domingo, 28 de agosto de 2011

Estado e Pranto da Igreja

Escrito por Álvaro Pais 




Sé Catedral de Silves


«No século XIV foi Bispo de Silves D. Álvaro Pais, clérigo natural de Santarém, que antes exercera o cargo de Secretário do Papa João XXI, em Avinhão. Era homem extremamente culto, autor de vários trabalhos, entre os quais Do Poder Papal e Colírio da Fé contra as Heresias. Defendeu sempre a supremacia do poder papal sobre o dos reis. 

Em Silves malquistou-se com a população pelo facto desta se manter em erros e vícios como a poligamia, que muito atacou, e com o Comendador de Mértola. Por esse motivo, vítima de ameaças tremendas e de perseguição, teve de fugir da cidade. Diz uma tradição que, ao abandonar Silves, amaldiçoou a cidade do alto do Monte da Jóia e que, por isso, Silves começou desde logo a decair.

Em virtude de um conflito com o Rei D. Afonso IV, que o queria submeter às suas justiças, D. Álvaro Pais refugiou-se em Sevilha, onde morreu».


Garcia Domingues 





Estado e Pranto da Igreja


E que ninguém na terra pode apelar, salvo para Deus, do seu [Papa] juízo e sentença pronunciada de ciência certa […], porque apela-se do menor para o maior […]. Ora, o Papa só tem Deus como superior […]. Creio, no entanto, que se poderia apelar do Papa mal informado para o informar bem. […] Com efeito, podendo o Papa pecar e ser enganado como homem […], não deve ele, que foi posto para corrigir os erros dos outros, envergonhar-se se corrigir o erro próprio, a fim de não nascerem injustiças da fonte donde manam os direitos […] Também fez em favor disto o que se lê de Alexandre Magno, monarca do Oriente, quando uma vez cheio de fúria condenou à morte um seu soldado. Como apelou da sentença para o imperador, este perguntou-lhe: «Acaso não sou eu o imperador?» Ao que observou o soldado: «Não, porque o imperador não se enfurece». Devido a isto, o imperador Alexandre revogou a sentença, dizendo: «Dizes a verdade».

[…] Também em razão da jurisdição, que é boa, o Senhor determina se obedeça mesmo aos maus superiores. Causa I, q. I, cap. Non quales: «Portanto, considera, imperador: se ele disse para serem ouvidos os que se sentavam na cadeira de Moisés, quanto mais julgas que devem ser obedecidos os que se sentam na cadeira de Pedro?».

[…] E que a Igreja universal não pode errar senão em seus membros corruptos […], porque Cristo, que é a sua cabeça, ora pela fé dela […]. O Pai sempre ouve e atende a oração do Filho.

[…] E que, naquilo que não vai contra os artigos da fé e coisas a eles adjacentes e contra os sacramentos, o Papa pode mais sozinho que toda a Igreja Católica e os concílios […], porque toda a jurisdição vem dele; ele, porém, recebe-a imediatamente de Deus […].


Vaticano


[…] E que, salvo em certas coisas mínimas, ninguém, nem mesmo o colégio dos cardeais, vagando o papado sucede ao Papa na jurisdição. Todavia, durante a vacatura do Papado, parece que a assembleia dos cardeais pode excomungar ou anatematizar […].

[…] E que, mesmo que nesta vida o Papa faça ofensa ou injustiça a alguém, não tem juiz sobre si, nem é obrigado a escolher juízes ou árbitros a cuja sentença se sujeite, se não quer. […]

E não se diga: assim, o Papa, às vezes, agravará uma pessoa, esta não encontrará justiça sobre a terra, e deste modo perecerá a justiça. Confesso que pode acontecer que o Papa proceda contra a justiça ou peque […] e que a justiça algumas vezes seja banida. Mas não admira, porque muitas coisas, que ficam impunes neste mundo, estão reservadas para o juízo divino […], mormente os actos do Papa […]. E note-se que, se o Papa delinquir, será punido junto de Deus mais severamente que outrem.

Também não é obrigado a eleger árbitros, porque então seria coagido, ao menos por medo da pena, a cumprir a sentença deles […]. Mesmo que entre as partes se estabelecesse ou dissesse que o cumprimento da pena ficava ao arbítrio do Papa, a verdade é que este seria condenado pela arbitragem […]. E, assim, o Papa, que não pode ser condenado por via ordinária, seria condenado por via arbitral, o que não deve fazer-se, pois aquilo que se proíbe por uma via não deve regularmente admitir-se por outra […].

Ora, o Papa nem directa nem indirectamente pode ser condenado, nem dar a ninguém o poder de o julgar, embora, por humildade, o tenha feito algumas vezes […].

E não obsta o que se nota à dist. LXIII, cap. in synodo, na glosa sed numquid, porque não é verdade o que João [André] aí observa: que o Papa, em caso de heresia, pode dar ao imperador o poder de o depor com o consenso dos cardeais. Sendo o Papa constituído pelo Senhor, príncipe e juiz de tudo […], e pelos Apóstolos […], é impossível pelo direito que o próprio Papa possa constituir sobre si outro príncipe ou juiz superior, ou um arquipapa ou um Papa igual a si, tal como também Deus Trindade não poderia constituir outro Deus superior ou igual a si. […]

Portanto, se o Papa permanecesse incorrigível em heresia já notoriamente condenada, e, podendo, não quisesse renunciar ao Papado […], então os cardeais poderiam e deveriam afastar-se dele e escolher outro, porque foi privado por sentença de direito […].

Note-se também que o Papa herético é inferior a qualquer católico, caso em que eu creria que o sínodo universal, que é a cabeça da Igreja em lugar de Deus, visto que a Igreja nunca fica de tal modo vaga que não tenha cabeça, Cristo […] o poderia condenar, assim como o Papa católico pode condenar o Papa não católico […]. E até nesse caso não é necessária sentença, porque a primeira heresia pertinaz priva pelo próprio direito qualquer um do benefício; sim, é privado pelo direito, como acabo de dizer e está expresso nas decretais do livro 6º De Haereticis, cap. VI commissi, § Priuandi, onde diz «[concedemos a faculdade] de privar ou declarar privados das dignidades e outros benefícios eclesiásticos», e no § Sunt autem, onde diz «declarar privados».


[…] E que o Papa tem jurisdição universal em todo o mundo, não só nas coisas espirituais, mas também nas temporais. No entanto, deve exercer a execução do gládio e jurisdição temporal por meio do seu filho o imperador legítimo, quando o haja, como advogado e defensor da Igreja, e por meio de outros reis e príncipes do mundo, como acontece no património da Igreja […], e noutras terras da Igreja por meio de seus governadores. Porque, assim como há um só Cristo, sacerdote e rei, senhor de todas as coisas, assim também há um só vigário-geral seu na terra e em tudo. Para isto, Jeremias, I: «Eis que te constituí hoje sobre os povos e sobre os reinos…», etc. Ora, Jeremias sacerdote foi a figura do Papa, como argumenta Inocêncio III, decretais, De maioritate et obedientia, cap. Solitae, §. Nos autem, onde diz: «para mostrar como alheio ao seu ovil aquele que não reconhecesse como mestres e pastores a Pedro e seus sucessores». Os pastores são tomados por Cristo como senhores das ovelhas. […] Item, invocando o nome do Senhor, Samuel, que, embora não seja sacerdote, figura o Papa, julgou e governou o povo de Israel em todos os seus dias […]. Item, Melquisedech, sacerdote de Deus Altíssimo, foi rei de Salém, isto é, de Jerusalém […], e teve a figura de Cristo […], e, assim, do Papa, vigário de Cristo […]. Item Moisés sacerdote […] representou a pessoa de Cristo […], e governou em toda a sua vida o povo de Israel. […]

Item, o gládio de Pedro é gládio temporal. Mateus, XXVI, diz: «Mete a tua espada na bainha», e causa XXIII, q., I, § I. Item, na família de Cristo, havia dois gládios. Lucas, XXII: «Eis aqui duas espadas», nas quais, segundo o doutores, se entende a dupla jurisdição […]. A favor disto fazem a dist. X, cap. Suscipitis, onde diz «a lei de Cristo submete-vos ao poder sacerdotal e sujeita-vos a estes tribunais» a causa I, q. IV, cap. Quia praesulatus: «Porque o magistério do nosso governo, que, bem sabeis, deve ser solícito, não só com os interesses dos sacerdotes, mas também com os dos seculares». Dist. XXII, cap. Omnes: «o qual (Cristo) confiou ao santo clavígero da vida eterna os direitos do império terreno e os do império celeste simultaneamente» quando disse «Apascenta as minhas ovelhas» […], palavras estas com que Cristo fez a Pedro pastor e prelado do mundo […], não distinguindo nessas palavras entre estas e outras ovelhas, clérigos ou seculares.

Item, o Papa priva os reis dos seus reinos e o imperador do seu império […].

Item, o imperador presta juramento de fidelidade ao Papa […].

Item, o Papa intromete-se na herança temporal […].

Item, como as almas são mais preciosas que os corpos, e as coisas espirituais mais dignas que as temporais […], àquele a quem foram confinadas as almas e as coisas espirituais, muito mais se devem confiar os corpos e as coisas materiais […].

Item, Cristo usou os dois gládios, como se lê e nota na dist. X, cap. Quoniam. Ora, Cristo, constituindo Pedro seu vigário, não lhe dividiu a jurisdição que tinha; entende-se que lha concedeu completamente como a tinha […].

Item, o Papa é vigário não dum puro homem, mas de Deus […]; logo, também pertencem ao Papa a terra e a sua plenitude.

Item, assim como há um só Deus, uma só fé, como acima se disse, um só vigário de Deus, assim também há uma só jurisdição.

Item, os imperadores pagãos e idólatras nunca possuíram justamente, tomando-se a justiça no sentido teológico ou divino […], porque quem não está verdadeiramente com Deus Senhor de tudo, mas contra ele por idolatria ou heresia, nada pode verdadeiramente possuir sob Ele […]; logo, os reinos dos idólatras e pagãos que não prestam verdadeiro culto a Deus, embora por eles ocupados, voltaram com razão para a Igreja, à qual, aliás, antes pertenciam, conforme se lê na causa XXIII, q., cap. I, onde diz «segundo o direito divino pelo qual todas as coisas são dos justos» e abaixo, «por isso falsamente chamais vossas às coisas que não possuís justamente», e depois «já que ledes que está escrito: Os justos comerão os trabalhos dos ímpios». E no predito cap. Si de rebus: «Para todos os ímpios e iníquos vale aquela voz do Senhor: Ser-vos-á tirado o reino de Deus e dado a um povo que faça justiça (Mateus, XXI, no fim)». Eclesiástico, X: «Um reino é transferido dum povo para outro por causa das diversas injustiças, violências, ultrajes e enganos»; e abaixo: «Deus destruiu os tronos dos príncipes soberbos e em seu lugar fez sentar os humildes». Item, no cap. Si de rebus: «Os justos comerão os trabalhos dos ímpios»; e abaixo, no V, Aliquim: «Aliás, também os próprios Judeus, a quem foi, segundo as palavras do Senhor em Mateus, XI, tirado o reino e dado a um povo que faz justiça, podem objectar com a concupiscência da coisa alheia, visto que a Igreja de Cristo possui os lugares onde antes reinavam os perseguidores de Cristo.» […]

Item, uma razão de João [André] pela qual o imperador não pode revogar a doação feita à Igreja pelos seus predecessores é a de que ele deu à Igreja coisas que antes eram dela […].



São Pedro



Item, observa Lourenço à dist. X, cap. Quoniam, que o Papa tem ambos os gládios, e que se faz mister conceder que nenhum imperador, se não recebeu o gládio das mãos da Igreja Romana, o aplicou ilegitimamente, sobretudo depois que Cristo concedeu os direitos dos dois poderes a S. Pedro. Foi por entender assim que Constantino, na resignação das insígnias reais, entregou o gládio a S. Silvestre, mostrando desta maneira que não usara legitimamente do poder da espada, nem legitimamente o possuíra, visto não o ter recebido da Igreja, conforme vem nas crónicas […].

Item, sustenta o Ostiense que, embora as jurisdições sejam distintas quanto à execução, todavia o imperador transferiu o império dos Gregos para os Germanos por concessão da Igreja Romana na pessoa de Carlos Magno, e o Papa confirma, unge, coroa, aprova, reprova e depõe o imperador, como está patente no cap. Venerabilem, § Verum, V, Praesertim, visto tal direito e poder terem ido da Sé Apostólica para eles. […] Além de que, vagando o império, sucede-lhe a Igreja […].

Item, afirma o Ostiense que, quando o Senhor disse a Pedro «Dar-te-ei as chaves do reino dos céus», não disse a chave, mas as chaves, isto é, duas, uma para fechar e abrir, e ligar e absolver quanto às coisas espirituais, e outra para usar quanto às coisas temporais […]. De facto, sendo nós um só corpo e um só espírito em Cristo, e uma só esperança da nossa vocação, e havendo um só Senhor e uma só fé, um só baptismo, e um só Deus […], seria monstruoso que tivéssemos duas cabeças […].

Item, em Mateus, últ., diz Cristo: «Foi-me dado todo o poder no céu e na terra»; ora o Papa, ainda que seja vigário do verdadeiro Deus na terra […], não tem, todavia, senão a vigararia de Deus homem, porque Cristo, enquanto Deus, está sempre na terra, pois Deus enche todas as coisas […], e não precisava de vigário; mas, enquanto verdadeiro homem que havia de subir ao Pai, deixou a Pedro e seus sucessores o cuidado do seu rebanho, para não o deixar sem pastor […]. Porém, nas preditas palavras «Foi-me dado, etc…» o Filho de Deus fala como verdadeiro homem, porque, enquanto Deus, teve sempre o mesmo poder que o Pai. Daí Atanásio dizer: «Omnipotente é o Pai, omnipotente é o Filho, etc…» […]. Item, diz todo; portanto, não exceptua nada […]. Item, diz na terra; poder que Cristo teve, não só como verdadeiro Deus, mas também como verdadeiro homem. […] Com efeito, o Papa é, nisto, o sucessor do primeiro homem, Adão, pois antonomástica e tipicamente Deus Filho formou o Papa seu vigário à sua imagem e semelhança (Gén., I). De facto, o Papa representa verdadeiramente Cristo na terra, por forma que aquele que o vê com olhos contemplativos e fiéis vê também a Cristo. […]

Item, Cristo, mesmo enquanto homem, foi rei. Assim, de facto, foi dito a seu respeito (Zacarias, IX): «Eis o teu rei, etc…», e assim se vê em Mateus, XXI e XXVII, em Lucas, XXIV, e no título de rei posto por Pilatos «Jesus Nazareno, rei dos Judeus» (João, XIX). Salmos, LXXI: «Ó Deus, dá a tua equidade ao rei». Lucas, I: «e reinará na casa de Jacob». Daniel, II, para o fim: «Nos dias, porém, daqueles reinos suscitará o Deus do céu um reino, etc…». Ora, o imperador deste reino universal não é vigário de Cristo, visto que não há dois vigários, como mais acima se provou; logo, o Papa é vigário, porque não há outro vigário e o reino do mundo não existe sem vigário de Deus.

Esta verdade de que o Papa tem ambos os poderes, embora seja obrigado a cometer a outrem a execução do gládio temporal, é sustentada, como comum, na glosa ordinária às decretais, Qui filii sint legitimi, cap. Causam quae II, e De iudiciis, cap. Nouit (Estado e Pranto da Igreja, in Álvaro Pais, Editorial Verbo, 2001, pp. 89-92; 96-101).


Sé Catedral de Silves


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