Escrito por Orlando Vitorino
«"Sou um homem da cultura"
A TARDE – Afirma não ser realizador de cinema. Como se define?
Orlando Vitorino – Dispenso os rótulos. Digamos que sou um homem da cultura. E a cultura manifesta-se de muitas maneiras. Faço cinema como posso fazer teatro. Aliás, este filme foi tirado de uma peça de teatro. Não há cultura autêntica sem uma fundamentação filosófica.
A TARDE – A propósito, como adquiriu a sua formação filosófica?
Orlando Vitorino – Formei-me na Faculdade mas lá não aprendi rigorosamente coisa nenhuma. Tudo o que sei aprendi através da linha de uma cultura portuguesa não reconhecida e abafada pela cultura oficial. Essa linha, que eu considero a maior de todas, inicia-se com Teixeira de Pascoaes e Leonardo Coimbra. A sua segunda geração reúne nomes como José Régio, José Marinho, Álvaro Ribeiro e Santana Dionísio. Eu incluo-me na terceira geração, a dos discípulos. Evidentemente que são tudo nomes repudiados. Para nós não há apoios, subsídios, nada.
A TARDE – Acha então que o seu trabalho só não é reconhecido por se inserir na linha de pensamento e/ou estilo de Teixeira de Pascoaes?
Orlando Vitorino – Somos marginalizados pela cultura oficial.
A TARDE – E o que é a cultura oficial?
Orlando Vitorino – São as instituições, as universidades, o ensino marxizado, é o considerar-se a cultura como um instrumento da política.
A TARDE – Mas formou-se em Filosofia numa dessas instituições.
Orlando Vitorino – Sim. Mas apenas por chantagem social. O ensino em Portugal não presta para nada. Apenas se salva a instrução primária, e mesmo essa estão a tentar destruir.»
Entrevista a Orlando Vitorino inserta em A Tarde (n.º 871, II Série, 4/11/85).
O espectador morreu – viva o teatro
1. O que mais importa, e com maior
urgência, é acabarmos de vez com esta ilusão que a todo o custo e por alto
custo teimamos em manter e prolongar. O que importa é reconhecer que os
espectadores gostam de outros espectáculos, não daqueles que o teatro lhes pode
oferecer. Gostam dos espectáculos oferecidos pelo cinema ou pela televisão ou
pelo futebol ou pela ópera ou pelo ballet. Teatro, não. A explicação, a mais
simples e corrente, é a de que os espectadores não estão ou deixaram de estar
culturalmente apetrechados para os espectáculos de teatro. Ora, nós, que somos
do «meio», sabemos bem como esta explicação é falsa. Porque nós, os do «meio»,
também não gostamos dos espectáculos de teatro, e a prova é que raros de nós, e
raras vezes, vamos ao teatro. E quando
o fazemos, o que nos move não é o prazer, a expectativa, o sobressalto que
acompanham a decisão de ir a um
espectáculo de que se gosta. Vamos por outros motivos: por obrigação, por
profissionalismo, por camaradagem, por amor e por ódio. Tenhamos, pois, a
coragem de dizer, como Ionesco: nós não gostamos de teatro. E generalizamos
como convém a quem quer pensar: os espectadores não gostam de teatro.
Há, todavia, espectáculos de teatro que
se prolongam durante meses, às vezes, em alguns países, durante anos,
espectáculos que, para assim se prolongarem, têm espectadores que a eles
acorrem. Dado que temos por verdadeira a nossa asserção, tratemos de verificar
o que é que leva espectadores a alguns, embora raros, espectáculos de teatro. E
verificamos que se trata, sempre, de motivações que estão longe de representar
algum gosto pelo teatro: ou o snobismo ou uma corrente de opinião ou uma
corrente ideológica ou a publicidade coerciva ou a facilidade gratuita, cómoda
na aquisição de bilhetes quando não haja nada que fazer nem dinheiro para fazer
nada ou a perspectiva de um escândalo ou, finalmente, a diversão que – não o
espectáculo mas um elemento do espectáculo (um actor cómico, por exemplo, ou
uma actriz trágica) – decerto proporcionará. Estes casos raríssimos da
existência de espectadores, nada têm pois a ver com o gosto do teatro e acabam,
antes, por resultar humilhantes e ofensivos para a arte que o teatro é. Dizemos
humilhantes e ofensivos porque não são efectivamente outra coisa aquelas
motivações extrínsecas ao teatro, que nada têm a ver com o espectáculo como
teatro. Nenhuma dessas extrínsecas motivações se encontra naqueles espectáculos
de que os espectadores gostam, seja um espectáculo de futebol, que reúne
multidões, seja para um número mais reduzido de espectadores, um espectáculo de
bailado ou de ópera. Ninguém vai ao futebol por snobismo, ninguém deixa de ir
ao futebol por não jogarem as vedetas. E também dizemos que são humilhantes e
ofensivas porque, além das razões expostas, elas só conduzem à degradação do
teatro.
2. Sem espectadores, não há espectáculo.
Dir-se-á, então, que não haver espectadores, não há teatro? Ou dir-se-á que não
há espectadores porque o teatro não é um espectáculo?
Habituámo-nos, habituaram-nos a esta
imagem do teatro. A de que o teatro é um espectáculo. Ao fundo de uma sala,
como ao fundo das bancadas de um estádio, como no extremo de um buraco escuro
que são as salas de cinema, ir-se-á mostrar,
espectar qualquer coisa de que nós,
indiferentes, soberanos, cheios de nós dentro de nós, seremos os espectadores,
«sentados na nossa cadeira como um rei no trono». Como reis no trono vemos,
efectivamente, sentadas nas bancadas dos estádios, as multidões do futebol, que
gritam insultos a jogadores e a árbitros, que aplaudem, ululam, julgam,
condenam e absolvem. Nas diversas variantes deste modelo, vemos sentados nos
seus tronos os espectadores de bailados e de óperas. Mas os do teatro, os
raros, sentam-se humildes, quase envergonhados, a esconderem-se por detrás de
um sorriso comprometido, como se pedissem que os não vejam, que os desculpem;
ou, mais rudes e brutos, julgam sobranceiros, desprezam e desdenham, tossem,
chegam atrasados depois de cada intervalo, saem antes do fim.
Habituaram-nos, pois, a esta imagem de que o teatro é um espectáculo. Virá de longe, não virá de longe a imagem? Um século, dois séculos, não mais de quatro séculos. Antes, o teatro seria outra coisa, não espectáculo, não para espectadores. Mas a imagem acentuou-se e o espectáculo degradou-se até ao negócio e à indústria. E por fim foi ultrapassado, vencido, arrumado pelo cinema. Agora, já pela televisão. Os mesmos espectadores, perdeu-os. Sem eles, deixou de ser espectáculo. Para bem? Conseguirá perdurar?
3. A poder ser alguma coisa, a voltar a
ser, o teatro será, pois, teatro sem espectadores. O que não significa,
evidentemente, que aquilo que os actores farão, o farão sozinhos, num recinto
vazio. Significa, sim, que o teatro se viu forçado pelas circunstâncias (já que
o não fez, como devia, por si próprio) a ter de negar os espectadores.
O primeiro modo, mais imediato, de os
negar é o que está a ser manifestado em tentativas como a do Open Theatre ou, mais conhecida na
Europa, a do Living Theatre.
Trata-se de levar o actor a desafiar, até ofender e insultar, aquele que se
aproximou ainda metido na figura de espectador. Por exemplo: desnudando-se em
cena, o actor desafia-o a que, se acaso é efectivamente um homem decidido a
libertar-se, se desnude também. Esta imediateidade é ainda ingénua e a negação
que há nela arrisca-se a não passar de um insulto. Pode acontecer, como
efectivamente aconteceu, que uma linda rapariga saia da plateia, suba ao palco
e se desnude para reconhecer e declarar que nesse gesto, apenas escandaloso,
não reside qualquer espécie de libertação.
Segundo modo de negar o espectador, este
também a ser já experimentado, é o de «formar» o actor fazendo dele um
instrumento despersonalizado, entendendo-se que a personalidade (conceito e
forma, aliás, de origem teatral) constitui a escravização social do ser humano.
A finalidade ideal deste processo é fazer do actor, do homem, um anjo;
afigura-se ela, porém, irrealizável, sobretudo em teatro.
Com efeito, representará este processo a
total disponibilidade do ser humano para receber e exprimir todos os conteúdos
que a alma e o espírito lhe possam dispensar e oferecer. Ao libertar-se da
personalização, o ser humano libertar-se-á da alma e do espírito que lhe são
próprios. Será só corpo, apto a receber todos os alheios conteúdos anímicos e
espirituais; mas porque, precisamente, não tem os seus próprios, a angelogia
corre o risco de resultar numa demonologia e o ser humano despersonalizado de
não ficar senão uma pura ou vazia disponibilidade à mercê de todas as
possessões. Assim se reconstituirá o anátema medieval do actor condenado por
deficiência de alma e ausência de virtude.
Por outro lado, tal processo apenas
incide sobre um dos elementos de que o teatro é feito: o gesto do actor. E não
tem em conta o que no teatro mais importa: a palavra e a acção que pelo actor
se dizem e manifestam mas nele não têm origem. No espectáculo que o teatro tem
sido, só do actor dependia, e todo ele do actor dependia, o desempenho das
personagens. Liberto do espectáculo, o teatro poderá exigir do actor, não
apenas o desempenho, mas sobretudo a interpretação. As técnicas que tentam
reduzir o actor a um corpo sujeito a ficar possesso, não favorecem a dignidade
da interpretação e desenvolvem-se entre os limites ultrapassados do desempenho.
Dos outros modos de negar o espectador,
o mais susceptível de resultados imediatos será o da transformação
arquitectónica dos espaços onde o teatro se realiza. Com efeito, destruída a
arquitectónica burguesa do espectáculo, que dá evidência aos actores e «tronos»
aos espectadores, estes deixarão de ter lugar. As tentativas e ensaios que
nesse sentido estão sendo feitas um pouco por toda a parte, limitam-se porém a
um «arranjo» dentro da arquitectura existente, quando o que se impõe e espera é
uma transformação arquitectónica mais profunda do que aquela que distingue os
teatros clássicos, com suas bancadas e pódios, dos teatros italianos,
renascentistas e burgueses que se espalharam por todas as cidades do mundo.
Da arquitectura está dependente a sobrevivência das cenas e cenários, da cenografia que se inventou na Renascença e depois se desenvolveu monstruosamente. O cenário e a cena ampliaram-se até tornarem minúscula a figura humana segundo o modelo, ou a imagem, que transitou da ópera para o ballet e para o futebol. Ao esmagar a figura humana, a cenografia esmagou todo o teatro. O seu desenvolvimento foi paralelo ao da redução do teatro a espectáculo. No lugar do homem, homúnculos. No lugar do teatro, espectáculos. E sobranceiro, sentado no trono, o espectador!
4. O desaparecimento do espectador não é
apenas o desaparecimento de uma imagem a que nos habituaram. É sobretudo a
abertura para uma transformação da sensibilidade e para uma ressurreição de
pensamento. A imagem destrói-se, tanto mais que os que a conservam dentro de si
são os que já substituíram aquilo que fizeram do teatro por outros
espectáculos. O domínio da sensibilidade é para onde se orientam as
experiências, tentativas e ensaios que se destinam a negar o espectador. O
jogo, porém, é com três bolas.
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