Escrito por António Quadros
«A Providência, que é boa, justa e piedosa, faz agir o mundo e o homem.»
Paulo Orósio
«É
verdade muito certa
Este sonho que sonhei.»
Bandarra
«É este mundo um teatro; os homens, as figuras que nele representam, e a história verdadeira dos seus sucessos uma comédia de Deus, traçada e disposta maravilhosamente, pela providência.»
«Se a história não é um passatempo vão; se, como toda a ciência humana, deve ter uma causa final objectiva...».
Alexandre
Herculano
«A suma total, a síntese da existência da humanidade são com efeito um progresso que tem por objecto a liberdade absoluta do espírito. Essa é a filosofia que encerra em si o conjunto de factos incoerentes, contraditórios, progressivos, repressivos, da história dos diferentes povos.»
«... pelo lento desenvolvimento das ciências experimentais o homem chega ao conhecimento da invariabilidade das leis físicas, primeiro grau de positividade, e por uma demolição sucessiva das antigas concepções chega a uma emancipação da consciência, que se exerce na crítica dos factos sociais que lhe aparecem sem prestígio na sua extrema variabilidade ou relativismo. É no conhecimento desta natureza do fenómeno social que está o futuro da liberdade humana.»
Teófilo
Braga
«Eis porque seja que o movimento resulte o facto irredutível, característico do mundo. O movimento é o início e o fundamento de tudo, porque seja o avanço na série das formas evolutivas, com o fito final do regresso ao espírito homogéneo. Esta, a única finalidade natural; eis o fragmento de verdade que se contém no conceito teleológico...».
«O tempo é obra das mónadas e ele será a virtude e o progresso da liberdade. Não é a uma absorpção em Deus que as almas aspiram, mas a uma vida social ideal, de justiça e fraternidade perfeitas.»
Leonardo Coimbra (Ver aqui e aqui).
«Devo à Providência a graça de ser pobre...».
Oliveira Salazar («O meu Depoimento»).
«Os limites do sebastianismo estão em obstinar-se no mero plano histórico-político, em não ascender àquele sentido de redenção que consiste em amor e lúcida compreensão, fraternidade e paz.»
«Não somos estátuas, não somos estantes, não fixamos estados, e, sabendo que viajamos com maior ou menor velocidade, interrogamo-nos quanto à finalidade e ao fim da viagem. A definição teleológica será portanto, mais valiosa do que a definição substancialista.»
«A filosofia da história é o produto lógico da síntese espontânea entre a observação defeituosa do sido e a observação existencial do sendo que o historiador representa e que é o seu verdadeiro foco de iluminação das imagens caóticas, fragmentárias e mortas dos factos; e é o produto lógico do encontro entre uma concepção do mundo e do homem que tem raízes na sua relação com a vida, com o ser e com o espírito – e um acervo plural de dados que, sem a sua integração num todo coerente, não seriam sequer história. E quanto mais consciente for este ajuste entre o filósofo e o investigador, quanto mais filósofo for o investigador, mais probabilidade haverá, não só de adequar a história à verdade (de que sempre exprime um afastamento) mas também de ultrapassar o próprio historicismo, conferindo-lhe o lugar que lhe compete no quadro do conhecimento.»
«Perante
o desastre de Alcácer Quibir, Tomé de Jesus premune o povo para uma visão: há
bens que são males, há males que são por bem (Trabalhos de Jesus, I, VII) como se até o mal – causa deficiente,
ausência de bem – houvesse uma função escatológica e tivesse, a seu modo, uma
mediação de contraponto que, através do contraste, concitasse a humana atenção
para o seu oposto. A visão por Tomé de Jesus apresentada ao povo tem por fim
ensinar que no projecto divino nada é em vão, e que mesmo a dor, o sofrimento e a
derrota, servem de pré-texto ao escopo do decreto eterno sobre o destino do
homem e do mundo. Neste caso, e segundo uma leitura aristotélico-tomista, o mal
não constitui uma pura negação do bem, antes é a privação do bem, sendo este
bem o destino eterno do homem e do universo, desde a sua criação. Qual o
mecanismo lógico e axiomático que serve de premissa maior a esta visão? É a
ideia de providência, em torno da
qual se formulam uma filosofia e uma teologia da história, o providencialismo.
De
acordo com o sistematizador da doutrina escolástica, a providência é o plano do
universo eternamente presente e actuante no divino intelecto (Tomás de Aquino, S. T., I, q. 22 a 1) ou o plano eterno
de Deus sobre o destino da criação, que só a vontade do criador realizará. A
ideia tem matriz teofânica, qual essa que os judeus substanciam na invocação
“Pai, que o (mundo) governais” (Livro da
Sabedoria, 14, 3) mas a elaboração filosófica prende-se com a relação que
Aristóteles propõe do acto puro para
a causa final que garante, na dedução
lógica, o encaminhamento das coisas para a sua razão de ser, que é o fim pelo
qual as coisas são, pois tudo é para algum telos, nada sendo vão. O finalismo
de Aristóteles prende-se com a noção de pronóia
que Platão aduziu (O Timeu, 44 c), e
que a latinidade traduziu as mais das vezes por providentia. Em todo o caso pronóia
parece equivaler mais à noção de presciência
do que à noção de providência, já
que, por esta, Deus intervém na história e, por aquela, Deus apenas tem uma
ciência de anterioridade lógica em relação às coisas criadas, sem que envolva
uma vontade de intervenção. O providencialismo enlaça a pronoiologia platónica
e a teleologia aristotélica, por modo a que o providencialismo vem a ser teoria
dos princípios e do finalismo postulador do bem como o último fim do homem,
apesar dos males que a existência lhe aporta, ou que ele aporta à existência.
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A Consagração de Santo Agostinho, por Jaume Huguet |
Na
sua forma católica, o providencialismo radica na teologia de Santo Agostinho
sobre a história humana, sendo elaborado um ambiente prenhe de maniqueísmo.
Enquanto a leitura histórica do maniqueísmo propõe o bem e o mal como valores contrários, que se negam um ao outro,
Santo Agostinho tende a aduzir uma oposição,
pela qual o bem é, apesar do mal, e o mal está, apesar do bem. Nos dias da
queda do Império, os Romanos tendem a um judicativismo maniqueísta: o Império é
o bem que vive a ruína provocada pelo mal, consubstanciado numa Igreja que
ascende e derruba o poder imperial. Agostinho reinterpreta: a cidade demoníaca
opõe-se mas não nega a soberania da cidade
de Deus. Os males que o homem vive na cidade terrestre são procurso da cidade celeste; não obstante
os males presentes há um plano divino, eterno e infalível, que orienta a
história humana, através dos males, para o fim de perfeição necessariamente
próprio da suma Bondade, que é Deus. Sendo Bondade perfeita, Deus só pode
querer o bem e, por isso, através do procursus
na malignidade e na deficiência, o homem encaminha-se para o finis debitii, a civitate Dei, anunciada por uma cristandade que ascende, através de
um Império que rui. Misericórdia, Justiça e Providência, Deus cria e ama o
Mundo, julga os actos e providencia aos fins, à luz de tais infalíveis
atributos. A doutrina levanta problemáticas várias, quais as relativas à
predestinação e à liberdade, uma vez que o mundo e o homem se acham
inelutavelmente sujeitos ao governo divino do mundo. Estas problemáticas estão
no cerne da filosofia e de toda a antropologia fundamentada, constituindo a
causa das doutrinas, já do tomismo, sobre o governo providencial através das causas segundas, já da ciência média, já do extremo
predestinacionismo de Malebranche, que formula o ocasionalismo, em que Deus chega ao ponto de regular os
acontecimentos na ocasião.
O
providencialismo é uma teofania da história, e a própria história surge como
milagre divino, em que a inteligência criativa e a vontade operativa divinas
intervêm, ou directamente, ou através de mensageiros, por isso que a teofania
propõe também uma marionofania, uma angelofania e, até, uma hierofania, qual a
dos heróis e a dos santos, que são agentes e tenentes da vontade divina,
entendíveis como significantes de causas segundas, através das quais a vontade
divina providencia o finalismo da história e da natureza.
A
demonstração lógica dialéctica carece, para mais eficaz compreensão didáctica e
paidêutica, de um suplemento de prova.
Santo Agostinho elaborou a doutrina providencialista, partindo dos pressupostos
existenciais, lógicos e písticos, mas não curou de aduzir uma dedução em
particular. Ora, para deduzir, a partir da história para a filosofia, que a
providência faz agir o mundo e o homem, Agostinho recorreu ao presbítero
bracarense Paulo Orósio, que, nos sete livros da Historiarum adversus Paganos, narra a história universal segundo a
teofania augustiniana, efectuando uma transliteração do sentido veterotestamentário
para toda a humanidade. No Antigo Testamento, Israel é a história do homem
segundo a providência divina; na História de Orósio a Humanidade é a história do
homem segundo a vontade divina revelada e encarnada, em vista da redenção, por
Jesus Cristo, que se torna prova da tese providencial. Os livros de Orósio,
lidos qual iniciação às moléstias do mundo, interpretados como via de transição
da desgraça histórica para a graça celeste, deram à medievalidade a única
perspectiva salvífica que aquela conheceu. O providencialismo, segundo a
filosofia de Agostinho e segundo a história de Orósio, destinou-se ao triunfo
no quadro das teologias da história e tornou-se doutrina preferencial, de tal
modo que, exceptuando os historiadores deterministas, fatalistas e
materialistas, a generalidade dos historiadores portugueses intelige a história
segundo um critério providencialista, que utiliza, já nos momentos de abjecção,
já nos instantes de glória. Quase prescinde de prova casuística a asserção de
que o providencialismo permanece como a doutrina preferida da nossa filosofia
da história até Alexandre Herculano, visto que, mesmo a Academia Real de
História, ao tornar de maior rigor positivo a leitura do passado, não obrigou
os académicos ao abandono da visão providencialista, permitindo o recurso aos
documentos sagrados, despidos de intencionalidade historiográfica.
O
milagre de Ourique tende a concretizar num momento de manifestação e de provação,
a leitura providencialista que, radicada em Agostinho-Orósio, prossegue em
Idácio de Chaves, cujo Chronicon,
continuado por Isidoro de Sevilha, efectua o contraste do pessimismo do povo
face à invasão bárbara com o optimismo eclesial, que vê o rebanho em vias de
aumento. O bem futuro é visível através da opacidade do mal presente, tal como
se intelige na visão apocalíptica joanina; igual juízo é exarável acerca do Chronicon, de Isidoro Pacense, e do
comentário do Apríngio de Beja, que, através do pessimismo milenarista intelige
a época de “redenção universal”, ou de “transformação do homem decaído” – temas
que foram objecto da meditação teoantropológica de Álvaro Ribeiro, cuja obra raro
omite o oriente histórico do finalismo e do providencialismo, por vezes
aferido, como em Agostinho da Silva e Jaime Cortesão, à ideia de Espírito Santo, o último fim da história, enquanto hipóstase do amor.
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Agostinho da Silva |
Há muitos exemplos de história providencialista, todavia, a vantagem dinástica quase sempre se atribui, por malícia, a Bernardo de Brito. Como Bernardo de Brito cuidou pouco da hermenêutica documental – dando como facto histórico o que parece não exceder a lenda – a historiografia positivista prevalece-se do defeito técnico para envolver o posicionamento filosófico do cisterciense. Bernardo de Brito leva a teofania aos limites da cristofania, ordenando a história em torno de um Cristo encarnado na história (há fecundas analogias entre o Cristo histórico cêntrico de Brito e o Cristo cósmico de Chardin!) e inteligindo um “epílogo geral das cousas do mundo” (Mon. Lu., I, pról.) que se verá num esplendor de triunfo, depois da humanidade purgante. A catástrofe do terramoto de 1755 terá constituído um dos derradeiros momentos da catárse providencialista quando, às explicações naturalista, mecanista e geológica, Bernardino de Santa Rosa, Francisco de Pina e Melo e, até, os parenetas das comunas judaicas exiladas, opuseram a leitura providencialista, inferindo que o fenómeno viera como divino acto de justiça para rectificação da justiça portuguesa. A oficialização da história positiva, pela qual se julga incerta a causa final (Joaquim Veríssimo Serrão, ob. cit., pág. 190, assim a considera) levou a uma ocultação do providencialismo que, apesar disso, prevalece na filosofia portuguesa como visão da história. O homem é um cooperador do sobrenatural na redenção universal segundo o plano eterno da criação. Como querem Bruno, Leonardo Coimbra e José Marinho, cuja teoria da cisão envolve a visão unívoca.
Pinharanda Gomes («Providencialismo», in Dicionário
de Filosofia Portuguesa).
De Santo Agostinho a Paulo Orósio
Quando
Aristóteles disse que «a poesia é mais filosófica do que a história»,
referia-se à história do seu tempo, à história de Heródoto, e não a uma
história que absorvesse a sua teorização da causa final. Quando assim
sucedesse, estaria fundada a história filosófica, isto é, uma história não já
apenas do particular mas do universal, história capaz de interpretar os
acontecimentos, não como emergências existenciais e cíclicas de um mito não
existencial e eterno, nem tão-pouco como séries de factos encadeados uns aos
outros pela exclusiva relação de consequente e antecedente, mas sim pela sua
adunação universal, pela sua adunação versus
unum, necessariamente finalista.
Tal
história filosófica viria a surgir
dez séculos depois de Aristóteles com a filosofia cristã, para a qual todos os
acontecimentos se ordenam providencialmente, segundo uma teleologia e, mais que
uma teleologia, uma escatologia, pois o telos
do bem de Aristóteles é ampliado para o eschaton
da Parúsia. O seu doutrinador é Santo Agostinho, que distingue entre a cidade terrestre e a cidade de Deus. Os herdeiros de Caim,
marcados pelo mal e pela impiedade, estão em permanente conflito com os
herdeiros de Abel, filhos da luz e da verdade, componentes e representantes da
Igreja de Cristo. Mas para além deste conflito escatológico, uma realidade se
impõe, realidade profética que ilumina os verdadeiros fins da história e
confere sentido e significação à massa caótica dos factos e dos eventos. Santo Agostinho descreve-a desta maneira, quase a terminar o livro X de A Cidade de Deus e referindo-se à
revelação através dos grandes profetas: «Mas havia outros factos,
verdadeiramente grandes e divinos, e cuja realização futura eles anunciavam,
lendo, tanto quanto lhes era dado, na vontade de Deus: a vinda de Cristo na sua
carne com todas as maravilhas que surgiram na sua pessoa ou foram realizadas em
seu nome, o arrependimento dos homens e a conversão das suas vontades a Deus, a
remissão dos pecados, a graça que justifica, a fé dos santos e por toda a terra
essa multidão de homens que acreditam na verdadeira divindade, a subversão do
culto dos ídolos e dos demónios, como as provas sofridas pelos fiéis, a
purificação daqueles que progridem e a sua Libertação de todo o mal, o dia do
Juízo, a eterna danação da sociedade dos ímpios e o reino eterno da muito
gloriosa cidade de Deus no gozo imortal da sua presença visível, eis o que foi
predito e prometido nos escritos sagrados desta via, e nós vemos cumpridas
tantas destas promessas, que, inspirados por uma recta piedade, temos a
convicção de que outras o serão».[1]
Este
finalismo escatológico, que exige a teologia, a profecia e, num terceiro grau,
a história – para confirmação factológica, garantia da causa final através da
causa eficiente, comprovação do cumprimento das promessas – é já precursor da
filosofia da história. Mas Santo Agostinho, preocupado em refutar
doutrinariamente a tese, muito divulgada depois da tomada de Roma por Alarico,
de que o cristianismo, desacreditando o paganismo, trouxera a ruína do Império e
da civilização, foi muito mais teólogo do que historiador. Abriu caminho à
filosofia da história, mas não a realizou ainda assim, como também não realizou
a história filosófica, implícita no pensamento de Aristóteles e que aliás
anunciava nas últimas linhas de A Cidade
de Deus, sem ter podido encetá-la: «Vou pois agora, como prometi no
primeiro livro, e na medida em que for ajudado de cima, expor o que me parece
dever ser dito acerca das duas cidades que, já o dissemos, se interpenetram e
se interinfluenciam reciprocamente no século actual, falar da sua origem, da
sua história e dos fins que as esperam».[2]
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Sé Catedral de Braga |
Quem
levou a cabo esta empresa arriscada foi o seu discípulo Paulo Orósio, o famoso
presbítero da Sé de Braga que, pelos Sete
Livros de História contra os Pagãos[3],
merece pois ser considerado como o pai da história filosófica, tanto como
Heródoto é considerado o pai da história (não filosófica) e Santo Agostinho, o
precursor da filosofia da história.
Orósio
é, de facto, o primeiro a escrever, sistemática e coerentemente, uma autêntica história filosófica, garantida por um
lado na especulação metafísica de signo aristotélico e por outro lado na
concepção agostiniana da história, cujo providencialismo, afirmando embora a
omnipresença divina no princípio, no meio e no fim da história, não descurou o circunstancialismo propriamente
humano da cidade terrena.
É
certo que o objectivo apologético da missão de que Santo Agostinho incumbiu
Orósio – demonstrar que o cristianismo, longe de fazer retrogradar a
civilização, a fez progredir –, terá prejudicado esta primeira tentativa de uma
história filosófica.
Sob
o ponto de vista das exigências postas por Aristóteles, não há dúvida de que
Orósio se houve com extraordinária argúcia e frescura. Realmente, não apenas
soube harmonizar as causalidades eficiente e final, igualmente presentes nos
acontecimentos históricos evocados, como desenvolveu, antes de qualquer outro,
uma teoria da relatividade histórica de acordo com a crítica de Aristóteles a
Heródoto. Este fora acusado de fazer história particular: e eis agora que Orósio se opunha francamente à
particularização histórica, nacional ou outra, afirmando decididamente a
relatividade dos juízos históricos.
Não
se limita efectivamente Orósio a narrar a história de uma nação, mas procura
estabelecer nexos comparativos entre várias evoluções nacionais, pondo em
dúvida a valoração que os nacionais fazem das suas próprias histórias. «Os
romanos, e Alexandre anteriormente, arrasaram com as suas guerras povos que,
posteriormente, receberam nos seus impérios e governaram por suas leis. Os
godos, como inimigos, originaram agora desastres nas terras que, se lograssem
conquistar (Deus não o permita) tentariam governar pelas suas próprias leis. A
posteridade chama poderosos reis àqueles que nós consideramos agora os nossos
mais ferozes inimigos.»[4]
Em
última análise, o juízo sobre as nações e os homens pertence a Deus. Nós
podemos analisar, comparar, interpretar, arriscar teses e até fundamentar
teologicamente a apologia do cristianismo na história. Permanecerá sempre,
todavia, um elemento misterioso, que nos inibe de pronunciar juízos dogmáticos
ou inteiramente objectivos. Ao ajuizar, afirmamos uma perspectiva, mas não
representamos o absoluto. Devemos caminhar no sentido de nos libertarmos cada
vez mais da perspectiva, mas só na medida em que dela tivermos consciência é
que lograremos amplificar a nossa visão. Foi esta a intuição genial de Orósio,
o contributo filosófico que deu à filosofia da história do seu mestre – já que
o contributo propriamente histórico foi imenso.[5]
Fenómeno
notável é decerto a herança de Orósio no pensamento historiográfico português.
Bem sabemos que a sua obra, aprovada oficialmente por bula papal em 494, foi o
cânone histórico da escolástica até ao século XII, tendo pois sido estudada nos
conventos e escolas monacais. Bem sabemos, por outro lado, que o nome e a
figura deste discípulo de Santo Agostinho e amigo de S. Jerónimo, que nasceu ou
pelo menos ensinou e exerceu o seu múnus no território que viria a ser português,
deixou à nossa cultura medieval uma grande tradição. Mas nem por isso é menos
surpreendente o facto de podermos detectar a sua influência (juntamente com a
de Santo Agostinho) ao longo de seis séculos de adesão portuguesa ao
providencialismo histórico, tal como o interpretou.
Este
providencialismo é patente na obra de um João de Barros, de um Frei Bernardo de
Brito, de um António Vieira, de um Cunha Seixas, de um Sampaio Bruno, de um
Jaime Cortesão, de um Agostinho da Silva, para citar apenas aqueles que melhor
o consciencializaram em termos teleológicos, mas não deixa de ser transparente
na obra de muitos que, nem por o traduzirem em termos afirmativamente
imanentistas, deixaram de o representar. Pensamos especialmente em Herculano,
em Oliveira Martins e em Teófilo Braga, os quais, por intermédio de uma
metodologia positivista ou sociológica, defenderam, num ou noutro plano, a
teleologia da história portuguesa.
E que dizer do que podemos considerar um neoprovidencialismo social? Este último já não afirma uma teleologia providencial de escopo escatológico, mas uma teleologia providencial de escopo socialista. Que toda a história se desenvolva em ordem à realização final da cidade de Deus, ou, com idêntica lógica (mas muito mais necessitarismo ainda), em ordem à realização final da Justiça através de uma dialéctica social classista, em que o proletariado exerce a função da Igreja, ou do Corpo Místico, o processo mental e psicológico é muito semelhante. E nós vemos inclusivamente um Vitorino Magalhães Godinho, na exposição das suas teses mercantilistas[6], procurar insistentemente o relativismo histórico que Orósio apresentara já no século V. Teremos de distinguir, simplesmente, entre um providencialismo pleno (que no entanto não é estático, pois caminha a par e passo com a maturação gnoseológica e antropológica que vai abrindo novos horizontes à imagem do homem) e um providencialismo parcelar, que explora unicamente um dos valores da metafísica judeo-cristã (a justiça, catolicamente concebida) ou uma das virtudes teologais (a caridade, sociologicamente considerada).
(In António Quadros, Introdução à Filosofia da História, Editorial Verbo, Lisboa, 1982, pp. 29-34).
[1] Santo Agostinho, A Cidade de Deus, Tomo II, Livro X, Cap.
XXXII, trad. francesa, Librarie Garnier, Paris.
[2] Ob. cit.
[3] Testemunha bem da indiferença ou
do automatismo das nossas instituições de cultura, o facto de a obra de Paulo
Orósio (sem a qual não se entende a historiografia teleológica dos Portugueses
ou de outros europeus), Historiarum Libri,
VII Adversus Pagans, obra
fundamental, traduzida para inglês e estudada pelos grandes filósofos da
história, como, há poucos anos, Karl Löwith, não só não estar traduzida para a
nossa língua, como, o que é ainda mais grave, não existir qualquer exemplar na
Biblioteca Nacional ou na Biblioteca da Faculdade de Letras de Lisboa, onde se
ministram os cursos de História e de Filosofia. Nesta última, depois de recorrer
aos catálogos, apenas deparámos com um dos sete livros, no texto latino... Esta
pesquisa foi realizada em 1966. No entanto, está actualmente (1982) em
preparação uma edição portuguesa.
[4] De Os Sete Livros de História contra os Pagãos.
[5] V. os excelentes capítulos sobre
Paulo Orósio e a sua teoria da história nos livros Correntes da Filosofia em Braga, de Mário Martins, S. J., e El Sentido de la História, de Karl
Löwith.
[6] Vitorino de Magalhães Godinho, «Introdução» da obra Os Descobrimentos e a Economia Mundial, Ed. Arcádia, Lisboa, 1963.
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