Escrito por Pinharanda Gomes
«Na conclusão do seu estudo sobre O Pensamento Filosófico em Portugal, com razão afirmou o Doutor Delfim Santos: “Aristóteles é o pensador sempre presente em todos os momentos da especulação nacional”. Tal é, efectivamente, o que se verifica de Pedro Hispano a Leonardo Coimbra. Se o aristotelismo do autor das Summulae Logicales foi já caracterizado pelo Padre João Ferreira, O.F.M., em estudos que provam inteligente leitura de documentos escritos, o aristotelismo do autor de A Alegria, a Dor e a Graça aguarda ainda o discernimento de um intérprete qualificado e benevolente. Poderá certamente dizer-se que nunca houve “puro aristotelismo” em Portugal, mas também nos parece lícito excluir de genealogia portuguesa os pensadores que colaboraram na divulgação estéril de obras elaboradas em escolas anti-aristotélicas. Quer dizer: pensador não é o homem que pensa, pensador é tão-somente aquele que faz pensar.
(...) Não é a filosofia, porém, constituída apenas por leituras e escrituras; se tal fosse, para estudá-la bastaria um roteiro bibliográfico. O que dá ao pensamento humano as características de pensamento filosófico é justamente um certo tipo de vivências que escapam à argúcia dos historiadores da filosofia. Este factor afectivo, e até emocional, que cada homem educado por decência esconde aos seus contemporâneos, condiciona muitas vezes a escolha de opiniões, teses e conceitos. Assim, as condições espirituais requeridas para admirar a obra de Aristóteles tendem a desaparecer nos ambientes em que a cultura se vulgariza ao definir-se como divulgação.»
Álvaro Ribeiro («Aristóteles e a Tradição Portuguesa»).
«O ter feito uma universidade sapiencial, um estudo geral com todas as disciplinas, oferecendo uma realidade de pensamento (saber das cousas como são), uma finalidade objectiva (saber das cousas para que são), uma originalidade de causa (saber da primeira causa) e uma ordem metodológica assente num critério de lógica absoluta, eis as razões de Aristóteles ser escolhido como o “daemonium” dos Conimbricenses, o mestre – “principium dirigens”, o que dirige.»
Pinharanda Gomes («Os Conimbricenses»).
A genealogia lusitana de
Aristóteles
A
filosofia portuguesa é também uma aventura de fidelidade ao magistério de
Aristóteles. Aventura de fidelidade
significa que o ponto de referência do pensamento filosófico português tem
sido, no decurso dos séculos, a lógica de Aristóteles, e que, em relação à
filosofia aristotélica se dispõem, na sequência histórica e lógica, as teses, as
antíteses e as sínteses de pensamento das sucessivas gerações. De um modo
geral, a filosofia portuguesa reparte-se por aristotélicos, anti-aristotélicos
e conciliadores, os últimos dos quais
correspondem, com as óbvias rectificações causais, aos aristotélicos
platonizantes da medievalidade. O fenómeno tem equivalência na teologia, onde,
de um lado, há os tomistas, de outro, os escotistas e, a meio, os moderadores
ou ecléticos. A fidelidade a Aristóteles passa, já pela filosofia escolástica,
já pelo pensamento situado fora das instituições, e o justo conhecimento do
aristotelismo não é factível sem a prospecção das três escolásticas que
dialogaram na Hispânia. Há um aristotelismo arábico, cujo acme incarna no
pensamento de Averróis, um aristotelismo hebraico, que incarna em Maimónides, e
um aristotelismo cristão, o das Escolas. Se bem que estimado, porque lhes
facultara o acesso à obra do Estagirita, o aristotelismo árabe foi porventura
discriminado pelas Escolas. «A luta contra o islamismo não representa só um
feito da história política... A repugnância pelo extremo monoteísmo islâmico e
pela interpretação árabe do aristotelismo configuram-se nos documentos
verídicos do pensamento português. Nem a razão se aliena dos processos
gnósicos, sóficos e písticos, nem a fé deixa de persistir na variação entre os
graus da fenomenologia religiosa» (Álvaro Ribeiro, ob. cit., pág. 48). Análogo
juízo é adequado à consideração do aristotelismo hebraico, pois, se na relação
da filosofia com a apologia, o aristotelismo medieval serviu
ancilarmente as teologias judaica e árabe, é também verdade que ele serviu o
trinitarismo cristão. A predominância de Aristóteles é tal, que se chega a
postular a origem hispânica do organizador da Lógica. Lucas de Tuy disse-o
natural do Ocidente hispânico, e registou haver quem afirmasse ser ele oriundo
«de tierra de Portugal», saindo moço para a Grécia (General Estoria, parte IV). A genealogia lusitana de Aristóteles
não merece outro crédito para além do alegórico, enquanto concita a nossa
sensibilidade para a importância do mestre no pensamento ocidental e hispânico.
Árabes, judeus e cristãos tiveram-no por mestre comum, e as diferenças nos três ramos aristotélicos foram as introduzidas pela pística e pela dogmática, se bem que nenhum dos três ramos se haja libertado das tendências platonizantes, bíblicas, talmúdicas e alcorânicas. O aristotelismo latino, matriciado à Igreja, foi o que, na conjuntura renascentista, se implantou em definitivo no trânsito filosófico e teológico do pensamento português, servindo, por isso, de fonte à filosofia moderna. A Igreja, sobretudo mediante dominicanos e jesuítas, o sustentou; o Estado, mediante a ditadura positivizante do Marquês de Pombal o extinguiu das Escolas, determinando uma crise de identidade na nossa tradição filosófica. Praza embora a sub-repartição em vários períodos, uma perspectiva sintética é redutível a três grandes ciclos: o medieval, o renascentista e o decadente. O primeiro abrange todo o pensamento filosófico que vem desde o início cultural (anterior ao início político) da Nacionalidade até à fundação do aristotelismo conimbricense; o segundo vem desde os Conimbricenses à reforma pombalina da Universidade; o terceiro, vige desde então.
(In Pinharanda Gomes, Dicionário de Filosofia Portuguesa, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1.ª edição, 1987, pp. 26-27).
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