Escrito por Frederico Hayek
«Ninguém pode dar-se à liberalidade de atacar a propriedade exclusiva e afirmar que dá valor à civilização. Não se pode dissociar a história de ambas.»
Henry Summer Maine
«A propriedade [...] é, consequentemente, inseparável da economia humana na sua forma social.»
Carl Menger
«Os observadores avisados da ordem alargada emergente tão-pouco tiveram grandes dúvidas de que esta estava alicerçada na segurança, garantida pelos governos, que limitava a coerção à aplicação de regras abstractas que determinavam a quem incumbia a posse de algo. O “individualismo possessivo” de John Locke foi, por exemplo, não apenas uma teoria política, mas também o produto de uma análise das condições que tinham propiciado a prosperidade da Inglaterra e da Holanda. Baseou-se na ideia de que a justiça que a autoridade política deve impor, se pretende assegurar a cooperação pacífica entre indivíduos em que assenta a prosperidade, não pode existir sem o reconhecimento da propriedade privada: "'Onde não há propriedade não há justiça' é uma proposição tão correcta quanto qualquer demonstração de Euclides. Sendo a ideia de propriedade o direito a algo e sendo a ideia a que é dada o nome de injustiça a invasão ou violação desse direito, é evidente que estando assim instituídas essas ideias e anexos a elas esses nomes, posso com certeza saber que esta proposição é tão verdadeira quanto a de os três lados de um triângulo serem iguais a dois recto" (John Locke: 1690/1924: IV, iii, 18). Pouco depois, Montesquieu fez saber que o comércio expandira a civilização, suavizando os costumes bárbaros do Norte da Europa.
Para David Hume e outros moralistas e teóricos escoceses do século XVIII era evidente que a adopção da propriedade exclusiva assinalava o início da civilização: as regras de regulamentação da propriedade pareciam tão centrais à moral que Hume lhes dedicou a maior parte do seu Treatise sobre moral. Foi às restrições ao poder do governo para interferir com a propriedade que, mais tarde, na sua History of England (Vol. V), atribuiu a grandeza desse país; no próprio Treatise (III, ii) explicou de modo claro que se a Humanidade executasse uma lei que, em vez de estabelecer regras gerais sobre a posse e troca de propriedade, pelo contrário, “atribuísse a maior posse à mais extensa virtude,... tão grande é a incerteza do mérito, quer devido à obscuridade natural, quer por causa da ideia que o indivíduo tem de si próprio, que nenhuma definição de regra de conduta poderia derivar daí, tendo como imediata consequência a dissolução da sociedade”. Posteriormente, em Enquiry, referiu: “Fanáticos podem crer que o domínio assenta na graça e que só os santos herdam a terra, mas o magistrado civil muito apropriadamente coloca estes teóricos sublimes ao mesmo nível dos vulgares ladrões e ensina-lhes através de disciplina severa que uma regra que, em especulação, possa parecer a mais vantajosa para a sociedade pode, contudo, revelar-se, na prática, totalmente perniciosa e destrutiva” (1771/1886: IV, 187).
Hume assinalou de forma clara a ligação destas doutrinas à liberdade e como a máxima liberdade de todos implica idênticas restrições à liberdade de cada um através do que denominou as três “leis fundamentais da natureza”: “a estabilidade da posse, a sua transferência por consentimento e o cumprimento de promessas” (1739/1886: II, 288, 293). Ainda que as suas opiniões derivassem em parte das dos teóricos da common law (direito comum), como Sir Mathew Hale (1609-76), Hume pode ter sido o primeiro a entrever claramente que a liberdade geral se torna possível quando os instintos morais naturais são “controlados e restringidos através de um julgamento subsequente” de acordo com a “justiça ou consideração pela propriedade alheia, fidelidade ou respeito por promessas [que se tenham] tornado obrigatórias ou adquirido autoridade para a Humanidade” (1741, 1742/1886: III, 455). Hume não incorreu no erro, posteriormente muito corrente, de confundir dois sentidos de liberdade: a ideia bizarra segundo a qual um indivíduo isolado é suposto ser livre e aquela segundo a qual muitas pessoas colaborando mutuamente podem ser livres. Neste último contexto de colaboração, só regras abstractas de propriedade – isto é, as regras da lei – garantem liberdade.
Quando Adam Ferguson resumiu tal ensinamento ao definir o selvagem como um homem que ainda não conhecia a propriedade (1767/73: 136) e Adam Smith assinalou que “nunca ninguém viu um animal expressar através de gestos ou gritos naturais que isto é meu e aquilo é teu” (1776/1976: 26), ambos exprimiam o que fora, apesar de recorrentes revoltas por bandos de predadores esfaimados, durante praticamente dois milénios a opinião das pessoas educadas. Na formulação de Ferguson, “é por demais evidente que a propriedade é uma questão de progresso” (ibid.). Tais questões foram, conforme referimos, também investigadas na linguagem e no direito; foram também compreendidas no liberalismo clássico do século XIX, e foi, provavelmente por via de Edmundo Burke, ou talvez ainda mais através da influência de linguistas e advogados alemães, como F. C. von Savigny, que tais temas foram retomados de novo por H. S. Maine. A declaração de Savigny (no seu protesto contra a codificação do direito civil) merece ser reproduzida por extenso: “Só é possível que em tais contactos existam lado a lado agentes livres, apoiando-se mutuamente e sem impedirem o seu desenvolvimento recíproco, por via do reconhecimento de uma fronteira invisível no interior de cujos limites é assegurado um determinado espaço livre à existência e acção de cada indivíduo. As regras de definição dessas fronteiras, e por meio delas o livre âmbito de cada um, constituem a lei” (Savigny, 1840: I, 331-332).»
Friedrich A. Hayek («Arrogância Fatal: Os Erros do Socialismo»).
«No primitivismo, que tanto pode ser um estado de barbárie em que “tudo é comum” como a expressão, ainda infantil ou já caduca, de uma mentalidade elementar, o homem vê-se extremamente carecente e quase só é um ser de necessidade. Então, a sua relação com as coisas é, não a da propriedade, mas a da posse que se destina à satisfação imediata de carências e desejos. Quando se encontra perante a coisa e se apossa dela, é para a destruir: seja porque, forçado pela necessidade, dela carece para se alimentar e vestir, seja porque outra relação não conhece. Ignora que as coisas podem não ser pura passividade e abandono, mas guardam algo de inviolável, uma espécie de ser que lhes é próprio. Porque a propriedade, distinguindo-se da posse, reside no conhecimento disso que é próprio das coisas. Mais do que adquirir-se, a propriedade assume-se, revela-se, conhece-se; consiste, da parte da coisa, na dádiva do que lhe é próprio e, da parte do homem, no conhecimento do que a coisa tem de inviolável. Como, ao contrário do homem, a coisa é destituída da faculdade de a si se conhecer, do homem lhe reverte esse conhecimento, dele recebe o modo de existência que, entregue a si mesma, jamais alcançaria. Com efeito, em si mesma, a existência da coisa é a mais próxima da matéria informe, contínua e infinita, tão próxima da não-existência ou do nada que quase não oferece resistência à destruição a que a sujeita a posse; poder-se-á até dizer que, abandonada a si mesma, a coisa, e com ela a natureza e o mundo, acabaria por se dissolver e regressar à matéria informe. O conhecimento que do homem lhe reverte, em troco da dádiva que ela de si lhe faz, é o que segura a sua quase não-existência numa forma definitiva, numa “presença” que é o repouso da coisa em si mesma sendo para outrem.»
Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»).
«A forma mais radical – e a única segura – de posse é a destruição, pois só possuímos para sempre e com certeza aquilo que destruímos. Os donos de propriedade que não consomem, mas continuamente procuram aumentar as suas posses, esbarram com um limite muito inconveniente: o facto lamentável de que os homens morrem. A morte é o verdadeiro motivo pelo qual a propriedade e a aquisição jamais podem tornar-se num princípio político verdadeiramente válido. Um sistema social baseado essencialmente na propriedade não pode levar a outra coisa senão à destruição final de toda a propriedade. A finitude da vida pessoal é um desafio tão sério à propriedade como fundamento social quanto os limites do globo são um desafio à expansão como fundamento do sistema político. Por transcender os limites da vida humana, o crescimento automático e contínuo da riqueza, além das necessidades e possibilidades de consumo pessoais, que é a base da propriedade individual, torna-se assunto público e sai da esfera da simples vida privada. Os interesses privados que, por sua própria natureza, são temporários, limitados pela duração natural da vida do homem, podem agora fugir para a esfera dos negócios e pedir-lhes emprestado aquele tempo infinito necessário à acumulação contínua. Isto parece criar uma sociedade muito parecida com as das formigas e das abelhas, onde “o bem comum não difere do bem privado; e, naturalmente inclinadas para o benefício privado, consequentemente procuram o benefício comum.
Como, porém, os homens não são formigas nem abelhas tudo não passa de uma ilusão. A vida pública assume um aspecto enganador quando aparenta constituir a totalidade dos interesses privados se esses interesses pudessem criar uma qualidade nova pelo simples facto de serem somados».
Hannah Arendt («As Origens do Totalitarismo»).
«Politicamente, as térmitas organizam-se bem melhor de que nós e a sua sociedade funciona aparentemente numa ordem perfeita, submetendo-se ao regímen da realeza matriarcal absoluta. Os regímenes absolutos não gozam hoje das simpatias gerais, pela simples razão de que, na História, não tornaram os homens definitivamente felizes. O Império Romano pôde ser um êxito total em certos momentos; mas cedo ou tarde, maus imperadores provocam catástrofes e soldados rebeldes destroem o poder. Se pudéssemos ter um Napoleão que não fosse belicoso e que durasse sempre, um Augusto ou Antonino imortal, ou mesmo um simples Marco Aurélio, seríamos todos absolutistas.
As térmitas resolveram este problema: a sua rainha dura anos: assiste a numerosas gerações de térmitas; e quando morre, outra rainha – ou mesmo outra termiteira – garante um funcionamento perfeito. A água, os alimentos, a educação dos jovens, a agricultura, a defesa, estão garantidos. As térmitas não têm, em política interna, nenhuma das nossas dificuldades.
A rainha, diz Marais, de todos os seus historiadores o que tem mais simpatia por elas, governa telepaticamente, assegurando a felicidade activa de todos.»
Denis Saurat («Preeminência das Térmitas», in «A Religião dos Gigantes e a Civilização dos Insectos»).
«Adaptação ao desconhecido é a chave de toda a evolução e o conjunto de eventos a que a moderna ordem de mercado se adapta permanentemente é, de facto, desconhecido de todos. A informação a que indivíduos e organizações podem recorrer para se adaptarem ao desconhecido é necessariamente parcial e comunicado por sinais (por exemplo, preços), através de extensas cadeias de indivíduos em que cada um transmite em forma modificada uma combinação de fluxos de sinais de mercado abstractos.
Não obstante, a estrutura global de actividades tende a adaptar-se através destes sinais parciais e desconexos a condições imprevisíveis e impossíveis de conhecer a nível individual, ainda que a adaptação nunca seja perfeita. É por isso que esta estrutura sobrevive, e que aqueles que a utilizam também sobrevivem e prosperam.
Não são possíveis substitutos deliberadamente planeados desse processo autodirigido de adaptação ao desconhecido. Nem a razão nem uma “bondade natural” inata orientam os homens neste sentido, tal cabendo antes à amarga necessidade de submissão a regras desagradáveis para suportar a competição com grupos que já começaram a expandir-se por terem deparado antes com essas regras.
Se tivéssemos construído deliberadamente ou déssemos conscientemente forma à estrutura da acção humana, bastaria inquirir junto dos indivíduos porque é que tinham interagido com uma estrutura específica. Na realidade, apesar dos esforços de gerações de investigadores, é extraordinariamente difícil de chegar a uma explicação destas questões e a consenso acerca das causas ou consequências de certos acontecimentos.
A curiosa incumbência da economia passa por demonstrar aos homens como efectivamente pouco sabem acerca do que imaginam ser capazes de conceber.
Para a mente ingénua, que só consegue conceber a ordem como produto de um arranjo estipulado, pode parecer absurdo que em condições complexas a ordem e a adaptação ao desconhecido possam ser alcançadas de forma mais efectiva através de decisões descentralizadas e que a divisão da autoridade aumente realmente a possibilidade de uma ordem global.
Acontece que a descentralização gera, de facto, mais informação a ser tida em linha de conta. Este é o principal motivo para rejeitar as exigências do racionalismo construtivista. Pela mesma razão, só a divisão, passível de alterações, do poder de dispor de certos recursos entre grande número de indivíduos capazes de decidir sobre a sua utilização – uma partilha obtida graças à liberdade individual e à propriedade exclusiva –, torna possível a exploração mais completa possível do conhecimento disperso.
Grande parte da informação particular ao dispor de cada um só pode ser utilizada na medida em que se possa recorrer a ela na tomada de decisões individuais. Ninguém é capaz de comunicar a outrem tudo o que sabe porque muita da informação que pode usar só se manifestará no processo de elaboração de planos para a acção. Essa informação será mobilizada à medida que trabalha na tarefa específica a que se propôs em condições peculiares, como seja a relativa escassez de diversos materiais disponíveis. Só assim pode o indivíduo descobrir o que procurar, e o que o ajuda a fazer isso no mercado são as respostas que os outros dão ao que encontram nos seus respectivos ambientes. O problema genérico é usar não apenas o conhecimento que se possui, mas também descobrir o máximo de informação que valha a pena procurar nas condições existentes.
É frequente a objecção de que a instituição da propriedade é egoísta por beneficiar apenas quem possui algo de seu e que foi efectivamente “inventada” por pessoas que, tendo adquirido alguns bens individuais, desejaram protegê-los de outrem para usufruto em seu benefício exclusivo.
Tais concepções, que naturalmente subjazem ao ressentimento de Rosseau e à sua alegação de que os nossos “grilhões” foram impostos por interesses egoístas e exploradores, não têm em conta que a gigantesca dimensão da nossa produção global só é possível por usarmos, através da troca mercantil de propriedade exclusiva, o conhecimento amplamente disperso de factos específicos para alocar recursos de propriedade exclusiva. O mercado é o único método conhecido para fornecer informação que capacite os indivíduos a avaliarem as vantagens comparativas dos diversos usos de recursos de que têm conhecimento directo e mediante os quais, de forma intencional ou não, satisfazem as necessidades de pessoas distantes e desconhecidas. Este conhecimento disperso é na sua essência disperso, e não pode ser reunido e transmitido a uma autoridade encarregada da tarefa de criação premeditada de ordem.
Portanto, a instituição da propriedade exclusiva não é egoísta nem foi ou poderia ter sido “inventada” para impor aos outros a vontade dos proprietários. Ao invés, é genericamente benéfica por transferir a orientação da produção das mãos de uns quantos indivíduos que – independentemente do que possam alegar – têm um conhecimento limitado, para um processo, a ordem alargada, que maximiza o uso do conhecimento de todos, beneficiando assim aqueles que não possuem propriedades quase tanto quanto aqueles que possuem.
A liberdade de todos ante a lei tão-pouco exige que todos sejam capazes de possuir propriedade individual, mas antes que muitos a ela possam aceder. Eu próprio preferia certamente dispor de propriedade num país em que muitos possuam qualquer coisa do que ter de viver onde toda a propriedade é “possuída pelo colectivo” e distribuída pela autoridade para usos específicos.
Este argumento é também contestado, e inclusivamente ridicularizado, como a desculpa egoísta das classes privilegiadas. Os intelectuais, raciocinando nos termos de processos causais limitados que aprenderam a interpretar em áreas como a física, acham fácil persuadir trabalhadores manuais de que decisões egoístas de proprietários individuais de capital – em vez do próprio processo mercantil – usam oportunidades muitíssimo dispersas e factos relevantes em constante mutação. O processo global de cálculo em termos de preços de mercado foi, inclusivamente, apresentado por vezes como parte de uma manobra sub-reptícia dos detentores de capital para esconderem a forma como exploram os trabalhadores. Essas objecções não chegam de modo algum a pôr em causa os argumentos e factos já apresentados: um hipotético corpo de factos objectivos não está ao dispor de capitalistas manipuladores nem é acessível aos gestores que os socialistas gostariam de colocar no seu lugar. Tais factos objectivos simplesmente não existem e não estão ao alcance seja de quem for.»
Friedrich A. Hayek («Arrogância Fatal: Os Erros do Socialismo»).
Como o que não pode ser conhecido não pode ser planeado
As dúvidas que Rousseau lançou sobre a instituição da propriedade exclusiva tornaram-se no fundamento do socialismo e continuaram a influenciar alguns dos maiores pensadores do nosso século. Até mesmo uma personalidade como Bertrand Russell definiu a liberdade como a «ausência de obstáculos à realização dos nossos desejos» (1940: 251). Antes do óbvio fracasso económico do socialismo da Europa do Leste, muitos desses racionalistas pensavam que uma economia de planeamento central propiciaria não apenas «justiça social» (...) como, ainda, uma utilização mais eficaz dos recursos económicos. Esta ideia parece eminentemente sensata à primeira vista. Ignora, contudo, os factos que acabámos de referenciar: ninguém está em condições de conhecer a totalidade dos recursos que se podem utilizar num tal plano e, portanto, dificilmente é possível um controlo centralizado.
Os socialistas continuam, mesmo assim, a não reconhecer os obstáculos ao posicionamento adequado de decisões individuais num padrão comum concebido como um «plano». O conflito entre os nossos instintos que, desde Rousseau, foram identificados com a «moral», e as tradições morais que sobreviveram no decurso da evolução cultural e refreiam esses instintos, está consubstanciado na frequente separação entre diversas filosofias éticas e políticas, por um lado, e a economia, por outro.
A questão não reside no facto de que tudo aquilo que os economistas estabelecem como sendo eficaz é portanto «correcto», mas que a análise económica pode elucidar a utilidade de práticas outrora tidas por correctas – utilidade na perspectiva de qualquer filosofia que condena o sofrimento humano e a morte que acarretaria o colapso da nossa civilização. É, consequentemente, uma traição à preocupação pelos outros teorizar sobre a «sociedade justa» sem ponderar cuidadosamente as consequências económicas da implementação de tais doutrinas. Contudo, após 70 anos de experiência socialista, é seguro dizer-se que a maior parte dos intelectuais fora das regiões – Europa de Leste e Terceiro Mundo – onde o socialismo foi experimentado continua a ignorar as lições económicas e a mostrar-se desinteressada em apurar por que razão o socialismo nunca parece funcionar conforme as intenções dos seus líderes intelectuais. A vã busca dos intelectuais por uma verdadeira comunidade socialista redunda na idealização e posterior desilusão com um rosário interminável de «utopias» – a União Soviética, depois Cuba, China, Jugoslávia, Tanzânia, Nicarágua – e devia indicar que algo deve haver com o socialismo que não se conforma a certos factos. Mas tais factos, explicados pela primeira vez por economistas há mais de um século, continuam por escrutinar por aqueles que se orgulham da sua rejeição racionalista da ideia de que podem existir factos que transcendem o contexto histórico ou representam um obstáculo intransponível aos desejos humanos.
Entre os que estudam economia na tradição de Mandeville, Hume e Smith, emergiu, entretanto, de uma forma gradual um entendimento do processo mercantil e, igualmente, uma crítica poderosa à possibilidade de o socialismo o poder substituir. As vantagens desses procedimentos de mercado eram tão contrárias às expectativas que só podiam ser explicadas retrospectivamente mediante a análise do seu processo de formação espontânea. Quando isso se fez, descobriu-se que o controlo descentralizado de recursos, em propriedade plena, leva à criação e uso de mais informação do que sob direcção centralizada. Ordem e controlo além do alcance imediato de uma direcção central só podem ser conseguidos por supervisão centralizada se, ao arrepio dos factos, os gestores locais responsáveis por aferir recursos manifestos e potenciais pudessem ser informados também em tempo real da alteração ininterrupta da sua importância relativa. Teriam, ainda, de comunicar na sua totalidade e em detalhe estes pormenores à autoridade de planeamento central a tempo de esta os poder instruir sobre o que fazer à luz de todas as demais, diferentes e concretas informações recebidas de outros gestores regionais ou locais, que, por sua vez, se deparariam com dificuldades semelhantes para a obtenção e transmissão de informação similar.
Uma vez percebida a tarefa de semelhante autoridade de planeamento central, torna-se claro que as ordens que teria de emitir não poderiam advir da informação que gestores locais tivessem identificado como importante, só podendo originar-se exclusivamente em acordos directamente delimitados. A suposição hipotética, habitualmente empregada nas descrições teóricas do processo de mercado – feitas por pessoas que habitualmente não pretendem apoiar o socialismo –, de que todos esses factos, ou parâmetros, podem considerar-se ser do conhecimento do analista do fenómeno, torna tudo isto obscuro e, em consequência, gera as excêntricas descrições que ajudam a manter diversas variantes do pensamento socialista.
A ordem da economia alargada é e só pode ser gerada por processos totalmente diferentes, mediante um método de comunicação evoluído que torna possível transmitir não infinitos e múltiplos relatórios sobre factos particulares, mas apenas determinadas propriedades abstractas de diversas condições específicas, como preços concorrenciais, que devem entrar em correspondência mútua de forma a alcançar uma ordem global. Estas comunicam as diferentes relações de substituição ou equivalência que as diversas partes envolvidas consideram predominar entre diversos bens e serviços ao seu dispor. Determinadas quantidades desses objectos podem ser equivalentes ou substitutos possíveis uns dos outros para satisfazer certas necessidades humanas ou para produzir, directa ou indirectamente, os meios para tal. Por mais surpreendente que seja a existência de semelhante processo e a sua emergência através de selecção evolutiva sem concepção deliberada, desconheço tentativas de refutar esta descrição ou negar a validade do próprio processo, a menos que se considerem as singelas declarações de que todos esses factos podem, de alguma forma, ser do conhecimento de alguma autoridade de planeamento central. [Ver também, relativamente a isto, a discussão do cálculo económico in Babbage (1832), Gossen (1854/1889/1927), Pierson (1902/1912), Mises (1922/81), Hayek (1935), Rutland (1985), Roberts (1971)].
A ideia de «controlo central» é, com efeito, confusa. Não há e não poderá nunca existir uma mente directora única, cabendo a um conselho ou comité a elaboração de um plano de actividades para determinada empresa. Ainda que membros individuais possam ocasionalmente, para convencer os outros, citar elementos específicos de informação que influenciaram as suas opiniões, as conclusões da entidade não se irão basear no conhecimento conjunto, mas num acordo entre diversos pontos de vista baseados em diferentes observações. Cada pedaço de informação com que uma pessoa contribua tenderá a levar outrem a relembrar ainda outros factos de cuja relevância apenas se apercebeu ao ser informado de outras circunstâncias que desconhecia. Semelhante processo faz uso de informação dispersa – estimulando assim o comércio, ainda que de modo muito deficiente, por em regra não ser concorrencial e implicar escassa responsabilização – em vez de unificar o conhecimento de diversas pessoas. Os membros do grupo só serão capazes de comunicar entre si escassas razões distintas, transmitindo sobretudo conclusões retiradas do respectivo conhecimento individual sobre o problema em causa. Além disso, só raramente as circunstâncias serão, de facto, idênticas para diferentes pessoas enfrentando a mesma situação ou, pelo menos, na medida em que diga respeito a algum sector da ordem alargada e não apenas a um grupo mais ou menos autoconfinado.
A melhor ilustração da impossibilidade de uma alocução «racional» propositada de recursos numa ordem económica alargada sem orientação por preços formados em mercados concorrenciais é o problema da alocução da oferta corrente de capital líquido entre diversas aplicações passíveis de aumentar o produto final. O problema consiste essencialmente em apurar o volume de recursos produtivos acumulados que podem ser poupados a prazo em relação às necessidades presentes. Adam Smith tinha presente o cunho relevante desta questão quando, referindo-se ao problema enfrentado pelo detentor privado de tal tipo de capital, escreveu: «em que género de indústria doméstica deve aplicar o seu capital e qual a produção mais valiosa, cada indivíduo, como é óbvio, na sua circunstância local, julga isso muito melhor do que qualquer estadista ou legislador em vez dele» (1776/1976).
Se considerarmos o problema do uso de todos os meios disponíveis para investimento num sistema económico de economia alargada sob uma autoridade directora única, a primeira dificuldade consiste em ser impossível uma pessoa conhecer a quantidade agregada de capital disponível para uso corrente, apesar de, obviamente, esta quantidade ser limitada no sentido do efeito de maior ou menor investimento resultar em discrepâncias entre a procura de vários tipos de bens e serviços. Tais discrepâncias não se irão autocorrigir, mas manifestar-se-ão através da impossibilidade de cumprir algumas instruções da autoridade directora por falta dos bens requeridos ou porque certos materiais ou instrumentos fornecidos não podem ser utilizados devido à carência dos meios complementares requeridos, como ferramentas, matéria-prima ou trabalho. Nenhuma das ordens de grandeza que deveriam ter sido levadas em conta pode ser definida pela inspecção ou medição de objectos «determinados» e tudo dependerá das possibilidades entre as quais outras pessoas terão de escolher em função do conhecimento que possuam na ocasião. Uma solução aproximada desta tarefa só será possível mediante a interacção entre quem possa averiguar a relevância de circunstâncias particulares do momento através dos seus efeitos nos preços de mercado. A «quantidade de capital» disponível demonstra, então, por exemplo, o que acontece quando a parcela dos recursos correntes utilizada para satisfazer necessidades a prazo é maior do que aquela que as pessoas estão dispostas a poupar no consumo corrente para aumentar a provisão para um futuro distante, isto é, a sua disponibilidade de aforro.
A compreensão do papel desempenhado pela transmissão de informação ou de conhecimento factual abre a porta à compreensão da ordem alargada. Estas questões são, todavia, altamente abstractas e especialmente difíceis de entender por quem seja formado nos cânones de racionalidade mecanicista, cienticista e construtivista que dominam os nossos sistemas de ensino, tendendo, em consequência, a ignorar a biologia, a economia e a evolução. Confesso que demorei bastante desde o meu primeiro avanço, no ensaio «Economics and Knowledge» (1936/48), passando pela identificação da «Competition as a Discovery Procedure» (1978: 179-190), e o ensaio The Pretense of Knowledge (1978: 23-34), até formular a teoria do conhecimento disperso da qual derivam as conclusões sobre a superioridade das formações espontâneas em relação à direcção central.
(In Friedrich A. Hayek, Arrogância Fatal: Os Erros do Socialismo, Guerra e Paz, 1.ª Edição, Novembro de 2022, pp. 125-130).
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