sábado, 25 de outubro de 2025

Elogio de Aristóteles

Escrito por Silvestre Pinheiro Ferreira




«Por um ofício assinado pelo Marquês de Pombal em 1773 as “Instituições de Lógica e Metafísica” do Genuense ou Genovesi foram aprovadas para textos nas escolas portuguesas. Em Ética seguia-se Heinécio. As cadeiras de Lógica, Metafísica e Ética constituíam o curso geral de Filosofia.

A Metafísica de Genuense foi perdurando até meados do século XIX. No entanto, os professores do Oratório afastavam-se por vezes dos textos oficiais. Assim, Pinheiro Ferreira afirma que foi “educado nos princípios de Aristóteles” princípios a que há-de procurar manter-se fiel durante toda a vida.

Nos fins do séc. XVIII e princípios do XIX “a metafísica papagueada pelo cediço Genuense ou Genovesi começava a cair em descrédito”. Herculano, diz-nos o Prof. Vitorino Nemésio, “fala com fundo engulho do Genuense”. Pinheiro Ferreira manifesta um profundo desprezo pelo “insignificante compêndio” do padre italiano e acusa-o de “entorpecer” ou “perverter” a nascente inteligência da mocidade portuguesa. Este discípulo dos oratorianos estava destinado a iniciar, poucos anos mais tarde, o movimento de reacção para expulsar do ensino secundário os manuais do Genuense.

(...) Desde que D. João V doara aos Oratorianos o hospício anexo à Igreja das Necessidades, eles ficaram com o encargo de ensinar as primeiras letras, Humanidades, Filosofia e Teologia.

Tinham os estudantes à sua disposição “numerosos e selectos livros”. A biblioteca do convento era “preciosa” “contendo Obras mais selectas e escolhidas, e tudo quanto há de melhor gosto em belas Letras”.

O profundo conhecimento da língua e da literatura clássica, como o testemunha a tradução do “Tratado das Categorias” e as numerosas citações do “Ensaio de Psicologia”, deve ter origem nas lições que recebeu no Oratório.

No domínio da filosofia mostrou um espírito independente, como veremos. O conhecimento que adquiriu em todas as disciplinas filosóficas durante o curso das Necessidades, aumentou depois profundamente. No entanto, “educado nos princípios de Aristóteles é particularmente no domínio lógico que veremos ter sido dominante a formação que recebeu. É natural que Pinheiro Ferreira considerasse definitiva e segura a lógica que aprendeu no Oratório. Dessa mesma lógica havia de dizer, anos mais tarde, Herculano: “Tenho as minhas dúvidas sobre a existência das revelações ab-alto; mas não as tenho sobre os poderes de uma cousa que me ensinaram os padres da Congregação do Oratório e que se chama Lógica”. Esta lógica era naturalmente a lógica aristotélico-escolástica.

Além da filosofia, revela Pinheiro Ferreira um conhecimento notável de alguns problemas teológicos e a formação cristã que recebeu mantém-se inabalável.»

Maria Luiza Cardoso Rangel de Souza Coelho («A Filosofia de Silvestre Pinheiro Ferreira»).






«Quando, em 9 de Fevereiro de 1773, na sequência da depuração à escolástica jesuítica e, por concomitância, ao aristotelismo segundo a escolástica católica, o Reitor reformador da Universidade de Coimbra propunha ao Marquês a adopção dos Compêndios de Lógica e de Metafísica do Genuense, para o curso do primeiro ano da Faculdade de Filosofia, tinha Silvestre Pinheiro Ferreira a idade de quatro anos. Nascera pois, a riscar o signo daquele que, em carta de 23 de Fevereiro de 1773, corroborando os textos decretais da reforma, escrevia ao Reitor reformador a propósito da sugestão acerca do Genuense e, na carta, achava, como único atributo, digno de Aristóteles, a expressão “filósofo tão abominável”, acrescentando que se deveria procurar que se tornasse esquecido nas lições de Coimbra. O facto não tem uma importância por aí além, se não se considerarem as fundas implicações que tal ojerisa acarretou para o corpo da pátria, e se não radicarmos a crise portuguesa em várias causas próximas, uma das quais bem pode ser esta do divórcio do aristotelismo, guia pelo qual secularmente se orientara a história da filosofia na escolástica portuguesa. Em todo o caso, respeitadas as teses e as antíteses, cumpre ainda provar se a erradicação do aristotelismo das escolas constituiu, ou uma salutar medida de profilaxia cultural, ou uma decisão imatura e imprópria, que se caracterizou por não querer o aristotelismo, mas que dificilmente adiantou algo sobre o que queria, uma vez sabido o que não queria.

Seja como for, Silvestre Pinheiro Ferreira viveu uma época de profundo e dissolvente anti-aristotelismo. Ele mesmo nunca abriu inteiramente as disponibilidades do seu espírito às influências magistrais do pensamento sistemático de Aristóteles, disperso e dispersivo que andou entre o idealismo alemão e o ecletismo francês, num tempo em que as doutrinas de Vítor Cousin, e do ecletismo espiritualista em geral, beneficiavam de certa e por vezes exagerada aceitação nos cursos universitários que, destituídos de uma magistratura filosófica sistemática, se sujeitavam às ondas de opinião filosófica (o movimento cultural com seus modismos epocais), transmitidas pelas publicações, e pela natural sucessão de diferentes professores, cada um participando do modismo próprio da sua geração. No entanto, um juízo prévio, melhor, um pré-juízo, indica uma acentuada propensão para o sistema na obra de Pinheiro Ferreira, e seria curioso indagar até que ponto a sua ligação a várias fontes filosóficas o não distraiu da genealogia aristotélica onde, culto como era, e inteligente como se afirmou, poderia ter encontrado a chave das horas com que abrir o caminho da originalidade.

Mas... quanto dissemos é condicional e passado inverificável, o que nos obriga a pôr de lado a lúdica conjecturística, para enumerar um ou dois pontos onde situar a tradução que Silvestre Pinheiro Ferreira efectuou das “Categorias” do Estagirita, estando no Brasil.

Se a chamada alta cultura não queria Aristóteles, apesar das reacções suscitadas após o afastamento do Marquês, mas infrutíferas, uma vez que o escol nacional fora educado nesse carisma anti-aristotélico, quem se atreveria a assumir posições prestigiantes para a filosofia aristotélica, pelo menos na Metrópole?

Ainda que educado pela Congregação do Oratório, Pinheiro Ferreira já não foi vítima frágil dos compêndios genuenses, pois, desde os fins do século XVIII que o italiano começara a cair em descrédito, o que de modo nenhum significou que, verificado o erro, a inteligência institucionalizada decidisse renovar o magistério aristotélico. O que na verdade acontecia era o surto do idealismo alemão e do espiritualismo francês, as vagas europeias que se precipitavam sobre um país que, na arte de filosofar, arquitectara superior tradição escolar.

Pinheiro Ferreira cita com desdém os compêndios e a influência do Genuense, e confessa que fora educado nos princípios de Aristóteles. A este facto teremos de atribuir uma das principais razões pelas quais, vendo-se necessitado de traduzir autores de filosofia, deu preferência a Aristóteles e não a outro, numa época em que, apesar das transformações e dos modismos culturais, o aristotelismo não refizera inteiramente o que, durante séculos, para judeus, cristãos e árabes, surgira, ou parecera, como um prestígio inquebrantável.

Os trâmites da Guerra Peninsular levavam Pinheiro Ferreira, em 1809, para o Brasil. Quatro anos depois de chegado ao Rio de Janeiro, o filósofo via-se em dificuldades materiais, de onde recorreu ao ensino como possível resolução de um problema de rendimentos. A Corte foi o lugar escolhido para a regência de um curso de filosofia.

De como os acontecimentos decorreram, diz o filósofo: “azares da fortuna, cuja relação pertence a outro lugar, me levaram a consagrar à instrução da Mocidade os momentos despreocupados dos deveres próprios do emprego, que exercito no serviço do Estado”. Conta, a seguir, como se resolveu “a anunciar, nesta Corte, um Curso de Prelecções Filosóficas sobre a Teoria do Discurso e da Linguagem, a Estética, a Diceósina, e a Cosmologia”.

No Rio de Janeiro deveriam escassear, então, os recursos bibliográficos, o que se deduz da confissão do autor, segundo a qual a falta de um “livro elementar” se opunha à execução do seu plano de instrução da mocidade. Por esse motivo, à medida que as lições iam sendo dadas, eram tornadas públicas através da Imprensa Régia, de onde o livro, constituído por suas lições, correr sob o título genérico de “Prelecções filosóficas”. Não se pode testemunhar com garantia o número de lições cumpridas pelo filósofo na Corte, mas existe um volume que inclui trinta prelecções, o da Biblioteca da Universidade de Coimbra, enquanto existe outro que integra vinte e duas (o da Biblioteca Nacional). Foram publicadas no Rio de Janeiro, no ano de 1813, com licença do Paço.

As lições sobre a filosofia aristotélica, melhor, sobre as “Categorias”, começaram na nona prelecção. Tendo exposto as suas ideias filosóficas, e tendo mostrado que elas diferiam um pouco das teses dos Escritores anteriores, decide iniciar a exposição das ideias dos principais filósofos.

Se por obediência às ideias daquele em que fora educado, se por necessidade de revisionar a fidelidade portuguesa ao aristotelismo, num país para todos os efeitos novo, longe dos defeitos metropolitanos, onde seria possível uma nova experiência na arte de filosofar, é dúvida sobre a qual, por ora, se torna difícil tomar uma decisão. Mas, fosse como fosse, Silvestre Pinheiro Ferreira entendeu dever começar por Aristóteles, do qual traçou o elogio que segue:

“Seria impróprio deste lugar o aplicar-me a demonstrar-vos, que Aristóteles, pela vastidão do plano, e sublimidade da execução, que se fazem admirar nas suas Obras, assim como é incomparavelmente superior a todos os Filósofos, cujos Escritos nos são conhecidos, assim também deve ser o primeiro que figure nesta espécie de Biblioteca Filosófica, com que iremos acompanhando o Curso destas Prelecções. Só depois de havermos analisado os Tratados, que nos restam daquele grande Filósofo, e os termos comparado com o que depois dele até agora sobre os mesmos objectos se tem escrito; é que de um rápido golpe de vista poderei convencer-vos da justiça, com que acabo de tributar-lhe as homenagens, que o nosso século amigo das luzes lhe não teria negado, se a estulta idolatria de absurdos Escolásticos dos dois séculos precedentes não tivesse indisposto os ânimos até contra o nome de Aristóteles, como aquele em cujas Obras eles protestavam haverem copiado os delírios das suas desvairadas fantasias.”

Numa atitude que parece comedida, Pinheiro Ferreira distingue entre o valor da filosofia aristotélica e o preconceito que efectivamente existia, não propriamente contra ela, mas contra o que, dela, a escolástica teria construído. Parece de admitir que Pinheiro Ferreira visava, portanto, transferir a antipatia anti-Aristóteles para contra os dois séculos de escolástica. Dirigindo para esta os suplementos afectivos dos ouvintes do Curso, estava em posição de recriar uma atmosfera de abertura e de simpatia para com Aristóteles? Eis quanto já não interessa deveras saber, pois se releva como factor principal do ensejo, o estar ele tentando uma experiência nova, em novas terras, com um filósofo que o século europeu das luzes tinha dado por arrumado, na mesma prisão onde metera os escolásticos.

Depois de considerar sobre as obras aristotélicas, Pinheiro Ferreira defende-as das calúnias do tempo, assinalando a principal importância do manual da arte de filosofar que o tratado das “Categorias” demonstra constituir, no que deveras se opõe aos autores da “Arte de pensar” que acusavam de desarrazoada aquela obra de Aristóteles, de tanto tomando Pinheiro Ferreira o ensejo de ir mais além, para emitir um juízo desfavorável sobre aqueles autores, dando o seu estudo como perigoso, e denunciando Destutt de Tracy que, apesar de ter atacado também a lógica aristotélica, era ainda mais notável por “não lhe ser a Filosofia devedora do descobrimento de uma só verdade”.

O estudo das “Categorias” ocupou, pelo menos, as lições entre a nona e a décima terceira, sendo admissível que o curso se processava, a partir de Janeiro de 1814, em face do texto do tratado aristotélico que, segundo se deduz da “advertência”, completara em 31 de Dezembro de 1813.»

Pinharanda Gomes («Apresentação», in Aristóteles, Categorias, tradução de Silvestre Pinheiro Ferreira, Guimarães Editores, 1982).





ELOGIO DE ARISTÓTELES

 

Seria impróprio deste lugar o aplicar-me a demonstrar-vos, que Aristóteles, pela vastidão do plano, e sublimidade da execução, que se fazem admirar nas suas Obras, assim como é incomparavelmente superior a todos os Filósofos, cujos Escritos nos são conhecidos, assim também deve ser o primeiro que figure nesta espécie de Biblioteca Filosófica, com que iremos acompanhando o Curso destas Prelecções. Só depois de havermos analisado os Tratados, que nos restam daquele grande Filósofo, e os termos comparado com o que depois dele até agora sobre os mesmos objectos se tem escrito; é que de um rápido golpe de vista poderei convencer-vos da justiça, com que acabo de tributar-lhe as homenagens, que o nosso século amigo das luzes lhe não teria negado, se a estulta idolatria de absurdos Escolásticos dos dois séculos precedentes não tivesse indisposto os ânimos até contra o nome de Aristóteles, como aquele em cujas Obras eles protestavam haverem copiado os delírios das suas desvairadas fantasias.

A primeira de entre aquelas Obras, que nos mostrará a sem razão destas calúnias é o seu tratado das Categorias ou da Distribuição Sistemática das palavras, a qual serve de base a todas as Ciências em geral, mas particularmente à Gramática filosófica de qualquer língua, e aos princípios elementares da Arte de pensar.

Por Categorias entende Aristóteles qualquer daqueles grupos denominados classes, ordens, géneros, espécies, etc., em que (...) os objectos da nossa observação se distribuem, segundo as qualidades, que acontece terem, de comum uns com os outros.

...À medida que qualquer Ciência se aproxima da sua perfeição, a Nomenclatura, que lhe é própria, se aumenta e enriquece com exacta e gradual proporção à massa dos nossos conhecimentos; porque seria contraditório o dizer-se de alguém que é pessoa de grandes luzes e conhecimentos, porém estes confusos, e sem ordem nem sistema: ora não podem ser distintas as ideias se não forem designadas por distintos nomes: nem podem estar arranjadas em ordem e sistema se não for com o socorro de expressões, que fixem e recordem no nosso ânimo os caracteres de classe, ordem, género, etc., sem o que não se pode conceber sistema nem arranjo.

Lembra-me ocorrer neste lugar a uma dúvida, que talvez se vos tenha já oferecido, e que importa em todo o caso dissipar. Quando eu digo no § precedente, e nos que nele vão citados, que as palavras são indispensáveis para distinguirmos as nossas ideias e para executarmos com elas os nossos raciocínios; deve-se notar, que as palavras entretanto são necessárias para ambos aqueles fins, enquanto são sinais por convenção equivalentes aos objectos, em todas as operações que sobre eles tem de exercer o nosso espírito: e além de equivalentes, pela sua simplicidade nos tornam possíveis aquelas operações que sem o seu socorro seriam as mais das vezes impraticáveis. De tudo o que se segue, que quanto a este respeito dizemos palavras, se deve entender de quaisquer outros sinais das nossas ideias, tais como os gestos, a escultura, a pintura, jeroglíficos, e a escrita.

Isto assim advertido, tornemos ao nosso objecto. Não se pode expender, dizia eu, o arranjo e sistema dos nossos conhecimentos senão expondo o sistema da correspondente Linguagem. E por isso é que esta obra de Aristóteles, destinada a classificar os conhecimentos humanos nas suas mais abstractas e genéricas divisões, classifica as expressões mais gerais e abstractas, de que os homens se costumam servir: persuadido aquele incomparável Filósofo, que ficariam classificados tanto os objectos, como as ideias que deles temos, se se classificassem pelos nomes, e expressões, que os representam.

É pois desacertada a crítica que os Autores da Arte de Pensar fazem desta obra de Aristóteles, dizendo: «que as Categorias não são fundadas na razão, nem na verdade; mas que antes são absolutamente arbitrárias: nem têm outro fundamento, senão a imaginação do seu Autor: e que cada qual tem igual autoridade, que ele, para as distribuir segundo a ordem de suas ideias».

Porém não contentes aqueles Autores de assim haverem tratado de arbitrárias as Categorias de Aristóteles, acrescenta: «Que o estudo delas é perigoso, enquanto acostuma os homens a contentarem-se com palavras e a imaginarem, que têm conhecimento de todas as coisas, entretanto que apenas sabem uns nomes arbitrariamente aplicados aos objectos: e que deles nenhuma ideia clara nem distinta apresentam ao espírito». Juízo este que um Moderno (Destutt-Tracy) não só aprova, mas diz: «que lhe parece de um acerto, e de uma sagacidade admiráveis».

Quanto a Destutt-Tracy bastará dizer, que não obstante não lhe ser a Filosofia devedora do descobrimento de uma só verdade, pois na sua Obra (...) nada mais se encontra do que doutrinas vulgares diluídas em três grandes volumes de inúteis frases: contudo a cada passo se apregoa a si mesmo pelo primeiro que tratou dignamente esta Ciência; porque no seu conceito quantos sobre ela escreveram, ou ignoravam a matéria, ou apenas pressentiram muitos de longe as verdades de que estava reservado para ele o formar pela primeira vez um corpo de doutrina.

Quem assim se elogia a si próprio, tem a íntima consciência de não merecer os louvores dos outros.

Quanto aos Autores da Arte de Pensar, posto que eles se dissessem reformadores da Filosofia, nada menos eram que Filósofos; pois ignoravam que as Ciências nada mais são do que o conhecimento do valor das palavras e frases, que constituem a particular Nomenclatura de cada uma delas.

...Foi portanto ignorância do que é Ciência, o que induziu os Autores da Arte de Pensar a censurarem o presente tratado de Aristóteles sobre as Categorias, «como Obra de uma Ciência vã e perigosa, porque só nos dá conhecimento de palavras e não de objectos». Como se as Ciências tivessem outro modo de nos darem conhecimento dos objectos, que não seja pelo das palavras e frases de que a Nomenclatura de cada uma delas se compõe. (Prel., 9.ª números 312 a 322 e 324).

(In Silvestre Pinheiro Ferreira, Introdução e Selecção de Pinharanda Gomes, Guimarães Editores, Lisboa, 1977, pp. 55-58).





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