Escrito por Orlando Vitorino
«A filosofia de Álvaro Ribeiro é um realismo, como a de Aristóteles. A grande questão está em saber como o Espírito é real e, aí, sempre Álvaro Ribeiro humanamente hesitou e piedosamente ignorou. A filosofia não é mística. O filósofo não é “um místico transviado”. O que Álvaro veio a mais admirar em José Marinho e o levou a considerá-lo “o maior filósofo contemporâneo”, foi ter ele nocionado e sistematizado a “ontologia do espírito”. Álvaro entende por ontologia o saber da verdade como real.
É-lhe difícil, contudo, aceitar a ontologia do espírito de José Marinho. Porque ela implica a realidade do não-ser e do nada que, de acordo com o realismo aristotélico, não são possíveis: só é o que se diz, só se pode dizer o que é, do não-ser nada se pode dizer, o não-ser não é.
Ora, o não-ser de Marinho é o sem-limite, portanto a liberdade, e aí surge o espírito. Surge da liberdade e o pensamento, tendo nele o seu princípio, é o portador da liberdade. Assim afirmando Marinho, a seu modo, o não-ser e o nada, mais segundo o idealismo platonista do que segundo o idealismo alemão, Álvaro Ribeiro acusa-o no entanto de se ter deixado influenciar pelos pensadores germânicos.
A exigência de realismo leva Álvaro a distinguir entre espírito universal e espírito humano. Distinção estranha se o espírito universal é o Deus dos filósofos, mas compreensível se o espírito humano é o espírito universal que no homem pensa. Distinção sem separatividade, antes complementar, porque o pensamento só é real no homem (Álvaro diz mais: só é real no indivíduo). Então, o espírito será universal para que o pensamento consista num movimento para o uno, num movimento que conduz ao uno toda a multiplicidade dos seres e formas que compõem o mundo. E será espírito humano para que o pensamento, portanto o espírito de que o pensamento é a actividade, seja real.
Não se trata, porém, de uma ontologia do espírito, que é o que Álvaro Ribeiro admira na filosofia de José Marinho. Trata-se, sim, de uma doutrina do espírito, de uma doutrina que faz do espírito “o mestre dos que sabem”. Como o espírito, enquanto universal, é Deus, a doutrina está revelada e escrita nos Livros Sagrados. O ateísmo é um analfabetismo.»
Orlando Vitorino («O mestre dos que sabem»).
«A doutrina da cisão ilude e engana quando transita ou recorre do distinguir para o separar. Na sensação externa como na intuição interna um terceiro termo é dado, absorvente ou unificado. Em mais elevada ordem de pensamento, quando o juízo surge por virtude de objectivo, a dialéctica parece fortalecer a cisão. Os adjectivos prestam-se a figurar os contrários, pela facilidade conferida ao escritor para manipular os prefixos de negação e de privação. Tudo se opõe ao Nada, honrando um simples pronome indefinido com a inicial maiúscula, como se fosse um nome. A dialéctica não é via para a verdade, quando desfigurada em meio jogo sem arte nem trabalho.
(...) Apresentada de perfil e sem minuciosa crítica, mas de modo a facilitar imparcial entendimento, a fenomenologia da cisão não representa todo o mérito da Teoria do Ser e da Verdade. O mais alto valor da obra está no ensaio de opor à fenomenologia do ser uma ontologia do espírito. Estas expressões de erudição universitária e de indústria editorial evocam, mas agora de propositada utilidade, os termos da filosofia eleática, da filosofia ateniense e da filosofia alexandrina (e assim dizemos porque não há unidade que se denomine filosofia grega, nem totalidade que se denomine filosofia antiga), como evocam também os densos, complexos e volumosos livros que a Alemanha exporta para consumo dos estudantes de filosofia. Hegel escreveu, como é sabido, uma Fenomenologia do Espírito, em réplica à ontologia do espírito que Kant estudou nos subjectivistas britânicos, Locke, Berkeley, Hume, e que teorizou como ontologia do intelecto (Verstand) aquém da razão cristã, humana e divina (Vernunft). O estudioso José Marinho, afectado por funda aversão contra a filosofia escolástica, na medida em que esta se apresenta como face exotérica do esoterismo cristão, deixou-se fascinar pela mística teutónica e consequentemente pelo idealismo alemão, pensando em luta contra as tendências normais e formais da filosofia portuguesa, que já do rubro fatalismo islâmico e do verde profetismo hebraico recebera aquele sinal activista e realista que na obra de Aristóteles figura em verdade perene e dominante.
Excluindo a razão e o racionalismo, por escolásticas presunções de possuir a verdade ou de a atingir apressadamente, excluindo também o intelecto e o intelectualismo por sucedâneos da razão que se exterioriza e objectiva em categorias, o pensador José Marinho mergulha até ao fundo, ao fundamento e ao fundamental da consciência humana para descobrir a interrogação. Pensar é interrogar. O inquérito avança até à fronteira dogmática entre a heresia e a ortodoxia. Quem interroga é a Esfinge, símbolo quadrivial dos estádios da evolução humana, em figuração quimérica. Junto dela as pirâmides, mas todas com base, obras de arquitectura. O enigma trivial dá prova ao comportamento humano, em seu duplo aspecto de interioridade e de exterioridade. Mas interrogar é sempre julgar, e do intelecto à razão ascende o homem pelo reconhecimento de que todo o ser e toda a verdade dependem daquele absoluto a que só por analfabetismo pode ser recusado o santo nome de Deus. A dialéctica do ser parcial perante o ser total, como a da verdade parcial perante a verdade total, desaparece insubstante na presença do substante, milagrosamente significado pela sagração da estrela ou da cruz. Cessa toda a divisão com o malefício do divisor no momento de entender que a multiplicação original, morrendo em cada instante de sacrifício, concorre efectivamente para a redenção final.
Saudamos no livro de José Marinho, no pensamento e no estilo admiráveis da Teoria do Ser e da Verdade, uma obra autêntica de filosofia que efectivamente nos obriga a cogitar, a meditar e a reflectir. A crítica dirá se as respectivas teses concordam entre si, para coerência do sistema, e se estão de harmonia com a cultura que nos cumpre propagar e defender. O livro surge na hora em que, perplexos ante as dificuldades opostas pelos estrangeiros ao pensamento nacional que estrutura a verdade da Pátria, buscamos as razões justificativas da posição que nos singulariza pelo modo de colaborar na redenção da Humanidade. Os estrangeiros, e com os estrangeiros os nossos emigrados ou turistas, arguem maliciosamente com a denúncia das tristes culpas, certos de que o ensino das escolas públicas, viciado pela frenesia cientista e tecnicista, tem revogado de geração para geração os valores defensáveis pela filosofia portuguesa. Aos escritores, e especialmente aos autores das obras de pensamento, tem sido efectivamente desleixado o poder de educar as novas gerações. Só eles constroem o futuro, já que o ser do homem é o seu pensar, e com o pensar se ilumina o agir. No passado repousam, ou adormecem, parentes, professores e sacerdotes, que repetindo palavras pretéritas esvaziam de conteúdo intelectual ou emocional as cerimónias em que por hábito colaboram, transformando as comemorações históricas em farsas revogáveis, dispersando em terras mortas o vínculo espiritual da tradição.»
Álvaro Ribeiro («Decisão e Indecisão na Casa de Portugal»).
«Convém introduzir (...) uma observação sobre a dificuldade de entender o nada como realidade e como noção, sobre tão só a dificuldade de o dizer. Já vimos como José Marinho fala dele, ou simplesmente lhe alude, num momento decisivo da “teoria da verdade”, dizendo “o não-ser ou mais profundo Nada”, expressão que suscitou ao aristotelismo de Álvaro Ribeiro uma veemente, pública invectiva. Faltou-lhe, a Álvaro Ribeiro, um esforço de compreensão para a expressão de um pensamento no qual o que se diz por Nada (assim mesmo, com maiúscula) é para significar o que, depois do não-ser passa a sem limite (expressões ainda de raciocínios bastardos) para se afirmar no infinito, que é de onde vai emergir o espírito.
Entender o nada como privação ou ausência de realidade, é nada entender. E para o entender como não-ser, tem de previamente se considerar que já Aristóteles demonstrou que do não-ser nada se pode dizer, nem portanto pensar, uma vez que não é, quer dizer, que não contém, predicados nem recebe atributos. Como então compreender que se diga – como Aristóteles diz e na exposição da nossa tese vemos que a ciência conclui – que a matéria é o nada? A interpretação elucidativa, luminosa, vem-nos de Álvaro Ribeiro.
Segundo a sua doutrina da insubstancialidade do pensamento e do real, o que se designa por matéria só por vício de linguagem se designa por um substantivo e se entende, portanto, como substancial. Todo o pensamento está em evolução como todo o real está em movimento. Se entendermos por substancial o que designamos por um substantivo, convém corrigir o modo de expressão ou o modo de pensar com essa expressão, e, em vez de substantivar, verbalizar, pois o verbo é que significa movimento. Então, o que se entende por matéria deverá conceber-se como se expresso por materializar ou materialização. Enquanto materialização, a matéria significará a resistência a tornar real ou conservar real o pensamento. Mas significará também conduzir ao nada, esvair em nada, como acontece no que Leonardo Coimbra chamou “cousificação”, como acontece ao fim do infeliz caminho que descrevemos ter a ciência seguido.
Agora sim, vemos como esta interpretação retira qualquer sentido ao que a ciência julga ser a constituição e a desintegração da matéria.
Agora compreendemos que realidade levou o aristotelismo a formar a noção de matéria ao mesmo tempo que concluía ser ela o nada. Não nada, mas o nada. Como compreendemos, no outro extremo, o que levou o hegelianismo à identificação dialéctica, do ser e do não-ser. Como, enfim, compreendemos o que levou José Marinho a aludir ao “não-ser e mais profundo Nada”. A chave da compreensão reside na concepção que Álvaro Ribeiro nos transmitiu da matéria como resistência à realização do pensamento. Sem tal resistência, não haveria nem evolução ou movimento, nem criação ou cisão. Tudo estaria dado de uma vez por todas. Pensamento e realidade seriam o ser imóvel de Parménides ou a verdade de José Marinho antes de se fazer outra de si, verdade que é.
Resistir quer dizer, não apenas opor, mas sobretudo negar. Resistir ao pensamento, ou ao espírito em que o pensamento tem princípio, é um tão absurdo e louco intento que as teologias e as mitologias das religiões o representam numa personificação igualmente absurda e louca, dando-lhe nomes diabólicos, isto é, que dividem ou desintegram, e o génio de um poeta tentou fazer-nos entender chamando-lhe “o espírito que tudo nega”.
A resistência, com ela a negação, só existe em relação ao que nega. Esse, o primeiro sentido em que a matéria é o nada: em si mesma, por si mesma, a matéria não existe. Onde existe é no outro de si, a forma que vem do pensamento para se tornar real, a cuja realização resiste e à qual, uma vez tornada real, nega. A forma realizada é o corpo, mas como corpo temos de entender aqui, não só as entidades de realidade biológica e física, também as de realidade moral, institucional, histórica e artística.
Uma vez real, no corpo, a forma, a presença da matéria afirma-se pela morte a que todos os corpos estão inexoravelmente sujeitos. Nascer é decerto começar a morrer, mas compreende-se que os pensadores, desde Sócrates a Leonardo, tenham, uns, afirmado a imortalidade, tenham, outros, negado a morte, uma vez que a morte só reside na matéria e a matéria é o nada.
A ilusão da ciência foi a de considerar que a matéria existe. A de que existe simplesmente, a de que existe em si mesma e por si mesma. A tal ilusão acrescentou o erro de entender que na matéria reside a substancial realidade e, por substancial, única e última. Atribui-lhe, depois, uma conjecturável “constituição íntima” e onde há “constituição” há organização, a qual lhe parece confirmada pela mecânica porque, incidindo ela sobre os corpos, os trata como “porções de matéria”. Deste modo ignora a ciência a forma que, como razão de ser ou razão que habita e move os corpos, é, segundo Newton, segredo que Deus guarda ou, como se dirá na ajuda dada por Kant à ciência, segredo que só Deus pode conhecer. Deste modo ignora também como, na expressão luminosa de Leonardo, “a mecânica é o socorro de Deus levado ao nada”, quer dizer, à matéria dessas “porções de matéria” a que a ciência reduz os corpos.
A desintegração da matéria, a derradeira tarefa da ciência moderna, é pois uma tarefa absurda, vã e, afinal, impossível. Temos visto claramente porquê. Porque a matéria é o nada, porque não possui “constituição” alguma, porque não existe para além das porções de si que nos corpos recebem a forma que o pensamento lhes transmite.
Assim claramente vista, compreendemos que não é à desintegração da matéria que a ciência procede, mas à divisão dos corpos, à separação dos corpúsculos que encontra reunidos ou sintetizados numa forma e vai, sucessiva e sempre transitoriamente, confundindo com os elementos que conjecturou constituírem a matéria. O que, efectivamente, a ciência assim desintegra são as formas e isso, que é uma violência sobre o espírito, sobre a actividade do espírito, só possível pela ignorância de como o espírito é real, isso explica que a ilusória desintegração da matéria corresponda efectivamente à destruição da natureza ou do mundo sensível.
Seria evidentemente estulto atribuir à ciência o deliberado propósito de destruir o mundo sensível. Também aqui o mal é feito pela instigação que se faz o bem. O bem que a ciência julga ir fazendo é o de transformar o mundo, um mundo que, por habitar nele o mal, entende imperfeito, de o transformar num mundo em que, planeado para o serviço dos homens, só haverá perfeição e bem. O modo de o conseguir entende ser o de desintegrar, diremos agora decompor, “os corpos que nos rodeiam” nos elementos que os compõem, para, depois, proceder à recomposição em novos corpos desses elementos.
Parece já ter atingido ela hoje, com a eficácia de que faz sua glória e seu orgulhoso critério de verdade, a possibilidade da decomposição mas, ao atingi-la, no nada se esvai ela mesma antes de poder reconhecer que a recomposição, tal como a composição originária, de um mundo sensível, de um real mundo sensível, nunca será o arranjo mecânico de corpúsculos elementares, mas só se realizará mediante uma forma. “Uma forma ou uma alma ou uma síntese” diz Álvaro Ribeiro conjugando o conceito aristotélico de forma com a actualização que o cristianismo lhe dá em alma e o hegelianismo em síntese.
Recorrendo de novo a uma expressão de A. N. Whitehead, lembramos aqui ter ele dito que a concepção que a ciência moderna forma do mundo sensível tem a imagem de “uma natureza morta”. Eloquente mais uma vez o contraste com a concepção que do mesmo mundo sensível formou a ciência clássica, a concepção de “um animal vivo”, expressão que tanto Platão quanto Aristóteles empregaram.
A “filosofia portuguesa” ultrapassa as limitações da ciência, que são as do tempo e do espaço, desde logo porque é a filosofia de um povo que descobriu e reconheceu sensivelmente como a forma do mundo dos homens é a forma global, representação do “infinito que se encontra percorrendo todos os caminhos do finito”. Assim a descreve aristotelicamente Camões no Canto X de Os Lusíadas e com ela pôde este povo pôr em acto a catolicidade, ou “universalidade concreta”, que o cristianismo até então só possuía em potência. “Com o globo mundo em sua mão”, pode a filosofia portuguesa pensar o mundo sensível “maravilha da criação”, imagem sempre latente no pensador da alegria que é Leonardo Coimbra e insistentemente repetida por Álvaro Ribeiro.
Se a tal imagem a acompanha a contrapontística exclamação de José Marinho sobre “o mundo imundo”, há aqui uma dramática sensibilidade para com a existência e a persistência do mal, que “é imoral negar”, bem contrastante com a fria, obsessiva e trágica sanha do espiritualismo nórdico contra a natureza indomável. Desta sanha se originaram belas e elucidativas narrativas mitogénicas, como a da novela Moby Dick, que incitam ao império mecânico do homem sobre a natureza, império já hoje amplamente exercido para, ao fim, ambos, homem e natureza, às mãos um do outro soçobrarem.»
Orlando Vitorino («As Teses da Filosofia Portuguesa»).
«Mesmo no fim da vida, Heidegger entendia a sua reflexão filosófica como uma hermenêutica do ser, indissociável do tema da pátria local sacralizada e dos seus dirigentes espirituais. Essa reflexão articula-se, para o que nos diz respeito, em torno da entrevista concedida por Heidegger ao hebdomadário alemão mais difundido, Der Spiegel.
Consagrar uma entrevista às relações com o nacional-socialismo, entrevista destinada a uma publicação póstuma, eis o que testemunha eloquentemente a importância concedida por Heidegger à questão.
Situar o “esclarecimento dos factos de então” em relação com a sua própria morte, permitia a Heidegger conferir à entrevista uma solenidade particular: ele punha, de algum modo, os seus detractores potenciais na triste situação de profanar um túmulo. A entrevista foi programada minuciosamente e organizada certamente por iniciativa de Heidegger.
Uma primeira leitura do texto publicada, ainda que atenta, dá a impressão de que os jornalistas abordam apenas os temas sem ir mais longe, e deixam na sombra as questões mais importantes e delicadas.
Não é necessariamente o caso dos jornalistas de Der Spiegel. Com efeito, a apresentação do texto da entrevista pela redacção, faz aparecer a versão definitiva como o resultado de um processo complexo. O questionário a que Heidegger respondeu era diferente daquele que inicialmente ele tinha recebido, e as respostas que deu no decurso da entrevista não coincidem com as respostas publicadas. Der Spiegel publica, com esta entrevista, uma fotografia do texto corrigido por Heidegger, que dá uma ideia do volume das correcções.
Dirigimo-nos aos arquivos do hebdomadário e pedimos para consultar a documentação relativa à entrevista. Invocando argumentos de ordem deontológica, o director dos arquivos recusou-nos o acesso ao material em questão.
O facto merecia ser assinalado, dada a importância que teria o estudo comparativo do texto original e do texto publicado por Der Spiegel.
O texto publicado não é, todavia, desprovido de interesse. Esta publicação póstuma de Heidegger destina-se a assegurar à sua filosofia uma influência duradoura sobre uma sociedade alemã e um público internacional com preconceitos contra o nacional-socialismo.
Se essa foi, em parte, a intenção de Heidegger, a leitura atenta do texto não deixa de revelar que o filósofo, para atingir esse fim, não sacrifica as questões de princípio ligadas aos valores genéricos do nacional-socialismo. De facto, Heidegger exige que a sua adesão ao nacional-socialismo seja recolocada no quadro das suas reflexões sobre a essência da técnica alargada à escala planetária. Mostrará, portanto, que o nacional-socialismo, desde o início, se empenhou numa abordagem correcta do problema posto pelo domínio incontrolado da técnica; depois deste bom começo, o movimento foi entravado pela incapacidade filosófica dos dirigentes.
O texto publicado deixa na sombra mais espessa o sentido que se deve conferir às palavras “bom começo”, a maneira como este começo foi gerido politicamente, as pessoas encarregadas desta gestão. Isso é essencial: com efeito, nas suas respostas, Heidegger desqualifica radicalmente os outros sistemas que tentam dar conta da técnica e da sua expansão. Continuar a afirmar, em 1967, a grandeza do começo (“a verdade interior e a grandeza”) do nacional-socialismo, única tentativa, breve mas consumada, de fazer face ao problema central do “homem moderno”, eis o que supõe um juízo de base cuja significação explícita não pode ser ignorada: ela emana de um pensador particularmente sensível ao valor dos “começos”, e que entende que esses “começos” são exemplos postos como tarefa do futuro.
Heidegger conserva integralmente, na sua entrevista póstuma, a distinção fundamental entre o “verdadeiro nacional-socialismo” e o desviacionismo que o deformou. Essa distinção manifesta-se na crítica contida no texto, último ajuste de contas com o desviacionismo, e nas soluções encaradas por Heidegger para tirar a humanidade do beco sem saída. Interrogado pelos jornalistas acerca do texto de Hölderlin sobre A Lei Oculta da Determinação Histórica dos Alemães, citado por ele nos seus cursos sobre Nietzsche, Heidegger responde de maneira simultaneamente vaga na forma e determinada no conteúdo: o problema central da humanidade só pode ser resolvido lá onde ele nasceu, na Europa, e, no interior da Europa, no seu centro, ao qual desta vez Heidegger não dá o nome de povo mas o de linguagem, a linguagem de Hölderlin e dos alemães. Porque se “o começo” foi grego, para aí chegar é absolutamente necessário um instrumento apropriado que não pode ser outra coisa senão a língua alemã. É a via aberta à discriminação mais grosseira: “Os franceses hoje voltam a assegurar-me disto: quando se põem a pensar, falam alemão.” Os franceses dão-se conta de “que, apesar de todo o seu racionalismo, não podem enfrentar o mundo actual quando se trata de o compreender na origem da sua essência”.
Se o conjunto do texto cuida a forma, é claro que, quanto a este ponto determinante do seu pensamento, Heidegger encontra frases mais virulentas do que as que formulava na época do seu militantismo: ele propunha então aos franceses, com o presidente Kerber e os futuros colaboradores franceses, um modelo de diálogo: os alemães seriam professores e os franceses alunos constrangidos e forçados.
Afirmar que o alemão é absolutamente intraduzível (“do mesmo modo que um poema é intraduzível, não pode deixar de acontecer o mesmo com o pensamento”) pode ser “embaraçoso” para os que não o falam, mas, para Heidegger, essa realidade não deve ser escondida “mas posta em evidência, em grande escala: pensando nas consequências terríveis que a tradução do pensamento grego em língua romano-latina teve até aos nossos dias”.
Rainer Marten mostrou, melhor do que ninguém, que a filosofia de Heidegger não pode, na sua própria essência, passar sem a sua vontade fundamental de discriminação. As razões disso devem ser procuradas no facto de Heidegger nunca ter rompido os laços espirituais com a condição de possibilidade última do nacional-socialismo em todas as suas formas: a sacralização da alemanidade e a sua conversão em exemplo exclusivo. Isso manifesta-se no problema que Heidegger, na entrevista, considera como fundamental. Desqualificando a democracia como sistema político incapaz de fazer face à tecnicização do mundo, Heidegger afirma que o nacional-socialismo, no seu começo, foi disso capaz.
Na página 206, Heidegger afirma que a técnica se tornou independente do controlo humano e que a democracia não pode reapropriar-se desse controlo; na página 214, quando precisamente se lhe pergunta se utilizando conceitos “já ultrapassados” como o de “pátria local” (Heimat), ele não se afastaria da tentativa de trazer uma solução ao problema da planetarização da técnica, Heidegger responde: “Parece-me que dais à palavra “técnica” um sentido demasiado absoluto. Pela minha parte, não entendo a situação do homem no mundo da técnica planetária como uma situação inexplicável e à qual não se pode escapar; considero que o pensamento, com os seus próprios limites, deve ajudar o homem a estabelecer uma relação satisfatória com a técnica. O nacional-socialismo empenhou-se, isso é indubitável, nessa via.”
A relação entre Heimat e o nacional-socialismo, o móbil, segundo Heidegger, da verdade do movimento, conserva efectivamente toda a sua validade até ao fim. É neste sentido que se deve compreender a ligação estreita de Heidegger à terra e à pátria, e não no sentido de um folclore metafísico: “Tudo o que é grande e essencial não apareceu senão porque o homem teve uma pátria e esteve enraizado numa tradição”.
No crepúsculo da sua vida, Martin Heidegger descreveu um grande círculo para voltar ao ponto de partida. O seu primeiro texto celebrava em Abraham a Sancta Clara o médico “da alma do povo”, dirigente , guia e exemplo. Na sua entrevista póstuma, a tarefa do pensamento é preparar o terreno sobre o qual pode aparecer “o deus” salvador, o único recurso. Na medida em que este deus não é transcendente mas, como “tudo o que é grande e essencial”, produto de “uma pátria”, é de temer que esse deus não seja muito diferente, na realidade, do outro deus, o de Abraham a Sancta Clara no qual Heidegger via o fazedor de destinos.»
Victor Farías («Heidegger e o Nazismo»).
«Os dois grandes pensadores da nossa época são o português Leonardo Coimbra e o alemão Martinho Heidegger. Um, homem do centro da Europa, talvez centro da terra, o outro, homem da periferia da Eurásia, homem do Finisterra.
A nossa época é a da desolação do mundo, designação de Leonardo que Heidegger utiliza. A desolação do mundo é descrita nos mesmos termos pelos dois pensadores: é o império da técnica no vazio da existência. Para ambos, a técnica e o igualitarismo são solidários. Portanto, o império da técnica é também o império do igualitarismo.
Leonardo, que não assistiu à Segunda Guerra Mundial, só conheceu a formação do império do igualitarismo no império comunista russo. Heidegger, que sofreu a guerra mundial no centro da catástrofe e viveu ainda mais quarenta anos, conheceu a formação do império da técnica no império tecnológico americano e pôde dizer que a Europa – isto é, a civilização pois só há civilização criada pela filosofia e só há filosofia na Europa – está sendo esmagada entre o império russo e o império americano.
Nenhum dos pensadores assistiu à implosão do império comunista russo. Semelhante implosão aguarda o império tecnológico americano.
Heidegger não previu nem uma nem outra implosão, e morreu no desespero do seu pensamento que é o desespero do característico pessimismo da filosofia alemã, afirmando que “só um Deus nos pode salvar”.»
Orlando Vitorino («Portugal e o Futuro»).
«Ser e Tempo (...) tinha posto em relevo que a existência histórica concreta do homem é sempre “dejecta”, inautêntica. Assim, não se deve ao acaso o facto de que, no escrito sobre a verdade, e precisamente ao chegar ao conceito da historicidade, Heidegger seja levado a dar outro passo decisivo na determinação da essência da verdade, ao descobrir o conceito de não-verdade. Se a verdade é liberdade, como deixar-ser o ente, como abrir-se ao ente no que este é, essa liberdade pode exercitar-se também como não deixar ser o ente como tal, travestindo-o e deformando-o. Tal possibilidade de não deixar manifestar o ente como é também não é (como a verdade) sobretudo ou só uma faculdade do homem. Para que no interior da abertura que torna acessível o ente seja possível algo como o não deixar aparecer o ente tal como é, ou seja, o erro nas várias formas mesmo morais, é necessário que a dita possibilidade esteja inscrita na estrutura originária da própria abertura: ela não pode depender simplesmente do homem.
“Posto que a liberdade ex-sistente como essência da verdade não é uma propriedade do homem, mas antes o homem ex-siste só na medida em que esta liberdade dele se apropria e o torna capaz de história, também a não-essência da verdade não pode, pois, proceder originariamente da simples incapacidade e negligência do homem. A não-verdade deve antes derivar da própria essência da verdade”.
Como pode a não-verdade pertencer à essência da verdade? Se concebemos a verdade como abertura originária e desvelamento, a não-verdade conceber-se-á, por conseguinte, como obscuridade e ocultamento. Um testemunho do vínculo subjacente entre verdade e não-verdade é justamente a própria palavra grega Aletheia, que está constituída pelo a privativo, indicando assim que a manifestação da verdade como desvelamento pressupõe um esconder-se, um ocultar-se originário, de que procede a verdade. Na análise fenomenológica, a originária conexão de verdade e não-verdade mostra-se no facto de que toda a verdade que expressamos ou conhecemos é a manifestação de um ente individual ou de um grupo de entes, mas nunca a manifestação do ente como tal na sua totalidade. Mais ainda, os entes individuais e os grupos de entes aparecem-nos precisamente enquanto a totalidade do ente não aparece em primeiro plano como tal.
“Justamente, enquanto o deixar-ser deixa ser o ente na particular relação em que entra com o seu relacionar-se e assim o revela, justamente então vela o ente na sua totalidade. O deixar-ser é assim, em si mesmo, ao mesmo tempo um velar. Na liberdade existente do Dasein sobrevém assim o obscurecimento do ente na sua totalidade”.
Este ocultamento da totalidade do ente, precisamente enquanto os entes individuais se manifestam e se revelam, é a não-verdade essencialmente conexa com a verdade. O ocultamento do ente na sua totalidade não é só uma “consequência” do facto de sempre só conhecermos parcialmente o ente. O ocultamento é mais originário porque, como dissemos, só devido a ele os entes singulares podem manifestar-se em primeiro plano e aparecer na sua verdade. Com isto está vinculada a possibilidade do erro, isto é, do disfarce e da deformação do ente: mesmo quando Heidegger não estabelece explicitamente este nexo, é legítimo pensar que o erro depende ou do “não saber tudo” (ocultar-se do ente na sua totalidade), ou da sobreposição de um ente aos outros (os erros relacionados com o interesse, por exemplo). Mas, sobretudo, com a não-verdade que pertence à essência da verdade está vinculada a existência inautêntica do estar-aí, a dejecção.
“O homem remete-se constantemente ao ente, mas a maioria das vezes na sua relação com ele limita-se a este ou àquele ente, e ao seu revelar-se sucessivo. O homem atém-se firmemente à realidade corrente e susceptível de ser dominada, mesmo quando se trata daquilo que é o primeiro e último. E ainda que se torne um dever ampliar, modificar sempre de novo a revelação do ente para dela se apropriar e a assegurar nos mais diversos campos da sua actividade, no entanto, toma para isso as suas directrizes do círculo dos fins e das necessidades correntes. Instalar-se na vida corrente equivale em si a não reconhecer o obscurecimento do que está obscurecido [...] Onde a obscuridade do ente na sua totalidade é admitida como um limite que só às vezes nos é anunciado, esse facto fundamental, que é o obscurecimento, caiu já no esquecimento”.
A dejecção da existência inautêntica é, pois, possível, porque a própria verdade implica em si a não-verdade, como obscurecimento ligado necessariamente a toda a iluminação. O que em Sein und Zeit permanecia como um enigma e a razão de o Dasein estar quase sempre, e em primeiro lugar na existência inautêntica, é aqui referido à própria essência da verdade, isto é, à própria estrutura do ser: com efeito, quando falamos do ente na sua totalidade, adverte Heidegger, na realidade pensamos no ser, por mais que, desde há muito tempo (e esta é a história da metafísica) estejamos habituados a concebê-lo apenas em referência à totalidade do ente.»
Gianni Vattimo («Introdução a Heidegger»).
«Emerge o espírito do ser e da verdade.»
JOSÉ MARINHO («Teoria do Ser e da Verdade», p. 113).
(...) com [a] transferência do ser da verdade para a verdade do ser, já se nos torna explicável a singular fortuna que na filosofia moderna obteve o preceito segundo o qual só será pensamento verdadeiro o que estiver adequado ao real. Extraído de um momento da lógica aristotélica, o juízo predicativo, tal preceito foi formulado pelos escolásticos medievais em termos de adequatio intellectus ad rem e, transitando da escolástica à filosofia prática, presidiu a todo o desenvolvimento da ciência moderna como única garantia da verdade.
Imediatamente surpreendemos neste preceito a redução da verdade a uma relação, adequatio, entre dois termos heterogéneos e, depois, a um saber que já não é lógico mas dialéctico e não tanto dialéctico como pragmático. O pensamento, por sua vez, sofre uma primeira limitação a pensamento do real (ad rem): não é já pensamento da verdade; e acabando por se tornar difícil distinguir entre pensamento e conhecimento, a mesma filosofia virá a conceber-se, em termos hegelianos, como um saber científico, e até, em mais recentes termos husserlianos, como «ciência de rigor» ou ciência exacta.
A verdade deixa portanto de aparecer como um princípio, deixa de ser em si mesma, para se confundir com a certeza de que o real que no pensamento se conhece é o mesmo real independente de ser conhecido.
O preceito escolástico reivindica entretanto uma radicação aristotélica. Com efeito, nos Segundos Analíticos, Aristóteles apresenta a adequação entre o pensamento e o real como condição para enunciar uma predicação verdadeira: só quando a árvore dá fruto é que é verdadeiro dizer que a árvore dá frutos, o que constitui uma predicação acidental; só quando alguma coisa é isso que é, e não pode ser senão isso que é, é verdadeiro dizer isso que ela é, o que constitui uma predicação universal. Todavia, a verdade tem no juízo predicativo apenas um dos seus três graus, e o menos significativo. É outro o da sensação e da imagem (ou sensação diminuída) em que é imediata a adequação com o real que as suscita. Num terceiro grau, a discursividade, a que pertence a predicação, cede o lugar à intuição, «análogo superior da sensação» [1] pois é «uma intuição que apreenderá os princípios» e «dos princípios não haverá saber» [2]. Aí, a verdade aparece como princípio, «o princípio do próprio princípio» [3], expressão que se encontra naqueles textos do Organon a que os comentadores atribuem um carácter enigmático mas, na qual o princípio só se pode interpretar, conforme aliás o texto esclarece, como sendo a verdade, e o próprio princípio como sendo o que, na discursividade lógica, preside à demonstração, seja a causa, seja a premissa universal e necessária, seja tudo o que em geral se designa por princípio de que depende toda a demonstração.
A radicação aristotélica daquilo que o pensamento moderno entende por verdade apenas atende, portanto, a um dos seus graus, o menor, e esse mesmo cindido e isolado. E também, por outro lado, não atende à teoria do intelecto activo e do intelecto passivo que «embora no texto de Aristóteles apenas esteja implícita, parece significar que a intelecção (...) requer uma iluminação transcendente» e será «o acto eterno da inteligência, o princípio pelo qual pensamos mas que escapa sempre ao nosso pensamento» [4]. O capítulo 5 do Livro III do De Anima ocupa-se todo ele da distinção entre «o intelecto que é análogo à matéria porque se torna aquilo que são todos os inteligíveis, que é uma espécie de análogo da luz pois, num certo sentido, a luz converte em cores-em-acto as cores que só existem em potência» [5]. Os Segundos Analíticos dão um didáctico exemplo desta «iluminação» e sugerem, ao mesmo tempo, a anagogia que ascende da sensação para a intuição: «embora o acto de perceber tenha por objecto o indivíduo, a sensação não deixa de incidir sobre o universal: ao percepcionar Callias, a sensação incide sobre o homem que há em Callias»; e depois: «cada espécie animal revela o género animal que contém e cada última noção uma noção mais alta» [6].
Quem nos dá o testemunho mais eloquente da situação a que chegou a filosofia moderna quanto ao pensamento da verdade, é Martinho Heidegger, o mesmo pensador que dedicou a Escoto e a Nietzsche, primeiro e último dos filósofos nórdicos, duas das suas obras mais significativas e elaboradas, que vê nos idealistas alemães «o esplendor derradeiro» [7] da filosofia, que reconhece «serem-nos alheios os pensamentos que fundamentam a metafísica ocidental» porque não pensamos esses pensamentos mas sempre nos limitamos a expô-los [8], que afirma que «a ciência, muito antes da explosão da bomba atómica, já tinha destruído as coisas enquanto coisas» [9] e que, movido pela nietzcheana concepção genealógica do pensamento, procura levar a filosofia nórdica a recorrer seu caminho de finalidades frustradas até sua origem nos gregos onde o pensamento está menos mediatizado e a palavra mais próxima do princípio que a inspirou. Intitulou esse testemunho Da Essência da Verdade onde, depois de refutar, não que a verdade seja ou se limite a ser adequação entre o pensamento e o real, mas que «resida originalmente no juízo predicativo» [10], transforma aquela adequação na «conformidade», que a faz possível, de um real que «se abre» e torna presente o ser que há nele com um pensamento ao qual a liberdade de que é dotado lhe permite dar-se e revelar-se no «enunciado» do ser assim tornado presente no real [11].
Desta concepção fixamos:
– que mantém a destituição, inerente ao desprendimento do saber
antigo, da verdade como principial;
– que não só prolonga, mas ainda acentua, a substituição do ser da
verdade, próprio do pensamento «mais próximo das origens», pela verdade do ser,
característica da modernidade; a designação de «essência da verdade», que
Heidegger dá por finalidade à sua investigação, não pode iludir o leitor que
página a página for vendo o autor situar a verdade no ser que no real se torna
presente;
– que, destituída de carácter principial, a verdade se mantém como
relação entre o pensamento e o real, embora se trate agora do ser que há no
real e embora a adequação lógica
suponha agora a conformidade ôntica;
– que não é refutado, antes continua fundamental, o preceito
escolástico da adequatio intellectus ad
rem; o que se refuta é apenas que tal adequação «resida originalmente no
juízo predicativo»;
– que, dando por essência da verdade a liberdade que torna o pensamento conformável ao ser desocultado na «abertura» do real, se recusam à verdade a independência e absoluteidade que ela possui como princípio para se reconhecerem só à essencial liberdade que assim vê reafirmado e reforçado o predomínio que os modernos lhe atribuíram.
Tal concepção, vinda de um pensador tão avisado das frustrações da filosofia moderna, revela bem a persistência do que é essencial e decisivo nessa filosofia até entre aqueles para os quais ela, ou toda a filosofia, já ultrapassou «o esplendor derradeiro» e pensar já não será filosofar. E assim se explica que não acompanhe a investigação sobre «a essência da verdade» aquele intuito «genealógico» com que Heidegger pretende levar o pensamento a recorrer, até à origem grega, os caminhos percorridos pela filosofia. Se é fácil assinalar a semelhança entre a «conformidade» do pensamento ao ser, na concepção de Heidegger, e a função «iluminadora» do intelecto, na concepção de Aristóteles, a estranha ausência de qualquer referência, ou sequer mínima alusão, à teoria aristotélica no ensaio Da Essência da Verdade adquire um significativo propósito – esse mesmo de fazer perdurar a negação da verdade como principial – que se vem confirmar quando Heidegger nos diz que «a atribuição da verdade ao juízo predicativo» é a atribuição tradicional e exclusiva (sic) [12]. É certo que para Heidegger – também nisso fiel às características da modernidade – Aristóteles é ainda um filósofo suspeito e já, no afastamento das origens, um filósofo mediador. Mais próximos das origens estarão, antes, Platão e, sobretudo, os mitólogos a que se chama pré-socráticos. A Heraclito recorre, com o sapiente apoio etimológico que sempre dá ao seu discurso, para, seguindo o sentido da palavra grega aletheia, traduzida em latim por veritas, representar a verdade como desocultação [13]. Também esta representação sobrepõe a verdade do ser ao ser da verdade, pois a desocultação será desocultar do véu que o ser é a verdade que o ser oculta. Ganha, portanto, mais fundo sentido a interpretação, que já lembrámos, de Álvaro Ribeiro segundo o qual a imagem radical da palavra grega, letes, representa, não ocultar, mas esquecer, tal como aparece na simbologia de letes, o rio da morte ou do esquecimento. Com a sua manifesta inspiração platónica, esta interpretação dá a verdade como o que foge ao esquecimento, reminiscência ou lembrança da ideia que, pela intuição (como em Aristóteles), une o pensamento ao princípio [14].
Não nos diz Heidegger como os modernos divinizaram o homem, mas é admirável como nos diz que divinizaram o pensamento: diz-nos que a adequatio intellectus ad rem, insusceptível de ir além da discursividade dialéctica, depressa teve de ser «interpretada como adequatio rei ad intelectum» e, então, «elle découle de la foi chrétienne et de l’idée théologique selon lesquelles les choses, dans leur essence et leur existence, ne sont pour autant que, créés (ens creatum), elles correspondent à l’idée conçue préalablement par l’intellectus divinus» [15]. Esta divinização do pensamento está suposta na razão dos últimos modernos, o que Heidegger já não nos diz; como nos não diz que ela se explicita na famosa afirmação de Hegel, o «derradeiro filósofo» segundo Herberto Marcuse, discípulo de Heidegger, de que «o meu pensamento é o pensamento de Deus antes da criação do mundo».
Entretanto, todo este processo, que arrancou do preceito escolástico que se encerra na predicação lógica, não alcança o que mais importa: nem a sensação, que é sempre sensação da natureza, nem a intuição dos princípios, que é sempre conhecimento do espírito. E permanece a interrogação essencial sobre a relação entre o ser e a verdade, entre o real e o pensamento. Sem o pensamento e o saber – quer os contenha em si mesmo quer lhe venham de outrem – o ser, e com ele todo o real, seria um ser que se ignora, um sem-sentido, um absurdo; e isolado do ser, o pensamento, por sua vez, não se cristalizaria em saber e fluiria em súbitas fugazes formas que deixaria vazias.
Que é o que liga a verdade ao ser? Que é o que liga a verdade ao ser – repetimos – não apenas no juízo predicativo da discursividade lógica, mas também na instantânea sensação e na ideia, no logos e no princípio?
Que é o que, «situado entre um e outro, preenche o intervalo e liga uma à outra as duas partes do grande todo» [16]? Que é «o meio entre o mortal e o imortal» [17], «o meio entre o saber e o ignorar» [18]? Os mediadores são os demónios e «há demónios de toda a espécie; este é o Amor» [19].
Platão vai acrescentando:
Existe o Amor simultaneamente na carência e na opulência porque «quanto adquire sem cessar lhe escapa [20]; «sempre pobre, sem vestes e sem domicílio, dormindo ao relento sobre a terra nua, nas ruas e nas soleiras das portas, a indigência é sua eterna companheira» mas «ama o saber e passa a vida a filosofar» [21] porque os filósofos são os que, «nem sábios nem ignorantes», se encontram «no meio entre o sábio e o ignorante» [22].
Quase diríamos demasiado fácil, a analogia entre as duas ordens de que o demónio é mediador e as ordens da verdade e do ser. E importa, prosseguindo, sublinhar que o amor aparece mais como amante do que como amado: «Imaginavas tu – diz Diotima a Sócrates – que o amor é o objecto amado e não o sujeito amante... [23]. Mas Platão vai levar mais longe o rigor da determinação ao dizer-nos aquilo de que o amor é amor: «é amor de gerar e ter filhos» [24]. Dado que o que se gera e concebe é um ser, o amor dirige-se ao real, como ao amado, e, amante que é, reside na verdade e procede do saber. Porque, em sua mesma natureza, o saber é, antes de tudo, saber de si, e sabe-se em sua «indigência de ser», «sem domicílio e sem vestes», ao passo que o ser, até na plena ignorância de si, tem a opulência de si mesmo. Mas ignorando-se, não possui sentido, ou sentidos, embriaga-se, não de vinho, mas da sua opulência de ser, que é o «néctar divino» de que fala Diotima; irá cambaleando até cair adormecido, como Poros, nos braços da esfomeada Pénia e no seio dela gerar Eros [25].
Assim se concebe o amor na fábula do fabuloso Platão: o mediador que garante o ser na principial verdade. E o regresso ao saber antigo aqui se torna mais premente. Atender-se-á, então, a que Aristóteles representa o saber segundo o espírito e os princípios, que Platão representa o saber segundo o ser, ou segundo a origem, a beleza e o bem. O regresso pela via platónica é o mais propício a remontar os caminhos percorridos pela modernidade até àquela origem em que a doutrina do ser e da aparência é o início que se veio traduzindo em termos de uno e múltiplo, de cisão e queda, de o mesmo e o outro.
Por regresso ao saber antigo entendemos, por um lado, a restituição ao ser da múltipla realidade em que o ser se evanesceu e dispersou e, por outro lado, a restituição do saber ao princípio da verdade que lhe assiste constante e aos princípios da liberdade e da justiça que são seus fins. O pensamento e o saber percorreram, através dos antigos e através dos modernos, vias em que importa fixar o que é irreversível: o saber que da verdade, do ser e do que os une tiveram os antigos, o saber que da liberdade e do espírito o cristianismo trouxe.
(In Orlando Vitorino, Refutação da Filosofia Triunfante,
Teoremas, Lisboa, 1976, pp. 251-260).
[1]
Joseph Moreau, Aristote et son école,
P. U. F., Paris, 1962, p. 182.
[2] Aristóteles, Segundos Analíticos, II, 19, 100 b, 11.
[3] Idem, ibid., II, 19, 100 b, 16.
[4] J. Moreau, ob. cit., pp. 188 e 189. «Aristóteles emprega apenas uma vez a
expressão intelecto passivo e nenhuma
vez a de intelecto activo» (nota de
J. Tricot à p. 181 da edição do De Anima
da Lib. Philosophique J. Vrin, Paris, 1947). Sabe-se, aliás, o que a doutrina
do «intelecto passivo» e «intelecto activo» deve à interpretação de Alexandre
de Afrodísia, que é exposta por O. Hamelin em La Théorie de l’Intellect d’après Aristote et ses Comentateurs
(Lib. Phil. J. Vrin, Paris, 1953). Desta doutrina fez Álvaro Ribeiro uma
aplicação à pedagogia e à didáctica nos capítulos intitulados «Intelecto
activo» e «Intelecto passivo» do livro Liceu
Aristotélico (Soc. Expansão Cultural, Lisboa, 1962).
[5] Aristóteles, De Anima, Liv. III, 5, 430 a, 11-18.
[6] Aristóteles, Segundos Analíticos, II, 19, 100 a, e
II, 18, 100 b, 3.
[7] Expressão do heideggeriano
francês J. Beaufret no prefácio à colectânea de Heidegger Essais et Conferènces, Ed. Gallimard, Paris, 1958, p. IX.
[8] M. Heidegger, Qui est le Zarathoustra de Nietzsche?,
ensaio incluído na citada colectânea, p. 132.
[9] M. Heidegger, La Chose, incluído na colectânea citada,
p. 201.
[10] M. Heidegger, De l’Essence de la Verité, ed. J. Vrin,
Paris, 1948, p. 78.
[11] Ibidem, §§ II e III.
[12] As palavras de Heidegger, na
tradução francesa de A. Waelhens e W. Biemel revista pelo próprio autor, são as
seguintes: «ainsi tombe l’attribuition traditionelle et exclusive de la verité
au jugement (énoncé) tenu pour être le seul lieu essentiel de celle-ci» (ob. cit., p. 78).
[13] M. Heidegger, Heraclito,
incluído na colectânea, já citada, Essais
et Conférences. Ver também o ensaio Hegel et les Grecs incluído na
colectânea Questions II.
[14] Uma vez que o rio lethes recebe este nome de lethe, derivado por sua vez de lanthanein (que significa esconder ou velar), a interpretação de M. Heidegger parecerá filologicamente
mais correcta do que a de A. Ribeiro. Acontece, porém, que o esconder ou o velar se desenvolve e enriquece em esquecer que imediatamente suscita a reminiscência de Platão e o
primado atribuído à memória por Aristóteles; e acabará por se justificar que no
Crátilo a palavra aletheia seja explicada como divagação ou deambulação dos deuses.
[15] M. Heidegger, De L’Essence de la Verité, ob. cit., p.
70.
[16] Platão, O Banquete, 202 e.
[17] Ibidem, 202 d.
[18] Ibidem, 203 e.
[19] Ibidem, 203 a.
[20] Ibidem, 203 e.
[21] Ibidem, 203 d.
[22] Ibidem, 204 b.
[23] Ibidem, 204 c.
[24] Ibidem, 206 e.
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