Garcia Domingues |
A notícia do falecimento de Garcia Domingues (Silves, 18.5.1910-Lisboa, 1.5.1989) chegou-nos com frieza nos primeiros e tórridos dias de Julho, quando o seu corpo era já pura algidez. Não raro sucede que a morte nos leva amigos e conhecidos, sem que nos demos conta, ou sem que a informação nos chegue em tempo útil. Havia pouco, na Primavera deste ano, visitara-o em sua casa, na Rua de Moçambique aos Anjos, primeiro, com o propósito de obter da sua perícia alguns pareceres sobre a transcrição de arabismos contemplada no terceiro volume da nossa História da Filosofia Portuguesa; depois, no sentido de com ele preparar uma entrevista de fundo que os redactores da revista de filosofia portuguesa – Leonardo, desejavam manter com ele, acerca da sua obra, dos problemas do pensamento pátrio e da vida portuguesa nesta vertente derradeira do presente século. A mencionada entrevista realizou-se, foi publicada na revista Leonardo (n.º 4) com sensível alegria do entrevistado, que, já na antecâmara do fim, teve oportunidade de meditar, com a nova geração, as suas teses sobre pátria e nacionalidade, filosofia islâmica e cultura portuguesa, religião e filosofia, Portugal e Europa. Essa entrevista foi, segundo conjecturo, o seu último trabalho público de historiador e de pensador.
No entanto, quando o visitámos, pareceu bem de saúde, fumando o seu cíclico charuto, que, fumador, abandonara em tempo o cigarro, porque não podendo parar o vício, optara por fumar tabaco puro, sem papel. Mais tarde, ainda nos encontrámos, na tarde de um dia, numa sessão de lançamento de um livro da Editorial Verbo. Pareceu abatido, expressou esse abatimento e, logo de seguida à apresentação do livro, aliás feita pelo professor Gama Caeiro, retirou-se. Ali nos despedimos, um simples voto de melhoras, sem mais nada. Despedida breve para tão demorada viagem.
José Garcia Domingues foi o nosso último escritor moçárabe. Tinha ele isso por certo. Imerso na pesquisa da história luso-árabe, numa diuturna entrega que durou cerca de 45 anos, houve ensejo de percorrer a linha genealógica do seu patronímico Garcia, chegando a determinar a sua mais remota origem no seio de uma família moçárabe do século XII, residente no Andaluz e, em tempo, ramificada no Algarve. Dizia, com alguma graça, que, sendo arabista, às vezes parecia ser um anti-arabista, porque o que ele valorizava nos seus estudos luso-árabes era, com toda a evidência, o vector moçarábico – o da cultura cristã residente em meio muçulmano. No seu entender, aliás documentado, as massas invasoras que implantaram o Islão na Península Hispânica não eram constituídas por árabes puros. Destes, poucos, contavam-se pelos dedos. O resto, a massa invasora, incluía povos orientais e africanos de múltipla origem, no meio deles chegando também muitos cristãos islamizados, e foi por isso que o império muçulmano teve na Hispânia dois singulares: uma franca tolerância com os usos e costumes dos cristãos peninsulares (sem prejuízo das excepções e dos episódios contra) e um carácter de ubiquidade social, expresso na condição moçárabe, à qual foi possível manter a tradição axiológica cristã, sem prejuízo de assimilação dos valores culturais e técnicos do mundo árabe, naquilo em que eles não contraditavam o espírito cristão.
Sé Catedral de Silves |
O moçarismo explica, deste modo, a superficial radicação da fé islâmica na sociedade portuguesa, mesmo na população alentejana e algarvia, e a profunda usança dos métodos da sabedoria muçulmana na vida prática – agricultura, alvenaria, comércio, ciências dos pesos e das medidas, direito da terra e das gentes, naútica, botânica e medicina. O fenómeno moçarábico, tão antigo, explica também as razões pelas quais a expulsão dos mouros no final do século XV, por D. Manuel, jamais atingiu a dramaticidade da questão judaica, sendo muito menos os processos inquisitoriais por islamismo do que por judaísmo. Mesmo vivendo um determinado sincretismo religioso, feito de mistura de valores, a maioria da população arábica, ou como tal havida, estava em assimilação cultural e religiosa pela maioria cristã, ainda quando a educação cristã desta, fosse, a sul do Tejo, altamente deficiente.
Obra com três vertentes
Centro de Estudos Luso-Árabes de Silves |
Meditando os problemas do ensino, Garcia Domingues opera uma mutação de interesse e, iniciando o descobrimento das suas origens algarvias, mergulha fundo no estudo da cultura arábica, obtendo o diploma de Língua Árabe pelo Instituto de Línguas Africanas e Orientais da Escola Superior Colonial (depois Instituto Superior de Estudos Ultramarinos) e, mais tarde, idêntico diploma pela Faculdade de Filosofia e Letras de Madrid, onde foi bolseiro. Esta faceta de Garcia Domingues – bolseiro de estudos e de ciências arábicas – fazia-o desaparecer com frequência de Lisboa. Conviva habitual do grupo da “filosofia portuguesa”, raro faltava quando, em férias, regressava de Madrid. Álvaro Ribeiro e José Marinho, ambos filólogos, estimavam as suas opiniões etimológicas, ainda quando esperassem dele, mais do que o contributo histórico, o contributo filosófico. Membro do Conselho Permanente do Congresso de Estudos Arábicos e Islâmicos, participou ainda no de Évora (1982) organizado pela União Europeia de Arabistas e Islamólogos, a que pertencia. Situa-se ele, como arabista, na geração por hábito designada “depois de David Lopes” que, falecido em 1942, criou, nas aulas que durante anos regeu, um considerável número de arabistas, a tal ponto considerável, que ainda os mais modernos podem aferir-se ao magistério de David Lopes.
O primeiro trabalho luso-arábico de fundo, subscrito por Garcia Domingues, foi a colectânea de episódios e de figuras meridionais – História Luso-Árabe (1945) – depois do que aparece mais atento à composição de compêndios para o ensino da história da civilização, que sempre elaborou em conformidade com os programas oficiais para o ensino liceal. Muitos de nós estudámos pelos seus compêndios, em geral publicados em fascículos de capa verde, e muito ilustrados pela União Gráfica. É já na actividade do Centro de Estudos Escolásticos de Lisboa que Garcia Domingues expressa em público os estudos que ia fazendo na área da cultura árabe, produzindo então diversos opúsculos – figuras do pensamento luso-árabe, problemática do entrosamento na história política peninsular, estudos filológicos e de arte, de geografia e de sociologia, etc. Foi-lhe possível enunciar e construir a tese sobre o contributo dos moçárabes para o movimento das taifas, e sobre a importância destas para a definição das nações hispânicas medievais, entre elas Portugal. Raro Garcia Domingues isola o arabismo luso; quase sempre documenta um sólido enlace entre os árabes e os cristãos do ocidente andaluz, e, pois, um sólido avaliamento das nossas raízes moçarábicas. Foi leal a essas teses, que desenvolveu em múltiplos escritos, sempre opusculares, e constituídos, ou por textos escritos para a imprensa periódica, ou para assembleias e congressos.
A “filosofia portuguesa” esperava dele um volume para a filosofia arábico-portuguesa. Foi ela um projecto, sucessivamente adiado, de Garcia Domingues. Autor, exigente, algumas vezes mencionou a proximidade da confecção dessa obra que seria a chave de ouro de uma vida trabalhosa. Era, no entanto, escrupuloso e cada dificuldade, ou documental, ou interpretativa, o levava a recuar. E morreu sem que tivesse publicado o fruto desse projecto. Ignoramos se o chegou a produzir, e se estará, desse modo, inédito.
Sé Catedral de Silves |
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