segunda-feira, 15 de setembro de 2025

De Santo Agostinho a Paulo Orósio

Escrito por António Quadros




«A Providência, que é boa, justa e piedosa, faz agir o mundo e o homem.»

Paulo Orósio

 

«É verdade muito certa

Este sonho que sonhei.»

Bandarra

 

«É este mundo um teatro; os homens, as figuras que nele representam, e a história verdadeira dos seus sucessos uma comédia de Deus, traçada e disposta maravilhosamente, pela providência.»

António Vieira

 

«Se a história não é um passatempo vão; se, como toda a ciência humana, deve ter uma causa final objectiva...».

Alexandre Herculano

 

«A suma total, a síntese da existência da humanidade são com efeito um progresso que tem por objecto a liberdade absoluta do espírito. Essa é a filosofia que encerra em si o conjunto de factos incoerentes, contraditórios, progressivos, repressivos, da história dos diferentes povos.»

Oliveira Martins

 

«... pelo lento desenvolvimento das ciências experimentais o homem chega ao conhecimento da invariabilidade das leis físicas, primeiro grau de positividade, e por uma demolição sucessiva das antigas concepções chega a uma emancipação da consciência, que se exerce na crítica dos factos sociais que lhe aparecem sem prestígio na sua extrema variabilidade ou relativismo. É no conhecimento desta natureza do fenómeno social que está o futuro da liberdade humana.»

Teófilo Braga

 

«Eis porque seja que o movimento resulte o facto irredutível, característico do mundo. O movimento é o início e o fundamento de tudo, porque seja o avanço na série das formas evolutivas, com o fito final do regresso ao espírito homogéneo. Esta, a única finalidade natural; eis o fragmento de verdade que se contém no conceito teleológico...».

Sampaio Bruno

 

«O tempo é obra das mónadas e ele será a virtude e o progresso da liberdade. Não é a uma absorpção em Deus que as almas aspiram, mas a uma vida social ideal, de justiça e fraternidade perfeitas.»

Leonardo Coimbra (Ver aqui e aqui).

 

«Devo à Providência a graça de ser pobre...».

Oliveira Salazar («O meu Depoimento»).

 




«Os limites  do sebastianismo estão em obstinar-se no mero plano histórico-político, em não ascender àquele sentido de redenção que consiste em amor e lúcida compreensão, fraternidade e paz.»

José Marinho

 

«Não somos estátuas, não somos estantes, não fixamos estados, e, sabendo que viajamos com maior ou menor velocidade, interrogamo-nos quanto à finalidade e ao fim da viagem. A definição teleológica será portanto, mais valiosa do que a definição substancialista.»

Álvaro Ribeiro

 

«A filosofia da história é o produto lógico da síntese espontânea entre a observação defeituosa do sido e a observação existencial do sendo que o historiador representa e que é o seu verdadeiro foco de iluminação das imagens caóticas, fragmentárias e mortas dos factos; e é o produto lógico do encontro entre uma concepção do mundo e do homem que tem raízes na sua relação com a vida, com o ser e com o espírito – e um acervo plural de dados que, sem a sua integração num todo coerente, não seriam sequer história. E quanto mais consciente for este ajuste entre o filósofo e o investigador, quanto mais filósofo for o investigador, mais probabilidade haverá, não só de adequar a história à verdade (de que sempre exprime um afastamento) mas também de ultrapassar o próprio historicismo, conferindo-lhe o lugar que lhe compete no quadro do conhecimento.»

António Quadros

 

«Perante o desastre de Alcácer Quibir, Tomé de Jesus premune o povo para uma visão: há bens que são males, há males que são por bem (Trabalhos de Jesus, I, VII) como se até o mal – causa deficiente, ausência de bem – houvesse uma função escatológica e tivesse, a seu modo, uma mediação de contraponto que, através do contraste, concitasse a humana atenção para o seu oposto. A visão por Tomé de Jesus apresentada ao povo tem por fim ensinar que no projecto divino nada é em vão, e que mesmo a dor, o sofrimento e a derrota, servem de pré-texto ao escopo do decreto eterno sobre o destino do homem e do mundo. Neste caso, e segundo uma leitura aristotélico-tomista, o mal não constitui uma pura negação do bem, antes é a privação do bem, sendo este bem o destino eterno do homem e do universo, desde a sua criação. Qual o mecanismo lógico e axiomático que serve de premissa maior a esta visão? É a ideia de providência, em torno da qual se formulam uma filosofia e uma teologia da história, o providencialismo.

De acordo com o sistematizador da doutrina escolástica, a providência é o plano do universo eternamente presente e actuante no divino intelecto (Tomás de Aquino, S. T., I, q. 22 a 1) ou o plano eterno de Deus sobre o destino da criação, que só a vontade do criador realizará. A ideia tem matriz teofânica, qual essa que os judeus substanciam na invocação “Pai, que o (mundo) governais” (Livro da Sabedoria, 14, 3) mas a elaboração filosófica prende-se com a relação que Aristóteles propõe do acto puro para a causa final que garante, na dedução lógica, o encaminhamento das coisas para a sua razão de ser, que é o fim pelo qual as coisas são, pois tudo é para algum telos, nada sendo vão. O finalismo de Aristóteles prende-se com a noção de pronóia que Platão aduziu (O Timeu, 44 c), e que a latinidade traduziu as mais das vezes por providentia. Em todo o caso pronóia parece equivaler mais à noção de presciência do que à noção de providência, já que, por esta, Deus intervém na história e, por aquela, Deus apenas tem uma ciência de anterioridade lógica em relação às coisas criadas, sem que envolva uma vontade de intervenção. O providencialismo enlaça a pronoiologia platónica e a teleologia aristotélica, por modo a que o providencialismo vem a ser teoria dos princípios e do finalismo postulador do bem como o último fim do homem, apesar dos males que a existência lhe aporta, ou que ele aporta à existência.


A Consagração de Santo Agostinho, por Jaume Huguet

Na sua forma católica, o providencialismo radica na teologia de Santo Agostinho sobre a história humana, sendo elaborado um ambiente prenhe de maniqueísmo. Enquanto a leitura histórica do maniqueísmo propõe o bem e o mal como valores contrários, que se negam um ao outro, Santo Agostinho tende a aduzir uma oposição, pela qual o bem é, apesar do mal, e o mal está, apesar do bem. Nos dias da queda do Império, os Romanos tendem a um judicativismo maniqueísta: o Império é o bem que vive a ruína provocada pelo mal, consubstanciado numa Igreja que ascende e derruba o poder imperial. Agostinho reinterpreta: a cidade demoníaca opõe-se mas não nega a soberania da cidade de Deus. Os males que o homem vive na cidade terrestre são procurso da cidade celeste; não obstante os males presentes há um plano divino, eterno e infalível, que orienta a história humana, através dos males, para o fim de perfeição necessariamente próprio da suma Bondade, que é Deus. Sendo Bondade perfeita, Deus só pode querer o bem e, por isso, através do procursus na malignidade e na deficiência, o homem encaminha-se para o finis debitii, a civitate Dei, anunciada por uma cristandade que ascende, através de um Império que rui. Misericórdia, Justiça e Providência, Deus cria e ama o Mundo, julga os actos e providencia aos fins, à luz de tais infalíveis atributos. A doutrina levanta problemáticas várias, quais as relativas à predestinação e à liberdade, uma vez que o mundo e o homem se acham inelutavelmente sujeitos ao governo divino do mundo. Estas problemáticas estão no cerne da filosofia e de toda a antropologia fundamentada, constituindo a causa das doutrinas, já do tomismo, sobre o governo providencial através das causas segundas, já da ciência média, já do extremo predestinacionismo de Malebranche, que formula o ocasionalismo, em que Deus chega ao ponto de regular os acontecimentos na ocasião.

O providencialismo é uma teofania da história, e a própria história surge como milagre divino, em que a inteligência criativa e a vontade operativa divinas intervêm, ou directamente, ou através de mensageiros, por isso que a teofania propõe também uma marionofania, uma angelofania e, até, uma hierofania, qual a dos heróis e a dos santos, que são agentes e tenentes da vontade divina, entendíveis como significantes de causas segundas, através das quais a vontade divina providencia o finalismo da história e da natureza.

A demonstração lógica dialéctica carece, para mais eficaz compreensão didáctica e paidêutica, de um suplemento de prova. Santo Agostinho elaborou a doutrina providencialista, partindo dos pressupostos existenciais, lógicos e písticos, mas não curou de aduzir uma dedução em particular. Ora, para deduzir, a partir da história para a filosofia, que a providência faz agir o mundo e o homem, Agostinho recorreu ao presbítero bracarense Paulo Orósio, que, nos sete livros da Historiarum adversus Paganos, narra a história universal segundo a teofania augustiniana, efectuando uma transliteração do sentido veterotestamentário para toda a humanidade. No Antigo Testamento, Israel é a história do homem segundo a providência divina; na História de Orósio a Humanidade é a história do homem segundo a vontade divina revelada e encarnada, em vista da redenção, por Jesus Cristo, que se torna prova da tese providencial. Os livros de Orósio, lidos qual iniciação às moléstias do mundo, interpretados como via de transição da desgraça histórica para a graça celeste, deram à medievalidade a única perspectiva salvífica que aquela conheceu. O providencialismo, segundo a filosofia de Agostinho e segundo a história de Orósio, destinou-se ao triunfo no quadro das teologias da história e tornou-se doutrina preferencial, de tal modo que, exceptuando os historiadores deterministas, fatalistas e materialistas, a generalidade dos historiadores portugueses intelige a história segundo um critério providencialista, que utiliza, já nos momentos de abjecção, já nos instantes de glória. Quase prescinde de prova casuística a asserção de que o providencialismo permanece como a doutrina preferida da nossa filosofia da história até Alexandre Herculano, visto que, mesmo a Academia Real de História, ao tornar de maior rigor positivo a leitura do passado, não obrigou os académicos ao abandono da visão providencialista, permitindo o recurso aos documentos sagrados, despidos de intencionalidade historiográfica.

O milagre de Ourique tende a concretizar num momento de manifestação e de provação, a leitura providencialista que, radicada em Agostinho-Orósio, prossegue em Idácio de Chaves, cujo Chronicon, continuado por Isidoro de Sevilha, efectua o contraste do pessimismo do povo face à invasão bárbara com o optimismo eclesial, que vê o rebanho em vias de aumento. O bem futuro é visível através da opacidade do mal presente, tal como se intelige na visão apocalíptica joanina; igual juízo é exarável acerca do Chronicon, de Isidoro Pacense, e do comentário do Apríngio de Beja, que, através do pessimismo milenarista intelige a época de “redenção universal”, ou de “transformação do homem decaído” – temas que foram objecto da meditação teoantropológica de Álvaro Ribeiro, cuja obra raro omite o oriente histórico do finalismo e do providencialismo, por vezes aferido, como em Agostinho da Silva e Jaime Cortesão, à ideia de Espírito Santo, o último fim da história, enquanto hipóstase do amor.


Agostinho da Silva


Há muitos exemplos de história providencialista, todavia, a vantagem dinástica quase sempre se atribui, por malícia, a Bernardo de Brito. Como Bernardo de Brito cuidou pouco da hermenêutica documental – dando como facto histórico o que parece não exceder a lenda – a historiografia positivista prevalece-se do defeito técnico para envolver o posicionamento filosófico do cisterciense. Bernardo de Brito leva a teofania aos limites da cristofania, ordenando a história em torno de um Cristo encarnado na história (há fecundas analogias entre o Cristo histórico cêntrico de Brito e o Cristo cósmico de Chardin!) e inteligindo um “epílogo geral das cousas do mundo” (Mon. Lu., I, pról.) que se verá num esplendor de triunfo, depois da humanidade purgante. A catástrofe do terramoto de 1755 terá constituído um dos derradeiros momentos da catárse providencialista quando, às explicações naturalista, mecanista e geológica, Bernardino de Santa Rosa, Francisco de Pina e Melo e, até, os parenetas das comunas judaicas exiladas, opuseram a leitura providencialista, inferindo que o fenómeno viera como divino acto de justiça para rectificação da justiça portuguesa. A oficialização da história positiva, pela qual se julga incerta a causa final (Joaquim Veríssimo Serrão, ob. cit., pág. 190, assim a considera) levou a uma ocultação do providencialismo que, apesar disso, prevalece na filosofia portuguesa como visão da história. O homem é um cooperador do sobrenatural na redenção universal segundo o plano eterno da criação. Como querem Bruno, Leonardo Coimbra e José Marinho, cuja teoria da cisão envolve a visão unívoca.

Pinharanda Gomes («Providencialismo», in Dicionário de Filosofia Portuguesa).

  

De Santo Agostinho a Paulo Orósio

 

Quando Aristóteles disse que «a poesia é mais filosófica do que a história», referia-se à história do seu tempo, à história de Heródoto, e não a uma história que absorvesse a sua teorização da causa final. Quando assim sucedesse, estaria fundada a história filosófica, isto é, uma história não já apenas do particular mas do universal, história capaz de interpretar os acontecimentos, não como emergências existenciais e cíclicas de um mito não existencial e eterno, nem tão-pouco como séries de factos encadeados uns aos outros pela exclusiva relação de consequente e antecedente, mas sim pela sua adunação universal, pela sua adunação versus unum, necessariamente finalista.

Tal história filosófica viria a surgir dez séculos depois de Aristóteles com a filosofia cristã, para a qual todos os acontecimentos se ordenam providencialmente, segundo uma teleologia e, mais que uma teleologia, uma escatologia, pois o telos do bem de Aristóteles é ampliado para o eschaton da Parúsia. O seu doutrinador é Santo Agostinho, que distingue entre a cidade terrestre e a cidade de Deus. Os herdeiros de Caim, marcados pelo mal e pela impiedade, estão em permanente conflito com os herdeiros de Abel, filhos da luz e da verdade, componentes e representantes da Igreja de Cristo. Mas para além deste conflito escatológico, uma realidade se impõe, realidade profética que ilumina os verdadeiros fins da história e confere sentido e significação à massa caótica dos factos e dos eventos. Santo Agostinho descreve-a desta maneira, quase a terminar o livro X de A Cidade de Deus e referindo-se à revelação através dos grandes profetas: «Mas havia outros factos, verdadeiramente grandes e divinos, e cuja realização futura eles anunciavam, lendo, tanto quanto lhes era dado, na vontade de Deus: a vinda de Cristo na sua carne com todas as maravilhas que surgiram na sua pessoa ou foram realizadas em seu nome, o arrependimento dos homens e a conversão das suas vontades a Deus, a remissão dos pecados, a graça que justifica, a fé dos santos e por toda a terra essa multidão de homens que acreditam na verdadeira divindade, a subversão do culto dos ídolos e dos demónios, como as provas sofridas pelos fiéis, a purificação daqueles que progridem e a sua Libertação de todo o mal, o dia do Juízo, a eterna danação da sociedade dos ímpios e o reino eterno da muito gloriosa cidade de Deus no gozo imortal da sua presença visível, eis o que foi predito e prometido nos escritos sagrados desta via, e nós vemos cumpridas tantas destas promessas, que, inspirados por uma recta piedade, temos a convicção de que outras o serão».[1]

Este finalismo escatológico, que exige a teologia, a profecia e, num terceiro grau, a história – para confirmação factológica, garantia da causa final através da causa eficiente, comprovação do cumprimento das promessas – é já precursor da filosofia da história. Mas Santo Agostinho, preocupado em refutar doutrinariamente a tese, muito divulgada depois da tomada de Roma por Alarico, de que o cristianismo, desacreditando o paganismo, trouxera a ruína do Império e da civilização, foi muito mais teólogo do que historiador. Abriu caminho à filosofia da história, mas não a realizou ainda assim, como também não realizou a história filosófica, implícita no pensamento de Aristóteles e que aliás anunciava nas últimas linhas de A Cidade de Deus, sem ter podido encetá-la: «Vou pois agora, como prometi no primeiro livro, e na medida em que for ajudado de cima, expor o que me parece dever ser dito acerca das duas cidades que, já o dissemos, se interpenetram e se interinfluenciam reciprocamente no século actual, falar da sua origem, da sua história e dos fins que as esperam».[2]

Sé Catedral de Braga






Quem levou a cabo esta empresa arriscada foi o seu discípulo Paulo Orósio, o famoso presbítero da Sé de Braga que, pelos Sete Livros de História contra os Pagãos[3], merece pois ser considerado como o pai da história filosófica, tanto como Heródoto é considerado o pai da história (não filosófica) e Santo Agostinho, o precursor da filosofia da história.

Orósio é, de facto, o primeiro a escrever, sistemática e coerentemente, uma autêntica história filosófica, garantida por um lado na especulação metafísica de signo aristotélico e por outro lado na concepção agostiniana da história, cujo providencialismo, afirmando embora a omnipresença divina no princípio, no meio e no fim da história, não descurou o circunstancialismo propriamente humano da cidade terrena.

É certo que o objectivo apologético da missão de que Santo Agostinho incumbiu Orósio – demonstrar que o cristianismo, longe de fazer retrogradar a civilização, a fez progredir –, terá prejudicado esta primeira tentativa de uma história filosófica.

Sob o ponto de vista das exigências postas por Aristóteles, não há dúvida de que Orósio se houve com extraordinária argúcia e frescura. Realmente, não apenas soube harmonizar as causalidades eficiente e final, igualmente presentes nos acontecimentos históricos evocados, como desenvolveu, antes de qualquer outro, uma teoria da relatividade histórica de acordo com a crítica de Aristóteles a Heródoto. Este fora acusado de fazer história particular: e eis agora que Orósio se opunha francamente à particularização histórica, nacional ou outra, afirmando decididamente a relatividade dos juízos históricos.

Não se limita efectivamente Orósio a narrar a história de uma nação, mas procura estabelecer nexos comparativos entre várias evoluções nacionais, pondo em dúvida a valoração que os nacionais fazem das suas próprias histórias. «Os romanos, e Alexandre anteriormente, arrasaram com as suas guerras povos que, posteriormente, receberam nos seus impérios e governaram por suas leis. Os godos, como inimigos, originaram agora desastres nas terras que, se lograssem conquistar (Deus não o permita) tentariam governar pelas suas próprias leis. A posteridade chama poderosos reis àqueles que nós consideramos agora os nossos mais ferozes inimigos.»[4]

Em última análise, o juízo sobre as nações e os homens pertence a Deus. Nós podemos analisar, comparar, interpretar, arriscar teses e até fundamentar teologicamente a apologia do cristianismo na história. Permanecerá sempre, todavia, um elemento misterioso, que nos inibe de pronunciar juízos dogmáticos ou inteiramente objectivos. Ao ajuizar, afirmamos uma perspectiva, mas não representamos o absoluto. Devemos caminhar no sentido de nos libertarmos cada vez mais da perspectiva, mas só na medida em que dela tivermos consciência é que lograremos amplificar a nossa visão. Foi esta a intuição genial de Orósio, o contributo filosófico que deu à filosofia da história do seu mestre – já que o contributo propriamente histórico foi imenso.[5]

Fenómeno notável é decerto a herança de Orósio no pensamento historiográfico português. Bem sabemos que a sua obra, aprovada oficialmente por bula papal em 494, foi o cânone histórico da escolástica até ao século XII, tendo pois sido estudada nos conventos e escolas monacais. Bem sabemos, por outro lado, que o nome e a figura deste discípulo de Santo Agostinho e amigo de S. Jerónimo, que nasceu ou pelo menos ensinou e exerceu o seu múnus no território que viria a ser português, deixou à nossa cultura medieval uma grande tradição. Mas nem por isso é menos surpreendente o facto de podermos detectar a sua influência (juntamente com a de Santo Agostinho) ao longo de seis séculos de adesão portuguesa ao providencialismo histórico, tal como o interpretou.





Este providencialismo é patente na obra de um João de Barros, de um Frei Bernardo de Brito, de um António Vieira, de um Cunha Seixas, de um Sampaio Bruno, de um Jaime Cortesão, de um Agostinho da Silva, para citar apenas aqueles que melhor o consciencializaram em termos teleológicos, mas não deixa de ser transparente na obra de muitos que, nem por o traduzirem em termos afirmativamente imanentistas, deixaram de o representar. Pensamos especialmente em Herculano, em Oliveira Martins e em Teófilo Braga, os quais, por intermédio de uma metodologia positivista ou sociológica, defenderam, num ou noutro plano, a teleologia da história portuguesa.

E que dizer do que podemos considerar um neoprovidencialismo social? Este último já não afirma uma teleologia providencial de escopo escatológico, mas uma teleologia providencial de escopo socialista. Que toda a história se desenvolva em ordem à realização final da cidade de Deus, ou, com idêntica lógica (mas muito mais necessitarismo ainda), em ordem à realização final da Justiça através de uma dialéctica social classista, em que o proletariado exerce a função da Igreja, ou do Corpo Místico, o processo mental e psicológico é muito semelhante. E nós vemos inclusivamente um Vitorino Magalhães Godinho, na exposição das suas teses mercantilistas[6], procurar insistentemente o relativismo histórico que Orósio apresentara já no século V. Teremos de distinguir, simplesmente, entre um providencialismo pleno (que no entanto não é estático, pois caminha a par e passo com a maturação gnoseológica e antropológica que vai abrindo novos horizontes à imagem do homem) e um providencialismo parcelar, que explora unicamente um dos valores da metafísica judeo-cristã (a justiça, catolicamente concebida) ou uma das virtudes teologais (a caridade, sociologicamente considerada).

(In António Quadros, Introdução à Filosofia da História, Editorial Verbo, Lisboa, 1982, pp. 29-34).



[1] Santo Agostinho, A Cidade de Deus, Tomo II, Livro X, Cap. XXXII, trad. francesa, Librarie Garnier, Paris.

[2] Ob. cit.

[3] Testemunha bem da indiferença ou do automatismo das nossas instituições de cultura, o facto de a obra de Paulo Orósio (sem a qual não se entende a historiografia teleológica dos Portugueses ou de outros europeus), Historiarum Libri, VII Adversus Pagans, obra fundamental, traduzida para inglês e estudada pelos grandes filósofos da história, como, há poucos anos, Karl Löwith, não só não estar traduzida para a nossa língua, como, o que é ainda mais grave, não existir qualquer exemplar na Biblioteca Nacional ou na Biblioteca da Faculdade de Letras de Lisboa, onde se ministram os cursos de História e de Filosofia. Nesta última, depois de recorrer aos catálogos, apenas deparámos com um dos sete livros, no texto latino... Esta pesquisa foi realizada em 1966. No entanto, está actualmente (1982) em preparação uma edição portuguesa.

[4] De Os Sete Livros de História contra os Pagãos.

[5] V. os excelentes capítulos sobre Paulo Orósio e a sua teoria da história nos livros Correntes da Filosofia em Braga, de Mário Martins, S. J., e El Sentido de la História, de Karl Löwith.

[6] Vitorino de Magalhães Godinho, «Introdução» da obra Os Descobrimentos e a Economia Mundial, Ed. Arcádia, Lisboa, 1963.



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