

Cardeal John Henry Newman

  

«Um desses assuntos foi, decerto, a lógica, e o que Aristóteles pensou a respeito é que ela não é nem mesmo uma parte integrante da filosofia, e sim apenas um treinamento preliminar que, uma vez absorvido, pode ser esquecido no fundo e deixar espaço a modalidades menos formalizadas de investigação, mais compatíveis com a natureza esquiva de certas questões. Embora ensinando que a lógica é a forma por excelência da prova científica, Aristóteles adverte que em todas as investigações o problema fundamental não é a exata demonstração lógica, mas a descoberta das premissas, para o que a lógica é absolutamente impotente, devendo ceder lugar à dialética, à retórica e até à imaginação poética. Uma filosofia que pretendesse reduzir-se à lógica, ou mais ainda à lógica das ciências, seria no entender de Aristóteles-Newman a aberração das aberrações.»

Olavo de Carvalho («A Filosofia e seu Inverso»).





«A demonstração retórica da tese consiste em propor um meio adequado aos extremos. Descobrir o conceito mediador ou terceiro termo, enfim, pensar por tríades, é que é verdadeiramente raciocinar.

É nesta altura que convém ao pensador estar ciente da doutrina do silogismo, tal como se encontra apresentada por Aristóteles nos Primeiros Analíticos. Muito menos do que considerar o silogismo constituído por duas premissas e uma conclusão, conforme se diz nos compêndios escolares, convém estudar o problema na própria ordem do progresso retórico. O que é dado, ou apresentado, em primeiro lugar é o logismo da conclusão; o que é postulado, ou exigido, é o elemento capaz de unir os extremos, o conceito mediador da razão. Conforme esse trabalho de pesquisa intelectual se afastar ou se aproximar das regras necessárias, assim teremos o silogismo ou o seu contrário, o paralogismo.

Utilizando o exemplo clássico, diremos que o problema consiste em demonstrar que Sócrates é mortal. S é P. Os extremos são Sócrates-mortal. Há que procurar o conceito mediador, que por extensão abranja o indivíduo Sócrates e que por compreensão inclua a qualidade de mortal. É o conceito de homem. Está virtualmente constituído o silogismo.

A regra de que na conclusão, quer dizer, na tese a defender, a demonstrar, ou a provar não entra o conceito mediador é regra de primordial valor prático. Veremos então que sendo duas as premissas, e cada uma delas constituída por dois termos, não será difícil discernir no termo repetido o verdadeiro ou falso mediador. Todos os homens são mortais, Sócrates é homem. Na conclusão desaparece, por inútil, o intermediário: Sócrates é mortal.

Estudando analiticamente o silogismo, isto é, prestando atenção aos extremos da proposição a demonstrar, e vendo que o problema consiste em procurar o meio adequado para com ele dispor e compor as premissas, ninguém considerará inutilidade retórica a silogística de Aristóteles.

(...) Todo o Organon de Aristóteles é digno de estudo actual. O silogismo é objecto de minuciosa elucidação nos livros Analíticos. Se é certo que nos primeiros, o silogismo figura apenas como elementar processo de retórica, indiferente à verdade da tese que convém demonstrar, já nos segundos livros o silogismo aparece tratado como um processo de investigação científica, segundo a doutrina propriamente aristotélica.

A disposição do silogismo, com duas premissas seguidas de conclusão, tal como costuma ser apresentada nos livros escolares, representa já o segundo estádio da retórica, quando o orador e o escritor pretendem mais convencer do que persuadir. Assim, admitida a primeira premissa, quase sempre a maior, e admitida também a segunda, o ouvinte, ou o leitor não poderá deixar de admitir também a conclusão, que será de consequência necessária se o silogismo for composto segundo as regras. É neste carácter de necessidade, muito mais do que na verdade de uma ou duas premissas, que reside a força (vis formae) do constrangimento silogístico.»

Álvaro Ribeiro («Estudos Gerais»).



Apologia de Leonardo Coimbra

A compreensão do pensamento de Leonardo Coimbra não depende apenas de nos interrogarmos sobre o que é a filosofia. Só isso não seria já certamente fácil, pois nem filosofar é dado a quantos de filosofia se ocupam, nem tão-pouco a interrogação séria admite resposta definitiva e rígida. O conceito de filosofia desloca-se com o mesmo filosofar na mutante série dos conceitos; por outro lado, como Leonardo Coimbra de vários modos mostrou, aquele sério pensamento ao qual move o amor autêntico e imperioso da verdade não pode contentar-se de deambular na rasa planura uniforme do mundo natural, social e cultural, ou do pensar que nasce e morre, mas ascende, pelo contrário, e necessariamente, dos planos mais baixos da vida para os mais altos.



Assim, ler o filósofo responsável é acompanhar um espírito que sugestiva e imperiosamente interroga, ler o filósofo responsável não é apenas receber a luz útil, mas resolver um enigma e situar-se, sem ilusões, perante o Mistério. Por isto mesmo se ignorar, tantos juízos vãos têm sido proferidos sobre Leonardo Coimbra, como sobre os filósofos mais antigos e mais modernos da longa e nobre tradição europeia. E não cabe duvidar de que ler um filósofo não é apenas receber luz de útil candeia como implacável e sagrada perante a ignorância atrevida que acaba sempre por tornar-se perigosamente dominadora nas épocas de homens «diligentes e adormecidos», desatentos e incapazes de séria reflexão. Como os seus pares, Sampaio Bruno, Junqueiro e Teixeira de Pascoais, Leonardo Coimbra pagou pesado tributo às circunstâncias terríveis em que surgiu. Mas, é bem verdade, os caminhos por ele abertos e o melhor sentido da sua mensagem, as imagens inabituais, a expressão multímoda e as ideias subtis – tudo seria demasiado difícil, e até mesmo em época mais propícia e compreensiva. Ser poeta ou filósofo com alto, inquietante e original sentido religioso da vida, é coisa anómala e paga-se sempre caro.

Quantos tentaram já inventariar a obra escrita de Leonardo Coimbra procurando ter em conta os dispersos e também os discursos que proferiu, tentando o aproximado cômputo das lições dadas durante uma vida activíssima e num labor gigantesco, sem hiatos, suspendem-se e regressam atónitos perante a vastidão de formas que ficaram, ou passaram, jorrando, do poderoso caudal. Assim também a vida que ante nós decorreu, e só por ângulos parciais apreendemos, na multiplicidade das formas assumidas, quando evocada em horas de meditação solitária, ao tentarmos penetrar-lhe o enigmático sentido – também essa, a vida riquíssima e complexíssima, nos deixa perturbados, também aí a multiplicidade parece irresolúvel; se preferimos um caminho de compreensão, a breve trecho advertimos que outros começam a ficar para trás, mas se passarmos, com novo critério, a seguir caminho diferente, logo nos escapa alguma coisa que no primeiro começáramos a explorar. Ora, para um filósofo e um Mestre como Leonardo Coimbra, pertencente à cada vez mais rara família dos espíritos universais, não está tudo em seguir a linha de luz, nem vida tão significativa em todos os momentos pode alcançar-se, num deles sequer, sem penetrar-lhe todo o sentido. Onde haveremos, porém, de situar-nos para a ver plenamente sem injustiça ou falsidade, desde onde haveremos nós de considerá-la? Qualquer visão se revela afinal inadequada, por mais cuidadosa e fiel que se tenha esforçado por ser. Talvez metodologicamente a visão simplificadora, nos quadros da filosofia tradicional ou da ética comum, seja requerida para começar, pois de algum modo é forçoso começar; mas tal limitação metodológica não é aceitável se acaso se insiste em mantê-la como definitiva. Aliás, seria isso renegar o próprio espírito patente do magistério e da obra de um homem assim. Ensinou sempre Leonardo Coimbra, mostrou sempre e escreveu sempre de modo a não sacrificar a verdade divina no humano sistema e a não encerrar a vida infinita em qualquer fóssil fórmula, por mais bela ou nobre que parecesse, por mais alta tradição que apresentasse. Muitas vezes disso nos advertiu, muitas vezes o comunicou em palavra e exemplo; e no seu livro sem dúvida alguma mais original, A Alegria, a Dor e a Graça, advertiu como importa não apenas considerar no estudo da realidade e do homem “a fanerogâmica rútil de sol, mas também a criptogâmica das sombras».

Então, perguntar-se-á, e eu também me pergunto, não foi Leonardo Coimbra um pensador solar, não foi ele, como eu próprio tentei mostrar, a estupenda excepção num povo e numa região espiritual cuja vida religiosa e cuja filosofia são sombrias, intermitentes e nocturnas, estupenda, inesperada e magnífica excepção nesta Ibéria pressurosa de renegar o dia do Renascimento como se não fosse sequer madrugada? Quantas coisas sérias e fundas desdenhadas pelos nossos críticos e pelos historiadores da nossa cultura, sempre desatentos ao autêntico sentido universal da vida, bem diferente do mero universalismo abstracto, construção do intelecto sem fundas raízes no seio do Universo e no âmago do espírito! Também neste ponto hoje escapa todo o sentido do magistério e da obra de Leonardo Coimbra, como antes da sua vinda escapara já o mais oculto, obscuro e nocturno sentido da obra de Sampaio Bruno, os dois homens que com os poetas significativos do nosso país e da nossa época, procuraram dizer-nos que a autêntica vida de espírito só vale quando radicada no originário amor da verdade e no sentido fundo deste homem e desta terra, não em métodos ou resultados que se importam da sábia Europa. Quantos se aperceberam de que na sublime poesia de Pascoais estão solidários a árvore e o céu? A equivocada geração de Antero continua a dominar e a absorver a mente. E assim, o sentido da mensagem de Leonardo Coimbra e dos que imediatamente o precedem ou acompanham está injusta e gravemente desatendido ou deturpado.



Dotado daquele imperioso amor da verdade, tão raro, que move e abrasa a alma inteira, e como tal filósofo primacial, para tal sagrado naquele sem distância onde não chegam os juízos dos homens, Leonardo Coimbra foi portador da raríssima forma do Logos à qual os gregos sábios chamaram logos genesíaco: foi, como tal, Mestre, e no mais nobre sentido da palavra. Ora, quem de mestres alguma coisa sabe, e não só por ter tido a graça de receber a lição de um deles, mas por ter estudado longamente os admiráveis diálogos platónicos, e neles ter surpreendido tudo quanto a ideal sabedoria calou ou transmutou, esse e esses sabe e sabem como é raro um Mestre e quanto é absurdo julgar em nome do pensamento filosófico escrito, metodizado e sistematizado, aquela viva fonte que o torna possível. E se o dizem e o repetem, é por verem quanto estão cegos e surdos aqueles mesmos que deviam ver e ouvir.

Leonardo Coimbra surge, pois, como um Mestre no mais nobre sentido da palavra. Isto quer dizer que jamais transmitiu saber feito, nem método para o alcançar. Tendo dado testemunho da verdade, falou-nos não só da primeira, a que ilumina subitamente a alma, mas também da que surge depois, pelos longos e tenazes combates interiores. A sua exigência racional existia num grau que não vemos em qualquer outro pensador da sua pátria, e este contraste entre os subtis caminhos da fé, ou da intuição que a semelha, e a exigência da razão, tal contraste, digo, explicaria só por si os difíceis caminhos do seu pensamento. Como todos os homens da rara estirpe, sabia ele desde início que a verdade vem aos homens e neles se implanta por uma forma de fé autêntica e subtil, e que filosofia só da razão ou da intuição sem fé é coisa que dá glória humana ou gloríola terrestre, mas jamais abriu as cerradas portas do Templo sem materiais formas que se encontra a todo o momento submerso sob o caudal da vida fictícia, insignificativa e passageira.

Considerado em seu conjunto, perscrutado em sua activa essência, seu pensamento, e a vida e a obra que exemplarmente o exprimiram, fundem-se em harmoniosa ideia, viva e fecunda. Quem pudera não só tê-la sugerido, mas dado por completo! Foram maiores nalguns dos seus próximos os dons estéticos, outros (mas quantas vezes para apurarem insignificantes ninharias) raciocinaram mais rigoroso, nenhum entreabriu mais extraordinárias perspectivas ao espírito, nem deu tão admirável exemplo de inquieta e incessante busca da verdade. Até ao fim, até à conversão, e na mesma conversão, seu pensamento e sua vida perseguem um fim rigoroso e desenvolvem-se com harmonia sem par. Deveria saber-se que, em todo o tempo, de excesso de razões e formal logicismo adoeceu e morreu o pensamento sem originárias garantias e sério intento.

Três sinais, que nunca mentem, distinguiram sua alma profunda, assinalaram sua vida, se exprimiram em sua fisionomia, seu gesto, seu magistério poderoso, seu juízo implacável, sua imaginação alada, seu verbo fecundo e inolvidável: a exigência de verdade, o sentido da liberdade e a dádiva de amor espiritual aos discípulos, aos amigos, a qualquer classe, turma ou assembleia que o ouvisse, por mais impreparada ou ignara, fluindo através desses, para aqueles mesmos seus detractores, inocentes colaboradores e indirectos arautos da sua glória, que foram, e são, à direita e à esquerda, seus e nossos contemporâneos triunfantes.

Tal como a de todos os desdenhados pensadores portugueses do passado mais remoto e do século XIX, carece a obra de Leonardo Coimbra de leitura e interpretação completa, de estudo longo e compreensivo. No seu caso, é a obra, e mormente se nela incluirmos os dispersos, decisiva para nós, porque formula em nossa língua, e em termos mais próximos da tradição portuguesa, as frementes questões desta perturbada época e põe em linguagem actual, os eternos problemas. Todo o seu significado tornou-se-me mais evidente desde que estudei as suas relações com o pensamento de outro e desdenhado filósofo português, ao qual já antes aludi: Sampaio Bruno. Mas a obscura e profunda obra de Bruno, qualquer que seja o seu valor, e eu próprio tentei demonstrá-lo, não tem certamente par com a obra luminosa, imperiosa e decisiva de Leonardo Coimbra.



Sob certo aspecto exprime essa obra um mundo que morre, exprime-o na maneira de pôr os problemas, na forma de expressão, nos conceitos; sob outro aspecto, nas imagens mais raras e nas ideias mais fundas, assinala o mundo que alvorece. Para além do que se derruba ou do que desponta na linha incerta do horizonte, propõe significativamente, como nenhuma outra nossa, relações pensadas e meditadas com a vida profunda e sempiterna. E certamente, dado o plano a que ascendeu a sua fé e com ela o seu pensamento, o influxo espiritual de Leonardo Coimbra não depende já da vária sorte da filosofia, da cultura, da política ou mesmo da religião, na parte ou no aspecto em que esta permanece ligada e encadeada ainda nas formas da ignorância e da pequenez dos homens. O influxo do magistério e da obra ampla e multímoda, mas constante e consequente de Leonardo Coimbra, seguramente depende daquilo que é mais fundo e subtil na alma dos homens e, para além disso, do que excede o homem.

(In Obras de José Marinho, Estudos sobre o Pensamento Português Contemporâneo, Biblioteca Nacional, Lisboa, Gráfica Eme Silva, Travessa do Fala-Só, 1981, pp. 105-109).

Nenhum comentário:

Postar um comentário