sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Teoria da cisão

Escrito por José Marinho








«A cisão é (...) o mundo da decisão, porque todo o juízo, todo o decidir, todo o determinar, todo o afirmar e negar como real ou como existente, ou como ser, ou como verdade, está na cisão, e nem pode sem ela pôr-se nem sem ela compreender-se. E está na cisão como o que se torna outro, ou o cinde de si e o torna outro».

José Marinho («Teoria do Ser e da Verdade»).


«Tal qual o entendo, o sentido das filosofias nacionais é uma das formas de regresso às origens próprias do filosofar, um dos modos de distinguir a filosofia teorética e especulativa de uma filosofia cultural, livresca e universitária. Entre as duas há o abismo que medeia entre o que é vivo e o que o foi».

José Marinho («Estudos sobre o Pensamento Português Contemporâneo»).



É estranho ao primeiro aspecto notar como numa região espiritual onde segundo todas as aparências goza a filosofia de escasso favor, os seus cultores mostram tanto interesse pelo problema da razão.

Notá-lo requer, por certo, não só alguma leitura reflexiva das obras mais significativas e mais próximas da filosofia portuguesa, mas também, e antes disso, possível entendimento do problema em sua universalidade singular, concreta e urgente.

Singular, visto como não há radicado pensar senão num homem situado: pois que a humanidade, o mundo, ou algo mais que por intuição, crença ou hipótese uma e o outro impliquem, se pensa em cada um dos humanos. Concreta, porque a razão vem de vários modos crescendo ou por subtis formas se minora em cada um dos chamados seres racionais. Urgente, porque se o homem não pode subsistir sem toda a verdade ou alguma verdade reflectidamente aceite, é incontestável para todas as teses formuladas ou possíveis que se a verdade não depende originariamente da razão, nada pode mostrar-se verdadeiro sem o seu assentimento.

Ao interpretar o conceito de razão no pensamento português contemporâneo, não temos em mente tratar o problema em qualquer forma de vaga generalidade, mas concretamente em cada um dos pensadores responsáveis e nas respectivas relações de afinidade ou contraste. O problema não está, em nós, referido à humanidade, realidade móvel, incerta, difícil de apreender, enigmática, senão misteriosa, mas é sim o problema do exercício da razão ou seja do raciocínio, correlato com o problema da própria razão em sua potencialidade significativa ou fecunda efectividade.

Supérfluo se afigura mostrar que a razão aparece sem sentido enquanto não assume a reflexiva sondagem de si própria. Se ela está para além do que espontaneamente chamamos consciência, não pode ser menos que reflexiva, pelo menos no instante decisivo e nos momentos cruciais do seu processo. Só pode saber ou conhecer algo na medida em que se sabe a si ou a si própria se conhece ou reconhece em sua potência e seus sempre actuais limites.

Que encontra a razão quando se sonda a si? Algo estranho, inabitual, surpreendente. A razão se encontra como forma do íntimo pensar cindido de si e do próprio ser, do real em nós ou nas coisas, mas cindido como o que tem a responsabilidade de unir ou mostrar como se une o que aparece irredutivelmente separado e distante à mente humana. O que chamamos julgar e conceber, o raciocínio, o que contrapomos como saber discursivo e mediato ao saber espontâneo, directo e imediato, tem no que estamos expondo, e desde sempre, origem primeira e primordial sentido.




Assim, a Oriente e Ocidente, sem o conceito de cisão, não há possibilidade aberta de a razão se conceber a si própria. Tal o ponto crucial. Dele depende toda a relação entre verdade no discurso e verdade sem discurso, entre mediatidade e imediatidade, entre razão e intuição.

A cisão, o que por isso pode qualquer reflectido ser pensante entender (pois seu misterioso enigma no fundo não surge apenas e estritamente a pensadores) - a cisão, dizemos, pode em seu conceito dispensar-se nas fases por assim dizer felizes do viver e pensar dos homens. Se, porém, a necessidade e urgência de tal conceito não surgira para a generalidade dos pensadores do século V a. C., ou dos medievais do século XIII, ou ainda para os filósofos aparentemente tão perto de nós nos séculos XVII e XVIII, até à crítica de Kant - o conceito grave e sério de cisão agora se requer de modo imperioso e inelutável.

Se, em sua primeira origem, razão supõe cindir e unir, ou o que cinde e o que une, essa relação contrastante, repercutindo em todos os momentos do processo do pensamento, aparece mais agudamente nos momentos críticos do processo.

Isso mesmo ocorre na época que estamos vivendo, época da cisão extrema, anunciada em termos graves e solenes pela crítica kantiana e caracterizada por todas as dificuldades que assume o autêntico pensamento dialéctico ou fenomenológico-existencial do nosso tempo.

Se a nossa tese está certa, a mesma razão que resulta da cisão leva esta em seu seio. Termos já clássicos como distinção, divisão, análise, crítica, e com mais evidência de extrínseca etimologia precisão, indicam o que dizemos e levam de algum modo a pensá-lo.

Infelizmente, a necessidade lógica não é entendida como a moral ou a económica. A necessidade moral do justo e do injusto, do que me é lícito ou ilícito, a necessidade económica do comer, do morar ou do vestir, são mais imediatamente imperiosas porque se exprimem logo na ordem do sentir e para o fácil ou pronto entendimento. A necessidade lógica ou já ontológica, a intrínseca necessidade de pensar ou da mais profunda e subtil razão de pensar, queda na maioria dos casos desatendida. Cabe, porém, esperar, e esperar sempre, que os homens com responsabilidades filosóficas não lhe recusem sua reflexiva atenção, não a recusem, pelo menos, quando alguém de boa mente e com adequado argumento a solicita.

Se, pois, o homem não é no sentido mais simples ou simplificado, e como todas as garantias, animal ou ser racional, se o homem veio e vem incessantemente ao ser e à razão, e à enigmática e interrogativa relação de ambos, pois é impossível afirmar, posto que o vimos, como simples e segura evidência, que o que sabemos enquanto somos e o que pensamos mesclem em nós suas águas - atenção longa e reflectida cabe neste ponto.

Se a razão emerge com o que cinde, ou pelo que cinde, ela leva, e por isso mesmo, consigo própria, e no âmago de si, grave e única responsabilidade de unir ou de meditadamente decidir o que, com ela, ou apesar dela, restabelecerá a união entre o que separa, o que é, de si próprio, ou o separa do seu sentido. Então, cabe dizê-lo, a condição da razão, da racionalidade e do ser racional não é uma sinecura, mas por certo a mais intensa e a mais decisiva das ocupações.

Posto o que dissemos, ao interrogarmo-nos sobre a situação tão significativa dos nossos filósofos modernos no seio da crise, verificaremos que a razão se cinde entre nós como na Europa, em formas quase sempre contrapolares: a da razão conceptual ou ainda só conceptiva, que busca a compreensão e a possível harmonia dos diversos, a da razão judiciosa, que encarna a grave responsabilidade (tão poucas vezes dignamente assumida!) de excluir como erróneo ou falso o que não é ou ainda não é verdadeiro.



Sampaio Bruno



Se quisermos desde já dar evidente exemplo da crise, da separação aguda ou do distrofismo no nosso pensamento contemporâneo, encontrá-lo-emos no que separa abissalmente, e apesar de todas as afinidades, o pensamento de Sampaio Bruno e o pensamento de Basílio Teles. Mais aguda, entretanto, se tornou a cisão nas formas do pensamento português dos nossos dias. (...) Sampaio Bruno e Leonardo Coimbra mantêm-se fiéis ao que no pensar tende a superar a cisão e visa a unir na ordem lógica ou já na ordem ontológica as diversas instâncias do ser e do saber; (...) em Basílio Teles e António Sérgio, pelo contrário, mas no último mais acentuadamente, a razão judiciosa toma o passo à razão compreensiva e elimina como erróneo ou falso o que é ou se lhe afigura obscuro ou vago, metafórico, hiperbólico, fantasioso ou inconsequente. Ocioso lembrar que as formas por vezes equívocas ou polémicas mais ou menos surdas ou explícitas do contraste, ou acusada contraposição, resultam no caso português nalguma medida das nem sempre felizes contingências ou da circunstancialidade contracta das formas de pensar. Isto, porém, e por tudo quanto neste livro mostrámos, não retira ao contraste e à contraposição tudo quanto aí persite de radicada, concreta significação, e também de universal sentido.

Cabe reconhecer sem ilusões que entre nós, e não só entre nós, para bem ou para mal, é a razão judiciosa que decide, de um decidir, afinal, sempre ilusório. Com sua altiva e pressurosa ciência, com seu sentido lógico quase sempre infudamentado, simulado, ou mais ou menos subtilmente artificioso, é a razão que julga e quase sempre condena, a que detém a potestas clavium - pois foi essa que já outrora supôs poder definitivamente abrir as portas do céu cristão ou de qualquer céu, e hoje supõe ter só por si segredos dos autênticos caminhos do pensamento ou das vias abertas ao homem sobre a terra. Assim, dizemos ainda, e o dizemos sem intuito polémico, a razão judiciosa, alienada a responsabilidade de compreender tudo quanto lhe é aparentemente irredutível, todo o diferente, todo o diverso ou divergente, relega para a ignorância, para a retórica vazia, ou para o gongórico ilogismo, aqueles mesmos que a outra e melhor luz mantêm o sentido da lógica mais autêntica ou do logos entendido no sentido substancial ou já insusbstancial.

Não só (...) os cultores da filosofia em Portugal mostraram reiterado e por vezes sério interesse pelo problema da razão, mas ainda tal se traduz no próprio título de algumas obras inegavelmente significativas dos nossos pensadores: Defesa do Racionalismo ou Análise da Fé e Razão Experimental, respectivamente de Amorim Viana e Leonardo Coimbra, Razão e Absoluto e Razão Animada, que devemos a dois dos pensadores mais diversamente reflexivos de hoje, José Bacelar e Álvaro Ribeiro.

(...) Acentua-se neste ponto do nosso estudo o paradoxo radical. Não se mostra ele apenas na filosofia portuguesa contemporânea, mas, sob várias formas, na Europa inteira.

Qual seja o paradoxo, é mais fácil tentar dizê-lo do que foi averiguá-lo.

Uma parte dos nossos filósofos que a si mesmo se classificam de racionalistas, ou como tais apareceram geralmente designados, não têm em todo o rigor do termo um conceito de razão. Não é que não nos falem muito de razão e das suas virtudes, mesclando assim, com atenção deficiente à crise desenhada pela filosofia kantiana, razão pura e razão prática, não é que nos não advirtam repetidamente da necessidade e da urgência de sermos lógicos, de pensarmos com clareza, consequente aparelho ou conclusivo aparato. Mas é que nos falam como se tal fosse sempre fácil de entender-se (e de propriamente e responsavelmente teorizar-se!), falam como se em algum homem, alguma obra, algum tempo, a razão se tivesse fixado, e houvesse aí uma lógica perfeita e assimilável para uso estável ou até imperituro, regras de pensar que uma filosofia, ou toda a filosofia, uma ciência, ou toda a ciência, de uma vez por todas nos forçassem a aceitar, para assim dignamente fruirmos da humana dignidade e condição.



Manuel Kant



Se procurarmos atentamente nos nossos racionalistas desde Amorim Viana um conceito de razão, dificilmente podemos dar-nos por satisfeitos. Nociva ou inocente, a razão é, diríamos, nos nossos racionalistas, sem razão. Ora, pode e deve perguntar-se: tem a razão em filosofia e nos vários graus ou estádios originais ou cruciais da ciência o poder de afirmar-se e afirmar, de julgar e decidir, sem procurar sua própria garantia? Pode a razão ser sem razão? (in Condição, Verdade e Destino no Pensamento Português Contemporâneo, Lello & Irmãos Editores, 1976, pp. 165-172).


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