1. De Álvaro Ribeiro dizia José Marinho que “pensava como o coração pulsa: sem cessar”. Almada Negreiros chamou-lhe “santo científico”. Pinharanda Gomes mantém-se firme em dizê-lo “um santo”, com todo o significado e todas as virtudes que a Igreja dá à palavra. Nenhum dos que com ele conviveram ou sabem ler com proveito seus livros, receia reconhecer que de homem algum ou pensador mais do que dele se pode dizer “um sábio”. E seus discípulos, desde António Telmo e António Quadros, desde Afonso Botelho e Braz Teixeira ao autor destas linhas, têm-no como “o mestre por excelência”.
Socialmente, quer dizer, nas consequências sociais da opinião que a ignorância contente de si formou dele, Álvaro Ribeiro foi, ainda é, um homem antipático e um filósofo odiado, daqueles que são para serem assassinados. Quem o quiser comprovar documentalmente, pode ler o que sobre ele infantilmente escreveram e publicaram um crítico versejador como Casais Monteiro e um crítico que não verseja como Eduardo Lourenço.
À medida que o homem vivo vai esquecendo, a antipatia e o ódio vão sendo substituídos por um cerrado silêncio hostil que faz o regozijo da estupidez universitária posta perante os livros admiráveis e únicos que ele nos deixou.
São esses livros escritos com estilo, palavra que, na acepção dada pelo próprio Álvaro Ribeiro, significa a singularidade inimitável do escritor. Seu estilo desenvolve-se numa sucessão de afirmações, isto é, de teses, ideias, conceitos, logismos, rigorosamente firmes, ou firmados, ou com firmamento, palavra que o filósofo contrapunha à de fundamento, corrente na linguagem filosófica germânica, como o céu estrelado e luminoso se contrapõe às funduras tenebrosas. As afirmações sucedem-se, não por extrínsecas justaposições, mas por deduções, silogismos e inferências que o escritor não perde tempo a descrever, antes entregando ao leitor a tarefa de a si mesmo provar capacidade de inteligência e entendimento filosóficos. Assim nos dão os livros de Álvaro Ribeiro o exemplo de como a filosofia se deve defender, nenhuma facilidade concedendo à mediocridade e à incultura. Não há filosofia de leitura fácil porque leitura fácil é a de imediato entendimento e o entendimento filosófico conduz-se por demoradas meditações. Álvaro Ribeiro gostava de lembrar o que Dante disse do filósofo: “mestre dos que sabem”. A sabedoria é mediadora.
O que vamos tentar dizer é para valer como advertências a quem, pelo pensamento de Álvaro Ribeiro, intentar iniciar-se na doutrina do espírito, na “doutrina imperitura” – escreveu José Marinho a fechar a sua teoria.
De doutrina se trata, não de teoria. Porque teoria é o que se vê e cumulativamente se pensa, e do espírito não há visão. Visão implica cisão, pois só se vê o que está separado ou cindido. O que se cinde e se separa é o ser, e compreende-se que José Marinho tenha chamado, à sua teoria da verdade, Teoria do Ser e da Verdade embora negando, por ilusório, “o ser enquanto ser”.
Espírito é o que une e a actividade do espírito é o pensamento. A doutrina do espírito começa por uma doutrina da palavra, primeiro porque não há pensamento sem palavra e a lógica é a ciência da expressão do pensamento em palavras, depois porque uma doutrina da palavra é também uma doutrina da linguagem e a língua é a tradição ou o repositório da sabedoria, finalmente porque a palavra está na origem, não como a visão, mas como o que se ouve e ora, como audição e oração que são sempre para unir, não para separar.
2. A doutrina do espírito e a teoria da verdade, uma representada por Álvaro Ribeiro, outra por José Marinho, são as duas faces da mesma filosofia. O seu mais simples entendimento passa pela compreensão dessa complementaridade da qual a oposição entre visão e oração é a primeira de uma sucessão de oposições.
Dissemos que a doutrina do espírito começa por uma doutrina da palavra. Sabemos que a teoria da verdade começa pela visão, por aquela visão a que José Marinho chamou “visão unívoca”. Como se conciliam ou mutuamente se completam visão e oração, ver e ouvir, ser e palavra? A resposta tem de ser procurada na tese que José Marinho enunciou dizendo que o “ser enquanto ser é ilusório”.
3. Enquanto a iniciação ainda está percorrendo a leitura dos textos, convém atender às condições em que os seus autores formaram o pensamento aí escrito.
A formação do pensamento de Álvaro Ribeiro é mais vagarosa e referenciada, do que a do pensamento de José Marinho. José Marinho é o autor de um só livro, Álvaro Ribeiro o de muitos livros.
Despertou ela, a formação do pensamento de Álvaro Ribeiro, no magistério de Leonardo Coimbra que logo libertou o discípulo da preocupação pelo cientismo, dominante nas mentalidades modeladas pela filosofia moderna e da qual o próprio Leonardo foi vítima num largo período da sua vida e da sua reflexão. O consequente estudo do platonismo, a que Álvaro Ribeiro dedicou os primeiros anos da maturidade, não lhe foi, porém, salutar. Leonardo afirmava, com boas razões, que “toda a filosofia é uma reactualização do platonismo”, mas os diálogos de Platão provocaram em Álvaro Ribeiro uma funda decepção, ao contrário do que aconteceu a José Marinho. Decepção tão funda que o levou a desvalorizar a mesma expressão dialogante e a minorar a arte do teatro.
O que se contrapõe ao platonismo é o aristotelismo, embora esta contraposição não seja aquela oposição irredutível que ainda se ensina nas escolas. Também aqui importa compreender como a teoria de Platão e a doutrina de Aristóteles são complementares.
É muito tarde que Álvaro Ribeiro descobre a filosofia aristotélica. Trata-se de uma filosofia que exige prévia e demorada aprendizagem que nem todos os pensadores têm tempo de vida para obterem. Era aqui que Álvaro Ribeiro lembrava o que Dante chamou a Aristóteles: “mestre dos que sabem”. Muito é preciso saber para se começar a entender o aristotelismo.
Nem sempre tal demora e tal saber são paralelos e pode acontecer, como aconteceu a Leonardo e a muitos dos grandes pensadores, ser-se um aristotélico que se ignora.
4. O caminho que levou Álvaro Ribeiro ao aristotelismo foi, primeiro, o da suspeita do “ser enquanto ser” que se prolongou na importância do dever-ser sobre o ser, da norma sobre o facto. A sua filosofia virá a ser uma filosofia do dever-ser, da norma, da rectificação ou do direito. Mas até chegar à filosofia do direito, longo foi o caminho percorrido e que Álvaro Ribeiro conseguiu percorrer porque “pensava como o coração pulsa”.
Aturada e minuciosamente se entregou, numa primeira aproximação do racionalismo, ao estudo do racionalismo extreme dos escolásticos que concluiu ser uma deturpação do racionalismo aristotélico como a “lógica formal” é uma adulteração do “organon”. Quando compreendeu, graças à doutrina da palavra, que não há pensamento autêntico sem radicação na sabedoria ou tradição que a língua guarda, e adoptou a designação de “filosofia portuguesa” para o seu próprio pensamento, ficou longe de valorizar a famosa contribuição “portuguesa” para a neo-escolástica e desdenhou os célebres, mas pouco ou nada conhecidos, “comentários conimbricenses”. Aludia com desdém às “Instituições Dialécticas”, de Pedro da Fonseca, que foram, até Kant e incluindo o mesmo Kant, o livro de referência dos lógicos da filosofia moderna.
Aristóteles |
Sabe-se como Santo Anselmo foi quem concebeu, enunciando-a na chamada “prova ontológica da Existência de Deus”, a identidade do pensamento e do ser na qual se vai fundar e alimentar todo o triunfante desenvolvimento da filosofia moderna, desde Descartes – substituindo a ideia anselmiana, ou pensamento objectivo, pelo cogito ou pensamento subjectivo, e o ser de Deus pelo ser do homem – até Hegel, substituindo a ideia pela razão e o ser pelo real. Nos três famosos apoftegmas – “da ideia de um ser perfeito ou Deus concluiu-se necessariamente a existência de Deus”, “cogito ergo sum” e “só o racional é real” – está traçado todo o percurso da filosofia moderna.
Não é, porém, a identidade ontológica que Álvaro Ribeiro recebe de Santo Anselmo, mas sim a prioridade da crença sobre o pensamento da qual extrairá a concepção de que não há filosofia sem tecnologia, assim regressando ao magistério de Leonardo com uma espécie de compromisso, firmemente sistematizado, entre as duas singulares afirmações do mestre, a de que “toda a filosofia acaba em religião” e a de que “a filosofia é a única oração eficaz”.
Adopta Álvaro Ribeiro a sentença anselmiana “credo ut inteligere”, que escreve em epígrafe do primeiro livro onde expõe o sistema do seu pensamento, A Arte de Filosofar e mantém, ora suposto ora expresso, em todos os momentos da sua filosofia como condição de autenticidade e veracidade do pensamento, a condição que não está apenas na origem mas também na finalidade de pensar: creio para pensar, penso para firmemente crer.
Manuel Kant |
5. Para além dos estádios de formação, outras constantes se nos oferecem. Duas delas vamos agora referir: o evolucionismo e a misantropia.
Não nos demoraremos a distinguir o evolucionismo do nosso filósofo dos limitados evolucionismos que, quando ligados a algum progressismo como em muitos deles acontece, são ensombrados pelo absurdo “progresso infinito”. Sem este absurdo, estão eles decerto integrados no evolucionismo de Álvaro Ribeiro como a parte está integrada no todo, ou o acidente na essência. Mas não é por eles, por algum evolucionismo das espécies naturais ou das temporalidades sociais, institucionais e históricas, que se alcança o entendimento do autêntico evolucionismo.
A evolução é, sem dúvida, universal. Há evolução na natureza, há evolução nas instituições, há evolução no conhecimento ou ciência. Mas é no pensamento que reside a evolução de que todas as outras derivam. Mais rigorosamente: a evolução é o pensamento, pensar é evoluir e, uma vez que toda a realidade é penetrada de pensamento, a toda ela o pensamento imprime a evolução.
Logo no significado da palavra, ou no conceito que tal significado representa, evoluir é volver para fora ou para outro. Depois, a evolução conota-se, num sentido, com a educação, que é conduzir para fora, com a maiêutica, que é trazer para fora, com a existência, que é ser para fora. Conota-se, noutro sentido, com envolvimento e desenvolvimento, com o que envolve nas trevas, com o que rompe o envoltório para a luz. Conota-se, num terceiro sentido, com o movimento, e parece ser esta a conotação mais atendida e tratada por Álvaro Ribeiro, que por ela estabelece a relação com o aristotelismo, relação tão íntima que o leitor se interrogará: dizer evolução e dizer movimento é dizer o mesmo?
A filosofia moderna, prolongada e apoiada na ciência moderna, em especial na física, reduz o movimento à deslocação dos corpos. Ora na física aristotélica há, pelo menos e expressamente, quatro formas de movimento: além da deslocação, a mudança, o crescimento e a alteração. Mas se passarmos da física à biologia ou à psicologia, outras formas de movimento existem na natureza, na alma e no mundo. Sejam, por exemplo, a geração e a corrupção, a criação e a destruição, a ascendência e a decadência.
Álvaro Ribeiro observa que nem a natureza é sempre a mesma nem o homem nem o mundo. Não são as mesmas as formas e relações dos entes naturais, que as ciências físicas tendem a fixar num ilusório conhecimento perpétuo. Não é a mesma a humanidade de um grego antigo e um europeu moderno. Não é o mesmo o mundo com suas religiões, suas sociedades e povos, suas instituições. Mas verifica-se que, em vastas zonas do real, é a decadência que marca as diferenças.
Ora em sua ideia ou essência, a evolução só pode ser afirmativa. É evolução para o bem ou para a perfeição. Aqui se encontra Álvaro Ribeiro com o aristotelismo, o seu conceito de evolução com o conceito aristotélico de movimento. Ambos serão, essencialmente, a transição da potência ao acto tendo por finalidade a perfeição. Se é esse o sentido da evolução e sendo a evolução universal, como compreender a decadência, a corrupção, a destruição?
Ora observa-se que a decadência, com a corrupção e a destruição que lhe sucedem, é decadência nas “coisas”, quer dizer decadência no ser, nos factos, nos corpos, nas instituições.
Trata-se, assim, daquilo que Leonardo designava por coisificação, designação que Álvaro Ribeiro não conservou. E a coisificação aparece como forma negativa do movimento, reservando-se a evolução, sempre afirmativa, para o pensamento e a penetração do real pelo pensamento.
Álvaro Ribeiro não chegou a desenvolver a concepção de que esse mesmo movimento negativo atinge, depois da decadência, da corrupção e da destruição, a forma da saturnificação, onde tudo recomeça, retorna, ou na expressão de José Marinho, recorre. E ao que José Marinho entendeu como a cisão extrema, como o não-ser que está no extremo da cisão, corresponderia o movimento de saturnificação. Álvaro Ribeiro nunca admitiu, porém, o não-ser e o nada, “o mais profundo nada”, como dizia José Marinho.
Se a saturnificação é manifesta na biologia, afigura-se que as formas decadentistas do movimento não vão além da corrupção, e a corrupção terá por termo a morte que ou é a coisificação definitiva, a fossilização evanescente, ou o trânsito a outro estado do ser, a outro modo de existência. Álvaro Ribeiro considerou sobretudo a coisificação nas instituições, isto é, na política, na moral, no ensino e na ciência. As instituições envolvem a existência dos homens, e a decadência a que estão sujeitas traz aos homens a diminuição dos seus poderes naturais, da apetência pelo pensamento, das virtudes éticas e sociais. O homem é infeliz.
Aqui se traduz outra generalidade constante na filosofia de Álvaro Ribeiro, a misantropia. A decadência que as instituições causam ao homem é tão grave que atinge a sua mesma natureza biológica e espiritual. Tão grave que, tendo o cristianismo trazido ao mundo a verdade que o helenismo ignorou, o homem cristão é inferior ao homem grego como a lei dos três estados positivista, determinando toda a evolução na sucessão linear da teologia à metafísica e da metafísica ao cientismo, é inferior ao que Álvaro Ribeiro chama lei dos três estados aristotélica, determinando a sucessão cíclica da democracia à monarquia e da monarquia à aristocracia.
Nunca Álvaro Ribeiro perde de vista que o pensamento é operativo. O processo que utiliza tem como primeira fase o que chama análise, e tem por instrumento o logismo a que escolásticos e kantianos chamaram juízo. A análise revela o estado de decadência das instituições e das mentalidades, decadência determinada pela distância a que a realidade vivida está do pensamento, a cultura está do culto, as instituições estão das ideias. À análise sucede a dianoia que segue, naquela distância, os vestígios da adulteração das ideias, dos conceitos e dos sentimentos. A partir daí, desenvolve-se o processo do pensamento como especulação ou actividade do espírito, que tem o momento supremo no silogismo, isto é, na transição de uma verdade conhecida para a descoberta de uma verdade desconhecida.
Como o pensamento é operativo, contrapõe e impõe à realidade vivida a verdade que descobre e apreende. Assim se apresenta à realidade nas formas de norma ou com um carácter normativo.
A misantropia de Álvaro Ribeiro funde-se na observação de que a realidade é uma realidade em decadência. O carácter normativo do pensamento consiste em rectificar os erros que alimentam a decadência. Neste sentido se pode dizer que a filosofia de Álvaro Ribeiro é uma filosofia do direito, pois o direito é a rectificação. Álvaro Ribeiro diz que ao real empírico se opõe o ideal lógico.
A confirmação, se não a inspiração filosófica, da misantropia de Álvaro Ribeiro, encontrou-a ele em Sampaio Bruno que, por sua vez, a recebeu para além da análise, da reflexão das mitologias religiosas do paraíso perdido, da idade de ouro, da queda original. A existência do real condiciona a existência do homem e do mundo. A redenção é, todavia, possível, mas a esperança do homem tem sido iludida pelas religiões redentoristas. Porque só o pensamento será redentor, poderá travar e inverter o movimento de queda, e o novo Cristo que houver será um Deus filósofo, “um Cristo cujos milagres sejam argumentos".
É estranho que Álvaro Ribeiro tenha considerado Bruno “o fundador da filosofia portuguesa”, isto é, da sua própria filosofia. Porque Bruno é ainda um pensador demasiado cingido às “verdades” do conhecimento científico, seja embora para as refutar, e às “revelações” religiosas, seja embora para as discutir. É, de seu, um pensador mergulhado nas trevas originais ou pré-originais, sempre aberto aos vestígios de um caos cuja presença se prolonga desde as noites imemoriais e que só à ciência, ou às leis científicas, atribui poder para ordenar.
Ora o mundo da misantropia de Álvaro Ribeiro não é o mundo lúgubre da misantropia de Bruno. Entre uma e outra situa-se o pensamento luminoso de Leonardo, e Álvaro Ribeiro tem sempre expressamente presente “a maravilha da criação” (in Leonardo, Ano II, n.º 5/6, 1989, pp. 13-16).
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