Escrito por Amorim de Carvalho
«Não está ainda perfeita a história do positivismo em Portugal, desde a primeira menção do nome de Augusto Comte nos escritos dos publicistas liberais e socialistas, monárquicos e republicanos, antes de o sistema filosófico ter sido exposto e divulgado pelas instituições intercambiais de cultura. Escritores racionalistas como Amorim Viana, Cunha Seixas e Sampaio Bruno estudaram, certamente, o Curso de Filosofia Positiva, embora se opusessem ao Sistema de Política Positiva. Certo é, porém, que ao nome de Augusto Comte não podemos deixar de ligar o nome de Teófilo Braga, mestre inolvidável de professores, escritores e jornalistas que alertaram de unicidade a alma nacional com a confiança nas virtudes do povo português e com a esperança de que um novo sistema de educação seria capaz de fazer passar o espírito da potência ao acto.
A tese de que o positivismo português foi historicamente dependente do positivismo brasileiro não está ainda suficientemente fundada ou demonstrada. Em 1870, por um manifesto célebre fundou-se o partido republicano brasileiro, o qual só adoptou mais tarde os princípios positivistas em consequência da doutrinação de homens ilustres como Benjamim Constant, Miguel Lemos e Teixeira Mendes. A República Brasileira foi proclamada a 15 de Novembro de 1889, mas as notáveis leis do seu governo provisório oferecem impressionantes semelhanças com a letra e o espírito das leis do governo provisório da República Portuguesa, proclamada em 1910.
É
hoje evidente que o positivismo foi um factor constitutivo da ideologia
republicana em Portugal. Não se tem prestado maior atenção a que o positivismo
também exerceu poderoso fascínio sobre a mentalidade dos políticos monárquicos,
absolutistas e constitucionalistas, pelo que formou na opinião pública, –
parlamentar, partidária e jornalística, – a premissa doutrinal que, ligada à crítica
diária dos acontecimentos políticos, havia de exigir a conclusão necessária,
previdente e conveniente de abolir a monarquia dinástica. A lei dos três estados
era prudentemente invocada para a instalação definitiva do cientismo, – sem Deus
nem religião, – de modo a apartar os pensadores da obra filosófica de Augusto
Comte, isto é, da obra realizada na ética, na moral e na política.
O
positivismo serviu também, aos escritores republicanos e monárquicos, de barreira
contra a propagação das doutrinas socialistas, acolhidas por Antero de Quental
e por Oliveira Martins, como de travão para o movimento operário, obreiro,
ouvrier, o qual sagrava acima de tudo o trabalho manual e mecânico,
contradizendo o espírito cooperativo de todas as profissões hierarquizadas na
empresa própria da indústria moderna. Teófilo Braga, apesar do valioso e
gigantesco labor de aplicar os métodos positivistas ao estudo étnico,
folclórico, literário e histórico do povo português, não foi personalidade
capaz de impedir que a desnacionalização cultural se projectasse na
constituição política, redigida em 1911 sem ordem nem progresso. Tão certo é que,
no nosso país, os partidos políticos mais parecem secções portuguesas de
associações internacionais, lutando em prol de exóticas e peregrinas
ideologias.
Muitas vezes discuti com o escritor Amorim de Carvalho o difícil problema da originalidade da cultura portuguesa. Recordo, sem ressentimento, as palavras amargas da sua polémica ardente, beneficiei das suas objecções pessimistas mas fundamentadas, e respeitei com silêncio honesto a liberdade de opinião em quem fala e escreve por amor da verdade. Cumpre-me ser grato para com um interlocutor leal, extraindo nesta página a oração de saudade por quem foi um dos mais ilustres publicistas portugueses.»
Álvaro Ribeiro («Augusto Comte»).
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Sampaio Bruno |
«[Sampaio]
Bruno denuncia com aguda sagacidade que o problema da metafísica não se põe
apenas em relação aos sistemas que, segundo a crítica de Augusto Comte, Littré
e discípulos, ultrapassam indevidamente a relação entre a razão e o real dado,
única apta a constituir o saber científico e a possibilitar uma filosofia
segura, certa e verificável. A tese de Bruno é formulada assim no seu núcleo. O
saber positivo tem pressupostos, a ciência implica originariamente a metafísica
como seu fundamento, implica-a originária e necessariamente, e isso nada tem
que ver com o facto de os sábios ou os filósofos serem ou não metafísicos,
cultivarem a metafísica ou não a cultivarem [A ideia pode esclarecer-se por analogia, notando, por exemplo, que o homem permanece um ser religioso mesmo quando não pratica conscientemente a religião; ou, noutro exemplo, que o homem permanece "animal estético", sujeito ou objecto de actos e juízos estéticos, mesmo quando não é artista criador, ou até quando conscientemente desdenha a arte]. É o que prova não só,
historicamente, a origem da ciência, no que os positivistas atentam, mas também
a origem de cada hipótese ou teoria científica singularmente, coisa a que não
atendem.
Não
pôde Bruno alcançar neste ponto, como quase nunca, toda a nitidez do
pensamento. Denuncia, entretanto, com as suas voltas e contravoltas e
exemplificações complexas, a moderna falácia enciclopedista e positivista, hoje
em crise, falácia segundo a qual o saber e o conhecimento, uma vez constituídos,
permaneceriam e se transmitiriam tais quais. Os positivistas confundiram facto
e fenómeno e pela atenção ao saber feito desdenharam o saber em seu fazer-se e
refazer-se incessante.
O
chamado pensamento positivo pretende, entretanto, constituir-se eliminando
aquilo de que provém: a metafísica. Este é o sentido da chamada lei dos três estados,
segundo a qual as fases de pensamento teológico e metafísico estariam
preteridas, entrando a nova humanidade, sob o influxo da ciência, na definitiva
e autêntica fase positiva. Bruno não nega todo o valor da significação cultural
e histórica da lei, mas restringe-lhe o alcance. Argumenta no sentido de mostrar
que a mesma necessidade especulativa, origem da teologia e da metafísica,
subsistiu e subsistirá necessariamente no homem através das mais variadas
formas de cultura e civilização. O positivismo é uma restrita filosofia
cultural, uma filosofia transitória, não exprime o ser humano no que este tem
de permanente e inalienável em suas perplexidades e interrogações.
O nosso filósofo vai mostrá-lo com a própria evolução do positivismo. Constitui-se este originariamente numa bem humana e mediana pretensão de imparcialidade entre as posições extremas do racionalismo e do empirismo, do teísmo e do ateísmo, do espiritualismo e do materialismo. Movido, porém, pela sede de total inteligibilidade e compreensão deste ser metafísico que é o homem, acaba sempre o positivo filosofar pela aceitação insensivelmente contraditória de uma das formas da metafísica que supusera possível excluir: o positivismo abre caminho ao materialismo, o agnosticismo torna-se ateísmo. Desta maneira negando os seus fundamentos, demonstra o próprio positivismo a inevitável necessidade que tem o homem de explicar não só o “como” mas o “porquê”».
José Marinho («Estudos sobre o Pensamento Português Contemporâneo»).
«Indispensável
será escrever a "História do Positivismo em Portugal" quando se quiser estudar,
desde as causas remotas aos efeitos próximos, a transformação mais
descaracterizante do pensamento português. A vigência do positivismo,
sucessivamente refutado mas incessantemente renovado, é de efectividade
inegável; o sistema não deixou de dominar o ensino público e de exercer
opressão na mentalidade dos nossos contemporâneos; enfrenta um perigo o
escritor mais livre que ouse propor de novo as nobres directrizes da tradição
especulativa.
Fosse
positivismo somente a obra de Augusto Comte, ou a influência que dela advém, já
não se poderia facilmente encontrar um pensador capaz de defender integralmente
a doutrina de um século passado. Mas o positivismo é muito mais amplo: dentro
dele se encontram, talvez inconscientemente, muitos dos que refutam as
precárias teses que Augusto Comte propagou.
A
entrada do positivismo em Portugal foi cautelosa e discreta, mas segura,
evitando os adeptos que na forma patente de sistema fosse logo reconhecido o
factor de oposição a algumas características do génio português. Teófilo Braga
relata nos termos seguintes o advento do positivismo:
“O
seu único ponto de apoio manifesta-se espontaneamente nas escolas científicas;
é assim que antes de o nome de Augusto Comte ser citado como filósofo,
penetrava em Portugal a sua orientação, reflexamente, na Politécnica de Lisboa
pelo ‘Curso de Geografia Analítica’ (que anda divulgado em cadernos
litografados), na Politécnica do Porto pelo ‘Curso Mecânica’ de Freycinet; nos
cursos médicos estudavam-se a obra de Blainville e de Charles Robin, chegando até às disciplinas sociais e literatura escritos de Stuart Mill e de Littré. Pela primeira vez em 1877 apareceu em
Portugal um esboço de doutrina de Comte nos ‘Traços gerais de Filosofia
positiva’ [Teófilo Braga, As modernas
ideias na literatura portuguesa, Porto, 1892, II, 414]”.
Em
1878 funda-se no Porto a revista “O Positivismo” e no mesmo ano surge a
“Revista de Teologia”, publicada por alguns lentes da Faculdade de Teologia da
Universidade de Coimbra. O magistério teológico reconhece, então, a necessidade
de combater a infiltração positivista; mas, como sempre, à defesa corresponde
uma atitude retrógrada e retardatária.
Facto
era que o Curso Superior de Letras de Lisboa, instituído por carta de lei de 8
de Junho de 1859, tinha acolhido no seu corpo docente alguns simpatizantes do
positivismo. De ano para ano acentuara-se a orientação positivista nas
disciplinas predominantes – nas disciplinas de história ou historicamente
ensinadas, – chegando por fim a anular a resistência dos professores que não
prestavam culto à Humanidade.
A
influência da Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra ia decrescendo,
circunscrevia-se quase só aos sacerdotes, e não podia concorrer com a
repercussão das obras modernas de publicistas notáveis, justamente acolhidas no
meio cultural que ansiava pelo fim da crise liberalista.
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O
positivismo foi pouco a pouco invadindo todo o ensino superior, e do que foi o
seu império pode servir, como testemunho, este apontamento de Ricardo Jorge:
“Numa
lição de fisiologia vi eu um estudante deveras talentoso, a propósito de suco
gástrico ou coisa assim, enxertar a classificação comtiana das ciências e a lei
dos três estados, sem espanto de ninguém. É conhecido o caso daquele professor
da Faculdade de Direito que gastava o ano lectivo inteiro a ler o Comte da
cadeira abaixo, como qualquer lente de véspera, antes do advento pombalino, a
glosar o Aristóteles ou o Avicena” [Ricardo Jorge, Contra um plágio do prof. Teófilo Braga, Lisboa, 1918, pág. XXXV].
Não
faltou ao positivismo uma quase coroação oficial e legal: efectivamente, num
país em que as faculdades universitárias e as escolas profissionais enfileiram
paralelamente às ciências da classificação comtiana, começando pelas
matemáticas e acabando pelas sociológicas, pode considerar-se estabelecido e
consolidado o positivismo. A Universidade de origem e estrutura eclesiásticas
transforma-se numa politécnica de intenção económica.
O
positivismo não sairia dos círculos de escol nem interessaria várias gerações,
se fosse apenas propagado em revistas de carácter científico, sujeitas às
críticas dos doutos e à ingratidão do progresso; mas encontrou o melhor aliado
na literatura realista, que lhe permitiu atrair os leitores de romances e
perdurar com o novo gosto do público. Efectivamente, quando a elegância da
frase perdoa a afirmação leviana, quando a lúcida ironia desculpa o paralogismo
bastardo, quando a distracção momentânea quebra o jeito de reflectir, cai sobre
as almas, o crepúsculo que consente a profanação do que é mais sagrado, o
aviltamento do que é mais livre: basta ridiculizar os personagens, salvando as
instituições que eles indignamente representam, ou ridiculizar as instituições
sem criticar os princípios que elas corporizam; isto é, basta descer à comédia,
porque sempre a comédia encontrará a aplaudi-la as multidões inconstantes e a
garanti-la a moral firme e plebeia.
É
assim explicável o êxito de “As Farpas “ numa sociedade que abolira o preceito
hierárquico, segundo o qual ninguém pode ser julgado senão pelos seus pares, e
instaurara o preceito igualitário, segundo o qual todos se devem sujeitar à
opinião geral; além disso, perante muitos exemplos de um clero menos culto mas
interessado na política e de uma fidalguia degenerada que perdera a noção do
bem público, difícil seria mostrar, ou demonstrar, a excelência do Sacerdócio e
da Nobreza.
A
crítica social, atacando tipos e denunciando casos, abusava de um recurso fácil
ao provocar a gargalhada espontânea, mas não previa que, chegado o momento
sério da reflexão, emudecia o público num duradouro pessimismo e enfraquecia
assim a vontade nacional; essa crítica, resultante de uma cultura estranha,
consciencializando os nossos defeitos e repelindo para o inconsciente as nossas
virtudes, definhou os orgãos de compreensão das tradições nacionais. O
simbolismo da liturgia e o heroísmo da cavalaria (complexo painel que para ser
compreendido, exige invulgar inteligência da origem mítica e da eficiência
ritual) apareciam como ridículos, portanto indignos de perviver na sociedade
industrial e capitalista, amante fanática da ordem e crente na incessabilidade
do progresso.
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Teófilo Braga |
A
expansão do positivismo, muito deve à publicação de “As Farpas”, especialmente
no período em que passaram a ser redigidas somente por Ramalho Ortigão. Eça de
Queirós estranhou e explicou a desqualificação de “As Farpas”, num artigo que
Teófilo Braga cita e utiliza para concluir triunfalmente:
“Isto
é rigorosamente verdadeiro; assistimos a esta transfiguração, e Ramalho Ortigão
deve-o à forte disciplina mental recebida no ‘Curso de Filosofia Positiva’ de
Augusto Comte; foi por essa filosofia que ele coordenou o que lhe faltava para
uma educação enciclopédica tão necessária na especialização das ciências
modernas” [L. c., II. 317].
A
literatura realista auxiliou a filosofia positivista, é certo; muitas das obras
que ainda cativam o agrado do público transmitem de geração a geração o gosto e
o pendor para a explicação sociológica; mas a criação literária, fiel às
origens de que provém e às raízes que a alimentam,
não podia deter-se numa disciplina voluntarista e minorativa.
O
próprio realismo não satisfazia as exigências de Teófilo Braga que,
perseverante e tenaz, assim pontificava no “Programa dos trabalhos para a
geração moderna”:
“A
arte e a literatura terão a sua parte negativa, atacando as instituições
anacrónicas, e na sua missão positiva definindo o estado normal para que
avançamos; em vez de atacar a família, ou o casamento, ou o pudor ou o dever,
ou qualquer fatalidade orgânica, como se vê no realismo, há a demolir o
clericalismo, o monarquismo, o militarismo, o argentarismo, e outras muitas
tradições e desigualdades que embaraçam a legítima actividade humana” [Loc.
cit., II, 302].
Tudo
quanto fosse tradicional e hierárquico deveria ser suprimido a favor do
contratual e igualitário; a organização política haveria de ser renovada de
analogia com a sociedade anónima e comercial; a crise do liberalismo
aproximar-se-ia da solução extremista.
Foi
proclamada a República; e o governo provisório, sob a presidência de Teófilo
Braga, de certo homologou a vitória do positivismo ao transformar em Faculdades de
Letras (!...) o Curso Superior e a Faculdade de Teologia.
É
fácil, porém, verificar que o positivismo vitorioso não foi o de Augusto Comte;
não estava na índole dos políticos portugueses fazer a revolução de harmonia
com um sistema filosófico; e para evitar, pois, falsa estreiteza na
interpretação de um movimento cultural, importa determinar o que
verdadeiramente se entende por positivismo.
O
positivismo consiste, essencialmente, na substituição da teologia pela
sociologia no grau unificador de classificação das ciências. A metafísica
representa um momento de indecisão, necessariamente transitório, na evolução do
pensamento humano; não é justo, portanto, caracterizar o positivismo pelo
aspecto negativo da oposição à metafísica. A substituição da teologia pela
sociologia altera profundamente a estrutura dos sistemas filosóficos, e de
certo modo anula tudo quanto estava pensado acerca do critério da verdade e da
finalidade da arte. Qualquer que seja o tipo de sociologia convenientemente
adoptado, provenha ele em última instância, de Comte ou de Marx, – para citar
os dois pensadores do século XIX que mais contribuíram para a “transformação do
mundo”, – certo é que a sociologia só pode brilhar na escuridão do ateísmo. Não
há compromisso estável, verdadeiramente equilibrado entre a sociologia e a
teologia: uma deixará, fatalmente, de estar à altura de ciência.
O pensamento de Sampaio Bruno, como o de outros filósofos portugueses contemporâneos, desenvolve-se em reacção ao ambiente positivista.»
Álvaro Ribeiro («Sampaio (Bruno)»).
«Todo
o pensamento de Bruno é uma negação do sobrenatural, mesmo quando ele fala em
anjos e em profecias. Para Bruno o “anómalo” da profecia não quer dizer
sobrenaturalidade, mas revelação, e revelação – nunca o esqueçamos – quer dizer
indução, noção, razão, etc., extraordinariamente e só extraordinariamente acima do vulgar; acima deste,
mas dentro da natureza deste, penetrando, depurando e avançando o espírito.
Temos aqui, até, uma crítica brunina ao profetismo bandarriano ou
sebastianista, lunático e sem comprovação, e que Bruno analisa com cuidado de
bem distinguir a positividade entre os mitos e as ficções. E tal positividade
está em que o sebastianismo, reduzido ao período mentalmente são duma época "naturalmente compatível com a possibilidade da humana existência do rei D. Sebastião", falhou como profecia. Falhou pela impossibilidade do facto: D. Sebastião não apareceu numa manhã de nevoeiro durante todo o tempo em que
poderia sem milagre ter aparecido;
daí em diante o sebastianismo, para Bruno, é uma vesânia, porque faltam à
profecia as possibilidades positivas, isto é, naturais, da corroboração; o seu
sentido supostamente sebastianista e de impossível revelação sobrenaturalista
(para Bruno não há o sobrenatural, há o “hiperfísico” fora da redução
científica), é “aquela crença insensata que nos fixa, para deprimente nos
catalogar, Chamfort”. De análogo modo, Lúcio de Azevedo havia de referir-se ao
sebastianismo.
Este
messianismo sebástico é um dos quatro tipos que podemos assim resumir: 1.º
Messianismo religioso propriamente dito ou de crença na salvação por um enviado
divino (o Messias); 2.º Messianismo histórico-lendário ou crença na salvação
pelo regresso sobrenatural dum herói desaparecido (D. Sebastião); 3.º
Messianismo político-social pessoalista ou crença na salvação pelo aparecimento
dum homem superior (Afonso Costa, Sidónio Pais, Salazar); 4.º Messianismo político-social
impessoalista ou crença na salvação pelas próprias forças éticas da Humanidade
(a República em Portugal, para Bruno). Como se vê, trata-se duma larga
fenomenologia social da esperança, cuja autenticidade religiosa se vai diluindo
até não conservar mais do que a palavra mística – Messianismo – e ser uma
esperança mais ou menos reflexiva. O messianismo de Bruno é anti-religioso,
porque não tem qualquer religião; é anti-sebástico, porque não crê no
sobrenatural; é anti-pessoalista, porque não crê nos homens superiores. Só crê
na Humanidade como força ética colectiva.
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Sidónio Pais derrota Afonso Costa |
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Oliveira Salazar |
Creio que fui eu o primeiro a impugnar a ideia tão extraordinariamente generalizada, mas sem bases possíveis, de que Bruno era sebastianista ou um messianista de feição sebástica, isto é, esperando a chegada providencial duma redenção ou dum redentor determinados pelos poderes sobrenaturais. O sebastianismo é constantemente alvo de motejos e sarcasmos de Bruno, que se recusa, contra Oliveira Martins, a aceitá-lo como “expressão da idiossincrasia moral da gente portuguesa”. Positivamente, distingue, pois, entre “sebastianismo-sebastianismo” (para empregar uma expressão sua) que é profecia louca irrealizável, e sebastianismo-messianismo, ou melhor, político-social, que é (assim concorda com Weill) a crença no fenómeno universalista do progresso moral humano e grande esperança do homem na Humanidade (onde concorda com Augusto Comte). Seja, mesmo, no impulso duma expressão nacional ou étnica, desde que esta não se mostre implicante, como, por exemplo, se mostrou implicante o messianismo eslavo desse “semi-alienado”, “génio eslavo”, que foi Wronski. “O Messias – escreve ironicamente – não apareceu até hoje em dia, suponho eu. E comigo alguns incorrigíveis cépticos que ao messianismo continuam a preferir o racionalismo, ao herói a ideia, e à veneração pelos homens o culto dos princípios”. É um messianismo sem Messias pessoais e sem sobrenaturalidade. Relações, que Bruno seriamente definisse, dum messianismo com o paracletismo e com o sebastianismo sobrenaturalista, e influência do mistério da Santíssima Trindade na filosofia portuguesa que Bruno tivesse surpreendido admiravelmente, – são coisas para que não encontro texto abonador nos livros do filósofo [cf. Álvaro Ribeiro, Apologia e Filosofia, pág. 50]. O seu messianismo tem um sentido essencial e universalmente sociológico e impessoalmente humano, como o de Comte. Já vimos como Bruno, contemporaneamente com o positivista Paul Ritti, chegou a uma sociologia cósmica cujos germes se contêm naquele grande pensador francês, que a espécie humana sintetiza e manifesta no mais alto grau. Do universal, do transnacional messianismo (desautenticizado, pois, para um sentido místico), de que “o vidente representativo fora Victor Hugo” (“Um dia... e o mundo...”), resultará a paz e a fraternidade humanas. É toda uma crença no próprio princípio ético da humanidade, crença no “progresso”, como em Comte, crença na “força desse misterioso elemento histórico que se ajusta aos acontecimentos visíveis”. A interpretação que Álvaro Ribeiro dá a este passo é inteiramente alheia ao texto e contexto da Ideia de Deus, não resistindo ao estudo comparativo desse livro com os outros de Bruno. “Dissipe-se a nuvem que encobre o herói – diz Bruno. – O herói não é um príncipe predestinado. Não é mesmo um povo. É o Homem”. É, também, o profetismo natural que se encontra nas revelações do Inconsciente de Hartmann; e Bruno o compreende, ao impugnar a revelação de tipo individualista ou sobrenatural desse outro profetismo, esotérico, “que cuida possuir integralmente o absoluto” quando a revelação pertence à positividade do processo cósmico: "De certo – diz Bruno –; e aqui se pode explicar a interpretação do consciente pelo estímulo obscuro da subjacência do inconsciente. Conformemente o faz para Kant e para Hegel, por forma maravilhosa, Eduardo Hartmann nos primeiros – e magistralíssimos – capítulos de introdução ao seu sistema filosófico. Sob idêntico critério orientando-nos, apliquemos a mesma intuição ao fundador do positivismo... Aludimos, naturalmente, à revelação da religião humana de que Comte era o pontífice". Não se esqueça este passo significativo.»
Amorim de Carvalho («O Positivismo Metafísico de Sampaio Bruno»).
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Sampaio Bruno |
«Sampaio Bruno opõe-se ao dualismo da Razão e da Fé, que constitui a essência da Escolástica medieval, e demoradamente critica o dualismo da Matéria e do Espírito, que caracteriza a filosofia moderna; e assim, contraditando os dois estilos clássicos da filosofia europeia, revela a sua simpatia pelos sistemas que se desenvolvem em três momentos distintos da ideia absoluta.
Inevitavelmente
tivemos de aludir ao sistema de Hegel. Mas já que a aproximação foi inevitável,
vale a pena aproveitar a oportunidade para enunciar um problema que interessa à
história da cultura: – Porque teria sido mais fácil aclimar, em Portugal, o
sistema de Comte do que o sistema de Hegel? Porque teria sido que Hipólito
Taine e Teófilo Braga, na juventude seduzidos pelo pensamento hegeliano, na
adulta idade subordinaram o valor dos seus trabalhos à disciplina positivista?
Comparando-se
os três momentos do pensamento hegeliano, segundo a fórmula expressa na
“Enciclopédia das Ciências Filosóficas”, com a lei dos três estados de Augusto
Comte, verificar-se-á que o sistema do pensador francês é efectivamente mais
grato ao humanismo próprio dos historiadores. A historiografia, por muito que
conceda à revelação divina, propõe-se sempre adaptar o conhecimento do passado
às condições da mentalidade presente, isto é, exigências que cada vez mais
dificultam a compreensão global do destino próprio da humanidade; assim, pois,
fica a história pelos seus relatos a enunciar problemas cuja solução é de ordem
teológica, positiva ou negativa.
O
pensamento filosófico de Sampaio Bruno, longe de ser retardatário ou
anacrónico, pertence à nova idade que contamos a partir de Kant. A importância
atribuída aos conceitos de tempo, evolução e finalidade, – importância que
justamente merecem como factores de renovação das ontologias pretéritas, –
garante à obra do pensador portuense uma admirável actualidade. A obra de
Sampaio Bruno vale também pelo que exprime de tradição nacional.
Filosofia sem teologia não é filosofia portuguesa; o pensador português terá sempre que determinar a relação entre a filosofia e a teologia, no momento que antecede a caracterização substantiva de uma e outra. Diferentes soluções podem ser dadas a tais problemas, mas dialecticamente instável é a posição do ateísta. Conceber a divindade, mais ainda, intuir a essência de Deus, não oferece dificuldade ao português genuíno; a dificuldade apresenta-se ao admitir a existência de Deus, mais ainda, ao explicar a relação de Deus com o mundo em que vivemos. A providência infinita é o atributo divino que mais nos obsidia; daí a a agudeza do problema do mal. Formulada em termos de descrição empírica, a existência do mal fatalmente sugere às almas o mais irreligioso desespero; formulada em termos de especulação filosófica, a existência do mal necessariamente sugere a mais religiosa confiança. Que é, pois, essencialmente o messianismo? O messianismo, para além das várias contingências históricas, é a esperança na intervenção divina que porá termo ao mal da humanidade.
Sampaio Bruno confessava, de certo modo, uma gnoseologia transcendente em nome
da qual argumentava contra toda a teologia que na metafísica procure o seu
fundamento; aliás, tanto a metafísica intelectualista como a metafísica
experimentalista lhe repugnavam por uma espécie de pudor, julgando-as impiedosas
e incompatíveis com o carácter português; e se distribuirmos em boa ordem
hierárquica os argumentos do pensador, veremos, pela dedução implícita, que a
proposição, além de verdadeira, é assaz honrosa para a mentalidade nacional.
Teologia
sem fundamentação metafísica é a que Sampaio Bruno admite, de acordo com as
correntes especulativas. Influenciado em grande parte por Herbert Spencer, de
quem aceita a modernização do evolucionismo, afasta-se do pensador inglês para
se aproximar do taumaturgo ibérico que foi Pascoal Martins. O evolucionismo
existe e satisfaz a curiosidade de muitos poetas, sedentos de transcendência.
Notável é, porque significativo, que Sampaio Bruno esperasse muito da prometida
obra filosófica de Guerra Junqueiro, intitulada “A Unidade do Ser”.
A
consciência cristã clama pela assistência do amor divino. Sampaio Bruno não
era, porém, um místico. Acreditava “na eficácia da oração”, na “existência de
seres espirituais superiores a nós e existindo fora de nós” num plano mediador
entre a divindade e a humanidade, separadas em consequência da queda, que é
mistério. A significação da palavra Universo é, para Sampaio Bruno como para
Pascoal Martins, a de “reintegração dos seres”.
Sampaio
Bruno não só afirma que “a angelogia é intuição positiva e a profecia é
realidade anómala”, mas explica uma pela outra ao discutir o problema do
contingente e do necessário. E se neste passo ocorre à lembrança a dificuldade
kantiana de conciliar a moral com a ciência, pertinente é dizer que, entre
Swedenborg e Kant, o filósofo português se inclinava preferentemente para o
visionário sueco.
A
voz do messianismo martinista, que voltaremos a ouvir em Fernando Pessoa,
aconselha o poeta a exceder o lirismo, como aconselha o historiador a ascender
do evento ao mito. Sampaio Bruno encontrava-se, por isso, em condições de
derramar forte luz sobre a História de Portugal, conforme se induz da leitura
de os artigos do “Plano de um livro a fazer”.
Sampaio
Bruno pretendia ir além do trabalho efectuado por Marcelino Menendez y Pelayo
na “História de Los Heterodoxos Españoles” e descobrir as heterodoxias
inconfessadas; possuía, para tão grandioso empreendimento, a aptidão do
filólogo, exercitada no estudo da fenomenologia da linguagem, e uma
extraordinária erudição, admirada pelos contemporâneos; pela decifração de
textos literários que a crítica positivista necessariamente exclui ou
desvaloriza, ao considerá-los lendários e místicos, poderia o historiador
atribuir a alguns problemas nacionais as soluções que, por verdadeiras, excedem
a rigorosa narrativa dos factos. Infelizmente, a morte não permitiu que Sampaio
Bruno concluísse o livro da revelação.
Interessante
e digno de nota é que Sampaio Bruno, por constituir entre os doutrinadores
republicanos, quase todos positivistas, uma excepção de relevo, teve a ventura
de simultaneamente pensar e viver uma modalidade de messianismo.
Não
será ousado dizer que o messianismo, no princípio deste século [XX], aos portugueses
se revelou em diversas configurações, e só ele explica e denomina o carácter de
propaganda republicana que outros levianamente chegaram a classificar de
romântica e sentimental. A República foi um sonho colectivo, e à medida que as
consciências iam despertando, num individualismo que desprende e que
possibilita a crítica, com amargura verificavam não reconhecer naquela imagem
que o escultor Simões de Almeida consolidou, o ideal que atraíra um povo
esperançado.
É
arbitrário negar essa vivência colectiva de messianismo; é fácil determinar
retrospectivamente a debilidade da aspiração republicana; mas, nesse caso, o
positivista, para julgar a política, terá de enveredar pela injúria à
mentalidade nacional.
Nunca
faltaram positivistas que se propusessem levar o Portugal atrasado à escola do
estrangeiro; – mas essa tentativa pedagógica, em todas as gerações renovada, se
consegue rectificar os espíritos mais débeis, pelo torturante método de
Descartes ou de Hume, graças a Deus não anula as incompreendidas e tão mal
julgadas virtudes dos portugueses.
...
E eis que ressurgem os poetas nefelibatas, os filósofos abstrusos, os políticos
sebastianistas, essa legião de retrógrados ou reaccionários que causam o
desespero dos prefeitos dos colégios e dos polícias da cultura.
A verdade dominante é esta, por mais que custe aos positivistas de Londres ou de Paris: só pela morte da nacionalidade, a Portugal será possível tirar o jeito que lhe ficou de levar os europeus a conhecer as terras esquecidas. No dizer de Fernando Pessoa, ainda está reservado para Portugal um grande futuro. “E a nossa grande Raça partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas “daquilo de que os sonhos são feitos”. E o seu verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal ante-arremedo, realizar-se-á divinamente”».
Álvaro Ribeiro («Sampaio (Bruno)»).
O positivismo metafísico de Sampaio
Bruno
A
palavra «Deus» é a mais impositiva das noções místicas mantidas pela linguagem[1], – e
tão impositiva que não perde o sentido autêntico e universal no meio das
diferentes expressões glossolálicas dos grandes místicos. É claro que a
universalidade duma noção como a contida na palavra «Deus», a fazer aí
coincidir, no essencial, o pensamento dos diferentes idiomas, suscitará o
problema da sua validez, isto é, do seu corresponder a algo objectivo
(objectivo por ser igual para todos). Dada a inverificabilidade da existência
de Deus, uma coisa positivamente e validamente se verifica: esse algo objectivo
que põe a identidade intelecto-afectiva fundamental dos homens numa só Humanidade diante do mesmo
Universo, e que irredutivelmente (quer dizer, pelo menos) é a esperança que na
ideia de Deus se contém e à qual já chamei a dramática optimista das religiões[2].
As
três palavras marcantes do misticismo residual verbalístico e prelógico de
Sampaio Bruno são: em primeiro lugar, essa palavra «Deus», a de maior força afectiva, como vimos em todo o decurso
desta análise crítica; a meio desse misticismo, está a palavra «revelação», como também vimos com
suficiente clareza, julgo; por fim, já a perder uma força afectiva integrável
na força realística para a positividade, temos a palavra «anjo». Não me parece necessário deter-me mais sobre o misticismo
residual da ideia brunina de Deus, que é uma ideia-falsa; porque, depois de,
materialisticamente, negar a realidade objectiva de Deus[3], e
depois da fase de aceitação de Deus como um ideal (Feuerbach e Vacherot)[4],
Bruno identificou Deus com a ideia de Mundo, o que degenera num ateísmo.
(...)
Na concepção filosófica de Bruno, em que os seres provêm de Deus pela
desdivinização na queda, opondo-se-lhe como uma nova realidade, segue-se que
nós, os seres humanos, por essa mesma
oposição que nos dá o sentido duma realidade independente, 1.º, ou pomos o
problema de Deus sem o apriorismo emanatista que ignoramos, num «como se», como
se houvesse dum lado o Mundo e, do outro lado, Deus a ser deduzido,
positivistamente, dos dados conhecidos e necessários, os quais por sua vez
sejam explicados pelo deduzido; 2.º, ou pomos o problema de Deus já com o
apriorismo emanatista dogmático.
Já
vimos que o primeiro modo de pôr o problema (colocando-nos no ponto de vista de
Bruno) desfez-se no agnosticismo, ao exigir-se uma existência de Deus «com a evidência concreta da físico-química». O segundo modo, isto é, já no apriorismo
emanatista, é sem sentido por ser inútil, porque Deus está então demonstrado
por si e por tudo, só havendo lugar a desvendar o processo cósmico-divino, pois
não será o caso de provarmos que Deus existe (já o admitimos antecipadamente ou
já o presumimos ou já chamámos Deus à origem do Mundo), mas o de provarmos como
participamos de Deus, viemos de Deus, vamos para Deus, como participamos da
origem, viemos da origem, vamos para a origem, etc. Vem a propósito, por ser
comum aos casos de emanatismo e panteísmo, a prova ontológica no teorema XX do
Livro Primeiro da Ética panteísta de
Espinosa: «A existência de Deus e a sua essência são uma e a mesma coisa»[5]. Ora,
como por Deus Espinosa entende tudo o que existe ou a Substância, fora da qual
nada existe ou é o nada (teorema XV do Livro Primeiro)[6],
resulta que isto só é uma prova da existência de Deus porque, sem qualquer
razão não mística, chamou-se Deus ao mundo (panteísmo) ou chamou-se Deus ao
princípio donde o mundo emanou (emanatismo).
Eis
como as dificuldades da criação do Mundo por Deus se suprimem por uma
identificação de Deus com o Mundo, mas em que Deus fica reduzido a uma simples
e arbitrária palavra, e a origem do Mundo fica sem solução. Metafísicos
modernos têm procurado hegelianamente resolver as dificuldades a que a crítica
submeteu a «criação» e salvar Deus ao mesmo tempo: Deus não criou o Mundo; é
criado pelo Mundo. Há um impulso criador de evolução por emergência (o elemento superior saindo, emergindo, qualitativamente novo, do inferior, sem qualquer relação
de causa-efeito), do que resultaram (G. Lloyd Morgan e Alexander) as etapas do movimento, matéria, vida e consciência, e de que resultarão as
etapas anjos e deuses. Cada uma, a vir, será a divindade para a que a precede,
acabando por ser Deus o mundo total com o seu progressivo impulso criador para
a «divinização», isto é, para uma afirmação sempre maior de Deus, de modo que a
divindade reconhecida é sempre inactual; projecta-se no futuro da evolução:
«Alma do vasto mundo sonhando coisas a vir»[7]. Ou
há, na variante de Whitehead, uma «criatividade» de que Deus é atributo e
manifestação e, portanto, princípio de determinação e limitação de todo o devir[8].
Temos em Morgan ou em Alexander ou em Whitehead um panteísmo ou um emanatismo
(desde que a confusão também aqui se estabeleça) em sentido inverso: em vez de
vir de Deus para o Mundo, vai do Mundo para Deus; em vez dum panteísmo ou
emanatismo (Deus é o Mundo, tudo vem de Deus), temos um teopanismo, neologismo
sugerido por oposição, ou um emanatismo do Mundo para Deus: o Mundo é Deus,
Deus vem do Mundo. Distingue-se do panteísmo imanente-transcendente do
idealismo alemão, porque neste, Deus vai sendo a totalidade dialéctica do Ser,
e, naquele, Deus projecta-se no futuro ou realiza-se nos últimos estádios da
evolução cósmica. E regressa-se ao mero conceito positivista do facto – o Mundo em si e per si –
pancosmismo fora do qual é o nada. Quer dizer, sem a criação por vontade de
Deus, e que se quis suprimir como irracional e absurda, vemos, de qualquer
modo, um ateísmo, porque considerar o Mundo uma Divinização, ou identificar Deus
e o Mundo, ou considerar o Mundo uma desdivinização que regressa ao divino
(transitório dualismo que volve ao monismo), é o mesmo que considerar o Mundo
per si apenas. E a origem do Mundo continua sem solução. Aqui se mostra que só
o criacionismo das religiões pode conter uma ideia válida e pura de Deus. O
panteísta e o teopanista (para os quais Mundo e Deus se identificam, e que
dizem: Deus existe) e o emanatista
(para quem o Mundo, provindo de Deus e regressando a Deus, tem no trânsito em
que é o Mundo o seu determinismo próprio, e que também diz: Deus existe), usam, todos, uma linguagem
residualmente mística e muito ingénua, que, verdadeiramente, significa: o Mundo existe. Em termos de teologia
constroem uma ateologia pancosmista.
Logo,
quando Bruno afirma – «a ideia de Deus cumpre que se torne uma verdade»[9] –
equivale a afirmar isto: a ideia de Mundo cumpre que se torne uma verdade; e
esta verdade seria a explicação do processo cósmico, e processo cósmico na
ordem do Necessário, isto é, do Necessário da Natureza ou da Razão, porque «a
Natureza é Razão».
Fixemos
bem este conceito de necessário. Tudo quanto existe, ou, também na linguagem
brunina, tudo quanto Deus criou (não se esqueça que Bruno, anti-criacionista,
emprega por vezes as palavras criação,
criar, etc., como Eduardo de
Hartmann, no sentido do fazer-se dum real que vem ou veio de Deus), tudo quanto
Deus criou, quer dizer, tudo quanto de Deus emanou é, fundamentalmente, da
ordem do Necessário. Equivale a isto: tudo o que é no Mundo é,
fundamentalmente, da ordem do Necessário. Passemos, de novo, à linguagem
teificante de Bruno, com a própria transcrição: «Deus não pode fazer nada sem
razão. Logo o Mundo existe por um motivo suficiente e determinante. Nada existe
arbitrária e contingentemente... Mercê do princípio da razão suficiente, que em
Deus é absoluto, o que Deus fez é o que necessariamente devia fazer»[10]. A
influência de Espinosa mostra as suas dedadas.
Ora se o processo cósmico é, assim, da ordem do necessário, resulta que a ciência desse processo cósmico (na Física como na Sociologia e na História) deverá possibilitar a previsão. Seja a previsão exacta como quer Bruno, ao impugnar a previsão incerta do probabilismo. A ciência da História seria a ciência do previsível comportamento geral dos homens e das nações.
(In Amorim de Carvalho, O Positivismo Metafísico de Sampaio Bruno,
Sociedade de Expansão Cultural, Lisboa, 1960, pp. 265-266 e 95-98).
[1] Vid., meus ensaios in «Diário de
Lisboa»: Filologia e Filosofia
(7-5-1956) e A Mitologia verbal do
pensamento arcaico (2-7-1956).
[2] Vid., meu livro, Deus e o Homem na poesia e na filosofia,
pág. 231-242.
[3] Bruno, Análise da Crença Cristã, pág. 16 e 306.
[4] Id., A Geração Nova, pág. 57-58.
[5] Espinosa, Éthique, trad. de R. Lantzenberg, pág. 37.
[6]
Id., ibid., pág. 27.
[7] G. L. Morgan, ensaios Emergent
Evolution (1923) e Life, Mind and
Spirit (1926); S. Alexander, Space,
Time and Deity (1920).
[8] A. N. Whitehead, ensaio Process
and Reality (1929).
[9] Bruno, A Ideia de Deus, pág. 481.
[10] Espinosa, Éthique, trad. de R. Lantzenberg, pág. 48-52 (teorema XXXIII).
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