sábado, 26 de maio de 2012

Franco-Atirador (ii)

Escrito por António Quadros 





Winston Churchill e o General De Gaulle




«Duro, pouco preocupado com a vida humana, pelo menos na aparência, está longe de ser indiferente ao progresso da sua carreira militar, como o atesta a sua correspondência, mas é respeitado, pois expõe-se ao perigo. (...)  impõe-se pelo seu sangue-frio, pelos riscos que corre. Não se contenta em obrigar os seus homens a usarem gravata e a fazerem a continência. Diante do seu amigo Étienne Repessé, que se tornará seu editor na Berger-Levrault, inspecciona um dia a linha da frente com dois lugares-tenentes. Um obus explode. De Gaulle permanece direito, enquanto os companheiros se deitam no chão: "Têm medo, senhores?"».

Éric Roussel («De Gaulle»).


«Se está comprovado que a divertida fórmula emprestada a Churchill - «De todas as cruzes que tenho de carregar, a mais pesada é a cruz de Lorena» - foi inventada devido às necessidades da causa, não deixa de ser verdade que o Primeiro-Ministro teve de consagrar tanto tempo quanto energia ao seu embaraçante e desconfiado aliado, o General De Gaulle. Entre os dois chefes de guerra, relações acidentadas e tensões recorrentes em breve assumiram uma tendência passional.

(...) Um episódio, ainda em parte inédito, ilustra bem estas relações tumultuosas. No ponto de partida, um assunto em si bastante insignificante:  a união de Saint-Pierre-et-Miquelon à França livre, a 24 de Dezembro de 1941, apesar das advertências insistentes de Londres e Washington. É justamente Washington, onde é convidado de Roosevelt, que Churchill toma conhecimento, furibundo, da notícia - uma notícia que, a seu ver, não pode senão agravar inutilmente as contendas com os americanos a propósito de De Gaulle (efectivamente, o secretário de Estado Cordell Hull aproveita a ocasião para exalar o seu antigaullismo obsessivo, falando dos "chamados franceses livres"). No seu regresso a Londres, Churchill convoca De Gaulle a Downing Street, em 20 de Janeiro, e despeja a sua raiva sobre o general impassível. À medida que fala, vai-se exaltando, o tom não pára de subir, a ponto de o intérprete, Frank Roberts, um alto funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros, se sentir obrigado a atenuar as afirmações ofensivas e agressivas do Primeiro-Ministro, dando-lhes um aspecto mais diplomático. O que tem como resultado aumentar o furor de Churchill, que segue a tradução em francês e exclama para o intérprete: "Mas traduza o que eu disse, em vez de o deformar!". Por fim, acalmando-se a tempestade, o general De Gaulle, totalmente silencioso até ali, pergunta calmamente: "É tudo?", e perante a resposta afirmativa do Primeiro-Ministro, pega nas suas luvas com uma mão, põe o seu quépi na cabeça com a outra, faz a continência e abandona a divisão. Tendo o chefe da França livre partido, Churchill, impressionado, volta-se para o intérprete e diz-lhe: "Mas que homem! Fez o que havia a fazer. Tiro-lhe o meu chapéu".

(...) Mais segura e significativa parece ser uma exclamação do próprio Churchill: após uma entrevista com De Gaulle em Marrakech, em Janeiro de 1944, ele exclama, de admiração e em francês, perante um dos seus generais: "Não há dúvida! É um grande animal!"».

François Bédarida («Winston Churchill»).


«Aquele sentimento ainda persistente, mas vago, indefinido e no entanto sequioso de definição (que só pode ser intelectual); aquele sentimento de patriotismo que ainda encontramos nas populações do "interior", sobretudo as rurais; esse sentimento logo o vemos apagado, evanescido, até ridicularizado nas populações das grandes cidades, em especial Lisboa, cidade de classe média social, de meia-tigela intelectual, de doutores e bacharéis semi-sapientes, cuja suficiência satisfeita de si é alimentada, em cada dia da semana, por um "semanário de opiniões" - coisas como o "Expresso", o "Semanário", o "Jornal", o "Diabo"... - e, naturalmente, pelas discursatas dos políticos de serviço.

É neste ambiente citadino que nos ficam a olhar como a um fantasma de outro mundo quando lhes dizemos que portugal é uma Pátria e que uma Pátria é uma entidade espiritual. Claro que os poderíamos "esclarecer", ou captar-lhes o crédito de "provincianos" mentais, lembrando-lhes que também De Gaulle dizia que a França é uma ideia, "uma certa ideia". Mas De Gaulle terá sido, para alívio desta gente de meia-tigela, o último verdadeiro homem de Estado...».

Orlando Vitorino («O processo das Presidenciais 86»).






«A II Guerra Mundial, tentativa sangrenta de resolver o problema da Europa e do Mediterrâneo, terminou na condenação dos nacionalismos políticos, culturais e filosóficos. Mais uma vez observou Portugal a maré alta do internacionalismo, ou do universalismo, que persevera na ambição ideal de reger a História. A Organização das Nações Unidas mandava impor ao Mundo, por meios pacíficos e suasórios, uma cultura unificada, para o que foi em 1945 assinada em Londres a carta orgânica da UNESCO, e em 1946 distribuído o opúsculo de Julião sobre A Unesco, suas finalidades e sua filosofia.

Em tempos tão adversos ao princípio das nacionalidades, proclamava quase toda a imprensa o próximo advento de um universalismo redentor configurado na gradual federação de Estados, unidos em torno de um governo comum. Tentavam os publicistas demonstrar que tal política, sem fronteiras socio-culturais, seria indispensável para a felicidade económica dos povos e para o estabelecimento da paz mundial.

Protestando contra essas tendências ideológicas, explicaram os nossos escritores humanistas que o nacionalismo só poderia subordinar-se a um universalismo de ordem transhumana, como é o da Igreja Católica, já que qualquer doutrina com origem determinada no mundo, isto é, em certo instante do tempo e em certo ponto do espaço, não ostenta validade tal que aconselhe alguém a propô-la ou a impô-la a todos os indivíduos e a todos os povos. Nenhuma nação simples, nem nenhuma nação composta, como a união dos organismos nacionais, pode arrogar-se o imperativo categórico na ordem do dever, ou elaborar um direito público internacional contra o qual protestem as consciências esclarecidas. Cumpre ao escol nacional ver e fazer ver como é que o imperialismo se disfarça ao propor por prestígios económicos e financeiros a tese de que é conveniente uniformizar e comunicar as técnicas instrumentais e os processos mecânicos, entre os quais a contagem automática das votações majoritárias que decidem a seu talante, sem que as minorias vencidas possam alegar restrições das suas liberdades e das suas independências.

Esta sofismação é de há muito conhecida pelos povos europeus que formaram a sua cultura filosófica ao abrigo da Escolástica, e que desinteressadamente meditaram sobre os resultados do exame feito ao problema dos universais. A eliminação de entidades intermediárias, transitórias e transitivas, cujo conceptualismo e cujo realismo ficam suspensos da crítica, permite simplificar todos os problemas jurídicos pela formação de dialéctica entre o indivíduo e a sociedade. Entre o indivíduo, ou um corpo humano, e a última ficção jurídica que será a Humanidade, a Sociedade, o Estado, com qualquer designação conferida pela última doutrina da moda, não se intercalam realidades objectivas ou categorias mentais que mereçam ser consideradas na formulação dos fins do direito, e assim um dado de concreção mental e material como a Pátria estará sempre excluído do enunciado internacional dos eternos princípios.

Pensadores habituados pelo ensino aristotélico ao exercício lógico das categorias e sequentes garantias objectivas nunca poderiam admitir que no mundo condicionado pelo espaço e pelo tempo deixem alguma vez de existir as entidades sociais que ainda denominamos nações. A pluralidade indefinida jamais será unificada pela força de um Império. Não está demonstrado que por unificar, ou unicar, os meios de comunicação a Humanidade anule a diversificação militante e incessante».

Álvaro Ribeiro («Espelho do Pensamento»).




QUE EUROPA?

FILOSOFIA E POLÍTICA






Jean Monnet


Nesta época e neste mundo, em que grandes mutações parecem desenhar-se no horizonte, é certamente oportuno repensar com serenidade e com a lucidez possível a situação histórica de Portugal dentro do continente europeu. Quem é, aliás, absolutamente lúcido, quem possui a luz total da razão clara sobre a verdade e o futuro?

Os filósofos, os pensadores, distinguem-se dos políticos, entre outros motivos, porque os primeiros nunca são tão afirmativos e dogmáticos como os segundos. É da natureza de todos os políticos, é talvez da própria natureza da própria política, que se declarem certezas. A atitude dubitativa ou mesmo interrogativa aparece - do ponto de vista político - como uma atitude de fraqueza, de divisão interior, de fragilidade. O político - esteja ele no poder ou aspire a conquistar o poder - é eternamente obrigado a ocultar as suas próprias dúvidas, a reprimir as suas próprias incertezas, porque a imagem mítica de uma realeza de pai-pedagogo infalível é-lhe necessária, neste velho tempo que ainda é o nosso, para se impor aos seus partidários, aos seus adversários e à massa mais ou menos neutra que segue as correntes majoritárias.

Uma política científica será por muito tempo ainda utopia. A vinculação a imagens míticas do poder, a imagens míticas do Estado, a imagens míticas do espaço habitado ou da ecúmena, a imagens míticas do futuro, é de regra no xadrez político contemporâneo. As opções, os empenhamentos, os «partidos tomados», segundo a expressão francesa, são decisões existenciais que, regra geral, «alistam» todo o ser do «homo politicus», segundo uma duração temporal que evita as contradições. É mal visto, em política, mudar de opinião. Para verberar evoluções ou alterações de rumo descobrem-se os motivos mais amesquinhantes e as corrupções mais degradantes. O «homo politicus» torna-se prisioneiro, até ao fim da vida, da sua própria escolha, muitas vezes adolescente. Nada concede aos adversários - o que seria prova de incerteza - ou, mesmo que o conceda no seu foro íntimo, nada pode aparentar que concede. Nas lutas intrapartidárias pela escolha política são quase sempre os mais intransigentes e duros que triunfam. A razão que assiste aos políticos pode ser elevada, sublimada e depurada pelo exercício filosófico, mas, ao contrário, na maioria das vezes é transformada em emblema ou insígnia e é fixada dentro de um rígido sistema de mitos e de crenças. Paradoxalmente, onde a razão é mais proclamada, mais afirmada, mais declarada, é onde está mais sujeita a tal tipo de sistema, porque a recusa política do mito e da crença é uma entrega total a mitos e crenças que o próprio político ignora. Há sempre mito e há sempre crença. Mais vale reconhecê-lo francamente, e tratar estas formas de para-razão segundo as exigências da razão e da antropologia filosófica, num conúbio existencial entre o sonho e a lógica. Oscilamos entre os absolutismos imperiais que desconhecem ostensivamente as regras do jogo e pretendem impor a própria semi-verdade ou o próprio semi-erro a todo o mundo - e os absolutismos partidários, que aceitam regras de convivência, que escolhem respeitar os adversários e coexistir com eles, mas que, no futuro, são igualmente absolutistas; oscilamos entre o absolutismo intransigente e o absolutismo de compromisso. Este é evidentemente o preferível. Mas ultrapassar a dialéctica dos absolutismos é, cada vez mais, a grande tarefa para amanhã. (...)



O IDEAL EUROPEU








(...) a primeira verificação que faço é esta: a unidade europeia marca passo, estagna, se é que não recua. É um facto, é uma realidade. Nascida depois do termo da II Guerra Mundial,  a ideia da Europa Unida, ou da Federação Europeia, igualmente desejada pelo neocapitalismo e pela social-democracia, trazia em si muito da humilhação sentida pelos povos centro-europeus, perante a ascensão das potências verdadeiramente vitoriosas do conflito: os Estados-Unidos e a URSS. Os povos centro-europeus (estes, principalmente) reconheceram que, na sua divisão e no seu isolamento, não poderiam competir com aquelas superpotências; mas unidos, tal seria porventura possível. Somaram-se os índices de produção, compararam-se estatísticas, estabeleceram-se as primeiras comunidades europeias (económicas), e assim o ideal europeu - herdeiro cultural da tradição greco-latina e romano-imperial - julgou ter uma base realista, uma base terrestre e sólida.

Algumas influências menos «ideais» vieram no entanto perturbar a questão. Em primeiro lugar, o interesse norte-americano em apoiar a unificação europeia depressa revelou um certo travo amargo; não seria a «Europa» para os Estados-Unidos senão um tampão na sua luta estratégica com a URSS? Estaríamos nós, europeus, destinados ao papel de defesa avançada dos Estados-Unidos? Por outro lado, a crescente preponderância dos interesses financeiros americanos na Europa a breve trecho pareceu que imporia um domínio económico-ideológico: a Europa não seria uma potência neutra e perseguindo os seus fins próprios, mas sim um aliado (mais forte do que as cindidas nações europeias) contra o comunismo ou a Rússia. A Europa estava, neste contexto, transmutada num englobante maior - o Ocidente -, englobante capitalista, tecnocrático, industrial, seguindo o modelo democrático e federativo norte-americano.

O general De Gaulle opôs-se a esta concepção de uma Europa federada inclinada para o modelo e a influência norte-americanos, e que na realidade não era a Europa, uma vez que excluía todos os países socialistas de Leste. A sua «Europa das pátrias», que irritou muitos idealistas do federalismo europeu, foi afinal de contas uma fórmula realista que procurou alargar a Europa às suas maiores dimensões - do Atlântico aos Urais -, evitar a sua absoluta inclinação para um dos campos, manter abertas as possibilidades de diálogo com o Leste, afastar o espectro do domínio económico americano e ao mesmo tempo preservar a ideia do estabelecimento de laços de cada vez maior solidariedade entre os povos do nosso continente.

Creio que se enganaram os que pensam estar esta fórmula inteiramente ligada à pessoa de De Gaulle.
É uma fórmula mais realista do que ideológica e o seu conteúdo é mais lógico do que utópico. Para mais, o ideal de uma superpotência europeia foge a responder a um sem-número de problemas de inequívoca gravidade.






AS TRÊS EUROPAS


E o primeiro problema é este: se uma França, uma Itália ou uma Alemanha se sentem coarctadas na sua expansão, na sua liberdade, no seu desenvolvimento, pela presença financeira norte-americana no mesmo seio das suas economias, que sucederia - agora dentro do domínio estritamente europeu - aos pequenos países de fraco desenvolvimento económico? Os economistas-sociólogos que respondam. Mas é preciso não esquecer que há pelo menos três Europas (de um ponto de vista económico, evidentemente): uma Europa onde o socialismo de Estado criou um mundo à parte, com as suas leis e as suas regras; uma Europa desenvolvida do centro e do norte; e uma Europa muito mais pobre, constituída pelos povos do Sul, desde a Península Ibérica ao longo das costas do Mediterrâneo até à Turquia. Países como a Espanha e a Itália encontram-se cindidos entre estas duas Europas, com um norte mais industrializado e desenvolvido, e um sul mais agrícola e pobre.

Podem temer-se as seguintes consequências: em primeiro lugar, a criação de uma superpotência europeia ocidental viria agravar as relações com o que mais depressa se tornaria uma superpotência europeia oriental. A Europa irremediavelmente dividida entre dois blocos unitários e adversários, não matizados já na sua acção pela pluralidade e pelo confronto de vários pontos de vista, e sujeita a decisões de supergovernos separados dos povos e afastados das periferias... Em segundo lugar, a crescente provincialização das periferias. Numa superpotência europeia, a Alemanha, a França, a Inglaterra, a Itália, o Benelux, seriam inevitavelmente condutores, dominadores, não já tanto como potências nacionais, mas como potentados económicos e culturais. As periferias - Portugal ou Espanha, Itália do Sul ou Grécia, Irlanda ou Noruega, Jugoslávia ou Turquia - sofreriam o equivalente ao processo de provincialização, passivismo económico e cultural, arregimentação estratégica, dirigismo ideológico, que, na realidade sofrem já hoje em parte, e que noutros pontos, sofrem, por exemplo, os países sul-americanos dentro de um pan-americanismo dominado pelos Estados Unidos e os países aliados da URSS dentro de uma espécie de pan-eslavismo ou, antes, pan-sovietismo implícito, onde a URSS detém as rédeas do comando.

Estes países periféricos, remetidos a produzir o que convém à super-comunidade, onde a sua voz só muito tenuamente se faria sentir, alienados cada vez mais da sua originalidade criadora, desautonomizados e desvinculados de outros interesses e relações extra-europeus, na realidade passariam a servir os interesses dos potentados dominantes e arriscar-se-iam a ser carne para canhão em conflitos futuros, sem possibilidade de neutralismo. Por outro lado, o fortalecimento da superpotência europeia (que não é necessariamente o enriquecimento e valorização das regiões periféricas, sempre sujeitas ao regime climático mediterrâneo, aos seus solos agrestes, ao atraso dos seus níveis de produção e com menos possibilidade competitiva), o fortalecimento da superpotência europeia, dizia, tão sedutor para um certo orgulho europeu, rácico e cultural, agravaria muito mais ainda o fosso que nos separa dos países subdesenvolvidos da África, da Ásia, da América do Sul, da Indonésia. Em vez de estabelecer pontes destruiria as que ainda existem, desenvolvendo-se no horizonte presumivelmente ódios raciais e continentais muito maiores do que no actual contexto pluralista.

Torre de Belém




A nós, portugueses, afastar-nos-ia cada vez mais de nossas projecções ou relações atlânticas e ecuménicas, reduzindo-nos a província limítrofe do «IV Império». E de um modo geral, pergunta-se se o declínio das línguas e das culturas que caracterizam na sua diversidade e criatividade a riqueza espiritual europeia seria efectivamente um benefício.

Em suma: laços mais estreitos, diálogo mais aberto e franco, maior interpenetração de influências, maior atenção às lições fecundas vindas de fora de fronteiras, esbatimento da rigidez fronteiriça e alfandegária? Sem dúvida. Mas escolha de nova provincialização periférica, em troca das potencialidades económicas e estratégicas de uma «Europa Unida» sob o imperativo de um industrialismo capitalista e tecnocrático - eis do que duvido francamente...


(...) MAS ONDE ESTÁ A MINHA PÁTRIA?


O verdadeiro problema não é pois quanto a mim o de saber se ainda há pátria. Parece-me cada vez mais evidente - contra a opinião, bem o sei, de certas formas de ideologismo superficiais e mal fundamentadas -, que onde haja uma língua própria, uma estrutura cultural, uma actividade filosófica, um complexo social específico, um sistema de educação, a pátria é uma realidade a tonalizar necessariamente as ideias, os valores, os movimentos, as instituições. O que sucede muitas vezes é haver pessoas, frequentemente as que se formaram culturalmente na Universidade, que rejeitam consciente ou inconscientemente a sua pátria, julgando-se afastadas de tal ideia anacrónica, quando na realidade se tornaram cidadãos de outras pátrias. São os que desprezando e ignorando por exemplo a literatura portuguesa, a filosofia portuguesa, a cultura portuguesa e a língua portuguesa, se integraram por completo nos sistemas de outras culturas nacionais. A sua posição é a de um snobismo provinciano estéril, irremediavelmente distanciado da cultura emulada e ao mesmo tempo desenraízado da cultura circundante. Alienação cultural completa, incapacidade de abordar os problemas reais do seu povo, uma vez que constantemente se lhes querem vestir soluções ou figurinos concebidos para outros sistemas e formas psico-sociológicas da vida.

Os supostos apátridas deveriam perguntar a si próprios «onde está a minha pátria?». Serão a França ou a Alemanha? (opções universitárias). Será a América? (opção capitalista-tecnocrática). Será a Rússia? (opção ideológica). Será a China ou Cuba»? (opções políticas-nova vaga).






Estes olham com desgosto tudo quanto vêem em sua volta. Em vez de tentar compreender para dinamizar pelo amor, desprezam e ironizam, sublinhando a cada passo que «neste país, etc...». Enquanto os autores portugueses se não vendem, enquanto as revistas de cultura portuguesa estiolam ao cabo de poucos números, enquanto as iniciativas culturais portuguesas sucumbem por falta de apoio e estímulo de todos os sectores, sejam eles quais forem, as temporadas de medíocre teatro francês são um êxito clamoroso, as revistas estrangeiras vendem-se entre nós muito mais que as portuguesas, as más traduções de livros por vezes maus proliferam, os criadores de cultura, pensadores, escritores, artistas, são ignorados pela opinião pública e pelas instituições ditas culturais, voltadas para os narizes de cera do passado ou para os brilhantes centros estrangeiros, que têm ao seu serviço poderosas máquinas de propaganda e instituições de difusão cultural excelentes - o que aliás só abona em seu favor.


(...) UTOPISMO E REALISMO


(...) Depois dos nacionalismos militaristas, de que foram expressões o nazismo ou o fascismo (nacionalismos telúricos e racistas, não corrigidos por um universalismo espiritual), a inteligentzia europeia desvalorizou os conceitos de nação ou de pátria. Viu numa próxima humanidade sem fronteiras a solução para as guerras. Foi um período de utopismo emocional, que, mal fundamentado todavia, depressa foi ultrapassado pela própria realidade.

Efectivamente, todas as tentativas de realização de supranacionalidades por alguma razão conheceram o fracasso, desde a expansão russa para os países socialistas de Leste até ao pan-americanismo, desde o projecto dos Estados Unidos da Europa cujo núcleo inicial seriam os países-membros do Mercado Comum até à União Árabe ou à unidade da península industânica. Aliás, uma supranacionalidade (federativa ou imperial) seria ainda uma nação, embora uma nação maior. A super-nação humana, que a ONU até certo ponto deseja prefigurar, pertence a um futuro tanto mais longínquo quanto continuem a incompreender-se ou a subestimar-se as razões que levaram à criação civilizacional das comunidades orgânicas.


CONDIÇÕES DE PROCESSO UNIVERSALIZANTE


É sem dúvida desejável e até exequível a ideia de uma fraternidade universal-humana - mas a sua via não pode ser a da absorção ou da redução das culturas diferenciadas. Neste sentido, quanto mais depressa se quiser andar, mais se atrasa o processo universalizante. No pós-guerra pensou-se que a ideologia política poderia ser o critério unificador supranacional. Ora a ideologia política é uma zona superficial da cultura humana. Nem a ideologia nazista da Ordem Nova, nem a ideologia democrático-capitalista americana lograram os seus objectivos. Antes se viu que, uniformizadoras muito mais do que universalizadoras, as ideologias político-internacionalistas ofendiam os sentimentos nacionais dos povos, engendrando reacções mais ou menos violentas. E assim, a época contemporânea está muito mais próxima do parcelamento plurinacional do que jamais o esteve a História. Nem sequer conseguimos reunificar as nações artificialmente divididas pelas guerras (como a Alemanha, a Coreia, a China, o Vietname), quanto mais criar supernações. Perante um abalo, um traumatismo, uma agressão, uma eleição, uma guerra, é que vem à tona, com toda a sua potência, mais do que a ideia de pátria, o valor de pátria (in ob. cit., pp. 170-171; 174-177; 181-182; 184-185).




















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