segunda-feira, 6 de outubro de 2025

O positivismo metafísico de Sampaio Bruno

Escrito por Amorim de Carvalho




«Não está ainda perfeita a história do positivismo em Portugal, desde a primeira menção do nome de Augusto Comte nos escritos dos publicistas liberais e socialistas, monárquicos e republicanos, antes de o sistema filosófico ter sido exposto e divulgado pelas instituições intercambiais de cultura. Escritores racionalistas como Amorim Viana, Cunha Seixas e Sampaio Bruno estudaram, certamente, o Curso de Filosofia Positiva, embora se opusessem ao Sistema de Política Positiva. Certo é, porém, que ao nome de Augusto Comte não podemos deixar de ligar o nome de Teófilo Braga, mestre inolvidável de professores, escritores e jornalistas que alertaram de unicidade a alma nacional com a confiança nas virtudes do povo português e com a esperança de que um novo sistema de educação seria capaz de fazer passar o espírito da potência ao acto.

A tese de que o positivismo português foi historicamente dependente do positivismo brasileiro não está ainda suficientemente fundada ou demonstrada. Em 1870, por um manifesto célebre fundou-se o partido republicano brasileiro, o qual só adoptou mais tarde os princípios positivistas em consequência da doutrinação de homens ilustres como Benjamim Constant, Miguel Lemos e Teixeira Mendes. A República Brasileira foi proclamada a 15 de Novembro de 1889, mas as notáveis leis do seu governo provisório oferecem impressionantes semelhanças com a letra e o espírito das leis do governo provisório da República Portuguesa, proclamada em 1910.

É hoje evidente que o positivismo foi um factor constitutivo da ideologia republicana em Portugal. Não se tem prestado maior atenção a que o positivismo também exerceu poderoso fascínio sobre a mentalidade dos políticos monárquicos, absolutistas e constitucionalistas, pelo que formou na opinião pública, – parlamentar, partidária e jornalística, – a premissa doutrinal que, ligada à crítica diária dos acontecimentos políticos, havia de exigir a conclusão necessária, previdente e conveniente de abolir a monarquia dinástica. A lei dos três estados era prudentemente invocada para a instalação definitiva do cientismo, – sem Deus nem religião, – de modo a apartar os pensadores da obra filosófica de Augusto Comte, isto é, da obra realizada na ética, na moral e na política.

O positivismo serviu também, aos escritores republicanos e monárquicos, de barreira contra a propagação das doutrinas socialistas, acolhidas por Antero de Quental e por Oliveira Martins, como de travão para o movimento operário, obreiro, ouvrier, o qual sagrava acima de tudo o trabalho manual e mecânico, contradizendo o espírito cooperativo de todas as profissões hierarquizadas na empresa própria da indústria moderna. Teófilo Braga, apesar do valioso e gigantesco labor de aplicar os métodos positivistas ao estudo étnico, folclórico, literário e histórico do povo português, não foi personalidade capaz de impedir que a desnacionalização cultural se projectasse na constituição política, redigida em 1911 sem ordem nem progresso. Tão certo é que, no nosso país, os partidos políticos mais parecem secções portuguesas de associações internacionais, lutando em prol de exóticas e peregrinas ideologias.

Muitas vezes discuti com o escritor Amorim de Carvalho o difícil problema da originalidade da cultura portuguesa. Recordo, sem ressentimento, as palavras amargas da sua polémica ardente, beneficiei das suas objecções pessimistas mas fundamentadas, e respeitei com silêncio honesto a liberdade de opinião em quem fala e escreve por amor da verdade. Cumpre-me ser grato para com um interlocutor leal, extraindo nesta página a oração de saudade por quem foi um dos mais ilustres publicistas portugueses.»

Álvaro Ribeiro («Augusto Comte»).

 

Sampaio Bruno


«[Sampaio] Bruno denuncia com aguda sagacidade que o problema da metafísica não se põe apenas em relação aos sistemas que, segundo a crítica de Augusto Comte, Littré e discípulos, ultrapassam indevidamente a relação entre a razão e o real dado, única apta a constituir o saber científico e a possibilitar uma filosofia segura, certa e verificável. A tese de Bruno é formulada assim no seu núcleo. O saber positivo tem pressupostos, a ciência implica originariamente a metafísica como seu fundamento, implica-a originária e necessariamente, e isso nada tem que ver com o facto de os sábios ou os filósofos serem ou não metafísicos, cultivarem a metafísica ou não a cultivarem [A ideia pode esclarecer-se por analogia, notando, por exemplo, que o homem permanece um ser religioso mesmo quando não pratica conscientemente a religião; ou, noutro exemplo, que o homem permanece "animal estético", sujeito ou objecto de actos e juízos estéticos, mesmo quando não é artista criador, ou até quando conscientemente desdenha a arte]. É o que prova não só, historicamente, a origem da ciência, no que os positivistas atentam, mas também a origem de cada hipótese ou teoria científica singularmente, coisa a que não atendem.

Não pôde Bruno alcançar neste ponto, como quase nunca, toda a nitidez do pensamento. Denuncia, entretanto, com as suas voltas e contravoltas e exemplificações complexas, a moderna falácia enciclopedista e positivista, hoje em crise, falácia segundo a qual o saber e o conhecimento, uma vez constituídos, permaneceriam e se transmitiriam tais quais. Os positivistas confundiram facto e fenómeno e pela atenção ao saber feito desdenharam o saber em seu fazer-se e refazer-se incessante.

O chamado pensamento positivo pretende, entretanto, constituir-se eliminando aquilo de que provém: a metafísica. Este é o sentido da chamada lei dos três estados, segundo a qual as fases de pensamento teológico e metafísico estariam preteridas, entrando a nova humanidade, sob o influxo da ciência, na definitiva e autêntica fase positiva. Bruno não nega todo o valor da significação cultural e histórica da lei, mas restringe-lhe o alcance. Argumenta no sentido de mostrar que a mesma necessidade especulativa, origem da teologia e da metafísica, subsistiu e subsistirá necessariamente no homem através das mais variadas formas de cultura e civilização. O positivismo é uma restrita filosofia cultural, uma filosofia transitória, não exprime o ser humano no que este tem de permanente e inalienável em suas perplexidades e interrogações.

O nosso filósofo vai mostrá-lo com a própria evolução do positivismo. Constitui-se este originariamente numa bem humana e mediana pretensão de imparcialidade entre as posições extremas do racionalismo e do empirismo, do teísmo e do ateísmo, do espiritualismo e do materialismo. Movido, porém, pela sede de total inteligibilidade e compreensão deste ser metafísico que é o homem, acaba sempre o positivo filosofar pela aceitação insensivelmente contraditória de uma das formas da metafísica que supusera possível excluir: o positivismo abre caminho ao materialismo, o agnosticismo torna-se ateísmo. Desta maneira negando os seus fundamentos, demonstra o próprio positivismo a inevitável necessidade que tem o homem de explicar não só o “como” mas o “porquê”».

José Marinho («Estudos sobre o Pensamento Português Contemporâneo»).

 




«Indispensável será escrever a "História do Positivismo em Portugal" quando se quiser estudar, desde as causas remotas aos efeitos próximos, a transformação mais descaracterizante do pensamento português. A vigência do positivismo, sucessivamente refutado mas incessantemente renovado, é de efectividade inegável; o sistema não deixou de dominar o ensino público e de exercer opressão na mentalidade dos nossos contemporâneos; enfrenta um perigo o escritor mais livre que ouse propor de novo as nobres directrizes da tradição especulativa.

Fosse positivismo somente a obra de Augusto Comte, ou a influência que dela advém, já não se poderia facilmente encontrar um pensador capaz de defender integralmente a doutrina de um século passado. Mas o positivismo é muito mais amplo: dentro dele se encontram, talvez inconscientemente, muitos dos que refutam as precárias teses que Augusto Comte propagou.

A entrada do positivismo em Portugal foi cautelosa e discreta, mas segura, evitando os adeptos que na forma patente de sistema fosse logo reconhecido o factor de oposição a algumas características do génio português. Teófilo Braga relata nos termos seguintes o advento do positivismo:

“O seu único ponto de apoio manifesta-se espontaneamente nas escolas científicas; é assim que antes de o nome de Augusto Comte ser citado como filósofo, penetrava em Portugal a sua orientação, reflexamente, na Politécnica de Lisboa pelo ‘Curso de Geografia Analítica’ (que anda divulgado em cadernos litografados), na Politécnica do Porto pelo ‘Curso Mecânica’ de Freycinet; nos cursos médicos estudavam-se a obra de Blainville e de Charles Robin, chegando até às disciplinas sociais e literatura escritos de Stuart Mill e de Littré. Pela primeira vez em 1877 apareceu em Portugal um esboço de doutrina de Comte nos ‘Traços gerais de Filosofia positiva’ [Teófilo Braga, As modernas ideias na literatura portuguesa, Porto, 1892, II, 414]”.

Em 1878 funda-se no Porto a revista “O Positivismo” e no mesmo ano surge a “Revista de Teologia”, publicada por alguns lentes da Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra. O magistério teológico reconhece, então, a necessidade de combater a infiltração positivista; mas, como sempre, à defesa corresponde uma atitude retrógrada e retardatária.

Facto era que o Curso Superior de Letras de Lisboa, instituído por carta de lei de 8 de Junho de 1859, tinha acolhido no seu corpo docente alguns simpatizantes do positivismo. De ano para ano acentuara-se a orientação positivista nas disciplinas predominantes – nas disciplinas de história ou historicamente ensinadas, – chegando por fim a anular a resistência dos professores que não prestavam culto à Humanidade.

A influência da Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra ia decrescendo, circunscrevia-se quase só aos sacerdotes, e não podia concorrer com a repercussão das obras modernas de publicistas notáveis, justamente acolhidas no meio cultural que ansiava pelo fim da crise liberalista.



O positivismo foi pouco a pouco invadindo todo o ensino superior, e do que foi o seu império pode servir, como testemunho, este apontamento de Ricardo Jorge:

“Numa lição de fisiologia vi eu um estudante deveras talentoso, a propósito de suco gástrico ou coisa assim, enxertar a classificação comtiana das ciências e a lei dos três estados, sem espanto de ninguém. É conhecido o caso daquele professor da Faculdade de Direito que gastava o ano lectivo inteiro a ler o Comte da cadeira abaixo, como qualquer lente de véspera, antes do advento pombalino, a glosar o Aristóteles ou o Avicena” [Ricardo Jorge, Contra um plágio do prof. Teófilo Braga, Lisboa, 1918, pág. XXXV].

Não faltou ao positivismo uma quase coroação oficial e legal: efectivamente, num país em que as faculdades universitárias e as escolas profissionais enfileiram paralelamente às ciências da classificação comtiana, começando pelas matemáticas e acabando pelas sociológicas, pode considerar-se estabelecido e consolidado o positivismo. A Universidade de origem e estrutura eclesiásticas transforma-se numa politécnica de intenção económica.

O positivismo não sairia dos círculos de escol nem interessaria várias gerações, se fosse apenas propagado em revistas de carácter científico, sujeitas às críticas dos doutos e à ingratidão do progresso; mas encontrou o melhor aliado na literatura realista, que lhe permitiu atrair os leitores de romances e perdurar com o novo gosto do público. Efectivamente, quando a elegância da frase perdoa a afirmação leviana, quando a lúcida ironia desculpa o paralogismo bastardo, quando a distracção momentânea quebra o jeito de reflectir, cai sobre as almas, o crepúsculo que consente a profanação do que é mais sagrado, o aviltamento do que é mais livre: basta ridiculizar os personagens, salvando as instituições que eles indignamente representam, ou ridiculizar as instituições sem criticar os princípios que elas corporizam; isto é, basta descer à comédia, porque sempre a comédia encontrará a aplaudi-la as multidões inconstantes e a garanti-la a moral firme e plebeia.

É assim explicável o êxito de “As Farpas “ numa sociedade que abolira o preceito hierárquico, segundo o qual ninguém pode ser julgado senão pelos seus pares, e instaurara o preceito igualitário, segundo o qual todos se devem sujeitar à opinião geral; além disso, perante muitos exemplos de um clero menos culto mas interessado na política e de uma fidalguia degenerada que perdera a noção do bem público, difícil seria mostrar, ou demonstrar, a excelência do Sacerdócio e da Nobreza.

A crítica social, atacando tipos e denunciando casos, abusava de um recurso fácil ao provocar a gargalhada espontânea, mas não previa que, chegado o momento sério da reflexão, emudecia o público num duradouro pessimismo e enfraquecia assim a vontade nacional; essa crítica, resultante de uma cultura estranha, consciencializando os nossos defeitos e repelindo para o inconsciente as nossas virtudes, definhou os orgãos de compreensão das tradições nacionais. O simbolismo da liturgia e o heroísmo da cavalaria (complexo painel que para ser compreendido, exige invulgar inteligência da origem mítica e da eficiência ritual) apareciam como ridículos, portanto indignos de perviver na sociedade industrial e capitalista, amante fanática da ordem e crente na incessabilidade do progresso.

Teófilo Braga

A expansão do positivismo, muito deve à publicação de “As Farpas”, especialmente no período em que passaram a ser redigidas somente por Ramalho Ortigão. Eça de Queirós estranhou e explicou a desqualificação de “As Farpas”, num artigo que Teófilo Braga cita e utiliza para concluir triunfalmente:

“Isto é rigorosamente verdadeiro; assistimos a esta transfiguração, e Ramalho Ortigão deve-o à forte disciplina mental recebida no ‘Curso de Filosofia Positiva’ de Augusto Comte; foi por essa filosofia que ele coordenou o que lhe faltava para uma educação enciclopédica tão necessária na especialização das ciências modernas” [L. c., II. 317].

A literatura realista auxiliou a filosofia positivista, é certo; muitas das obras que ainda cativam o agrado do público transmitem de geração a geração o gosto e o pendor para a explicação sociológica; mas a criação literária, fiel às origens de que provém e às raízes que a alimentam, não podia deter-se numa disciplina voluntarista e minorativa.

O próprio realismo não satisfazia as exigências de Teófilo Braga que, perseverante e tenaz, assim pontificava no “Programa dos trabalhos para a geração moderna”:

“A arte e a literatura terão a sua parte negativa, atacando as instituições anacrónicas, e na sua missão positiva definindo o estado normal para que avançamos; em vez de atacar a família, ou o casamento, ou o pudor ou o dever, ou qualquer fatalidade orgânica, como se vê no realismo, há a demolir o clericalismo, o monarquismo, o militarismo, o argentarismo, e outras muitas tradições e desigualdades que embaraçam a legítima actividade humana” [Loc. cit., II, 302].

Tudo quanto fosse tradicional e hierárquico deveria ser suprimido a favor do contratual e igualitário; a organização política haveria de ser renovada de analogia com a sociedade anónima e comercial; a crise do liberalismo aproximar-se-ia da solução extremista.

Foi proclamada a República; e o governo provisório, sob a presidência de Teófilo Braga, de certo homologou a vitória do positivismo ao transformar em Faculdades de Letras (!...) o Curso Superior e a Faculdade de Teologia.

É fácil, porém, verificar que o positivismo vitorioso não foi o de Augusto Comte; não estava na índole dos políticos portugueses fazer a revolução de harmonia com um sistema filosófico; e para evitar, pois, falsa estreiteza na interpretação de um movimento cultural, importa determinar o que verdadeiramente se entende por positivismo.

O positivismo consiste, essencialmente, na substituição da teologia pela sociologia no grau unificador de classificação das ciências. A metafísica representa um momento de indecisão, necessariamente transitório, na evolução do pensamento humano; não é justo, portanto, caracterizar o positivismo pelo aspecto negativo da oposição à metafísica. A substituição da teologia pela sociologia altera profundamente a estrutura dos sistemas filosóficos, e de certo modo anula tudo quanto estava pensado acerca do critério da verdade e da finalidade da arte. Qualquer que seja o tipo de sociologia convenientemente adoptado, provenha ele em última instância, de Comte ou de Marx, – para citar os dois pensadores do século XIX que mais contribuíram para a “transformação do mundo”, – certo é que a sociologia só pode brilhar na escuridão do ateísmo. Não há compromisso estável, verdadeiramente equilibrado entre a sociologia e a teologia: uma deixará, fatalmente, de estar à altura de ciência.

O pensamento de Sampaio Bruno, como o de outros filósofos portugueses contemporâneos, desenvolve-se em reacção ao ambiente positivista.»

Álvaro Ribeiro («Sampaio (Bruno)»).

 


«Todo o pensamento de Bruno é uma negação do sobrenatural, mesmo quando ele fala em anjos e em profecias. Para Bruno o “anómalo” da profecia não quer dizer sobrenaturalidade, mas revelação, e revelação – nunca o esqueçamos – quer dizer indução, noção, razão, etc., extraordinariamente e só extraordinariamente acima do vulgar; acima deste, mas dentro da natureza deste, penetrando, depurando e avançando o espírito. Temos aqui, até, uma crítica brunina ao profetismo bandarriano ou sebastianista, lunático e sem comprovação, e que Bruno analisa com cuidado de bem distinguir a positividade entre os mitos e as ficções. E tal positividade está em que o sebastianismo, reduzido ao período mentalmente são duma época "naturalmente compatível com a possibilidade da humana existência do rei D. Sebastião", falhou como profecia. Falhou pela impossibilidade do facto: D. Sebastião não apareceu numa manhã de nevoeiro durante todo o tempo em que poderia sem milagre ter aparecido; daí em diante o sebastianismo, para Bruno, é uma vesânia, porque faltam à profecia as possibilidades positivas, isto é, naturais, da corroboração; o seu sentido supostamente sebastianista e de impossível revelação sobrenaturalista (para Bruno não há o sobrenatural, há o “hiperfísico” fora da redução científica), é “aquela crença insensata que nos fixa, para deprimente nos catalogar, Chamfort”. De análogo modo, Lúcio de Azevedo havia de referir-se ao sebastianismo.

Este messianismo sebástico é um dos quatro tipos que podemos assim resumir: 1.º Messianismo religioso propriamente dito ou de crença na salvação por um enviado divino (o Messias); 2.º Messianismo histórico-lendário ou crença na salvação pelo regresso sobrenatural dum herói desaparecido (D. Sebastião); 3.º Messianismo político-social pessoalista ou crença na salvação pelo aparecimento dum homem superior (Afonso Costa, Sidónio Pais, Salazar); 4.º Messianismo político-social impessoalista ou crença na salvação pelas próprias forças éticas da Humanidade (a República em Portugal, para Bruno). Como se vê, trata-se duma larga fenomenologia social da esperança, cuja autenticidade religiosa se vai diluindo até não conservar mais do que a palavra mística – Messianismo – e ser uma esperança mais ou menos reflexiva. O messianismo de Bruno é anti-religioso, porque não tem qualquer religião; é anti-sebástico, porque não crê no sobrenatural; é anti-pessoalista, porque não crê nos homens superiores. Só crê na Humanidade como força ética colectiva.

Sidónio Pais derrota Afonso Costa


Oliveira Salazar

Creio que fui eu o primeiro a impugnar a ideia tão extraordinariamente generalizada, mas sem bases possíveis, de que Bruno era sebastianista ou um messianista de feição sebástica, isto é, esperando a chegada providencial duma redenção ou dum redentor determinados pelos poderes sobrenaturais. O sebastianismo é constantemente alvo de motejos e sarcasmos de Bruno, que se recusa, contra Oliveira Martins, a aceitá-lo como “expressão da idiossincrasia moral da gente portuguesa”. Positivamente, distingue, pois, entre “sebastianismo-sebastianismo” (para empregar uma expressão sua) que é profecia louca irrealizável, e sebastianismo-messianismo, ou melhor, político-social, que é (assim concorda com Weill) a crença no fenómeno universalista do progresso moral humano e grande esperança do homem na Humanidade (onde concorda com Augusto Comte). Seja, mesmo, no impulso duma expressão nacional ou étnica, desde que esta não se mostre implicante, como, por exemplo, se mostrou implicante o messianismo eslavo desse “semi-alienado”, “génio eslavo”, que foi Wronski. “O Messias – escreve ironicamente – não apareceu até hoje em dia, suponho eu. E comigo alguns incorrigíveis cépticos que ao messianismo continuam a preferir o racionalismo, ao herói a ideia, e à veneração pelos homens o culto dos princípios”. É um messianismo sem Messias pessoais e sem sobrenaturalidade. Relações, que Bruno seriamente definisse, dum messianismo com o paracletismo e com o sebastianismo sobrenaturalista, e influência do mistério da Santíssima Trindade na filosofia portuguesa que Bruno tivesse surpreendido admiravelmente, – são coisas para que não encontro texto abonador nos livros do filósofo [cf. Álvaro Ribeiro, Apologia e Filosofia, pág. 50]. O seu messianismo tem um sentido essencial e universalmente sociológico e impessoalmente humano, como o de Comte. Já vimos como Bruno, contemporaneamente com o positivista Paul Ritti, chegou a uma sociologia cósmica cujos germes se contêm naquele grande pensador francês, que a espécie humana sintetiza e manifesta no mais alto grau. Do universal, do transnacional messianismo (desautenticizado, pois, para um sentido místico), de que “o vidente representativo fora Victor Hugo” (“Um dia... e o mundo...”), resultará a paz e a fraternidade humanas. É toda uma crença no próprio princípio ético da humanidade, crença no “progresso”, como em Comte, crença na “força desse misterioso elemento histórico que se ajusta aos acontecimentos visíveis”. A interpretação que Álvaro Ribeiro dá a este passo é inteiramente alheia ao texto e contexto da Ideia de Deus, não resistindo ao estudo comparativo desse livro com os outros de Bruno. “Dissipe-se a nuvem que encobre o herói – diz Bruno. – O herói não é um príncipe predestinado. Não é mesmo um povo. É o Homem”. É, também, o profetismo natural que se encontra nas revelações do Inconsciente de Hartmann; e Bruno o compreende, ao impugnar a revelação de tipo individualista ou sobrenatural desse outro profetismo, esotérico, “que cuida possuir integralmente o absoluto” quando a revelação pertence à positividade do processo cósmico: "De certo – diz Bruno –; e aqui se pode explicar a interpretação do consciente pelo estímulo obscuro da subjacência do inconsciente. Conformemente o faz para Kant e para Hegel, por forma maravilhosa, Eduardo Hartmann nos primeiros – e magistralíssimos – capítulos de introdução ao seu sistema filosófico. Sob idêntico critério orientando-nos, apliquemos a mesma intuição ao fundador do positivismo... Aludimos, naturalmente, à revelação da religião humana de que Comte era o pontífice". Não se esqueça este passo significativo.»

Amorim de Carvalho («O Positivismo Metafísico de Sampaio Bruno»).



Sampaio Bruno


«Sampaio Bruno opõe-se ao dualismo da Razão e da Fé, que constitui a essência da Escolástica medieval, e demoradamente critica o dualismo da Matéria e do Espírito, que caracteriza a filosofia moderna; e assim, contraditando os dois estilos clássicos da filosofia europeia, revela a sua simpatia pelos sistemas que se desenvolvem em três momentos distintos da ideia absoluta.

Inevitavelmente tivemos de aludir ao sistema de Hegel. Mas já que a aproximação foi inevitável, vale a pena aproveitar a oportunidade para enunciar um problema que interessa à história da cultura: – Porque teria sido mais fácil aclimar, em Portugal, o sistema de Comte do que o sistema de Hegel? Porque teria sido que Hipólito Taine e Teófilo Braga, na juventude seduzidos pelo pensamento hegeliano, na adulta idade subordinaram o valor dos seus trabalhos à disciplina positivista?

Comparando-se os três momentos do pensamento hegeliano, segundo a fórmula expressa na “Enciclopédia das Ciências Filosóficas”, com a lei dos três estados de Augusto Comte, verificar-se-á que o sistema do pensador francês é efectivamente mais grato ao humanismo próprio dos historiadores. A historiografia, por muito que conceda à revelação divina, propõe-se sempre adaptar o conhecimento do passado às condições da mentalidade presente, isto é, exigências que cada vez mais dificultam a compreensão global do destino próprio da humanidade; assim, pois, fica a história pelos seus relatos a enunciar problemas cuja solução é de ordem teológica, positiva ou negativa.

O pensamento filosófico de Sampaio Bruno, longe de ser retardatário ou anacrónico, pertence à nova idade que contamos a partir de Kant. A importância atribuída aos conceitos de tempo, evolução e finalidade, – importância que justamente merecem como factores de renovação das ontologias pretéritas, – garante à obra do pensador portuense uma admirável actualidade. A obra de Sampaio Bruno vale também pelo que exprime de tradição nacional.

Filosofia sem teologia não é filosofia portuguesa; o pensador português terá sempre que determinar a relação entre a filosofia e a teologia, no momento que antecede a caracterização substantiva de uma e outra. Diferentes soluções podem ser dadas a tais problemas, mas dialecticamente instável é a posição do ateísta. Conceber a divindade, mais ainda, intuir a essência de Deus, não oferece dificuldade ao português genuíno; a dificuldade apresenta-se ao admitir a existência de Deus, mais ainda, ao explicar a relação de Deus com o mundo em que vivemos. A providência infinita é o atributo divino que mais nos obsidia; daí a a agudeza do problema do mal. Formulada em termos de descrição empírica, a existência do mal fatalmente sugere às almas o mais irreligioso desespero; formulada em termos de especulação filosófica, a existência do mal necessariamente sugere a mais religiosa confiança. Que é, pois, essencialmente o messianismo? O messianismo, para além das várias contingências históricas, é a esperança na intervenção divina que porá termo ao mal da humanidade.

Sampaio Bruno confessava, de certo modo, uma gnoseologia transcendente em nome da qual argumentava contra toda a teologia que na metafísica procure o seu fundamento; aliás, tanto a metafísica intelectualista como a metafísica experimentalista lhe repugnavam por uma espécie de pudor, julgando-as impiedosas e incompatíveis com o carácter português; e se distribuirmos em boa ordem hierárquica os argumentos do pensador, veremos, pela dedução implícita, que a proposição, além de verdadeira, é assaz honrosa para a mentalidade nacional.






Teologia sem fundamentação metafísica é a que Sampaio Bruno admite, de acordo com as correntes especulativas. Influenciado em grande parte por Herbert Spencer, de quem aceita a modernização do evolucionismo, afasta-se do pensador inglês para se aproximar do taumaturgo ibérico que foi Pascoal Martins. O evolucionismo existe e satisfaz a curiosidade de muitos poetas, sedentos de transcendência. Notável é, porque significativo, que Sampaio Bruno esperasse muito da prometida obra filosófica de Guerra Junqueiro, intitulada “A Unidade do Ser”.

A consciência cristã clama pela assistência do amor divino. Sampaio Bruno não era, porém, um místico. Acreditava “na eficácia da oração”, na “existência de seres espirituais superiores a nós e existindo fora de nós” num plano mediador entre a divindade e a humanidade, separadas em consequência da queda, que é mistério. A significação da palavra Universo é, para Sampaio Bruno como para Pascoal Martins, a de “reintegração dos seres”.

Sampaio Bruno não só afirma que “a angelogia é intuição positiva e a profecia é realidade anómala”, mas explica uma pela outra ao discutir o problema do contingente e do necessário. E se neste passo ocorre à lembrança a dificuldade kantiana de conciliar a moral com a ciência, pertinente é dizer que, entre Swedenborg e Kant, o filósofo português se inclinava preferentemente para o visionário sueco.

A voz do messianismo martinista, que voltaremos a ouvir em Fernando Pessoa, aconselha o poeta a exceder o lirismo, como aconselha o historiador a ascender do evento ao mito. Sampaio Bruno encontrava-se, por isso, em condições de derramar forte luz sobre a História de Portugal, conforme se induz da leitura de os artigos do “Plano de um livro a fazer”.

Sampaio Bruno pretendia ir além do trabalho efectuado por Marcelino Menendez y Pelayo na “História de Los Heterodoxos Españoles” e descobrir as heterodoxias inconfessadas; possuía, para tão grandioso empreendimento, a aptidão do filólogo, exercitada no estudo da fenomenologia da linguagem, e uma extraordinária erudição, admirada pelos contemporâneos; pela decifração de textos literários que a crítica positivista necessariamente exclui ou desvaloriza, ao considerá-los lendários e místicos, poderia o historiador atribuir a alguns problemas nacionais as soluções que, por verdadeiras, excedem a rigorosa narrativa dos factos. Infelizmente, a morte não permitiu que Sampaio Bruno concluísse o livro da revelação.


 

Interessante e digno de nota é que Sampaio Bruno, por constituir entre os doutrinadores republicanos, quase todos positivistas, uma excepção de relevo, teve a ventura de simultaneamente pensar e viver uma modalidade de messianismo.

Não será ousado dizer que o messianismo, no princípio deste século [XX], aos portugueses se revelou em diversas configurações, e só ele explica e denomina o carácter de propaganda republicana que outros levianamente chegaram a classificar de romântica e sentimental. A República foi um sonho colectivo, e à medida que as consciências iam despertando, num individualismo que desprende e que possibilita a crítica, com amargura verificavam não reconhecer naquela imagem que o escultor Simões de Almeida consolidou, o ideal que atraíra um povo esperançado.

É arbitrário negar essa vivência colectiva de messianismo; é fácil determinar retrospectivamente a debilidade da aspiração republicana; mas, nesse caso, o positivista, para julgar a política, terá de enveredar pela injúria à mentalidade nacional.

Nunca faltaram positivistas que se propusessem levar o Portugal atrasado à escola do estrangeiro; – mas essa tentativa pedagógica, em todas as gerações renovada, se consegue rectificar os espíritos mais débeis, pelo torturante método de Descartes ou de Hume, graças a Deus não anula as incompreendidas e tão mal julgadas virtudes dos portugueses.

... E eis que ressurgem os poetas nefelibatas, os filósofos abstrusos, os políticos sebastianistas, essa legião de retrógrados ou reaccionários que causam o desespero dos prefeitos dos colégios e dos polícias da cultura.

A verdade dominante é esta, por mais que custe aos positivistas de Londres ou de Paris: só pela morte da nacionalidade, a Portugal será possível tirar o jeito que lhe ficou de levar os europeus a conhecer as terras esquecidas. No dizer de Fernando Pessoa, ainda está reservado para Portugal um grande futuro. “E a nossa grande Raça partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas “daquilo de que os sonhos são feitos”. E o seu verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal ante-arremedo, realizar-se-á divinamente”».

Álvaro Ribeiro («Sampaio (Bruno)»).

 



O positivismo metafísico de Sampaio Bruno

 

A palavra «Deus» é a mais impositiva das noções místicas mantidas pela linguagem[1], – e tão impositiva que não perde o sentido autêntico e universal no meio das diferentes expressões glossolálicas dos grandes místicos. É claro que a universalidade duma noção como a contida na palavra «Deus», a fazer aí coincidir, no essencial, o pensamento dos diferentes idiomas, suscitará o problema da sua validez, isto é, do seu corresponder a algo objectivo (objectivo por ser igual para todos). Dada a inverificabilidade da existência de Deus, uma coisa positivamente e validamente se verifica: esse algo objectivo que põe a identidade intelecto-afectiva fundamental dos homens numa só Humanidade diante do mesmo Universo, e que irredutivelmente (quer dizer, pelo menos) é a esperança que na ideia de Deus se contém e à qual já chamei a dramática optimista das religiões[2].

As três palavras marcantes do misticismo residual verbalístico e prelógico de Sampaio Bruno são: em primeiro lugar, essa palavra «Deus», a de maior força afectiva, como vimos em todo o decurso desta análise crítica; a meio desse misticismo, está a palavra «revelação», como também vimos com suficiente clareza, julgo; por fim, já a perder uma força afectiva integrável na força realística para a positividade, temos a palavra «anjo». Não me parece necessário deter-me mais sobre o misticismo residual da ideia brunina de Deus, que é uma ideia-falsa; porque, depois de, materialisticamente, negar a realidade objectiva de Deus[3], e depois da fase de aceitação de Deus como um ideal (Feuerbach e Vacherot)[4], Bruno identificou Deus com a ideia de Mundo, o que degenera num ateísmo.

(...) Na concepção filosófica de Bruno, em que os seres provêm de Deus pela desdivinização na queda, opondo-se-lhe como uma nova realidade, segue-se que nós, os seres humanos, por essa mesma oposição que nos dá o sentido duma realidade independente, 1.º, ou pomos o problema de Deus sem o apriorismo emanatista que ignoramos, num «como se», como se houvesse dum lado o Mundo e, do outro lado, Deus a ser deduzido, positivistamente, dos dados conhecidos e necessários, os quais por sua vez sejam explicados pelo deduzido; 2.º, ou pomos o problema de Deus já com o apriorismo emanatista dogmático.

Já vimos que o primeiro modo de pôr o problema (colocando-nos no ponto de vista de Bruno) desfez-se no agnosticismo, ao exigir-se uma existência de Deus «com a evidência concreta da físico-química». O segundo modo, isto é, já no apriorismo emanatista, é sem sentido por ser inútil, porque Deus está então demonstrado por si e por tudo, só havendo lugar a desvendar o processo cósmico-divino, pois não será o caso de provarmos que Deus existe (já o admitimos antecipadamente ou já o presumimos ou já chamámos Deus à origem do Mundo), mas o de provarmos como participamos de Deus, viemos de Deus, vamos para Deus, como participamos da origem, viemos da origem, vamos para a origem, etc. Vem a propósito, por ser comum aos casos de emanatismo e panteísmo, a prova ontológica no teorema XX do Livro Primeiro da Ética panteísta de Espinosa: «A existência de Deus e a sua essência são uma e a mesma coisa»[5]. Ora, como por Deus Espinosa entende tudo o que existe ou a Substância, fora da qual nada existe ou é o nada (teorema XV do Livro Primeiro)[6], resulta que isto só é uma prova da existência de Deus porque, sem qualquer razão não mística, chamou-se Deus ao mundo (panteísmo) ou chamou-se Deus ao princípio donde o mundo emanou (emanatismo).




Eis como as dificuldades da criação do Mundo por Deus se suprimem por uma identificação de Deus com o Mundo, mas em que Deus fica reduzido a uma simples e arbitrária palavra, e a origem do Mundo fica sem solução. Metafísicos modernos têm procurado hegelianamente resolver as dificuldades a que a crítica submeteu a «criação» e salvar Deus ao mesmo tempo: Deus não criou o Mundo; é criado pelo Mundo. Há um impulso criador de evolução por emergência (o elemento superior saindo, emergindo, qualitativamente novo, do inferior, sem qualquer relação de causa-efeito), do que resultaram (G. Lloyd Morgan e Alexander) as etapas do movimento, matéria, vida e consciência, e de que resultarão as etapas anjos e deuses. Cada uma, a vir, será a divindade para a que a precede, acabando por ser Deus o mundo total com o seu progressivo impulso criador para a «divinização», isto é, para uma afirmação sempre maior de Deus, de modo que a divindade reconhecida é sempre inactual; projecta-se no futuro da evolução: «Alma do vasto mundo sonhando coisas a vir»[7]. Ou há, na variante de Whitehead, uma «criatividade» de que Deus é atributo e manifestação e, portanto, princípio de determinação e limitação de todo o devir[8]. Temos em Morgan ou em Alexander ou em Whitehead um panteísmo ou um emanatismo (desde que a confusão também aqui se estabeleça) em sentido inverso: em vez de vir de Deus para o Mundo, vai do Mundo para Deus; em vez dum panteísmo ou emanatismo (Deus é o Mundo, tudo vem de Deus), temos um teopanismo, neologismo sugerido por oposição, ou um emanatismo do Mundo para Deus: o Mundo é Deus, Deus vem do Mundo. Distingue-se do panteísmo imanente-transcendente do idealismo alemão, porque neste, Deus vai sendo a totalidade dialéctica do Ser, e, naquele, Deus projecta-se no futuro ou realiza-se nos últimos estádios da evolução cósmica. E regressa-se ao mero conceito positivista do facto – o Mundo em si e per si – pancosmismo fora do qual é o nada. Quer dizer, sem a criação por vontade de Deus, e que se quis suprimir como irracional e absurda, vemos, de qualquer modo, um ateísmo, porque considerar o Mundo uma Divinização, ou identificar Deus e o Mundo, ou considerar o Mundo uma desdivinização que regressa ao divino (transitório dualismo que volve ao monismo), é o mesmo que considerar o Mundo per si apenas. E a origem do Mundo continua sem solução. Aqui se mostra que só o criacionismo das religiões pode conter uma ideia válida e pura de Deus. O panteísta e o teopanista (para os quais Mundo e Deus se identificam, e que dizem: Deus existe) e o emanatista (para quem o Mundo, provindo de Deus e regressando a Deus, tem no trânsito em que é o Mundo o seu determinismo próprio, e que também diz: Deus existe), usam, todos, uma linguagem residualmente mística e muito ingénua, que, verdadeiramente, significa: o Mundo existe. Em termos de teologia constroem uma ateologia pancosmista.

Logo, quando Bruno afirma – «a ideia de Deus cumpre que se torne uma verdade»[9] – equivale a afirmar isto: a ideia de Mundo cumpre que se torne uma verdade; e esta verdade seria a explicação do processo cósmico, e processo cósmico na ordem do Necessário, isto é, do Necessário da Natureza ou da Razão, porque «a Natureza é Razão».

Fixemos bem este conceito de necessário. Tudo quanto existe, ou, também na linguagem brunina, tudo quanto Deus criou (não se esqueça que Bruno, anti-criacionista, emprega por vezes as palavras criação, criar, etc., como Eduardo de Hartmann, no sentido do fazer-se dum real que vem ou veio de Deus), tudo quanto Deus criou, quer dizer, tudo quanto de Deus emanou é, fundamentalmente, da ordem do Necessário. Equivale a isto: tudo o que é no Mundo é, fundamentalmente, da ordem do Necessário. Passemos, de novo, à linguagem teificante de Bruno, com a própria transcrição: «Deus não pode fazer nada sem razão. Logo o Mundo existe por um motivo suficiente e determinante. Nada existe arbitrária e contingentemente... Mercê do princípio da razão suficiente, que em Deus é absoluto, o que Deus fez é o que necessariamente devia fazer»[10]. A influência de Espinosa mostra as suas dedadas.




Ora se o processo cósmico é, assim, da ordem do necessário, resulta que a ciência desse processo cósmico (na Física como na Sociologia e na História) deverá possibilitar a previsão. Seja a previsão exacta como quer Bruno, ao impugnar a previsão incerta do probabilismo. A ciência da História seria a ciência do previsível comportamento geral dos homens e das nações.

(In Amorim de Carvalho, O Positivismo Metafísico de Sampaio Bruno, Sociedade de Expansão Cultural, Lisboa, 1960, pp. 265-266 e 95-98).



[1] Vid., meus ensaios in «Diário de Lisboa»: Filologia e Filosofia (7-5-1956) e A Mitologia verbal do pensamento arcaico (2-7-1956).

[2] Vid., meu livro, Deus e o Homem na poesia e na filosofia, pág. 231-242.

[3] Bruno, Análise da Crença Cristã, pág. 16 e 306.

[4] Id., A Geração Nova, pág. 57-58.

[5] Espinosa, Éthique, trad. de R. Lantzenberg, pág. 37.

[6] Id., ibid., pág. 27.

[7] G. L. Morgan, ensaios Emergent Evolution (1923) e Life, Mind and Spirit (1926); S. Alexander, Space, Time and Deity (1920).

[8] A. N. Whitehead, ensaio Process and Reality (1929).

[9] Bruno, A Ideia de Deus, pág. 481.

[10] Espinosa, Éthique, trad. de R. Lantzenberg, pág. 48-52 (teorema XXXIII).

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