terça-feira, 15 de março de 2011

Decisão e Indecisão na Casa de Portugal (ii)

Escrito por Álvaro Ribeiro



Estamos efectivamente a observar que o animal racional vai desvalorizando e perdendo a razão na medida em que busca a técnica para se afastar da natureza. As mulheres assistem maliciosamente, ou de mente maliciosa, à loucura universal do sexo masculino, que para diminuir as distâncias no espaço e no tempo acelera a velocidade, e que tanto mais insectifica a sociedade quanto mais a mecaniza por um movimento sem inteligência. Afastada a arte pelo positivismo, a demência dos homens revela-se em que fazem do jogo um trabalho e do trabalho um jogo, como se a ociosidade e a negociosidade pudessem ter a mesma sorte na bolsa das mercadorias. Nas suas guerras sociais ou nos seus combates políticos, os homens públicos já não parlamentam acerca de razões, porque apenas discutem instintos, vontades e sentimentos que cobrem com as designações de interesses nacionais, sem nobreza universal. Ao positivismo, doutrina que teve por fim a eliminação da filosofia, devemos o descrédito do racionalismo e da razão. A crença passou para as variedades da experiência sensual, céptica ou mística, para a experiência científica, metafísica e religiosa. Contra a doutrina positivista clamam quantos preconizam o regresso à escolástica, isto é, ao graduado e progressivo exercício da razão libertadora e comunicativa, verdadeira educação do homem.

Para além da razão existe a fé. Num livro de filosofia, o ponto de fé, quer dizer, de quietação e de segurança a que há-de ser referido o movimento da inteligência, nunca pode deixar de ser a existência de Deus. Há que afirmar Deus essente e existente, porque o crer ou acreditar em Deus, confiar nas suas ameaças ou nas suas promessas, implica já questões menores de arbitrária subjectividade. O ateísmo, como já foi dito, não passa de uma forma de analfabetismo, isto é, incapacidade de ler a designação e a significação de uma palavra sagrada. Elucidado de que é um composto de corpo, alma e espírito, como verifica pela morte, pelo sono e pelo esquecimento, o homem sabe que deixando de pensar deixa de ser homem, deixa de verdadeiramente ser. Aceitável por cépticos e místicos, o argumento ontológico exerce um admirável principado sobre a razão. Logo, porém, a identidade entre o pensar e o ser vai descendo à relação entre o pensar e o agir, ou entre o pensar e os modos do jogo, da arte e do trabalho, numa degradação que causa escândalo à puridade intelectiva dos cépticos e dos místicos.

O livro intitulado Teoria do Ser e da Verdade é essencialmente constituído por uma teoria da cisão, ou seja, do princípio de divisão e de divórcio que afecta os seres. A cisão divina, a cisão cósmica e a cisão humana respondem e correspondem às três ciências filosóficas, designadas por teologia, cosmologia e antropologia. Para bem entender há que suprimir a logia, o logos ou o verbo. A cisão significa evidentemente acção ou paixão de dividir e de separar, separar as partes no composto ou dividir, abstractamente o uno. Mais tarde se dirá qual a causa ou qual o causador da cisão que surpreenderemos no método analítico. A fenomenologia da cisão é grandiosa, lúcida e terrivelmente exposta por José Marinho em páginas dignas de admiração, as quais anunciam quando não proclamam consequências que o leitor interessado ou inteligente não pode deixar de inferir. Tais inferências serão válidas na medida em que forem garantidas pelas outras noções que a cisão postula na arquitectura da Teoria do Ser e da Verdade. Do ponto de fé alcançado pelo argumento ontológico vão descendo duas linhas, ou mais, que figuram ângulos sem triângulos. Ao vértice falta a relação da altura com a base. Assim uma doutrina sem base dar-nos-á apenas a eloquente ilusão da emanação infinita ou abissal emergência de imagens que nem sequer chegam a ser simbólicas. A cisão explica as aparências e significaria a verdade se estivesse garantida por alcance ontológico. O pensamento escolástico, ao impugnar as névoas ou os fumos do misticismo ou do cepticismo, assenta na pedra filosofal os fundamentos racionais do pensamento cristão que caracteriza na verdade transitiva e operativa do símbolo para o sacramento.


Todos sabemos que o realismo da gnosiologia de Aristóteles afirma o vínculo substancial de todos os entes. Se nas antigas doutrinas religiosas vigorava a abissal distinção entre os deuses e os homens, com ou sem a interpretação idealista dos «deuses que o são para os homens», na revelação cristã a relação Deus-Homem ou Homem-Deus opera a transfiguração, a transformação e a transmutação do ser consciente, ou do ser racional, em maravilhosa irreversibilidade do movimento, do tempo e do espaço. O cristianismo não é religião que haja surgido no terceiro termo de qualquer dedução cronológica. A cisão extrema do politeísmo e do paganismo, se jamais existiu, foi na história redimida pela comunhão cristã. Sem a prática dos sacramentos e sem a prece matinal - sem a oração do pão e sem a oração da luz -, talvez seja impossível inteligir a unidade do ser no cristianismo, mas a liberdade de recusar os meios purificadores e salvadores do homem decaído mas redimido não vale de argumento contra a esperança da ressurreição da carne ou da reintegração dos seres, afirmada pela maioria das doutrinas iniciáticas. Só os positivistas julgam que a vida de Cristo terminou para sempre no calvário, e por isso representam o facto cristão na imagem do crucifixo, exaltando o sombrio instante da morte, sem aleluia, sem anunciação, sem ascensão. A fé, virtude teologal, superior às virtudes cardeais, culmina todavia no símbolo apostólico da vida eterna.

A doutrina da cisão atinge não só a teologia, mas também a antropologia. Estando, por várias vezes, figurada na Teoria do Ser e da Verdade a posição dos deuses contra os homens, em palavras de subtil ludicidade, seria de esperar que também nele fosse representada a oposição das mulheres aos homens, segundo um jogo antigo que no nosso tempo vai declinando já para a arte e também para o trabalho. Repreensível falta numa fenomenologia da cisão, já que é para todos evidente que da secção genésica emergem os sexos, já que a observação da criança, da tendência para o género, da previsão da hereditariedade merece ser demoradamente considerada no preâmbulo de uma ontologia do amor. Entendido como problema, segredo ou mistério, o amor representa sempre a sublime virtude criacionista, porque longe de ser a paixão consistente no aprender e no receber vive na acção generosa do dar e do ensinar. A inclusão dos entes racionais nos três grupos naturais dos homens, das mulheres e das crianças, superando a cisão crónica das eras, das épocas e dos séculos, propícia a todos os pensadores de dedução cronológica, paira acima da planificação usada pelos historiadores das religiões, das filosofias e das ciências. A humanização está longe de ser a ilusão dos humanistas, porque na consciência humana se espelhou a palavra divina, talvez perdida mas também prometida, e portanto infinita. A parábola cristã não revoga, porque apenas purifica e simplifica os mitos, os ritos e os símbolos de mais velhas teologias e teogonias.

A doutrina da cisão ilude e engana quando transita ou recorre do distinguir para o separar. Na sensação externa como na intuição interna um terceiro termo é dado, absorvente ou unificado. Em mais elevada ordem de pensamento, quando o juízo surge por virtude de objectivo, a dialéctica parece fortalecer a cisão. Os adjectivos prestam-se a figurar os contrários, pela facilidade conferida ao escritor para manipular os prefixos de negação e de privação. Tudo se opõe ao Nada, honrando um simples pronome indefinido com a inicial maiúscula, como se fosse um nome. A dialéctica não é via para a verdade, quando desfigurada em meio jogo sem arte nem trabalho.

A dialéctica superior tem o mérito de humilhar os intelectuais que ainda não sublimaram o instinto combativo, significante da pré-puberdade, intelectuais que, embora adultos ou veteranos, permanecem na indecisão mental da adolescência. O dialecto mostra-lhes os anversos e os reversos das questões, faz passar os rivais de uma margem para a outra, enfraquece as posições e as oposições, sem contudo professar, firmar ou afirmar os princípios comuns ou os lugares-comuns que determinam o ponto crucial do caminho para a verdade.






Logo, porém, que o instinto combativo, mas estéril, seja superado pela razão construtiva ou edificante, repugna ao homem qualquer doutrina sem base. O racionalista solicita que lhe seja conferido o primeiro grau de iniciação tradicionalmente representada pelos quatro elementos. É verdade que muitos homens não passam da Idade da Pedra, ligando gravemente e gramaticalmente palavra com palavra, como quem junta sólido com sólido, em coordenação ou subordinação; mas outros alcançam a plasticidade e a fluência da arte maior, incomparavelmente subtil. O homem pretende agir, mas agir iluminado pelo pensar. A seriedade da vida humana refuta as atitudes cépticas, hipócritas e sofísticas daqueles vaidosos e verbosos politicantes que, não contentes de estarem como homens superiores, pretendem ser tidos por super-homens, apenas porque chegaram mais depressa à verdade, e se gabam de em vida terem visto Deus.

É dos livros que o misticismo, ao atingir o extremo quietista, como o cepticismo, ao atingir o extremo sofístico, se consideram libertos de qualquer ética desdenhada ou desprezada pelo carácter partido ou parcial do seu pensar e do seu agir. A cisão abre luciferina via aos olhos que queiram ver a protagonia e a antagonia da tese e da antítese do mundo moral. A teoria da cisão, expõe, portanto, as dificuldades de uma ética sem pauta, sem regra, sem prazo, uma ética sem precisão nem decisão, uma ética da indecisão, como aquela a que aspiram quantos se esquivam a respeitar os direitos adquiridos, a pagar as dívidas e a cumprir os deveres, isto é, a reconhecer as obrigações de ordem civil, política e militar. O expediente de opor ao juízo parcial a compreensão una e omnímoda, com a exemplaridade do santo, não elimina, não exclui, não expulsa a dialéctica do sim e do não em paralelo com a distinção do mal e do bem, porque a guerra fogosa logo reaparece na mente do pensador que confere liberdade ao «heróico portador da negação extrema», dizendo que «quem nega tem profunda razão de negar». A razão, humilhada pelo cepticismo e pelo misticismo, emerge útil e servil no momento grave da polémica individualista. Certo é, porém, que da falta de ética resulta necessariamente a demissão da pedagógica, da política e da económica, com amarga decepção de quantos justamente esperam da filosofia qualquer decisão mental ou moral perante os problemas humanos, os segredos naturais e os mistérios divinos.

A teoria do separador, visão auroral de luz que se intensifica até se transformar em fogo, representa o incêndio que está devorando tudo quanto até agora parecia sexo e fixo, na ordem humana como na ordem cósmica e na divina. As mulheres sorriem maliciosamente da casa que arde para ser parte de casa ou cinza de casa, com ruína total do casamento, porque lá fora do lar já está proclamada e decretada a cisão humana pela igualdade dos sexos. Tudo se abisma do Nada, e da cisão emergem para a ilusão da nossa vida o amor e a fé. Eles explicam a paixão humana, fé sem acção, e implicam o respectivo engano, porque se firmam no que é apenas simbólico, de relação entre o patente e o secreto, mas de mínima, remota e inatingível verdade. O pensamento transforma e anula tanto o amor como a fé porque pensar é cindir e desunir. Frágil é a amizade humana, frustes as relações e as religiões, abstractas as condições do espaço e do tempo, ilusória a irreversibilidade do movimento. Seria, no entanto, impensável o ser em vertiginosa decadência para o caos se a verdade não postulasse a noção contrária à da cisão, que é o insubstancial substante.

Apresentada de perfil e sem minuciosa crítica, mas de modo a facilitar imparcial entendimento, a fenomenologia da cisão não representa todo o mérito da Teoria do Ser e da Verdade. O mais alto valor da obra está no ensaio de opor à fenomenologia do ser uma ontologia do espírito. Estas expressões de erudição universitária e de indústria editorial evocam, mas agora de propositada utilidade, os termos da filosofia eleática, da filosofia ateniense e da filosofia alexandrina (e assim dizemos porque não há unidade que se denomine filosofia grega, nem totalidade que se denomine filosofia antiga), como evocam também os densos, complexos e volumosos livros que a Alemanha exporta para consumo dos estudantes de filosofia. Hegel escreveu, como é sabido, uma Fenomenologia do Espírito, em réplica à ontologia do espírito que Kant estudou nos subjectivistas britânicos, Locke, Berkeley, Hume, e que teorizou como ontologia do intelecto (Verstand) aquém da razão cristã, humana e divina (Vernunft). O estudioso José Marinho, afectado por funda aversão contra a filosofia escolástica, na medida em que esta se apresenta como face exotérica do esoterismo cristão, deixou-se fascinar pela mística teutónica e consequentemente pelo idealismo alemão, pensando em luta contra as tendências normais e formais da filosofia portuguesa, que já do rubro fatalismo islâmico e do verde profetismo hebraico recebera aquele sinal activista e realista que na obra de Aristóteles figura em verdade perene e dominante.


Excluindo a razão e o racionalismo, por escolásticas presunções de possuir a verdade ou de a atingir apressadamente, excluindo também o intelecto e o intelectualismo por sucedâneos da razão que se exterioriza e objectiva em categorias, o pensador José Marinho mergulha até ao fundo, ao fundamento e ao fundamental da consciência humana para descobrir a interrogação. Pensar é interrogar. O inquérito avança até à fronteira dogmática entre a heresia e a ortodoxia. Quem interroga é a Esfinge, símbolo quadrivial dos estádios da evolução humana, em figuração quimérica. Junto dela as pirâmides, mas todas com base, obras de arquitectura. O enigma trivial dá prova ao comportamento humano, em seu duplo aspecto de interioridade e de exterioridade. Mas interrogar é sempre julgar, e do intelecto à razão ascende o homem pelo reconhecimento de que todo o ser e toda a verdade dependem daquele absoluto a que só por analfabetismo pode ser recusado o santo nome de Deus. A dialéctica do ser parcial perante o ser total, como a da verdade parcial perante a verdade total, desaparece insubstante na presença do substante, milagrosamente significado pela sagração da estrela ou da cruz. Cessa toda a divisão com o malefício do divisor no momento de entender que a multiplicação original, morrendo em cada instante de sacrifício, concorre efectivamente para a redenção final.

Saudamos no livro de José Marinho, no pensamento e no estilo admiráveis da Teoria do Ser e da Verdade, uma obra autêntica de filosofia que efectivamente nos obriga a cogitar, a meditar e a reflectir. A crítica dirá se as respectivas teses concordam entre si, para coerência do sistema, e se estão de harmonia com a cultura que nos cumpre propagar e defender. O livro surge na hora em que, perplexos ante as dificuldades opostas pelos estrangeiros ao pensamento nacional que estrutura a verdade da Pátria, buscamos as razões justificativas da posição que nos singulariza pelo modo de colaborar na redenção da Humanidade. Os estrangeiros, e com os estrangeiros os nossos emigrados ou turistas, arguem maliciosamente com a denúncia das tristes culpas, certos de que o ensino das escolas públicas, viciado pela frenesia cientista e tecnicista, tem revogado de geração para geração os valores defensáveis pela filosofia portuguesa. Aos escritores, e especialmente aos autores das obras de pensamento, tem sido efectivamente desleixado o poder de educar as novas gerações. Só eles constroem o futuro, já que o ser do homem é o seu pensar, e com o pensar se ilumina o agir. No passado repousam, ou adormecem, parentes, professores e sacerdotes, que repetindo palavras pretéritas esvaziam de conteúdo intelectual ou emocional as cerimónias em que por hábito colaboram, transformando as comemorações históricas em farsas revogáveis, dispersando em terras mortas o vínculo espiritual da tradição (ob. cit., pp. 273-278).






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