sábado, 25 de outubro de 2025

Elogio de Aristóteles

Escrito por Silvestre Pinheiro Ferreira




«Por um ofício assinado pelo Marquês de Pombal em 1773 as “Instituições de Lógica e Metafísica” do Genuense ou Genovesi foram aprovadas para textos nas escolas portuguesas. Em Ética seguia-se Heinécio. As cadeiras de Lógica, Metafísica e Ética constituíam o curso geral de Filosofia.

A Metafísica de Genuense foi perdurando até meados do século XIX. No entanto, os professores do Oratório afastavam-se por vezes dos textos oficiais. Assim, Pinheiro Ferreira afirma que foi “educado nos princípios de Aristóteles” princípios a que há-de procurar manter-se fiel durante toda a vida.

Nos fins do séc. XVIII e princípios do XIX “a metafísica papagueada pelo cediço Genuense ou Genovesi começava a cair em descrédito”. Herculano, diz-nos o Prof. Vitorino Nemésio, “fala com fundo engulho do Genuense”. Pinheiro Ferreira manifesta um profundo desprezo pelo “insignificante compêndio” do padre italiano e acusa-o de “entorpecer” ou “perverter” a nascente inteligência da mocidade portuguesa. Este discípulo dos oratorianos estava destinado a iniciar, poucos anos mais tarde, o movimento de reacção para expulsar do ensino secundário os manuais do Genuense.

(...) Desde que D. João V doara aos Oratorianos o hospício anexo à Igreja das Necessidades, eles ficaram com o encargo de ensinar as primeiras letras, Humanidades, Filosofia e Teologia.

Tinham os estudantes à sua disposição “numerosos e selectos livros”. A biblioteca do convento era “preciosa” “contendo Obras mais selectas e escolhidas, e tudo quanto há de melhor gosto em belas Letras”.

O profundo conhecimento da língua e da literatura clássica, como o testemunha a tradução do “Tratado das Categorias” e as numerosas citações do “Ensaio de Psicologia”, deve ter origem nas lições que recebeu no Oratório.

No domínio da filosofia mostrou um espírito independente, como veremos. O conhecimento que adquiriu em todas as disciplinas filosóficas durante o curso das Necessidades, aumentou depois profundamente. No entanto, “educado nos princípios de Aristóteles é particularmente no domínio lógico que veremos ter sido dominante a formação que recebeu. É natural que Pinheiro Ferreira considerasse definitiva e segura a lógica que aprendeu no Oratório. Dessa mesma lógica havia de dizer, anos mais tarde, Herculano: “Tenho as minhas dúvidas sobre a existência das revelações ab-alto; mas não as tenho sobre os poderes de uma cousa que me ensinaram os padres da Congregação do Oratório e que se chama Lógica”. Esta lógica era naturalmente a lógica aristotélico-escolástica.

Além da filosofia, revela Pinheiro Ferreira um conhecimento notável de alguns problemas teológicos e a formação cristã que recebeu mantém-se inabalável.»

Maria Luiza Cardoso Rangel de Souza Coelho («A Filosofia de Silvestre Pinheiro Ferreira»).






«Quando, em 9 de Fevereiro de 1773, na sequência da depuração à escolástica jesuítica e, por concomitância, ao aristotelismo segundo a escolástica católica, o Reitor reformador da Universidade de Coimbra propunha ao Marquês a adopção dos Compêndios de Lógica e de Metafísica do Genuense, para o curso do primeiro ano da Faculdade de Filosofia, tinha Silvestre Pinheiro Ferreira a idade de quatro anos. Nascera pois, a riscar o signo daquele que, em carta de 23 de Fevereiro de 1773, corroborando os textos decretais da reforma, escrevia ao Reitor reformador a propósito da sugestão acerca do Genuense e, na carta, achava, como único atributo, digno de Aristóteles, a expressão “filósofo tão abominável”, acrescentando que se deveria procurar que se tornasse esquecido nas lições de Coimbra. O facto não tem uma importância por aí além, se não se considerarem as fundas implicações que tal ojerisa acarretou para o corpo da pátria, e se não radicarmos a crise portuguesa em várias causas próximas, uma das quais bem pode ser esta do divórcio do aristotelismo, guia pelo qual secularmente se orientara a história da filosofia na escolástica portuguesa. Em todo o caso, respeitadas as teses e as antíteses, cumpre ainda provar se a erradicação do aristotelismo das escolas constituiu, ou uma salutar medida de profilaxia cultural, ou uma decisão imatura e imprópria, que se caracterizou por não querer o aristotelismo, mas que dificilmente adiantou algo sobre o que queria, uma vez sabido o que não queria.

Seja como for, Silvestre Pinheiro Ferreira viveu uma época de profundo e dissolvente anti-aristotelismo. Ele mesmo nunca abriu inteiramente as disponibilidades do seu espírito às influências magistrais do pensamento sistemático de Aristóteles, disperso e dispersivo que andou entre o idealismo alemão e o ecletismo francês, num tempo em que as doutrinas de Vítor Cousin, e do ecletismo espiritualista em geral, beneficiavam de certa e por vezes exagerada aceitação nos cursos universitários que, destituídos de uma magistratura filosófica sistemática, se sujeitavam às ondas de opinião filosófica (o movimento cultural com seus modismos epocais), transmitidas pelas publicações, e pela natural sucessão de diferentes professores, cada um participando do modismo próprio da sua geração. No entanto, um juízo prévio, melhor, um pré-juízo, indica uma acentuada propensão para o sistema na obra de Pinheiro Ferreira, e seria curioso indagar até que ponto a sua ligação a várias fontes filosóficas o não distraiu da genealogia aristotélica onde, culto como era, e inteligente como se afirmou, poderia ter encontrado a chave das horas com que abrir o caminho da originalidade.

Mas... quanto dissemos é condicional e passado inverificável, o que nos obriga a pôr de lado a lúdica conjecturística, para enumerar um ou dois pontos onde situar a tradução que Silvestre Pinheiro Ferreira efectuou das “Categorias” do Estagirita, estando no Brasil.

Se a chamada alta cultura não queria Aristóteles, apesar das reacções suscitadas após o afastamento do Marquês, mas infrutíferas, uma vez que o escol nacional fora educado nesse carisma anti-aristotélico, quem se atreveria a assumir posições prestigiantes para a filosofia aristotélica, pelo menos na Metrópole?

Ainda que educado pela Congregação do Oratório, Pinheiro Ferreira já não foi vítima frágil dos compêndios genuenses, pois, desde os fins do século XVIII que o italiano começara a cair em descrédito, o que de modo nenhum significou que, verificado o erro, a inteligência institucionalizada decidisse renovar o magistério aristotélico. O que na verdade acontecia era o surto do idealismo alemão e do espiritualismo francês, as vagas europeias que se precipitavam sobre um país que, na arte de filosofar, arquitectara superior tradição escolar.

Pinheiro Ferreira cita com desdém os compêndios e a influência do Genuense, e confessa que fora educado nos princípios de Aristóteles. A este facto teremos de atribuir uma das principais razões pelas quais, vendo-se necessitado de traduzir autores de filosofia, deu preferência a Aristóteles e não a outro, numa época em que, apesar das transformações e dos modismos culturais, o aristotelismo não refizera inteiramente o que, durante séculos, para judeus, cristãos e árabes, surgira, ou parecera, como um prestígio inquebrantável.

Os trâmites da Guerra Peninsular levavam Pinheiro Ferreira, em 1809, para o Brasil. Quatro anos depois de chegado ao Rio de Janeiro, o filósofo via-se em dificuldades materiais, de onde recorreu ao ensino como possível resolução de um problema de rendimentos. A Corte foi o lugar escolhido para a regência de um curso de filosofia.

De como os acontecimentos decorreram, diz o filósofo: “azares da fortuna, cuja relação pertence a outro lugar, me levaram a consagrar à instrução da Mocidade os momentos despreocupados dos deveres próprios do emprego, que exercito no serviço do Estado”. Conta, a seguir, como se resolveu “a anunciar, nesta Corte, um Curso de Prelecções Filosóficas sobre a Teoria do Discurso e da Linguagem, a Estética, a Diceósina, e a Cosmologia”.

No Rio de Janeiro deveriam escassear, então, os recursos bibliográficos, o que se deduz da confissão do autor, segundo a qual a falta de um “livro elementar” se opunha à execução do seu plano de instrução da mocidade. Por esse motivo, à medida que as lições iam sendo dadas, eram tornadas públicas através da Imprensa Régia, de onde o livro, constituído por suas lições, correr sob o título genérico de “Prelecções filosóficas”. Não se pode testemunhar com garantia o número de lições cumpridas pelo filósofo na Corte, mas existe um volume que inclui trinta prelecções, o da Biblioteca da Universidade de Coimbra, enquanto existe outro que integra vinte e duas (o da Biblioteca Nacional). Foram publicadas no Rio de Janeiro, no ano de 1813, com licença do Paço.

As lições sobre a filosofia aristotélica, melhor, sobre as “Categorias”, começaram na nona prelecção. Tendo exposto as suas ideias filosóficas, e tendo mostrado que elas diferiam um pouco das teses dos Escritores anteriores, decide iniciar a exposição das ideias dos principais filósofos.

Se por obediência às ideias daquele em que fora educado, se por necessidade de revisionar a fidelidade portuguesa ao aristotelismo, num país para todos os efeitos novo, longe dos defeitos metropolitanos, onde seria possível uma nova experiência na arte de filosofar, é dúvida sobre a qual, por ora, se torna difícil tomar uma decisão. Mas, fosse como fosse, Silvestre Pinheiro Ferreira entendeu dever começar por Aristóteles, do qual traçou o elogio que segue:

“Seria impróprio deste lugar o aplicar-me a demonstrar-vos, que Aristóteles, pela vastidão do plano, e sublimidade da execução, que se fazem admirar nas suas Obras, assim como é incomparavelmente superior a todos os Filósofos, cujos Escritos nos são conhecidos, assim também deve ser o primeiro que figure nesta espécie de Biblioteca Filosófica, com que iremos acompanhando o Curso destas Prelecções. Só depois de havermos analisado os Tratados, que nos restam daquele grande Filósofo, e os termos comparado com o que depois dele até agora sobre os mesmos objectos se tem escrito; é que de um rápido golpe de vista poderei convencer-vos da justiça, com que acabo de tributar-lhe as homenagens, que o nosso século amigo das luzes lhe não teria negado, se a estulta idolatria de absurdos Escolásticos dos dois séculos precedentes não tivesse indisposto os ânimos até contra o nome de Aristóteles, como aquele em cujas Obras eles protestavam haverem copiado os delírios das suas desvairadas fantasias.”

Numa atitude que parece comedida, Pinheiro Ferreira distingue entre o valor da filosofia aristotélica e o preconceito que efectivamente existia, não propriamente contra ela, mas contra o que, dela, a escolástica teria construído. Parece de admitir que Pinheiro Ferreira visava, portanto, transferir a antipatia anti-Aristóteles para contra os dois séculos de escolástica. Dirigindo para esta os suplementos afectivos dos ouvintes do Curso, estava em posição de recriar uma atmosfera de abertura e de simpatia para com Aristóteles? Eis quanto já não interessa deveras saber, pois se releva como factor principal do ensejo, o estar ele tentando uma experiência nova, em novas terras, com um filósofo que o século europeu das luzes tinha dado por arrumado, na mesma prisão onde metera os escolásticos.

Depois de considerar sobre as obras aristotélicas, Pinheiro Ferreira defende-as das calúnias do tempo, assinalando a principal importância do manual da arte de filosofar que o tratado das “Categorias” demonstra constituir, no que deveras se opõe aos autores da “Arte de pensar” que acusavam de desarrazoada aquela obra de Aristóteles, de tanto tomando Pinheiro Ferreira o ensejo de ir mais além, para emitir um juízo desfavorável sobre aqueles autores, dando o seu estudo como perigoso, e denunciando Destutt de Tracy que, apesar de ter atacado também a lógica aristotélica, era ainda mais notável por “não lhe ser a Filosofia devedora do descobrimento de uma só verdade”.

O estudo das “Categorias” ocupou, pelo menos, as lições entre a nona e a décima terceira, sendo admissível que o curso se processava, a partir de Janeiro de 1814, em face do texto do tratado aristotélico que, segundo se deduz da “advertência”, completara em 31 de Dezembro de 1813.»

Pinharanda Gomes («Apresentação», in Aristóteles, Categorias, tradução de Silvestre Pinheiro Ferreira, Guimarães Editores, 1982).





ELOGIO DE ARISTÓTELES

 

Seria impróprio deste lugar o aplicar-me a demonstrar-vos, que Aristóteles, pela vastidão do plano, e sublimidade da execução, que se fazem admirar nas suas Obras, assim como é incomparavelmente superior a todos os Filósofos, cujos Escritos nos são conhecidos, assim também deve ser o primeiro que figure nesta espécie de Biblioteca Filosófica, com que iremos acompanhando o Curso destas Prelecções. Só depois de havermos analisado os Tratados, que nos restam daquele grande Filósofo, e os termos comparado com o que depois dele até agora sobre os mesmos objectos se tem escrito; é que de um rápido golpe de vista poderei convencer-vos da justiça, com que acabo de tributar-lhe as homenagens, que o nosso século amigo das luzes lhe não teria negado, se a estulta idolatria de absurdos Escolásticos dos dois séculos precedentes não tivesse indisposto os ânimos até contra o nome de Aristóteles, como aquele em cujas Obras eles protestavam haverem copiado os delírios das suas desvairadas fantasias.

A primeira de entre aquelas Obras, que nos mostrará a sem razão destas calúnias é o seu tratado das Categorias ou da Distribuição Sistemática das palavras, a qual serve de base a todas as Ciências em geral, mas particularmente à Gramática filosófica de qualquer língua, e aos princípios elementares da Arte de pensar.

Por Categorias entende Aristóteles qualquer daqueles grupos denominados classes, ordens, géneros, espécies, etc., em que (...) os objectos da nossa observação se distribuem, segundo as qualidades, que acontece terem, de comum uns com os outros.

...À medida que qualquer Ciência se aproxima da sua perfeição, a Nomenclatura, que lhe é própria, se aumenta e enriquece com exacta e gradual proporção à massa dos nossos conhecimentos; porque seria contraditório o dizer-se de alguém que é pessoa de grandes luzes e conhecimentos, porém estes confusos, e sem ordem nem sistema: ora não podem ser distintas as ideias se não forem designadas por distintos nomes: nem podem estar arranjadas em ordem e sistema se não for com o socorro de expressões, que fixem e recordem no nosso ânimo os caracteres de classe, ordem, género, etc., sem o que não se pode conceber sistema nem arranjo.

Lembra-me ocorrer neste lugar a uma dúvida, que talvez se vos tenha já oferecido, e que importa em todo o caso dissipar. Quando eu digo no § precedente, e nos que nele vão citados, que as palavras são indispensáveis para distinguirmos as nossas ideias e para executarmos com elas os nossos raciocínios; deve-se notar, que as palavras entretanto são necessárias para ambos aqueles fins, enquanto são sinais por convenção equivalentes aos objectos, em todas as operações que sobre eles tem de exercer o nosso espírito: e além de equivalentes, pela sua simplicidade nos tornam possíveis aquelas operações que sem o seu socorro seriam as mais das vezes impraticáveis. De tudo o que se segue, que quanto a este respeito dizemos palavras, se deve entender de quaisquer outros sinais das nossas ideias, tais como os gestos, a escultura, a pintura, jeroglíficos, e a escrita.

Isto assim advertido, tornemos ao nosso objecto. Não se pode expender, dizia eu, o arranjo e sistema dos nossos conhecimentos senão expondo o sistema da correspondente Linguagem. E por isso é que esta obra de Aristóteles, destinada a classificar os conhecimentos humanos nas suas mais abstractas e genéricas divisões, classifica as expressões mais gerais e abstractas, de que os homens se costumam servir: persuadido aquele incomparável Filósofo, que ficariam classificados tanto os objectos, como as ideias que deles temos, se se classificassem pelos nomes, e expressões, que os representam.

É pois desacertada a crítica que os Autores da Arte de Pensar fazem desta obra de Aristóteles, dizendo: «que as Categorias não são fundadas na razão, nem na verdade; mas que antes são absolutamente arbitrárias: nem têm outro fundamento, senão a imaginação do seu Autor: e que cada qual tem igual autoridade, que ele, para as distribuir segundo a ordem de suas ideias».

Porém não contentes aqueles Autores de assim haverem tratado de arbitrárias as Categorias de Aristóteles, acrescenta: «Que o estudo delas é perigoso, enquanto acostuma os homens a contentarem-se com palavras e a imaginarem, que têm conhecimento de todas as coisas, entretanto que apenas sabem uns nomes arbitrariamente aplicados aos objectos: e que deles nenhuma ideia clara nem distinta apresentam ao espírito». Juízo este que um Moderno (Destutt-Tracy) não só aprova, mas diz: «que lhe parece de um acerto, e de uma sagacidade admiráveis».

Quanto a Destutt-Tracy bastará dizer, que não obstante não lhe ser a Filosofia devedora do descobrimento de uma só verdade, pois na sua Obra (...) nada mais se encontra do que doutrinas vulgares diluídas em três grandes volumes de inúteis frases: contudo a cada passo se apregoa a si mesmo pelo primeiro que tratou dignamente esta Ciência; porque no seu conceito quantos sobre ela escreveram, ou ignoravam a matéria, ou apenas pressentiram muitos de longe as verdades de que estava reservado para ele o formar pela primeira vez um corpo de doutrina.

Quem assim se elogia a si próprio, tem a íntima consciência de não merecer os louvores dos outros.

Quanto aos Autores da Arte de Pensar, posto que eles se dissessem reformadores da Filosofia, nada menos eram que Filósofos; pois ignoravam que as Ciências nada mais são do que o conhecimento do valor das palavras e frases, que constituem a particular Nomenclatura de cada uma delas.

...Foi portanto ignorância do que é Ciência, o que induziu os Autores da Arte de Pensar a censurarem o presente tratado de Aristóteles sobre as Categorias, «como Obra de uma Ciência vã e perigosa, porque só nos dá conhecimento de palavras e não de objectos». Como se as Ciências tivessem outro modo de nos darem conhecimento dos objectos, que não seja pelo das palavras e frases de que a Nomenclatura de cada uma delas se compõe. (Prel., 9.ª números 312 a 322 e 324).

(In Silvestre Pinheiro Ferreira, Introdução e Selecção de Pinharanda Gomes, Guimarães Editores, Lisboa, 1977, pp. 55-58).





terça-feira, 21 de outubro de 2025

Sinopse do Pantiteísmo

Escrito por Cunha Seixas





«O clima ideológico em que Seixas pensou e filosofou era por demais compósito. Um conservadorismo escolástico circulante nas escolas religiosas, um esquema de idealismo germânico e de racionalismo francês, dados através de um ecletismo, mais variante do que constante, entre os vários professores e autores, o krausismo e o kantismo, o socialismo francês de Fourier e Proudhon, o evolucionismo e o positivismo.

A necessidade de actualização doutrinal, em face da carência de uma apurada elaboração filosófica autónoma e colegial, levava os mestres universitários e os escritores a veicularem os modismos culturais e, na mesma geração, na mesma escola, era possível encontrar uma atmosfera de controvérsia entre o krausismo, postulado por Ferrer e o kantismo, professado por Joaquim Rodrigues de Brito e José Dias Ferreira, e em cujo âmbito, mediante uma crítica fundamental do positivismo, parece gerar-se o essencial do pensamento de Cunha Seixas. Embora o seu anti-positivismo seja anterior, é de admitir que se tivesse emocionalmente aprofundado, em virtude de, em 1878, no concurso para professor do Curso Superior de Letras, ter sido preterido por Consiglieri Pedroso, um aluno, melhor, discípulo, de Teófilo Braga e confesso positivista.

Há autores que se salientam pelo continuado poder de oposição, não sendo capazes de superar o anti- com um para além de-. Este defeito não é predicável a Seixas. De facto, o seu constante e meditante anti-positivismo foi gradualmente superado por uma atitude original e por um projecto criativo – intuitivo e racional – que nos parece ter deixado francamente elaborado e solidamente construído, quer nos vários degraus da sua bibliografia, quer, sobretudo, na obra póstuma, Princípios Gerais de Filosofia (1897), em que ao rigor da análise e à visão da síntese, se acasala um enciclopédico teor de conhecimentos, constituído como global universidade das ciências, segundo a superior unidade da filosofia, ao longo de 1072 compactas páginas.

(...) O pantiteísmo é um espiritualismo. Significa “Deus em tudo”, princípio que difere já do panteísta “tudo é Deus”, já do panenteísta “tudo está em Deus”.

O panteísmo é um materialismo espiritualizado, mas identifica Deus e matéria; no panenteísmo, Deus é um recipiente universal, o contentor da matéria e apassiva-se na abertura a uma variante de materialismo.

O pantiteísmo, na tradição de Aristóteles a Leibniz, pensa Deus como motor imóvel, princípio e fim. Em tudo o que existe, Deus está nele, mas não se identifica com ele. A existência é distinta da essência, como o criador é distinto da criatura, como natureza é distinta do espírito; Deus é diferente da matéria. Está nela, mas não é a matéria, e, esta, por sua vez, não está em Deus, contrariamente ao proposto pelo panenteísmo.

O sistema pantiteísta reflecte as preocupações do autor quanto às ciências e constitui um projecto metodológico e epistemológico, sem minorar a crença e a revelação como vias ontognosiológicas.

No aparato sistemático e nas virtualidades de controversão, o sistema reformula o enciclopedismo, entendendo-se a filosofia como geradora das ciências que, uma vez autonomizadas, isolam a filosofia na situação de “ciência da unidade geral”. Filosofia não é mais o saber unificado, mas a unidade geradora das ciências no que se aproxima do positivismo e do evolucionismo, aos quais suplanta com a afirmação de uma teodiceia que, em muitos passos, chega a suportar uma teologia.

A importância do sensualismo, reconhecida mesmo por Silvestre Pinheiro Ferreira, é posta em causa pelo intelectualismo pantiteísta, que afirma a prioridade do intelecto, a principialidade da ideia, ainda que estas se tripartam por experimentais, reflexivas e racionais, sendo, as primeiras, aferidas aos sentidos, as segundas, à reflexão e, as terceiras, ao espírito universal, necessário e invariável, pelo que toda a substância se manifesta em ordem à eternidade, à infinitude, à imensidade, absolutos do tempo e do espaço, atributos divinos, que estão em tudo segundo as partes, sem com as partes se identificarem – como um espírito que sopra por onde passa, mas não se mistura com isso, por onde passa.



A multiplicidade releva da unidade, o tempo da eternidade, o espaço da imensidade, numa hierarquia em que a fenoménica do ser se harmoniza na escala das classes e respectivos segmentos existenciais.

Tanto demonstra o que Álvaro Ribeiro escreveu acerca de Seixas: “nunca esqueceu, porém, que a filosofia tem de estar de algum modo relacionada com a teologia, e tanto basta para que o seu nome seja digno de figurar na história da filosofia portuguesa”, porque o pantiteísmo de si mesmo avança a imensa realeza do Inefável, que está em tudo e em tudo cumpre invocar.»

Pinharanda Gomes (Introdução, in «Cunha Seixas»).

 

«Como ocorrera com Silvestre Pinheiro Ferreira e com os nossos românticos, e se verifica com outros pensadores portugueses depois dele, Cunha Seixas desatendeu o sentido da negatividade, escapando assim num dos aspectos mais significativos a profunda e decisiva crítica de Kant, o Romantismo essencial e a moderna filosofia alemã. Com o real e inequívoco sentido da harmonia imperecível e imarcescível que reside ao fundo de tudo quanto existe, se foi agudamente sensível ao que dela nos separa, não acompanhou pelo pensamento as sinuosas e sombrias espirais da separativa negatividade. Isso explica o que há de fruste no seu optimismo e também tornará possível compreender que, ao pretender garantir a exemplo de Schelling a “fé filosófica”, tenha recusado o cristianismo em alguns seus radicais aspectos. O contraste com Antero de Quental, seu contemporâneo em Coimbra, e o pouco apreço que por ele Sampaio Bruno mostra a seguir, tornam-se-nos também mais compreensíveis se atendermos a tão sincera e veemente atitude espiritual de Cunha Seixas.

(...) A sistemática de Cunha Seixas – capital reconhecê-lo – aparecia no seu tempo, é ainda hoje, em verdade, inaceitável. Como para todo o pensamento europeu desta nossa era, resultava imperioso para a filosofia portuguesa levar ao limite o sentido da negatividade. Tal foi a façanha decisiva de Sampaio Bruno. O confronto com Amorim Viana impõe-se, impõe-se tanto mais se lembrarmos que A Ideia de Deus é construída em oposição nítida e irrefragável à filosofia do antecessor.

Recebendo profunda influência de Platão e Leibniz, mas seriamente atento a Espinosa e, no possível, a Hegel, Amorim Viana mantém recessivamente a sua filosofia no âmbito de um dualismo, já cartesiano, já kantiano. E, com o recurso, análogo ao do primeiro, à veracidade divina, mais se acentua ainda no sentido discricionário da pura razão; consequentemente, como em Kant, é nos limites da mesma razão que a crença vai procurar seu autêntico conteúdo e sentido, é aí que o pensador, excluindo a encarnação, o milagre, a transubstanciação e a profecia como fantásticas ou supersticiosas, procura determinar o puro imarcescível vínculo com o transcendente. Restabelecer com firmeza a relação real e actual, não apenas ideal, que une estreitamente Deus, Universo e homem, revalorizando a angelogia, o milagre, a oração, a profecia, o conteúdo já patente ou ainda secreto da Revelação, todos os mais subtis e obscuros modos do incessante, do revelado e oculto vínculo entre Deus e tudo quanto existe, tal vai ser a inesperada e surpreendente ideia de Sampaio Bruno. Ao empreendê-la, porém, o autor de A Ideia de Deus situa-se por sua vez, na gritante aparência, a mil léguas da tradição visível e mais explícita do cristianismo como da ontologia tradicional e da metafísica clássica.»

José Marinho («Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo»).




«Segundo Seixas, a história da filosofia cataloga-se em quatro sistemas: panteísmo, sensualismo, conceptualismo, espiritualismo.

O primeiro é criticado por confundir finito e infinito, embora admita a necessidade do infinito e do absoluto; o segundo é criticável por se basear na finitude, que é um vício, manifestando-se como sistema irrevogável de pluralidades inunificáveis pelo infinito; o terceiro, emergente na confluência dos anteriores, não só incorre em suas falácias, como as não ultrapassa; o quarto, surge-lhe qual sistema sintético, postulante do absoluto e de quanto para ele tende, aceitando a realidade do mundo material, sem renunciar – antes invocando – o mundo do espírito e, por sobre ambos, a verdade divina.

Que é, nas palavras do autor, o pantiteísmo? – “cientificamente é o sistema de todas as ciências e exibindo as determinações destas na permanência de seus princípios e na evolução infinita que lhes compete, exige uma síntese harmónica de leis universais sob a unidade do absoluto”.

O infinito está em tudo. Parecem “realidades emprestadas ou menos legítimas todas as causas móveis e transitórias dos mundos”. De onde a metafísica consistir nas “realidades universais e necessárias, que são as condições da existência de todos os seres”. O infinito corre no finito, a terra é uma coisa medida de uma ideia imensa, “universo significa unidade na variedade”. Unidade é o princípio e o fim, variedade é o meio em que, – como ponte – o princípio e o fim se ligam. No universo não há oposição, mas harmonia. Universo é harmonia.

Há uma razão monadológica no pantiteísmo, a que se salienta da teodiceia pantiteísta, à qual parece ser desnecessário pedir provas acerca da existência de Deus, uma vez que Deus se revela a todo o instante, sendo essa a prova inequívoca da existência divina. Deus não é uma criação do espírito, mas é um real e necessário absoluto, cuja essência não podemos adivinhar senão pelos dados da existência, embora seja possível conjecturar os divinos atributos, a absoluteidade, a omnipotência, a perfeição e a imutabilidade. Neste sentido, e apesar da história das religiões, Seixas considera que a razão é mais veicular para a ideia de Deus do que a crença, uma vez que a razão é indutiva e dedutiva e a crença não segue tal processo. Do absoluto em Deus, a razão deduz a omnipotência e a necessidade, a imutabilidade e a unidade e o atributo de supremo; enquanto, do infinito, deduz a eternidade, a imensidade, a omnipresença, a ubiquidade, a omnisciência e a liberdade.

Ainda que Deus esteja em todas as coisas, a dualidade de identidades permanece e, o homem, participa tanto da unidade e imaterialidade, como da multiplicidade e divisibilidade. Pelos primeiros, participa da divindade, pelos segundos, da materialidade. Essente e existente, em sincronismo paralelo e irredutível. A salvação humana consiste em contribuir para o desenvolvimento pantiteísta de quanto existe na multiplicidade. Transcendental por unitária e imaterial, imanente por múltipla e divisível, a situação do homem no pantiteísmo infere de facto para o imanentismo, uma vez que, só nos ciclos da história, o homem se realiza como homem, alargando as esferas da vida e da civilização, mirando o infinito, caminhando no finito, mas disponível para “ir em infindo”, como diria o autor medieval da nossa “Corte Imperial”».

Pinharanda Gomes (Introdução, in «Cunha Seixas»).




«(...) Ao leitor a quem até agora não se entreabriu nenhuma evidência do significado e valor da filosofia portuguesa contemporânea aqui se oferece algo considerável. Não se trata, cabe adverti-lo, de problema local e cultural restrito. É todo o problema da filosofia, todo o problema do saber e do conhecimento que neste ponto se joga. Se Amorim Viana vê certo, se é indisputavelmente seguro o que nos diz, a razão terá de reconhecer um incompreensível, mas não um irracional. Se, pelo contrário, há perante a razão e na sua própria origem ou princípio algo que à razão escapa, a urgência de reconhecer um irracional é inevitável.

Dificuldade suma aqui se depara, não apenas do pensamento português mas de todo o pensamento desde a Grécia dos sofistas e de Sócrates, retomada com maior gravidade na crítica de Kant e depois dela. Instância adequada a mostrar que muitas dificuldades e perplexidades na moderna filosofia portuguesa, quase unanimemente atribuídas aos limites locais do nosso pensamento pela crítica obsessivamente judiciosa, traduzem pelo contrário formas de sucessiva e diversa mas seríssima atenção reflexiva ao que há mais sério e mais grave na filosofia, repercutindo, como mostraremos no último capítulo deste nosso estudo, nas formas responsáveis do pensar em nossos dias e no que o homem pode autenticamente saber de si, da sua condição e seu destino.

Toda a filosofia portuguesa consequente vai situar-se de modo problemático, reticente ou negativo neste ponto. Um momento crucial da crítica ocorre em Sampaio Bruno.

Antes dele no entanto, Antero de Quental e Cunha Seixas tentariam, com maior ou menor demora reflexiva estes caminhos de raros viandantes. De raros viandantes, pois os homens receiam na relação ou no mais profundo vínculo ao irracional perder a razão e todo o senso. A simples psicologia e a história de muitos pensantes ou pensativos mostra, todavia, ao perto e ao longe, que é frequentemente por a razão se manter rígida perante as solicitações do irracional, que a loucura ou a demência ou a obsessiva e desesperante melancolia em várias formas e em diversos exemplos visita os homens.»

José Marinho («Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo»).

 

«O pantiteísmo reduz, sem prejuízo das categorias, as ideias universais às do ser e suas formas, elevando as que se referem ao absoluto; afirma a realidade das leis lógicas e ontológicas; começa na ideia mais geral de Ser e engloba todas as demais ideias até à ordem, que é mais compreensiva; sistematiza as leis universais; provê o conhecimento de uma causalidade e de uma finalidade. A causa do conhecimento é o pensamento que se move, inquiridor, entre os finitos, os infinitos relativos e o absoluto. A filosofia consiste na explicação do saber e do ser, na antevisão do “ser infinitamente perfeito”, que serve de pilar a uma teodiceia, por si mesma garante de uma antropologia que entende o homem como criatura que “não nasceu para a terra” e que “anseia outros mundos em que se complete” (Seixas, A Fénix, pág. 84).

Com suas potências actualizáveis, o pantiteísmo reúne uma energia originante que poderia ter gerado algo de novo na filosofia portuguesa no fim do século XIX, caso o autor houvesse disposto de acesso ao ensino. Na verdade, em concurso para uma cátedra no Curso Superior de Letras, Consiglieri Pedroso, discípulo de Teófilo Braga, foi aprovado, enquanto Seixas, opositor de Teófilo Braga, foi reprovado. O sistema estava em elaboração. Talvez o achemos um tanto espartilhado num rigidismo formalista que depende da educação jurídica do autor, e cremos que a ampla informação que Seixas detinha na área das ciências (como prova na Galeria das Ciências Contemporâneas, 1879) não era compensada por uma experiência própria na área das ciências naturais. Todavia, e considerando que o sistema estava em elaboração, podemos aceitar, sem pré-juízo, a avaliação de que o pantiteísmo é “uma nova forma de espiritualismo”, reorganizado e compreensivo das conquistas e descobertas do século nas diversas ciências.»

Pinharanda Gomes («Pantiteísmo», in Dicionário de Filosofia Portuguesa).

 




«A luta contra o positivismo não terminará pela refutação doutrinal que consagre o restabelecimento da metafísica no ensino das Faculdades de Ciências e na preocupação dos pensadores portugueses. A metafísica é, como a matemática, apenas uma porta do conhecimento que tanto pode estar aberta como fechada. Três séculos de racionalismo – os séculos XVI, XVII e XVIII – demonstram bem quão erróneo é procurar resolver os problemas humanos por doutrinas que não postulam o enunciado da verdadeira relação entre a filosofia e a teologia.

A Ideia de Deus é o livro que aponta a razão por que os portugueses se desinteressaram de todas as formas de metafísica e, consequentemente, se alhearam da filosofia moderna. A preocupação teológica está, por isso, actual e presente nos estudos dos discípulos de Sampaio Bruno e de Leonardo Coimbra. O mais eloquente testemunho desta característica de uma nova geração de pensadores encontra-se no admirável estudo que o Padre António de Magalhães dedicou ao nosso primeiro filósofo cristão.

“A mensagem de Leonardo Coimbra – escreve o Padre António de Magalhães – é, de todas, a que possui maior sentido de perenidade, pois foi ele quem viveu o pensamento na maior altura, mais universalmente e mais consciente dos problemas que a vida de hoje põe ao Homem de sempre.

Leonardo Coimbra atingiu a profundidade do Homem de Sempre, porque atingiu Cristo pela angústia da metafísica do homem contemporâneo. E à luz de Cristo, viu renovada a face da Terra: o sentido da história, do progresso e da civilização, o problema do amor, da dor e da alegria, da razão e da imortalidade, da ciência e da beleza. E tudo isto nos foi dado, no drama da sua obra e da sua vida e em muita beleza de arte.

“Só quando em Portugal houver um escol de pensadores vivendo os problemas na profundidade e altura de Leonardo Coimbra, haverá também a certeza de que Portugal se reintegrou no sentido da sua missão histórica”».

Álvaro Ribeiro («Os Positivistas»).





SINOPSE DO PANTITEÍSMO


§ 331. Pantiteísmo etimologicamente significa Deus em tudo. Cientificamente é o sistema que, formando a conjunção de todas as ciências e exibindo as determinações destas na permanência de seus princípios e na evolução infinda que lhes compete, exibe uma síntese harmónica de leis universais sob a unidade do absoluto.

Desta definição se deduz:

1.º Que este sistema abrange a parte elementar e fundamental de todas as ciências (conjunção);

2.º Que toma cada uma delas em si e do todo delas a permanência de princípios e a evolução infinda que deles dimana;

3.º Que apregoa como lei última a harmonia sob o princípio do absoluto.

As suas teorias do conhecimento e das leis lógicas da razão e das leis universais das coisas são as do espiritualismo, já expostas e que por isso não repetiremos; mas o pantiteísmo completa esses elementos espiritualistas com outras teorias já metafísicas, já colhidas nas leis do mundo físico, como se tem mostrado nos capítulos antecedentes e como se verá nos que se seguem.

§ 1332. Vejamos algumas dessas bases:

O espiritualismo tem como doutrina a existência das leis ontológicas; mas tem pecado em elevar a ideias universais algumas, que são meramente gerais. O pantiteísmo reduz as ideias universais às do ser e suas formas, substância, causa, relação, tempo, espaço, grandeza, finalidade e ordem. Acima destas eleva todas as que se referem ao Absoluto, uma por uma, de modo a patentear-se imediatamente, a correspondência.

O espiritualismo faz ver, que essas ideias não só existem latente e virtualmente em nós, mas são além disto leis lógicas e leis ontológicas ou universais e cada uma delas uma síntese, que faz surgir as mais. O pantiteísmo, perfilhando tais doutrinas, chama ideias-elementos essas formas e assim fica expressada não só a idealidade mas a realidade de tais elementos, considerados como leis das coisas e formas ou modelos de todo o criado.

O espiritualismo actual nunca exibe a série das ideias-elementos, pela sua compreensão crescente. O pantiteísmo começa na ideia de ser como a mais geral, a mais extensa e a menos compreensiva e vai tomando cada vez mais característicos para se ir ocupar das outras ideias até a de ordem, que é de todas a mais compreensiva.

O espiritualismo estanceia demasiadamente no psicológico. O pantiteísmo, exibindo a região média das ideias ontológicas, exibe igualmente a ordem reflexa correspondente, isto é, a série de ideias gerais, criadas pela abstracção e generalização, e que se originam no experimental.

§ 333. O espiritualismo não classifica bem em tempo algum as ideias universais de modo a formarem as leis mais vastas do universo. O pantiteísmo exibe uma classificação completa e que fica sendo a raiz das leis do universo.

As classificações ontológicas são muitas, sendo principais a de Aristóteles, a de Kant e as de Krause. Nenhuma destas nos serviu de guia. O pantiteísmo exibe uma classificação ontológica, sua, conquanto achasse elementos para ela no pensamento da humanidade e nos trabalhos de filosofia.

A filosofia de Sankaya do antigo oriente tinha a matéria primeira como o ser indeterminado, substância sem atributos, anterior às formas achando depois em evolução a posse e a inteligência (a determinação), atingindo depois a consciência (determinação da própria inteligência).

O pensamento da filosofia grega a tal respeito já nós passámos em revista ao tratarmos da teoria do conhecimento.

§ 334. Segundo a filosofia cristã tudo tem peso, número e medida. A medida é a substância; o número é a figura; o peso é o círculo, que une a medida ou a substância ao número ou à figura.

Cada ser é um e três: é um na substância ou no seu todo: variado na forma e submetido à hierarquia pela ordem: toda a cousa tem portanto unidade, forma e ordem.

A filosofia alemã de Kant e seus sucessores, considera, que há três leis lógicas: tese, antítese e síntese. A tese é um princípio; a antítese é a sua negação ou a sua oposição; a síntese é o complexo de ambos. Destas três leis fez Krause as suas leis da unidade, variedade e harmonia.



Manuel Kant

Tanto da filosofia cristã como das doutrinas alemãs o nosso sistema apresenta largo aproveitamento, afastando-se, porém, de toda a ideia do panteísmo e dos erros ou antes das lacunas da filosofia alemã.

Esta última é um vasto templo de sabedoria, a mais profunda. Além da religiosidade, que dela resulta, embora o panteísmo a assombre toda, é certo, que de Kant se data uma nova direcção ao espírito humano, aliás, elevada, principalmente na parte moral, seguindo-se em Fichte um grande edifício elevado à dignidade humana e à moral, em Herbart e Krause um preito ao princípio da harmonia, em Schelling e Hegel grandiosos quadros, em Schopenhauer e Hartmann novas explorações da força, em toda ela os princípios lógicos da tese, antítese e síntese e acima de tudo e sempre o absoluto. Só com a leitura da filosofia alemã é que se adquire o hábito da grandeza do pensamento e do agigantado das ideias.

A filosofia alemã é, pois, apesar da sua aridez, a melhor ginástica do pensamento e sem o seu estudo ser-nos-ia impossível o fazermos a construção, que temos exibido.

§ 1338. Comte achou, que na história e nas coisas havia duas leis: os elementos estáticos e os elementos dinâmicos. Nós aceitamos este pensamento mas por outra forma. Os nossos elementos estáticos são os que figuram em conjunção embrionária na primeira lei; depois segue-se o movimento, o dinamismo e acção antinómica pelos elementos de permanência e evolução da segunda lei e não estanceamos nesta, como se sabe.

Comte pregoou a necessidade de entrarmos no real. Nós mostramos que o real está tanto nas coisas múltiplas como na unidade, de que elas procedem, ainda que essa unidade não seja palpável.

Comte quer pelo menos, que a ciência tome os elementos abstractos e gerais. Nós, além dos elementos ontológicos ou universais, não desprezamos os gerais, e fazemos deles a ordem reflexiva.

Comte quer que se siga o método experimental. Nós partilhamos este método em tudo o que lhe diz respeito e em que ele é legítimo; mas cremos que esse método é erróneo, ilegítimo e incompetente em tudo o mais.

Comte extasia-se com o palpável, com o que chama verificável. Nós entendemos, que podemos partir dos factos do eu, que são experimentais.

Comte deseja que as ciências marchem pelo experimental. Nós, como se verá, festejamos todas as descobertas das ciências, e nesse ponto somos mais comtistas que o próprio Comte.

Comte deseja que não passemos da experiência. O pantiteísmo exige leis universais; mas elas, ao mesmo tempo que são ontológicas, são experimentais. A primeira lei exposta é o embrião das coisas, nos seus elementos estáticos: a segunda o desenvolvimento das coisas, que é um facto experimental: a terceira expressa o estado íntegro das coisas, o seu período de perfeição relativa, a madureza das coisas, a que se há-de seguir a dissolução.

Todas estas leis são experimentais e são as mesmas, que apresenta a biologia. As mesmas leis podem figurar na filosofia da natureza com os nomes de estática, dinâmica em função e ordem, ou ligação das leis entre si.

Estas mesmas leis recebem na psicologia os nomes de noção, análise e síntese, e na lógica os de unidade, variedade e harmonia. As nossas leis ontológicas têm, pois, uma feição, por um lado metafísica e por outro lado experimental.

Comte fez uma classificação das ciências, segundo diversas bases. Nós aceitamos parte de tal classificação; mas lançamos mão de outros princípios, sendo a nossa classificação mais completa e sendo os nossos fundamentos muito diversos dos de Comte, sendo porém idênticos alguns dos resultados.




Tais são, em geral, as semelhanças e diferenças entre o nosso sistema e o de Comte. A nossa formal e intransigente oposição a esta filosofia consiste:

1.º Em rejeitarmos totalmente a chamada lei dos três estados;

2.º Em admitirmos a metafísica;

3.º Em rejeitarmos o seu dogmatismo arbitrário e as ilusões de ciência, com que tal filosofia pretende impor-se, e que não acusam senão falta de análise e o prematuro das conclusões.

Quanto as estes pontos, a nossa posição fica separada de Comte por um profundo abismo.

§ 339. Herbert Spencer advoga a causa da permanência das forças e advoga a causa da evolução.

Nós fazemos das forças a manifestação de um uno, que Spencer não atingiu, e advogamos a lei da permanência dos elementos, e também advogamos a existência da lei da evolução.

A uma e outra lei damos carácter diverso do que lhe dá Spencer. Este pensador crê, que o tempo e o espaço não só são formas do pensamento, mas formas universais e reais das cousas. Nós não só cremos nessas duas formas lógicas e formas universais e reais das cousas mas até acrescentamos o quadro ontológico, estendendo-o às noções e formas do ser, substâncias e outras.

Spencer crê, que estas formas as sabemos pelos princípios da hereditariedade e da evolução.

Nós cremos, que as formas da inteligência são ínsitas em nós, com disposições ou virtualidades, e que em nós surgem como ideias a propósito de factos contingentes.

Se as ideias do espaço e tempo são formas universais das coisas e do espírito, como é que a evolução as cria? Se são criadas pela evolução e transmitidas por hereditariedade, como é que a evolução criou essas formas? Existiam antes ou depois de tal evolução? Se existiram antes, não vieram da evolução; se existiram depois, como é que o espírito podia existir sem as formas, que o constituem?

Estas e outras dificuldades não existem no nosso sistema, que subordina a evolução a outras leis, ligando-a com a permanência de elementos, que são fixos e que não podem portanto levar-nos ao fieri sem elementos anteriores de Hegel, para quem tudo ficava mudável, sem um ponto fixo, sendo nesse sistema tudo tão transitório como figurava na filosofia de Heraclito, a quem Hegel seguiu.

§ 340. Quanto aos sistemas racionalista e panteísta, as nossas teorias são as do espiritualismo em geral, salvas diversas especialidades, das quais não temos a ocupar-nos, por serem alheias à feição deste livro.

As aplicações do nosso sistema à literatura, à moral, à história, à sociologia, à crítica dos sistemas e a outros pontos, acham-se nas nossas obras, e não pertence a este livro a sua reprodução.

O pantiteísmo é, pois, uma nova forma de espiritualismo, exibindo-se este reorganizado e compreendendo além disto, todas as conquistas e descobertas do século nas diversas ciências.

Tal é o seu carácter especial.

(In Cunha Seixas, Princípios Gerais de Filosofia, Cap. X, Secção 2.ª).