segunda-feira, 22 de setembro de 2025

História filosófica e dedução cronológica

Escrito por Pinharanda Gomes




 

«A história humana é a desventura da sua desintegração. O homem, tal como julgamos existir, é outro que parece opor-se ao verídico ser do homem, perante quem se abrem as vias da sequência degradativa e da ascensão reintegrativa, caminho a uma palingénese, cujo saber começa por poucos, os eleitos, como núcleos ou fermentos de esperança salvífica, a comunicar a todo o universo.»

Pinharanda Gomes («História da Filosofia Hebraico-Portuguesa»).


«A questão de ciência e de filosofia é também uma questão de política, muito mais para os países pequenos, o que nos conduz a mostrarmos a importância e funções sociais de filosofia.»

Cunha Seixas (in Comércio de Portugal, de 13-1-1882).

 

«A todos nós, portuenses, doutrinados pelas sucessivas comemorações históricas do 31 de Janeiro de 1891, afigurava-se-nos como gigantesca a figura mental de Sampaio Bruno, astucioso e subtil adversário da geração de 1870: Antero de Quental, Eça de Queirós, Oliveira Martins. Com razão tem sido ele considerado como fundador da filosofia portuguesa, já que foi o primeiro escritor nosso a usar tal expressão a páginas 22 do livro A Ideia de Deus, publicado em 1902. Atento, como poucos estudiosos, à linha directriz do pensamento ibérico, discerniu a sua característica escolástica, significativa do primado da teologia sobre a filosofia, sem todavia a referir a Aristóteles que menosprezava.

Entendemos por teologia tão somente a discussão dos atributos de Deus, e a especulação sobre a existência de Deus, disciplina evolutiva e progressiva que condiciona a arte de filosofar. Não há ontologia, ou teoria do ser, nem gnoseologia, ou teoria da verdade, que se sustente ou aguente sem a ideia de Deus. A contraprova está em que tanto o idealismo como o realismo culminam no endeusamento de uma noção ou de uma coisa; e o binómio pede a mediação de novo termo que permita formar o trinómio, para assegurar o movimento, a acção, a liberdade, noções indispensáveis a um completo sistema de filosofia.

Li A Ideia de Deus, mas fui derrotado pela obscuridade de livro tão atraente, cuja temática excedia a tética da existência de Deus, verdade indiscutida e indiscutível. Ao longo desse estudo metodológico sobre os atributos de Deus, com seus capítulos de títulos significativos, como contingente e necessário, infinito e perfeito, mal e bem, perde-se quem não haja feito sua preparação gnoseológica sobre o espaço e o tempo, o ordenado e o criado, o diverso e o universo. Tal livro, recomendado por Leonardo Coimbra aos estudantes liceais, oferecia dificuldades que um adolescente, angustiado pelo problema do erro e pelo problema do mal, não pode demover.

Compenetrei-me então de que deveria encetar os estudos preparatórios pela leitura atenta, demorada e perseverante de dois livros de Alfredo Fouillée: Histoire de la Philosophie (1905), seguido de Extraits des Grands Philosophes (1906) (Librairie Delagrave, Paris). Alfredo Fouillé, teorizador voluntarista das ideias-forças, em renovação feliz das formas aristotélicas, gozava de alta notoriedade entre os intelectuais portugueses nos anos que antecederam a proclamação da República. Os seus livros, que o tempo desactualizou e que hoje nos parecem esquecidos, continham todavia um somatório de noções úteis aos aprendizes de filosofia.

Estava então em voga, porque foi durante alguns anos aprovado como livro de aula para os nossos liceus, o Cours Elémentaire de Philosophie por Emílio Boirac. Era um dos mais interessantes compêndios didácticos que honravam a cultura francesa, pela distribuição das matérias, pela exactidão das definições, pela selecção dos exemplos. Ainda hoje se encontram nos alfarrabistas alguns exemplares velhos desse compêndio notável pelo qual estudaram com proveito sucessivas gerações de letrados.

Outros escolares começaram os seus estudos pela Iniciação Filosófica de Emílio Faguet, traduzida para português; mas por medíocre que seja um compêndio histórico, em sua visão sincrética e sintética auxiliará o estudante, com a segurança própria de quem já possui uma hipótese de trabalho, a verificar durante o longo curso de filosofia. A abertura de um horizonte desconhecido e a visão de relance sobre as formas superiores da teorese conferem ao estudioso uma posição de segurança intelectual que lhe facilita o progresso a realizar em outras investigações. Tal não foi ainda reconhecido pelos metodólogos do ensino superior, e nas nossas Faculdades de Letras não há a prudência de logo no primeiro ano lectivo habilitar o estudante com o quadro histórico e enciclopédico a que deverá referir os ensinamentos ulteriores.

De tal omissão resulta ficar sujeita a mentalidade do estudante ao padrão universitário da história da filosofia grega, designada abusivamente como história antiga. Não é dada no ensino oficial a comparação simultânea com os textos apresentados no Velho Testamento, mais valiosos de verdadeira sabedoria. Em interpretação minuciosa dos fragmentos pré-socráticos perde-se o tempo que deveria ser dedicado ao estudo de Platão, Aristóteles e Plotino, muito mais importantes para a filosofia na Península Ibérica.

A bem dizer, nas nossas Faculdades de Letras não é ministrado ensino de História da Filosofia, mas tão somente ensino de história dos filósofos, segundo o exemplo e o modelo do livro célebre de Diógenes Laércio. Com efeito, as bibliografias estrangeiras indicam o que os filósofos deixaram escrito, e os professores universitários resumem ou traduzem por palavras suas o conteúdo dessas obras cuja leitura não é acessível ao estudante, porque este, não tendo feito no liceu os exercícios triviais de gramática, retórica e dialéctica, permanece na menoridade intelectual, não adquiriu ainda a aptidão intelectual para a exegese e a hermenêutica, nem usufrui para tal de tempo suficiente quando se encontra ocupado pela exigência de outras disciplinas. Os melhores compêndios ou tratados de História da Filosofia não podem oferecer mais do que resumos distribuídos por ordem crónica ou cronológica de autores, como o poderiam fazer pela ordem alfabética de nomes, a exemplo dos dicionários e das enciclopédias.

A história de cada filósofo é efectivamente muito interessante e curiosa na variedade de pormenores no tempo e no espaço, pelo que suscita e sugere a elaboração de monografias numa proliferação bibliográfica que parece não ter fim. Cada filósofo vive com a consciência infeliz de que é incompreendido, na dupla acepção deste particípio usual: um homem que os outros não entendem, um homem que os outros excluem da sociedade. O filósofo aceita os costumes, as leis, as instituições, mas os representantes dos costumes, das leis e das instituições o repelem, rejeitam e eliminam.

Dir-se-ia que a existência individual do filósofo incomoda até a sociedade. A biografia de Sócrates é, por isso, o paradigma admirável de um homem condenado à morte quando tinha mais de setenta anos, em 399 A. C., pela acusação formal de não acreditar nos deuses da cidade e de corromper os adolescentes. Ressalvadas as diferenças acidentais de pormenores quanto à acusação e à punição, no tribunal do Estado ou no Tribunal do Povo, sempre o mesmo juízo recai sobre quem aceita a condição de livre pensador.

É fácil verificar que o que se ensina durante muitos anos, a título de História da Filosofia, não é mais do que história de textos filosóficos, ou história das relações da filosofia com as disciplinas culturais que vão variando ao longo dos tempos. Quer se relacione a filosofia com a história das ciências puras, como aconselha o positivismo, quer se relacione com a história das ideologias políticas, como aconselha o marxismo, sempre o estudioso é impedido de contemplar o aspecto sincrónico e diacrónico dos problemas filosóficos. Assim se explica a esterilidade do ensino público.


1.ª representação em Portugal de Jacob e o Anjo, concretizada pela Companhia do Teatro Popular de Lisboa, a 22 de Maio de 1968, no Teatro da Estufa Fria, numa encenação de Orlando Vitorino, com cenários e figurinos de Pinto de Campos. Alguns intérpretes foram: Augusto de Figueiredo, Andrade e Silva, Ricardo Alberty, Madalena Sotto, Henrique Viana, Alves da Costa, Assis Pacheco… Ver aqui, aqui, aquiaqui e aqui.



Além das biografias dos filósofos, o ensino doutrinal, menos descritivo de diferenças e mais atento às semelhanças, menos atento às variantes do que às constantes, verificará como sempre as mesmas ideias, ou os mesmos conceitos, ou os mesmos juízos, ressurgem repetidos por outras palavras ou por outros homens. A filosofia historiável é um conjunto de teses, e não uma série de escritos nem uma legião de escritores. Considerada como um todo, tal como a considerou Hegel, a filosofia representa uma teologia dramática de alta importância para a educação e evolução da humanidade; mas dividida em disciplinas particulares e subsidiárias, a historiografia filosófica decai para o campo das investigações mesquinhas, contrariando assim a generosa ascensão do espírito ávido de universal.

Ao concluir o curso, verifica o licenciado que só tem uma disciplina sobre a qual pode exercer a sua reflexão: a história da filosofia... estrangeira. Isto explica que sejam teses de história as dissertações de licenciatura. Das Faculdades de Letras deveriam sair trabalhos sobre a filosofia do espírito, sobre a filosofia do direito, sobre a filosofia da natureza, enfim, sobre os temas, as teses e os teoremas que mais interessam à filosofia de Portugal.»

Álvaro Ribeiro («A Literatura de José Régio»).

 

«Por filosofia clássica, designam os compêndios universitários a filosofia antiga, isto é, a filosofia grega e os seus prolongamentos, em contraste com o que designam por filosofia moderna. Esta tem a sua origem sistematizadora em Duns Escoto, a determinação programática em Descartes, a sistematização em Kant e Hegel, e é ela que preside à formação das ciências positivas e às “culturas oficiais” contemporâneas. Também a filosofia clássica, sistematizada por Aristóteles, se viu, como a filosofia portuguesa, dada por cadaverosa e enterrada pela filosofia moderna. Mas ao que a filosofia moderna conduziu foi à negação de toda a filosofia, substituindo-a pela investigação científica e pela teoria social. Uma vez realizada a substituição, a morte da filosofia foi anunciada por doutrinadores como Marx e Marcuse e por pensadores como Nietzsche e Heidegger, os primeiros exultando, os segundos lamentando-se. Acontece, porém, que, sem a filosofia, a teoria social não passa de uma sistematização da violência e a investigação científica de uma profissionalização laboratorial que o insuspeito A.N. Whitehead considerou o flagelo que os alemães fizeram cair sobre a ciência mas ainda hoje encontra apologetas em doutrinadores como T. Kuhn. O que a teoria social deu e aí está, a “crise dos fundamentos da ciência” que atormenta os cientistas, confirma a frustração dos substitutos da filosofia. Apenas um passo falta dar para concluir que o que está morto é isso que se designa por filosofia moderna.

Então se verá que a filosofia clássica jamais perdeu a vitalidade porque, ao contrário do abstraccionismo e do voluntarismo modernos, ela é, como se disse do pensamento aristotélico, a “filosofia natural do homem”. Então se verá… Simplesmente acontece que foi isso o que a filosofia portuguesa já viu.»

Orlando Vitorino («Um filósofo singular: Álvaro Ribeiro»).

 

«No contexto da cultura portuguesa, a história ocupa um lugar privilegiado e prestigioso. Mas a filosofia, pelo contrário, tem sido constantemente desfavorecida. Um historiador português é uma figura de relevo, um filósofo português é uma figura obscura, que provoca desde logo a desconfiança, senão a irritação

António Quadros («Introdução à Filosofia da História»).

  

Orlando Vitorino e António Quadros (1988).



História filosófica e dedução cronológica


Em estudo apropriado, Joaquim de Carvalho já efectuou o balanço da historiografia filosófica portuguesa[1], até ao século XIX, e para essa fonte tomamos a liberdade de remeter o leitor desejoso de elucidação quanto ao que se passou, em tal sector, no século XIX.

Todavia, cremos que o eixo da historiografia filosófica deste século deve ser situado antes, cerca dos meados do século XVIII, com a publicação, por João Jacob Brucker, da História critica philosophiae (cinco tomos, em Leipzig, 1742-1744), a qual foi relativamente cedo conhecida em Portugal, influenciando a nossa historiografia filosófica de modo acentuado.

Frei Manuel do Cenáculo[2] utilizou-a e, por sua determinação, foi publicada uma Sinopse de 51 páginas, com o título Synopsis historiae philosophiae secundum Bruckerianum (Lisboa, 1773), sendo esta Sinopse utilizada como guia no estudo da história da filosofia.

Ou por directo conhecimento da obra original, ou por familiarização com tal resumo, a obra de Brucker aparece abundantemente citada em muitos escritos filosóficos da época, no nosso país. Em 1792, Francisco Luís Real publicava uma História dos filósofos antigos e modernos e logo, em 1803, Emídio José David Leitão publicava a tradução portuguesa do livrinho de M. Format, intitulado História abreviada da filosofia que, na opinião de Deusdado, «é um resumo» da obra de Brucker[3]. A influência do historiador alemão é canalizada para o nosso país através destes resumos e condensações e, tratando-se de uma obra ampla e prestigiada, não restam dúvidas sobre a franca aceitação que encontrou por parte dos nossos professores e estudantes de Filosofia.



A crítica à obra de Brucker, num país onde ela gozava de apreço, deveria ter sido efectuada quanto antes, e julgamos ter sido esse o objectivo de Silvestre Pinheiro Ferreira quando, nas Reflexões sobre o método de escrever a história das ciências dizia[4]: «infelizmente (o) método confuso de escrever a história da filosofia, tem sido adoptado por todos os autores, que em diferentes épocas empreenderam um tão interessante trabalho, tais como Stanley, Brucker, Degenerando e Ritter; por maneira que se pode asseverar em verdade que, graças às profundas e laboriosas indagações de muitos deles, existe hoje um riquíssimo cabedal amontoado e discutido, para que um homem, que não for só erudito, mas filósofo, coordene uma boa história da filosofia; porque tudo quanto daqueles vastíssimos engenhos possuímos, com o título de história da filosofia, nada menos são do que, o que aquele título inculca».

A problemática filosófica não afectava simplesmente o ensino da história da filosofia, afectando, principalmente, o ensino da arte de filosofar, como preconizava Silvestre Pinheiro Ferreira. De resto, já ao nível liceal, já ao nível superior, as deficiências eram marcadas pelos especialistas e, crente de que a nacionalidade, «a força virtual dum povo», é principalmente o pensamento[5], Cunha Rivara denunciava, já em 1839, a insuficiência do ensino da filosofia racional, pelo método em vigor, após o decreto de 19 de Novembro de 1836.

A considerável gama de documentação existente sobre a problemática do ensino filosófico – a qual deveria ser objecto de uma monografia – demonstra a profundeza da crise cultural para que a reforma pombalina atirara o ensino em geral, porque extirpando métodos antigos, necessitantes de uma revisão em toda a escala, a reforma não soube pôr, na substituição, o mesmo cuidado e a mesma energia que pôs na condenação do método antigo. Assim, se os fundamentos eram imperfeitos, toda a sequência legislativa nada mais fez do que aprofundar as feridas já existentes. No entanto, o desejo de acertar, causado pela noção das óbvias imperfeições, era grande e, «o dr. Manuel dos Santos Pereira Jardim, antigo professor do liceu de Lisboa, e opositor na faculdade de filosofia de Coimbra, foi em 1851 encarregado pelo Conselho Superior de Instrução Pública, de dar um parecer da reforma da filosofia racional e moral», propondo que ela continuasse a processar-se em todos os liceus do reino, «adicionando-se-lhe um resumo da história da filosofia»[6].

Claro, como antes sugerira Pinheiro Ferreira, o problema encontrava-se nesta subtil distinção entre «filosofia» e «história da filosofia». De facto, o encaixe da segunda no programa de estudos era uma dificuldade criada pela própria diversificação setecentista do saber, porque a história da Filosofia deveria constituir, não uma disciplina independente, mas algo muito íntimo do próprio ensino da Filosofia, ou da parte de filosofar. Ou seja: historiografia filosófica, como disciplina autónoma, não existiu ab initio. Ela efectuava-se imbrincada no ensino da arte de filosofar, isto é, através das exposições, comentários, dissertações doxográficas e debates filosóficos. O historiador da Filosofia era necessariamente o filósofo que, na afirmação propositiva das suas teses, enumerava as teses dos filósofos anteriores, ou para as rebater, ou para as rectificar, ou para as ampliar, exactamente no mesmo esquema que um Aristóteles faria relativamente aos filosofemas anteriores.  Assim, o encadeamento cronológico da história da Filosofia teria de ser algo estritamente dependente do encadeamento lógico para que, no termo história da filosofia, o substantivo categorial fosse, não a história, mas a filosofia. Pinheiro Ferreira desejava dizer mais ou menos isto, portanto: a história da Filosofia efectua-se filosofando, pelo sistema de debate filosófico. No entanto, e apesar disso, os dados estavam lançados, nesta grande aventura da Filosofia portuguesa e, uma vez imposto o sistema, remédio não havia logo, senão o prosseguir com todas as limitações. Com uma historiografia que, destituída de intrínseca razão de saber, trespassou a dialéctica das teses para a biografia dos filósofos, a si mesmo se negando, por isso, como história da Filosofia, já que esta deve consistir primeiramente na prática das ideias e secundariamente, mas não por obrigação, na biografia dos filósofos. Vem daí a pecha de negar a existência de uma história da Filosofia, aos países cujos filósofos não beneficiaram das auras mundanas da fama e da publicidade, porque os historiadores julgaram mais autêntica a inquirição dos autores do que a inquirição das ideias, das teses.

Ora, é neste esquema que surge a obra de Lopes Praça.

Silvestre Pinheiro Ferreira já tinha avisado dos perigos e possibilidades da historiografia filosófica, e abonava o futuro nos seguintes termos:

«Cumpre que o historiador (...) considere seguramente os progressos (de cada elemento) em cada uma das épocas ou fases do seu progressivo desenvolvimento; porquanto, só depois de ter comparado os progressos de cada um deles, com o de cada um dos outros, é que poderá dar aos seus leitores, e compreender ele mesmo, até que ponto o vagar com que um daqueles elementos progrediu no seu desenvolvimento, foi causa de todos os outros serem retardados na sua marcha»[7].

Se na generalidade da Filosofia europeia, a história filosófica se ressentiu de consideráveis insuficiências, como não havia de tornar-se sobremaneira árdua a tarefa de quem ousasse escrever a de um país, onde a própria história da literatura (em certa medida subsidiária da história da Filosofia!) se encontrava ainda mal iniciada, apesar dos esforços que a geração romântica fizera para a sua valorização?

Se tinha conhecimento dos pontos de vista de Silvestre Pinheiro Ferreira sobre os problemas atinentes à história da Filosofia, não o sabemos de saber certo; em todo o caso, Praça inicia a sua tarefa pressupondo que «sobre a nossa História da Matemática e do Direito, alguma coisa se tem escrito entre nós», mas que, «sobre a nossa História da Filosofia Racional (...) nada», chegando ao ponto de exclamar que «talvez só a Teologia tenha sido vítima de igual abandono»[8]. Mais: ao efectuar a colecção de documentos comprovativos, declara ter-se apressado para que «não (falecessem) de futuro, os dados para a História das Ciências em Portugal»[9]. Tanto indica, pois, uma feliz coincidência entre os desejos de Silvestre Pinheiro Ferreira e os actos que Praça se propôs levar a cabo.

A História da filosofia em Portugal foi posta à disposição dos compradores em 1868 (um ano após a morte de Vitor Cousin) e custava a quantia de 700 réis, em moeda do tempo[10].

Ao publicar a obra, o autor havia noção das limitações da mesma, designadamente quando escrevia: «não nos levem a mal o título do livro. Chamamos-lhe o que desejávamos que ele fosse e não o que ele realmente é»[11]. De resto, a consciência das limitações apurou-se com o tempo e, mais tarde, o autor declararia que «só numa História intrínseca da Filosofia em Portugal é que nós poderíamos descer a uma exposição minuciosa das doutrinas filosóficas, que a História literária da Filosofia, ainda mesmo considerada em relação às escolas e ao seu movimento nos outros países, dificilmente poderia comportar»[12]. No mesmo contexto, onde, ao que parece, se aproxima das teses de Pinheiro Ferreira quanto à essência de uma história da Filosofia, adianta «como a novidade da matéria (lhe) impôs a necessidade de algumas digressões», embora a brevidade do plano o tivesse impedido de efectuar outras. Praça mostrava ter a noção de carências e excessos da obra e, por isso, logo sobre a data da publicação, ele aparece empenhado em revê-la e em dar à luz o segundo tomo. Confessa como, agradecido à benevolência do público, tinha quase «completamente refundido o primeiro volume, enchendo-lhe muitas lacunas», após sérias investigações mas, solicitado por tarefas inadiáveis, vira-se obrigado a protelar a tarefa iniciada e que visava, também, libertar das óbvias deficiências tipográficas[13].

Curioso se torna verificar como Praça sofreu as deficiências da cultura filosófica portuguesa, mais atenta aos literatos do que às filosofias! Um dos dois problemas tópicos da obra de Praça cifra-se, até, no ponto atrás aludido.

A instrução pública formulara no senso comum a noção de que uma história da Filosofia é uma relação cronológica de filósofos, e não uma lógico-dialéctica sequência das teses existentes, propostas pelos filósofos, reputados ou ignorados eles fossem. Vivia-se, então, uma certa mística do herói, que francamente se aplicava na história da política, a qual se não escrevia sem a relacionar a personagens centrais, com teor simbólico ou com valência mística. Daí se inferia que o processo político deveria aplicar-se também à história da Filosofia que, sendo assim, devinha uma história dos grandes filósofos (não história da Filosofia), como a história política era a história dos grandes políticos e não a história dos movimentos políticos.

Então, Praça declarava:

«Muita gente instruída qualificou de quimera o nosso propósito. Nenhum filósofo se conhecia nos Fastos da História Portuguesa. Não tínhamos um nome ilustre que nos guiasse, um fio de Ariadna que nos dirigisse, um luzeiro que nos anorteasse. Investigámos os materiais, e apurámo-los na estreiteza do tempo, pelo caos das Bibliotecas, que pudemos visitar, algemados pela pobreza e singularidade dos nossos recursos morais e materiais»[14].

Teria Praça entendido o erro em que laboravam os velhos do Restelo? Teria ele entendido que a história da Filosofia não se escreve sob a orientação das personagens ilustres, mas em atenção às teses dominantes? Teria ele compreendido que o sujeito da história da filosofia é a filosofia e não os filósofos? Teria ele atendido que o necessário «fio de Ariadna» era esse que poderia ir buscar às constantes aristotélicas da nossa filosofia, expondo a forma como, no esquema escolástico, a coluna vertebral do aristotelismo se sujeita às teses, às antíteses, às sínteses, e a sempre novas formulações e reformulações?



Não o terá compreendido inteiramente, porque também ele acabou por conceder maior cuidado à cronologia histórica do que à ideologia filosófica; mas compreendeu que «a história da filosofia tem por objecto expor e criticar as tentativas do espírito humano em ordem a resolver todos os problemas que se têm ventilado através dos séculos, nos domínios da filosofia»[15].

Se Praça assim enunciava a sua intenção, seria de esperar que viesse a expor a sequência lógica das teses e antíteses, a efectuar a crítica filosófica das mesmas, enquanto simultaneamente, a título informativo, poderia mencionar os autores representativos das teses e das antíteses, indicando as obras onde se encontravam os testemunhos dessa representação e dando, enfim, uma ou outra nota biográfica dos autores. Ora, o texto publicado não corresponde ao enunciado, ao conceito programático do autor que, todavia, assume a responsabilidade dos limites, dizendo que a obra constitui, enfim, um conjunto de apontamentos históricos da nossa filosofia»[16]. Diríamos antes: dos nossos filósofos!

Estabelecido o sujeito lógico, a Praça restou o problema cronológico.

Porque fixa o começo do seu trabalho no princípio da monarquia? Por que não ultrapassou uma data motivada por razões políticas[17], para datas anteriores, que poderia ter caracterizado, e bem, com motivações filosófico-teológicas? Porque decidiu omitir, desde o início, o pensamento filosófico anterior à fundação da nacionalidade, o qual lhe teria dado esse fio de Ariadna que desejava, partindo, já da patrística bracarense, já da filosofia árabe, já da cabala hebraica?

Prevendo objecções deste tipo, Praça defendeu-se, afirmando o seu receio de que grandes autores previamente existentes não fossem contrabalançados pelo valor de autores posteriores! Ora, aqui está como as razões cronológicas da sua obra se implicam, afinal, nas razões lógicas do sujeito! De como um critério apriorístico relativo ao valor subjectivo de cada homem pode prejudicar um critério universal relativo às ideias e ao seu valor!

No entanto, mesmo adentro dos períodos por ele considerados, havia movimentos de ideias, com personagens representativas, que omitiu! Porque omitir toda a filosofia cabalística, de magistério hebraico, que preenche uma significativa parte da vida portuguesa, até aos fins do século XVII? Quais os motivos porque não considerou os pensadores místicos do século XVI, incluindo as filosofias milenarista, messianista e sebastianista? Porque omitiu o pensamento reformista e contra-reformista português? Quais as causas que o levaram a passar sobre o experimentalismo realista do período dos Descobrimentos?

No entanto, tais e tantas manifestações constituíam, e constituem, exercícios de reflexão do povo português e, para o autor, um povo «só se torna verdadeiramente autonómico quando pensa e diz, quando reflecte e executa», porque, tendo necessidade de se constituir a «providência de si mesmo», só a reflexão o pode levar à situação de autonomia, uma vez que «a reflexão é mais humana, mais prudente, mais meritória, mais autonómica»[18].

Há, claro, contradições internas entre o pensamento e o movimento, entre a intenção e o acto da obra filosófica de Praça, como as há na de Herculano, que, no dizer de Praça, foi um dos que lhe ensinou o caminho[19].


Alexandre Herculano

Em contrapartida, acentue-se de novo a nítida consciência que Praça tinha dos limites do seu esquema quando, noutro passo, declara: «dos filósofos ainda vivos falaremos no segundo volume desta obra, que aparecerá depois deste. Nele trataremos mais explícita e minuciosamente das suas teorias, das suas doutrinas, das escolas a que, por ventura, se tenham ligado, e das modificações que tenham feito sofrer aos sistemas»[20]. Praça assumia a verídica noção de história da filosofia, da «ciência da essência eterna de todas as coisas»[21], definição que inteiramente perfilha de um dos seus mestres, Tiberghien, a quem se refere noutras obras.

Tudo isto nos leva a julgar que teria havido a possibilidade de uma verdadeira história da Filosofia, e feita por Lopes Praça, caso ele não tivesse seguido a carreira do Direito, e caso tivesse guardado para mais tarde a publicação da sua obra. A um intelectual de 24 anos não se poderia exigir mais, mas não deixa de lamentar-se que a sua valiosa capacidade de trabalho se tenha despendido na investigação do Direito Constitucional, em prejuízo da matéria pela qual começou, e que lhe veio a dar, afinal, a celebridade!

Rejeitando o ecletismo[22], é na História geral da filosofia, de Cousin, que encontra sobejos motivos de interesse para a sua própria tarefa, bem como na História de Brucker, a qual cita com frequência. Praça estava em desvantagem, seja quanto a Cousin, seja quanto a Brucker, porque, embora a tradição filosófica portuguesa fosse, ou tivesse sido, superior às tradições francesa e alemã, não existia, ao tempo, como ainda vai não existindo hoje, o suporte de uma tradição colegialmente organizada.

Praça era o primeiro, apesar das insuficiências, a tentar a virgindade de uma floresta de enganos, onde muitos caíram, e hão-de continuar caindo, sem o que o homem não tirará grande proveito do saber filosófico.

Ora, justamente porque, apesar da insegurança documental, Praça foi para diante, preferindo o possível ao nada, ele merece de todos os portugueses o devido apreço, e, o juízo de Mendes dos Remédios, quanto a Praça, é menos justo. Além de não o considerar na sua História da literatura portuguesa, nem entre os prosadores, nem entre os especialistas em ciências auxiliares da história da cultura, nem da história literária, ainda, em breve nota, refere que o seu trabalho «é apenas um esboço e, demais, incompleto»[23]. Mendes dos Remédios não prestou, nem a devida atenção, nem o devido apreço, ao insano trabalho do seu confrade da mesma Universidade.

Mais justo é, sem dúvida, o parecer de Fidelino de Figueiredo que, admitindo as carências, não deixa de respeitar as evidências, quando afirma:

«Em Portugal, apesar do consenso geral sobre este assunto (o da existência de uma Filosofia portuguesa) afinar pelo juízo que antes expusemos (negativo), houve um erudito que não se dedignou de empreender uma crónica do pensamento filosófico lusitano, em tempo em que o espírito nacional, saindo do romantismo nacionalista e patriótico, enveredava pela senda desdenhosa do cosmopolitismo hipercrítico, bem longe da aproveitada economia com que modernamente se recolhem todos os esforços das velhas gerações (...). Esse cronista, que em pleno realismo ousou afirmar a existência de alguma especulação entre nós, foi o Doutor J. J. Lopes Praça, então ainda estudante da Universidade de Coimbra (...). Lopes Praça deu uma compreensão muito vasta à filosofia, que por vezes se torna sinónimo de instrução pública, não aprofundou a análise dos monumentos e não levou o seu estudo além de Silvestre Pinheiro Ferreira. Mas nem por isso deixa de ser um pioneiro muito para encomiar»[24].



Do ponto de vista de Fidelino têm partilhado outros estudiosos da Filosofia e da história portuguesa, como F. H. de Oliveira Marques[25], e o alemão Lothar Thomas, cuja obra, muito deficiente, presta justiça ao historiador coimbrão, dizendo que, «apesar dos defeitos (...) ficou para o seu autor o mérito e a glória de ter sido o primeiro a compreender a tarefa de conseguir uma vista de conjunto do pensamento filosófico português»[26]. Mais recentemente, a redacção de um «Boletim informativo» da Fundação Gulbenkian[27], dedicado ao pensamento filosófico português, reafirmava o facto de o livro de Praça continuar sendo a única visão global do tema existente, assinalando o herculanismo que o ditou. Ressalvando o seu alto e valioso significado, no contexto da cultura filosófica portuguesa, (actualmente bem precária, em virtude de segmentações causais de vária ordem, onde se distinguirá o facto de não existir reconhecimento institucional para a realidade ontológica da Filosofia portuguesa!), a contribuição de Praça denota duas linhas de deficiências, das quais já Sampaio Bruno se apercebera[28].

Na primeira linha, a lógica, consideraremos a inabilidade da distinção entre história da filosofia e história dos filósofos, a inadequação do proposto ao realizado, a insistência na descrição das vidas dos autores, com manifesto prejuízo da exposição e do comentário das ideias; a carência de uma ordem lógico-dialéctica, pela qual, os autores estudados, fossem situados relativamente uns aos outros; o excesso de atenção concedida à didáctica da Filosofia nas escolas, sem uma prévia conotação com o movimento da Filosofia enquanto tal; o carácter panegírico da exposição, as deficiências materiais da mesma, e, enfim, o excesso de espaço concedido ao movimento geral da Filosofia em outros países, em que, mais uma vez, prefere os filósofos às suas teses, não chegando a efectuar as necessárias conotações com o movimento português.

Na segunda ordem, a cronológica, consideraremos a inabilidade para distinguir entre critérios políticos e critérios filosóficos, iniciando a obra como se a Filosofia portuguesa tivesse surgido em consequência da promulgação da independência nacional, sem curar de saber se, por detrás desse facto político, não estariam também causas filosóficas; a decisão de ocultar toda uma já longa e valiosa tradição lusitana, quer a tradição do sincretismo mítico-cultural dos povos lusitanos, quer a tradição, organizada, da patrística cristã bracarense, quer da falsafa árabe, quer da cabala hebraica: a desvalorização de quantos autores se não situaram directamente na dependência do magistério institucional; o programa da divisão em períodos, que é igualmente justificado por motivos políticos e de ordem cultural extrínseca, e não por motivos estritamente filosóficos; a obviamente comprometida valorização dos métodos promulgados pela reforma pombalina e desenvolvidos pelos liberalismos romântico e realista, que não possuíam exacta noção da superioridade da Filosofia relativamente às disciplinas dos saberes parciais; enfim, a íntima desconexão que parece existir no escrito, onde são evidentes as falhas provindas, mais da falta de maturidade mental do autor, do que da sua patente boa vontade em fazer o que de melhor soubesse.

Esta breve resenha de objecções, que o leitor terá ensejo de testemunhar, tinha de ser feita, para que, desmitificada e posta a nu, a obra de Praça assumisse por inteiro a sua intrínseca validade e a sua relativa utilidade para os estudiosos do assunto.

Lopes Praça viveu o bastante para ter reeditado a sua obra, o que teria sido benéfico, tanto mais que, em 1898, Ferreira Deusdado, a propósito da renovação tomista, resumira a nossa história da filosofia, aditando-lhe os mais recentes sucessos da filosofia tomista.

Praça, que vinha do ecletismo romântico, aderiu a esta renovada corrente do pensamento escolástico, à qual sacrificou o ecletismo. Sendo preceptor do Príncipe Real, a quem iniciou na filosofia, abandonou os compêndios da sua época e adoptou a última novidade: os dois tomos de Elementos de Filosofia (1894) de Tiago Sinibaldi, o italiano que viera ensinar tomismo no Seminário de Coimbra e foi, mais tarde, director do Colégio Português em Roma. Praça correspondeu-se com Sinibaldi pelo menos entre 1907 e 1918, e nas suas cartas anota os progressos do Príncipe, ao mesmo tempo que transmite a sua visão da decadência espiritual do país[29]. É pena que o nosso historiador não ampliasse a sua obra até fins do século XIX, e que haja passado desapercebido aos pensadores da «Renascença Portuguesa».


Ex-libris da «Renascença Portuguesa», da autoria de António Carneiro


Seja como for, até aos nossos dias, mesmo levando em conta a tentativa de Martins Capella, o pouco legado por Lopes Praça continua sendo o pouco de que, em termos de historiografia, a nossa cultura dispôs. Sem termo de comparação, não pode afirmar-se que ela seja, nem melhor, nem pior, nem menos, do que outras. Sendo a única, este adjectivo tem, numa tradição tão rica como a portuguesa, um acre sabor a nada.

Se o trabalho exemplar de Praça não logrou mais, e se o autor não herdou conveniente substituto, deve afirmar-se que o seu exemplo suscitou o interesse pela monografia histórico-filosófica.

Nas páginas finais do balanço sobre a historiografia filosófica portuguesa[30], Joaquim de Carvalho, que não dispensou, nessa oportunidade, duas ou três páginas de conveniente exegese à obra de Praça, de forma a assinalar e a justificar, a sua importância axiológica, não deixou, todavia, de reconhecer o facto de, nas tendências historiográficas portuguesas, haver uma, a nacional, que «se desenvolve sob o impulso iniciado por Lopes Praça», mesmo quando os autores preferiram «o estudo biográfico e histórico-cultural da obra de alguns portugueses», à redimensionação de uma história geral. Aliás, ao que julgamos saber, Joaquim de Carvalho também se opunha às tentativas de uma história geral da Filosofia portuguesa, preconizando a prévia necessidade de uma programação monográfica de base, sobre a qual pudesse trabalhar com segurança. Todavia, não cremos que tivesse arriscado, logo ao dealbar do presente século, publicar a síntese básica da história da Filosofia portuguesa, estruturada em torno das constantes aristotélicas, cuja importância, e cujo domínio, os documentos pombalinos já tinham efectivamente reconhecido, de forma implícita, no modo odioso como promulgam a sua radical extinção.

Demais, o talento de Teófilo Braga, ingloriamente gasto a investigar o teatro, numa tarefa que os nossos actuais historiadores da teatrologia quase sempre escondem, o talento de Teófilo, com sua formação positivista, com seu pendor para o rigorismo documental, poderia ter efectuado a investigação documentarística básica, sobre a qual deveriam ter trabalhado os portugueses que, não sendo, nem eruditos, nem historiadores, estivessem tocados pelo suflo da graça filosófica, tal como desejaria Pinheiro Ferreira!

Como antes afirmámos, o leitor encontrará o saldo do século XIX filosófico, já na obra citada de Joaquim de Carvalho, já no excurso de António Ferrão[31]. Nos escritos destes autores se notará que, tendo assumido a dificuldade de escrever a história geral, sem uma laboriosa e poligonal investigação, hermenêutica e exegética, os nossos especialistas deram preferência à monografia. Não repugna aceitar, reitere-se, que o exemplo de Praça tenha promovido muita da monografia portuguesa, na ponta final do século XIX.

Assim, e sem prejuízo de remetimento para os escritos daqueles três autores, citados no parágrafo anterior, seja-nos permisso referir os casos que pessoalmente achámos mais coerentes com uma linha de progressivo desenvolvimento historiográfico.

Jesué Pinharanda Gomes

A. Ribeiro da Costa e Almeida publicava um Resumo da história da filosofia (Porto, 1873) e, enquanto, em 1878, Simões Dias divulgava o Curso elementar de Balmes, em 1879 o país era brindado com o magnífico estudo sobre a história da Filosofia grega, que Latino Coelho escrevera para servir de introdução à Oração da coroa, de Demóstenes. Em 1881, na Universidade de Bona, J. J. Louzada de Magalhães, dissertava sobre a vida e a obra de Silvestre Pinheiro Ferreira e fazia anteceder o núcleo de dissertação de um resumo sobre os filósofos portugueses mais importantes, anteriores ao sábio que servia de tema à sua tese. Em 1885, Cunha Seixas escrevia os Esboços críticos acerca de escritores da história da filosofia e, em 1887, José Augusto Saraiva publicava a História da Filosofia (n.º 144 da Biblioteca do Povo e das Escolas, de novo editada em 1905 e, afinal, tudo isto é muito anterior à francesa Que sais-je, perante a qual um considerável milhão de portugueses se rende, como gato a febra!). Em 1897, prefaciando a mais notável obra de Cunha Seixas, Princípios gerais da filosofia, Ferreira Deusdado esboçava apropriado panorama da Filosofia portuguesa no decurso do século XIX, e se, em 1900, Adolfo Coelho publicava o estudo sobre O ensino histórico, filológico e filosófico em Portugal, até 1858[32], muito mais importante era que, em Braga, no ano de 1888, surgisse um professor do ensino particular, Martins Capella, a escrever uma nova tentativa da história da Filosofia portuguesa, na revista que fundara, e que ele mesmo redigia e editava[33] e onde, ao que agora julgamos, aparece pela segunda vez a expressão FILOSOFIA PORTUGUESA[34], quando, para justificar o escrito, o autor afirma que, nos compêndios, não se presta atenção ao que é português, dizendo: «para a história da filosofia portuguesa, magra página, quando muito, nos manuais de ensino, e como que por descargo de consciência»[35]. Por esse motivo, Capella dedicou uma série de cinco longos artigos ao tema, na sua valiosa e enciclopédica revista.

Não é este o lugar, nem é esta a oportunidade, para desenvolver um inventário da bibliografia historiográfica filosófica subsequente, até porque se encontra provida, desde já, a certeza de que essa historiografia é fundamentalmente constituída por monografias, biografias e artigos sobre breves períodos, singulares personalidades ou tópicos de maior relevo, no conjunto da nossa cultura filosófica. De facto, nem os autores trabalhando em regime independente, nem os autores trabalhando protegidos por alguma espécie de instituições, ousaram levar a cabo a tarefa ousada de uma visão conjunta geral da história da Filosofia portuguesa.

Alguns nos interrogaremos sobre a vantagem, ou a desvantagem, desse facto. A muitos parece uma desvantagem atroz e alarmante sinal de atraso – esquecidos embora de que também a história política, que interessa a muitos mais, se encontra em grande parte por escrever, já por carência de uma epistemologia apropriada, já por falta de garantida metodologia. Por isso, a muitos outros parecerá uma vantagem, porque onde nada está feito, há ainda tudo para fazer. De onde, nesta data, e relativamente à Filosofia portuguesa, se tornar um feliz evento o facto de estarmos vivos, pensantes e actuantes. Teremos de proceder, não como pacíficos e sensatos herdeiros, mas como os aguerridos e audaciosos obreiros de uma empresa, que urge levantar.




Se a Filosofia não é para todos, mas se todos de algum modo são vocados à Filosofia, a crivagem há-de concertezas separar, e escolher, os que, por graça, hão-de receber as chaves de tal obra. Tais serão, nunca os herdeiros, mas os construtores que, sobre a pedra branca, hão-de edificar...[36]

(Introdução de Pinharanda Gomes à Vida e Obra de Lopes Praça, in Lopes Praça, História da Filosofia em Portugal, Guimarães Editores, Lisboa, 3.ª Edição, 1988, pp. 30-44).



[1] Evolução da historiografia filosófica em Portugal até fins do século XIX. Coimbra, 1946.

[2] Cf. Conclusiones de logica Lisboa, 1751.

[3] Deusdado, loc. cit.

[4] Artigo publicado no jornal O Pantólogo, de Rodrigues da Fonseca, N.º 1, 10 de Junho de 1844. Pág. 3.

[5] Memória sobre a ineficácia do ensino da filosofia racional pelo método ordenado no decreto de 19 de Novembro de 1836. Porto, 1939.

[6] Deusdado, loc. cit.

[7] O pantólogo, loc. cit.

[8] História da filosofia, pág. VI.

[9] Documentos comprovativos, pág. V.

[10] Preço anunciado no verso da capa de Documentos comprovativos. Em 1968, ano do centenário da referida História, fizemos publicar três artigos diferentes sobre o significado da efeméride. Um no Diário da Manhã, Lisboa, 11-1-1968, outro na Revista portuguesa de filosofia, Braga, Março de 1968 e outro no Colóquio, n.º 47, Lisboa, 1968. Este último artigo, com ligeiras modificações, foi mais tarde incluído no nosso livro Pensamento português I, editora Pax, Braga, 1969.

[11] Hist. Fil., pág. VIII

[12] Doc. Comp., pág. IV

[13] Doc. Comp., pág. IV.

[14] Hist. Fil., pág. IV. Sobre a mesma dificuldade, na actualidade, consultar a documentação patente no nosso livro Liberdade de pensamento e autonomia de PortugalLisboa, Espiral, 1971.




[15] Hist. Fil., pág. 1.

[16] Hist. Fil., pág. VII.

[17] Cf. as objecções que, sobre este assunto, pusemos a Praça no nosso livro Introdução à história da filosofia portuguesa, Braga, Pax, 1967, pág. 112.

[18] Hist. Fil., pág. V.

[19] Hist. Fil., pág. VI.

[20] Hist. Fil., pág. 185.

[21] Hist. Fil., pág. 4.

[22] Hist. Fil., pág. 23. Sobre a História geral da filosofia, publicou o escritor José Augusto Correia uma abreviada história da Filosofia universal, intitulada Evolução filosófica do espírito humano, Lisboa, 1916, 478 págs.

[23] Mendes dos Remédios, História da literatura portuguesa, 6.ª edição, Coimbra, 1930. Pág. 202.

[24] Fidelino de Figueiredo, Estudos de literatura, 4.ª série, Lisboa, 1924, pág, 114.

[25] Guia do estudante de história medieval portuguesa, Lisboa, 1964, pág. 106.

[26] Contribuição para a história da filosofia portuguesa, Lisboa, 1944, pág. 22.

[27] Boletim informativo, série II, n.º 23, Lisboa, 1971.

[28] Cf. A Ideia de Deus, Porto, 1902.

[29] Cf. António do Rosário, O Colégio Português em Roma, in Laikos, VII, 1984, 291-301. O autor transcreve algumas cartas de Praça a Sinibaldi.

[30] Joaquim de Carvalho, loc. cit.

[31] Cf. António Cândido como pensador, Coimbra, 1924. Fornece bibliografia sobre a filosofia portuguesa no século XIX.

[32] Cf. O Instituto, vol. 47, Coimbra, 1900.

[33] O escholio, revista quinzenal, de M. Capella, n.º 1, de 30-3-1888.

[34] No livro Liberdade de pensamento e autonomia de Portugal, e seguindo o estado das investigações, afirmámos que fora Moniz Barreto o primeiro a usar aquela expressão. Temos de rectificar. Barreto usou-a num artigo sobre Oliveira Martins, em 1888, no mês de Agosto, no jornal O Repórter. Capella, embora no mesmo ano, usou-a em Março, portanto, uns meses antes, e num escrito de polémica intenção reivindicativa, o que não se passou com Barreto. Praça utilizou a expressão, pela primeira vez, a pág. 33 da sua obra.




Sobre o assunto convém notar que Praça também usou a expressão «filosofia lusitana». A expressão «filosofia portuguesa», tal como, em 1943, foi proposta por Álvaro Ribeiro, tem diferente valência da usada, já por Capella, já por Barreto, já por Praça. Enquanto para estes três é uma expressão meramente ôntica, para Álvaro Ribeiro é um programa de pensamento e movimento, uma afirmação ôntica e lógica. Cf. a obra da nossa autoria atrás indicada.

[35] Capella, loc. cit. Ao tempo em que se efectuou o 1.º Congresso Nacional de Filosofia (Braga, 1955), a ideia de uma Filosofia portuguesa não repugnava a muitos jesuítas bracarenses, mas repugnava a mestres coimbrões e lisbonenses, que participaram no evento. E o diabo tece-as. Esses mesmos que negavam realidade ontológica à filosofia portuguesa estiveram presentes a uma sessão comemorativa da filosofia portuguesa. Cf. o volume com as teses do Congresso (Braga, 1955), a última fotografia, antes da página 769.

[36] Como deixámos mencionado, Praça chegou a publicar os chamados Documentos comprovativos, os quais nos pareceram de reduzido interesse, apesar de o autor juntar, num só volume, documentos que, a terem de consultar-se, se iriam procurar dispersivamente, se Praça os não tivesse reunido. Mas tais documentos importam mais à história de instrução pública oficial, do que à história da Filosofia, muito embora, para o historiador, a instrução não pudesse desligar-se da história da Filosofia, conforme demonstrou ao meter, na sua História, rubricas sobre a evolução da política de instrução.

A título meramente informativo, indicamos o sumário dos citados Documentos:

I.                     Estatutos dados à Universidade de Coimbra em tempo de D. Dinis, D. João I e D. Manuel.

1.       Estatutos de D. Dinis.

2.       Segundos Estatutos do reinado de D. João I.

3.       Estatutos de D. Manuel.

II.                   Dos Estatutos de D. João III.

III.                 Dos Estatutos de D. Sebastião.

IV.                 Dos Estatutos da Universidade de Coimbra dados em tempo de Filipe I, Estatutos subsequentes até D. João IV.

V.                   Dos Estatutos da Universidade de Évora.

1.       Ideias gerais.

2.       Primeiros Estatutos de Évora.

3.       Segundos Estatutos de Évora.

VI.                  Conclusão. Regimento que hão-de guardar os lentes d’artes no Colégio Real da Universidade de Coimbra, dado a 20 de Maio de 1552.


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