Héracles |
«Héracles é filho de Alcmena e de Anfitrião, mas, na realidade, o seu verdadeiro pai é Zeus. Este aproveitara a ausência de Anfitrião, que saíra em expedição contra os Teléboas, para enganar Alcmena, assumindo a forma e o aspecto do seu marido e, no decurso de uma longa noite, por si prolongada, engendrou o herói. Anfitrião regressou pela manhã, deu-se a reconhecer e fez Alcmena conceber um segundo filho, Íficles, o irmão gémeo de Héracles, mais novo que ele uma noite. Contava-se que, para se fazer reconhecer por Alcmena e retirar-lhe qualquer possibilidade de dúvida, Zeus lhe enviara como presente uma taça de ouro que fora de Ptérelas, o rei dos Teléboas. Contou-lhe, além disso, como se fossem suas, as façanhas cometidas pelo verdadeiro Anfitrião. Quando este regressou, ele interveio para reconciliar marido e esposa, e Anfitrião resignou-se, diz-se, a ser apenas o pai adoptivo.
(...) Os Heraclidas são, na acepção mais lata do termo, não apenas os filhos de Héracles, mas todos os seus descendentes até à geração mais afastada. Na época helenística, muitas famílias reais pretendiam ainda fazer-se passar por "Heraclidas" e faziam recuar a sua estirpe até ao herói. Na lenda, chama-se mais concretamente Heraclidas aos descendentes imediatos de Héracles e Dejanira, que colonizaram o Peloponeso».
Pierre Grimal («Dicionário da Mitologia Grega e Romana»).
«Uno é o mito, mas não por se referir a uma só pessoa, como crêem alguns, pois há muitos acontecimentos e infinitamente vários, respeitantes a um só indivíduo, entre os quais não é possível estabelecer unidade alguma. Muitas são as acções que uma pessoa pode praticar, mas nem por isso elas constituem uma acção una.
Assim, parece que tenham errado todos os poetas que compuseram uma Heracleida ou uma Teseida ou outros poemas que tais, por entenderem que, sendo Héracles um só, todas as suas acções haviam de constituir uma unidade.
Porém, Homero, assim como se distingue em tudo o mais, também parece ter visto bem, fosse por arte ou por engenho natural, pois ao compor a Odisseia não poetou todos os sucessos da vida de Ulisses, por exemplo, o ter sido ferido no Parnaso e o simular-se louco no momento em que se reuniu o exército. Porque, de haver acontecido uma dessas coisas, não se seguia necessária e verosimilmente que a outra houvesse de acontecer, mas compôs em torno de uma acção una a Odisseia - una, no sentido que damos a esta palavra - e de modo semelhante a Ilíada.
Por conseguinte, tal como é necessário que nas demais artes miméticas una seja a imitação, quando o seja de um objecto uno, assim também o mito, porque é imitação de acções, deve imitar as que sejam unas e completas, e todos os acontecimentos se devem suceder em conexão tal que, uma vez suprimido ou deslocado um deles, também se confunda ou mude a ordem do todo. Pois não faz parte de um todo o que, quer seja quer não seja, não altera esse todo».
Aristóteles («Poética»).
ALEXANDRE MAGNO
Alexandre o Grande (Museu Britânico). |
(...) Que Alexandre era, por parte do pai, heráclida (1), descendente de Carano, e que era eácida (2) por parte da mãe, cuja origem remontava a Neoptólemo, são coisa em que, geralmente, todos estão de acordo. Diz-se que Filipe, tendo sido iniciado em Samotrácia juntamente com Olimpíada, embora sendo muito jovem, se enamorou desta, que era ainda menina e orfã de pai e de mãe, e que concertou o seu casamento com o irmão dela, chamado Arimba. À esposa pareceu-lhe que, antes da noite em que se reuniram no tálamo nupcial, tendo trovejado, lhe caiu um raio no ventre, e que desse golpe se acendeu muito fogo, o qual, dividindo-se depois em chamas, que se espalharam por todas as partes, se dissipou. Filipe, algum tempo depois de celebrado o casamento, teve um sonho, em que lhe pareceu estar a selar o ventre de sua mulher, e que o selo tinha gravada a imagem de um leão. Os outros adivinhos acreditavam que aquela visão só podia significar que Filipe necessitava de exercer uma vigilância mais atenta sobre o seu matrimónio; mas Aristandro de Telmísio disse que aquilo significava que Olimpíada estava grávida, porque o que está vazio não se sela, e que estava a gerar um menino valoroso e parecido na sua índole com os leões. Viu-se também um dragão, o qual, estando Olimpíada adormecida, se lhe enredou no corpo, do que resultou, segundo se diz, que se enfraquecesse o amor e o carinho de Filipe, fazendo escassear as vezes que repousava junto dela; isto talvez por temer que ela usasse alguns encantamentos ou malefícios contra ele, ou porque lhe repugnasse dormir com uma mulher que tivera relações com um ser de natureza superior. No entanto, corre outra história acerca destas coisas, e essa diz-nos que todas as mulheres daquele país, desde tempos muito remotos, estavam iniciadas nos mistérios órficos e nas orgias de Baco; e, sendo designadas por Clodones e Mimalones, faziam coisas muito parecidas com as que executavam as edónias e as trácias, habitantes do monte Hemo (3): de onde resultara que o verbo triscar se aplicasse para significar sacrifícios abundantes e levados ao excesso. Assim, no que respeita a Olimpíada, que se entregava mais do que todas as outras a esse fanatismo e que as excedia no entusiasmo de tais festas, levava para as reuniões báquicas grandes serpentes domesticadas por ela, as quais, saindo muitas vezes da hera e do crivo místicos e enroscando-se nos tirsos (4) e nas coroas, assustavam os presentes.
Diz-se, na verdade, que, tendo Filipe enviado Querão, o Megalopolitano, a Delfos, depois do sonho, este lhe trouxe do deus um oráculo, segundo o qual ele deveria sacrificar a Amon (5) e venerá-lo especialmente entre todos os deuses; e também consta que perdeu um olho por ter visto, por uma frincha da porta, que o deus se entregava aos prazeres com a mulher dele, em forma de dragão. Acerca de Olimpíada, refere Eratóstenes que, ao despedir-se de Alexandre, quando este se preparava para partir com os exércitos, lhe revelou apenas a ele o segredo do seu nascimento, exortando-o a comportar-se de forma digna das suas origens; mas outros asseguram que sempre olhou com horror semelhante fábula, dizendo: «Será possível que Alexandre não deixe de me desacreditar junto de Juno?» Nasceu, portanto, Alexandre, no mês Hecatombéon (6), a que os macedónios chamavam Loon, no dia sexto, o mesmo em que se incendiou o templo de Diana Efesina, o que deu ocasião a que Hegésias, o Magnésio, utilizasse um chiste o qual, pela sua frieza, seria capaz de apagar aquele incêndio: porque disse que não era estranho ter-se queimado o templo estando Diana ocupada em assistir ao nascimento de Alexandre. Todos os magos que se deslocaram nessa altura a Éfeso, tomando o que acontecera ao templo como prenúncio de outro mal, corriam, lastimando-se, cobrindo os rostos e dizendo uns após outros que aquele dia produzira outra grande desventura para a Ásia. Acabava Filipe de tomar a Potideia quando recebeu, ao mesmo tempo, três notícias: que vencera os Ilírios numa grande batalha, através de Parménio, que nos jogos olímpicos havia vencido na prova de cavalos de montar, e que nascera Alexandre. Regozijava-se com elas, como era natural, e os adivinhos aumentaram ainda mais a sua alegria, anunciando-lhe que aquele menino, nascido entre duas vitórias, seria invencível.
As estátuas que mais exactamente representam a imagem do seu corpo são as de Lísipo, que era o único por quem queria ser retratado; porque este artista foi quem soube representar com mais vida aquela ligeira inclinação do pescoço para o lado esquerdo e aquela flexibilidade do olhar, que com tanto cuidado procuraram depois imitar muitos dos seus sucessores e dos seus amigos. Apeles, quando o pintou com o raio, não lhe imitou bem a cor, pois o fez mais moreno e ardoroso, sendo ele branco como dizem, de uma brancura rosada, principalmente no peito e no rosto. A sua cútis expirava fragrância, e a boca e a carne exalavam o melhor odor, que penetrava a sua roupa, se acreditarmos no que podemos ler nos Comentários de Aristoxeno. A causa podia ser a compleição do seu corpo, que era ardente e fogoso, porque o bom odor nasce da cozedura dos humores por meio do calor, segundo opinião de Teofrasto; é por isso que os lugares secos e ardentes da Terra são os que produzem em maior quantidade os mais suaves aromas; e é o sol que dissipa a humidade da superfície dos corpos, que é a matéria de toda a corrupção; e, a Alexandre, o ardor da sua compleição fê-lo, segundo parece, bebedor de grande alento. Sendo ainda muito jovem, logo se manifestou a sua continência: pois, apesar de ser para tudo o mais arrojado e veemente, no que se referia aos prazeres corporais era pouco sensível e gozava-os com grande sobriedade, ao passo que a sua ambição demonstrou desde logo uma ousadia e uma magnanimidade superiores ao normal para a sua idade. Porque nem toda a glória lhe agradava, nem todas as suas causas - ao contrário de Filipe, o qual, como se fosse um sofista, se gabava de saber falar eloquentemente e mandava gravar em moedas as vitórias que alcançava nas provas de carro em Olímpia - quando os seus familiares lhe propuseram que se candidatasse ao prémio dos estádios, pois era muito rápido na corrida, respondeu-lhes que só no caso de ter reis como competidores. Em geral, parece que era muito indiferente a todos os géneros de combates atléticos, pois que, custeando muitos festivais de trágicos, de flautistas, de citaristas, e ainda dos rapsodistas ou recitadores das poesias de Homero, e dando simulacros de caçadas de todos os géneros e de jogos de esgrima, jamais de sua própria vontade propôs qualquer prémio para o pugilato ou para o pancrácio (7).
Olimpíada |
Trouxe o tessálico chamado Filónico o cavalo Bucéfalo para vender a Filipe por treze talentos, e, tendo descido a um descampado para o experimentarem, mostrou-se arisco e completamente indómito, sem admitir cavaleiro, nem suportar a voz de nenhum dos que acompanhavam Filipe, pois a todos ameaçava erguendo as patas dianteiras. Desagradou isto a Filipe, que deu ordem para que o levassem, por ser feroz e insubmisso; mas Alexandre, que se encontrava presente, disse:
Filipe, ao princípio calou-se, mas, como ele repetia, lastimando, muitas vezes aquela decisão, replicou-lhe:
- Censuras os que têm mais anos do que tu, como se soubesses ou pudesses manejar melhor o cavalo.
Ao que ele contestou:
- É evidente que o dominarei melhor do que ninguém.
- Se não fizeres o que dizes - retorquiu o pai - qual há-de ser o castigo pela tua temeridade?
- Por Júpiter - disse - pagarei o preço do cavalo.
Puseram-se a rir e, tendo chegado a acordo acerca da aposta, ele dirigiu-se para o local onde estava o cavalo, segurou-o pelas rédeas e, voltando-se, colocou-o de frente para o Sol, pensando, ao que parece, que o cavalo se agitava era por ver a sua sombra, que batia e se movia junto dele. Passou-lhe depois a mão pelo pêlo e afagou-o por alguns instantes e, vendo que lhe dominava o fogo e os brios, foi tirando pouco a pouco o manto, lançando-o ao solo, e, de um salto, montou sem dificuldade. Ao princípio, puxou-lhe um bocado o freio e, sem o castigar, nem sequer o tocar de esporas, fê-lo estar quieto. Quando verificou que ele não representava nenhum risco, mas que ansiava por correr, foi-lhe dando rédeas e incitou-o com voz forte e aplicando-lhe os calcanhares. Filipe e os que com ele se encontravam começaram por se sentir muito preocupados e mantiveram-se em silêncio, mas, quando o viram dar uma volta com facilidade e desenvoltura, mostrando-se contente e alegre, todos os demais irromperam em aclamações; mas, acerca do pai, conta-se até que chorou de alegria e que, beijando-lhe a testa logo que desmontou, lhe disse:
-Procura, meu filho, um reino igual a ti, pois na Macedónia não cabes.
Observando que ele era de carácter pouco flexível e daqueles que não podem ser levados pela força, mas que pela razão e pelo discurso se conseguia conduzi-lo facilmente ao que era decoroso e justo, o pai decidiu por si próprio procurar persuadi-lo mais do que mandá-lo; e, não tendo suficiente confiança na capacidade dos mestres de música e das demais habilidades comuns para o poderem instruir e formar, por isto exigir maior inteligência e ser, segundo a expressão de Sófocles,
obra de muito alento e de muita astúcia,
Alexandre e Aristóteles |
(in «Vidas Paralelas», Amigos do Livro, pp. 18-26).
Notas:
Héracles |
(3) Antigo nome dos Balcãs.
(4) Bastões enfeitados de hera e pâmpanos e terminados em forma de pinha, usados por Baco e pelas bacantes.
(5) Deus egípcio do Sol. Os Gregos identificaram-no com o seu Júpiter.
(6) Sétimo mês dos Atenienses até ao ano de 450 a. C., em que se tornou o primeiro do calendário olímpico.
(7) Combate ginástico típico da antiguidade grega, que compreendia a luta e o pugilato, e que permitia o emprego de todos os recursos da luta.
(8) Escutados da própria boca dos mestres.
(9) Referentes à terceira fase da iniciação nos mistérios de Elêusis.
(10) Dois filósofos indianos.
Continua
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