quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Cunha Seixas e a Filosofia Portuguesa

Escrito por Álvaro Ribeiro


 



«Uma das surpresas reservadas ao historiador da cultura em Portugal é verificar que o positivismo foi em grande parte atacado por simples motivo de antipatia para com Teófilo Braga. Os inimigos do ilustre fundador da História da Literatura Portuguesa tinham necessariamente de ser detractores do Curso de Filosofia Positiva apenas porque Teófilo Braga buscava abonação na obra de Augusto Comte. Tivemos, por essa mesquinha razão de antipatia pessoal, muitos declarados antipositivistas que no íntimo eram iluministas ou socialistas, igualmente contrários à tradicional directriz do pensamento português.

Todo o homem ilustre tem de ter inimigos, como todo o corpo iluminado tem de ter a sua sombra. Aqueles que se orgulham de representar no palco da sociedade humana o papel de críticos, censores e delatores, nem de longe suspeitam que se encontram entre sombras caliginosas onde o destino os utiliza como seres privados de lúcida inteligência e de verdadeira liberdade. Escolhem, por táctica, uma posição doutrinária que contraria as ideias, os valores e os sentimentos que prefeririam defender, e, interiormente dilacerados, definham por incapacidade de realizar obra construtiva.

Teófilo Braga foi, certamente, de 1870 a 1910, a figura mais representativa da literatura portuguesa. Seja qual for o juízo que se forme sobre a sua obra, quando um dia vier a ser apreciada fora dos preconceitos de combate, a verdade é que a ela está referido, tácita ou expressamente, muito do que nesse período se escreveu. Da maioria dos que usaram da pena para combaterem a obra de Teófilo Braga, notados ontem sem que hoje sejam notáveis, ficaram apenas nomes que não seria piedoso lembrar.

(...) Ao longo da sua carreira de publicista, Cunha Seixas não mais deixará de atacar a personalidade de Teófilo Braga, utilizando para isso os processos permitidos pela crítica literária. Negará a Teófilo Braga as qualidades de escritor, apontando nos seus livros todos os lapsos de ortografia, os erros se sintaxe, as deselegâncias de construção; acusá-lo-á de plagiador, de ignorante, de mau intérprete dos autores lidos, para assim lhe negar saber e erudição; combaterá a má construção dos livros, discutirá a composição das doutrinas, e desvendará os paralogismos mais subtis. Embora proteste não pretender ofender, em Teófilo Braga, o “trabalhador infatigável”, não pode, contra todas as declarações em contrário, esconder a vingança latente duma inimizade insuperável.

As críticas de Cunha Seixas aos livros de Teófilo Braga: Miragens Seculares, História do Romantismo em Portugal, Questões de Arte e Literatura Portuguesa, História Universal – são peças de um processo de exame impiedoso, e por vezes mesquinho, de um ódio cuja expressão é apenas contida nos limites dos artigos de jornais. Cunha Seixas nega a Teófilo Braga a qualidade de filósofo, e demonstra que o seu positivismo, em quanto se afasta das citações de Augusto Comte, é puro e vulgar materialismo. Não viu, porém, que as correntes contrárias no pensamento de Teófilo Braga tornavam contraditórias a doutrinação materialista, própria do socialismo internacional, com a teoria da cultura nacionalista, própria da propaganda republicana.




Cunha Seixas, escolhendo para alvo da sua inimizade o principal arguente que lhe vedara o acesso à dignidade do magistério, e poupando nas suas críticas os outros cientistas agnósticos, não pôde observar o que na obra de Teófilo Braga era a primeira tentativa de formular a filosofia portuguesa, nem compreendeu o significado do advento do positivismo entre nós. Na sua forma de movimento da opinião pública, que irradiava por vários sectores políticos, o positivismo efectuava uma reacção contra o liberalismo e na medida em que se apresentava como o contrário do liberalismo, era uma formação notável de socialismo. A crítica ao positivismo, que competiria a um liberal como Cunha Seixas, e a um liberal de inspiração religiosa como a que dominava a tríade do pantiteísmo, só poderia ser eficaz no terreno da filosofia do Direito ou da filosofia da História.

Em luta procede durante anos, desde o insucesso do concurso até à data do seu falecimento, numa intensa campanha jornalística e numa série de livros que constituem uma obra digna de estudo. Naquele em que trabalhou com maior perícia, no livro Princípios Gerais de Filosofia, ainda aparece o positivismo atacado com a veemência usada nos anos anteriores. Ao positivismo dedica em especial a secção 2.ª do capítulo nono desta obra notável.

Este livro foi editado em 1898 por patrocínio de Ferreira Deusdado. Em prefácio intitulado Esboço histórico da filosofia em Portugal no século XIX, o editor fornece-nos uma útil bibliografia judiciosamente comentada. Segue-se, depois, uma nota biográfica sobre a personalidade de Cunha Seixas, a quem dedicara o conforto moral da amizade.

Não fica mal recordar, neste lance, a esquecida doutrina aristotélica, e ciceroniana, de que a amizade é a virtude preceituada e exaltada por quem se dedica à filosofia; não fica mal recordá-la, dizemos, quando a moral socialista tende a dissolver, em elementos de formação abstracta, todos os afectos e sentimentos de raiz personalista, como a admiração, a amizade e o amor. É sobre a amizade, convém lembrá-lo, que veraz se torna o sentido da fraternidade espiritual e de confraria religiosa, que se baseia a escola de arquitectura incompatível com o nivelamento igualitário, como é também contra a amizade que intrigam aqueles que levam as multidões invejosas a consentir na administração da cicuta, ou de outro veneno mais subtil mas de efeitos equivalentes, aos filósofos que sofrem acusação análoga àquela que incidiu sobre Sócrates e Pitágoras. Merece, pois, toda a nota de gratidão da posteridade a atitude nobilíssima de Ferreira Deusdado para com o inditoso filósofo Cunha Seixas.»

Álvaro Ribeiro («Os Positivistas»).


Fresco de Rafael (Scuola di Atene).

«Perguntaram-lhe: "Que é um amigo?" - "Uma só alma em dois corpos". (...) Interrogaram-no sobre o comportamento a ter com os amigos: "Como gostaríamos que se comportassem connosco". (...) Favorino também diz (Memórias, Livro II) que gostava de exclamar: "Ó meus amigos, não há amigo". E de facto podemos ler este dito no sétimo livro de Ética

A VIDA DE ARISTÓTELES segundo DIÓGENES LAÉRCIO

 

«Dadas as condições que tornaram neste país mais difícil ainda do que noutros a situação do filósofo, nada mais natural do que vermos hoje um dos mais dotados pensadores de Portugal, e porventura da Europa do seu tempo, ignorado enquanto viveu, silenciado após a morte. Os mais atentos à vida espiritual portuguesa, como Sampaio Bruno, os mais generosos como Leonardo Coimbra, referiram-se-lhe com escasso ou sonegado apreço ou muito simplesmente o ignoraram. Registam-se três excepções que a seguir devidamente situaremos: Ferreira Deusdado, Fidelino de Figueiredo, Álvaro Ribeiro.

(...) Formado em Direito (...), com diuturna prática forense, Cunha Seixas é um dos nossos pensadores contemporâneos que mais seriamente, desde Silvestre Pinheiro Ferreira, pôs o gravíssimo problema do conceito de justiça como das dificuldades de sua ampla e não ilusória efectivação. Em relação a ele, como a outros raros pensadores da nossa Península e da Europa, se poderia estabelecer uma correlação subtil entre os conceitos de espaço e tempo e os de justiça e liberdade: Cunha Seixas soube que num e noutro caso tais noções dependem de algo muito fundo no pensamento do homem e de muito alto na hierarquia do Ser.

Metafísico, mas já num sentido que persuade a rever o dessorado conceito da mais contestada forma do saber, apercebeu-se o nosso filósofo com sagacidade do renovado perigo que para a filosofia autêntica e para a nossa vida espiritual representava a nova escolástica, não já em nome de Deus e das relações da crença e da razão, mas em nome do homem e das relações da mente circunscrita pelo mundo da natureza e pelo mundo dos homens. Perante a escolástica positivista, perante a sua sistemática limitada, tão rígida e tão consequente com a vontade imperiosa, como inconsequente com a verdadeira razão arbitrariamente detida num momento do seu processo, e desarticulada da mais profunda razão de ser, Cunha Seixas vai ele próprio tentar um pensamento sistemático, que não na forma sem beleza ou radiação mas no alvo último lembra Schelling, afastando-se por outro lado, como décadas antes Silvestre Pinheiro Ferreira se afastara, das filosofias alemãs do devir, ou, para empregar os próprios termos do autor das Prelecções Filosóficas, dos “Heraclitos da Alemanha”.

Pode neste ponto perguntar-se se das filosofias do tempo e do devir, dos “Heraclitos da Alemanha”, Cunha Seixas não se afastou, ele também, incompreensivamente. Nós diríamos que sim, e importa-nos atendê-lo em relação ao mais meditado desígnio deste nosso estudo.»

José Marinho («Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo»).

 




«Pantiteísmo etimologicamente significa Deus em tudo. Cientificamente é o sistema que, formando a conjunção de todas as ciências e exibindo as determinações destas na permanência dos seus princípios e na evolução infinda que lhes compete, exibe uma síntese harmónica de leis universais sob a unidade do absoluto.»

Cunha Seixas (»Princípios Gerais de Filosofia»).

 

«A metodologia positivista das ciências, omitindo a metafísica, causou fundas desorientações na filosofia enquanto sistema, e terá contribuído para limitar o voo do espírito filosófico, que tem a vocação de viajar, em curso e recurso, do natural para o sobrenatural. De outro modo dito: de reflectir o sensível e o ideável. O pantiteísmo é, nesta circunstância, a tentativa de uma ressistematização filosófica, levada a efeito por José Maria da Cunha Seixas, como forma negativa (antipositivismo) e como forma afirmativa (proposta de um novo espiritualismo). A regra panteísta "tudo é Deus" surgia-lhe qual grave equívoco. O panteísmo que, fora da simbólica e da poética, não deixava de resumir-se ao extremo monismo que Espinosa compendiara, de modo a não permitir novas linhas de esclarecimento, surgia a Cunha Seixas como a oclusão dissolvente da causa primeira no próprio causado; e, neste mesmo acto de crítica ao panteísmo, Seixas não podia esconder as sugestões e as motivações que lhe advinham do alemão Krause, cujo idealismo, o panenteísmo, aprendera enquanto aluno de Direito em Coimbra, onde Krause, já directamente, já através dos seus discípulos belgas Ahrens e Tiberghien, era ensinado. A solução do krausismo para desenvolver e rectificar o monismo panteísta, levara ao panenteísmo: tudo está em Deus. E Deus e o Mundo reassumiam cada um a sua distinta seriedade, ainda que, para tanto, Deus nos seja aí proposto como o recipiente do Universo, como se o Universo, criado por Deus, não tivesse sido posto fora de Deus, para existir como criatura separada do Criador; ou como se a causa, tendo desferido o efeito, o efeito fosse desferido sem transferência de existência.

A definição de Deus em tudo significa que Deus, sendo Deus, está na sua obra, sem com ela se confundir. "A ideia de Deus não é uma criação do espírito mas exigência da própria realidade" (A. B. Teixeira, ob. cit., pág. 364) e, assim, o filósofo "tentou superar os reiterados embaraços do falso infinito, tentando a conciliação de imanência e transcendência, procurando não atribuir a Deus o que Deus em sua perfeição não solicita" (J. Marinho, ob. cit., pág. 76). O conceito seria vão, caso não gerasse um sistema, e não sabemos ainda se, na mente de Cunha Seixas, surgiu primeiro a nominação do sistema, ou se lhe surgiu o sistema a que deu a nominação. É possível que, visando opor-se ao primado, ou ametafísico, ou antimetafísico do positivismo, mas desejando distar-se da filosofia cristã e da teologia católica, tanto quanto equidistava de Espinosa e de Krause (para o que imergia nas derivantes aristotélicas, platónicas e kantianas, inteligidas de modo algo pessoal), é possível que o sistema lhe haja sido racionalmente revelado em corpo inteiro, já com o nome à cabeça. Esse sistema vinha a ser conjuntivo, por abarcar todas as ciências; dinâmico, por atender à permanência de princípios e à evolução infinda das ciências; espiritual, por afirmar o absoluto como princípio.»

Pinharanda Gomes («Pantiteísmo», in Dicionário de Filosofia Portuguesa).



Jesué Pinharanda Gomes


Cunha Seixas e a Filosofia Portuguesa


A história da filosofia em Portugal, no século XIX, é constituída por uma série de tentativas culturais a que a obra de Sampaio Bruno põe termo, num julgamento penetrante, severo, e definitivo. Ao enunciar, de maneira suficientemente clara, o problema da filosofia portuguesa, consegue o autor de A Ideia de Deus explicitar as várias e obscuras razões que necessitaram a falência dos esforços dos precursores.

Que aconteceu no decurso do século XIX?

À medida que ia sendo olvidada a tradição escolar das ordens religiosas, a relação com a teologia, – existente em todo o pensamento livre, mas evidente no pensamento filosófico, – deixou de ser considerada no ensino público; e os escritores leigos, que procuraram actualizar a cultura portuguesa pelo comércio com o estrangeiro, julgaram possível substituir o primado da teologia dogmática pelo da metafísica duvidosa ou da sociologia positiva; ora, seja por que for promovida, a eliminação da ideia de Deus equivale, efectivamente, ao desencontro com a verdade ou, na mesma, à desistência de filosofar.

Fiéis à teologia católica permaneceram alguns pensadores portugueses que não deixaram obra filosófica digna de brilhar nas condições culturais do século passado; mais interessante é a série dos livre-pensadores que tentaram definir, em termos heterodoxos, as novas relações da filosofia com a teologia; de entre estes é justo destacar, pelo seu excepcional valor, José Maria da Cunha Seixas.

A obscuridade que envolveu, até há poucos anos, o nome deste inditoso pensador, está explicada pela paixão sectária dos positivistas que o votaram a um desprezível esquecimento, e pela maledicência impiedosa dos literatos tristes que ridiculizaram os ensaios poéticos do filósofo extravagante. É certo que os escritos de José Maria da Cunha Seixas não primam pela austera beleza de estilo clássico nem pela euritmia numerosa da frase opulenta, antes denotam a descuidada facilidade de quem exprime em termos ingénuos um pensamento sincero que radica em perturbada vida sentimental. Dotado de temperamento apostólico, missionário e místico, não seguiu as vias da investigação penetrante e da especulação profética, preferiu escrever um estilo de combate e propaganda. Mas o historiador da filosofia que proceder ao exame dos livros elaborados por Cunha Seixas encontrará com surpresa uma obra, notável pela quantidade e pela qualidade.

Verifica-se, pela análise dos seus escritos, que Cunha Seixas possuía perfeito conhecimento da história da filosofia. Das doutrinas dos pensadores mais célebres e das discussões sobre os problemas decisivos traçava o resumo em expressões demasiadamente concisas, mas sempre diversas das banalidades dos compêndios e harmonizadas com os últimos requintes da erudição. Hábil e vigoroso argumentador, dispunha em boa ordem os elementos indispensáveis à refutação das doutrinas de que era adversário, conseguindo impor pela veemência do raciocínio as teses espiritualistas que outros não lograram defender, apesar de muita luxúria expressiva. Subordinou, enfim, todos os seus trabalhos filosóficos a uma intenção sistemática, que denominou Pantiteísmo (Deus em tudo), o que já é significativo de atitude de boa tradição portuguesa.

Contemporâneo de Antero de Quental, Cunha Seixas desenvolveu na linha coerente dos seus vários livros um pensamento unitário que merece ser cotejado com as inquietas reflexões do autor das «Odes Modernas» e que excede, sem dúvida, a altitude dos trabalhos de Silvestre Pinheiro Ferreira, Amorim Viana e Ferreira Deusdado, que se encontram acima dos positivistas.




José Maria da Cunha Seixas nasceu em Trevões, a 26 de Março de 1836. A sua educação, especialmente na infância, foi profundamente religiosa. A mãe do filósofo, cuja piedade se desenvolvia especialmente pela leitura e pela meditação da História Sagrada, era senhora dotada daquelas excelsas virtudes que influem beneficamente no ambiente familiar; o pai, desejoso de aperfeiçoar a instrução dos seus filhos, procurara nas circunstâncias provincianas a colaboração dos professores mais competentes e tivera de recorrer necessariamente aos meios eclesiásticos. Assim se explica que, aos 14 anos de idade, José Maria da Cunha Seixas tomasse ordens menores e que, completos os preparatórios para o ingresso na Universidade de Coimbra, se inscrevesse como aluno eclesiástico na Faculdade de Teologia.

Ferreira Deusdado observa, a este propósito, que a tão religiosas circunstâncias educativas se devem atribuir as tendências teístas do filósofo, «sua persistente preocupação». A observação é pertinente, mas apenas confirma, com mais um caso, o que regularmente se encontra nas biografias dos filósofos medievais, modernos e contemporâneos. Na vocação filosofal está sempre presente uma determinante religiosa, como na conversão religiosa a odisseia da maioria dos filósofos.

A filosofia aprendida, ou ensinada, sem vocação, nunca supera os resultados da técnica científica ou da crítica literária, e confessa o inevitável positivismo das escolas onde não existe a invocação ritual do nome de Deus.

Não foi, porém, da nobre Faculdade de Teologia que Cunha Seixas recebeu os graus universitários. Embora faltem notas biográficas sobre os motivos que levaram o estudante a inscrever-se na Faculdade de Direito, onde foi aluno distinto, parece lícito admitir, entre os principais, o enfraquecimento da fé cristã e a indisciplina perante a Igreja Católica. Na Faculdade de Direito exerciam então notável influência os professores Vicente Ferrer e Rodrigues de Brito que, pelo seu ensino, propagavam o sistema filosófico de Krause; Cunha Seixas, que estudou os krausitas belgas e espanhóis, e que utilizou citas de Ahrens e Tiberghien em vários trabalhos, pensou o seu pantiteísmo em oposição ao panenteísmo de Krause; mas o misticismo adquirido na adolescência perdura, transformado, na metafísica do pensador adulto. Ao concluir a sua formatura em direito, a 27 de Julho de 1864, Cunha Seixas estava já, de acordo com as ideias do seu tempo, apto a defender a atitude civilista, a que permaneceu fiel durante a vida inteira.

Habilitado com o diploma universitário, Cunha Seixas seguiu para Lisboa na intenção de exercer as três profissões liberais que floresciam na sociedade caracteristicamente burguesa: a advocacia, o jornalismo e o ensino particular.

O constitucionalismo abrira aos oradores e aos escritores indefinidas possibilidades de projecção política, que se tornavam realidades na governação e na administração públicas, excepto quando o poder militar, nas suas frequentes interrupções da ordem estabelecida, distribuía de novo modo as pastas dos ministérios. A feliz improvisação do discurso oral ou escrito, especialmente quando revelasse mediana cultura francesa, haveria de ter a máxima probabilidade de êxito numa época em que ainda não eram exigidas rigorosas condições de tecnicidade nos serviços públicos e em que não vigorava um critério objectivo para a designação dos melhores estadistas e para a formação do escol. Facilmente se compreende, pois, que, no constitucionalismo, a escolha de deputados, pares e ministros, estivesse condicionada pelo comportamento crítico dos oradores e dos escritores. A literatura influindo na política e adquirindo prestígio na sociedade, dominou a cultura portuguesa durante o século XIX.





Cunha Seixas era dotado de elocução fácil, fluente e persuasiva; redigia com habilidade jurídica os documentos exigidos pela prática forense; mas tinha íntima repugnância pela morosa burocracia dos tribunais. O ministério advocacional era-lhe por isso desgostante e torturante. Assim, no artigo biográfico que o Diário Ilustrado publicou, diz-se que Cunha Seixas: «Em 1879 sofreu pela sua boa-fé um enorme desgosto na sua vida de advogado que por perto de um ano abandonou, até que, animado pelos seus amigos e instado por muitos dos seus constituintes, voltou a exercer a profissão».

É próprio do filósofo considerar a advocacia dentro da sua missão providencial que assenta numa ética de infinita piedade humana. Aos santos chama o povo advogados, quando os invoca nas suas orações. A simples defesa dos direitos adquiridos, pelo recurso aos tribunais, é já uma advocacia de ordem inferior que terá de exercer-se por método dialéctico, incompatível, portanto, com o espírito filosófico. Deixando de se apoiar num elemento que transcende a lei, a advocacia dialéctica não é mais do que astuciosa manifestação daquele espírito saturnino que devora as crenças e, com elas, as instituições. A advocacia só é livre na medida em que pode suplicar a entidade que se encontra acima do direito e que, por isso, contacta já com o plano divino. 

Civilista, José Maria da Cunha Seixas não confiava na tradição do direito divino dos reis, mas nada esperava também do providencialismo das revoluções. Admirador do Marquês de Pombal, que considerava precursor da Revolução Francesa, propugnou pela extensiva realização das ideias igualitárias dentro da legalidade estabelecida pelo constitucionalismo liberal. Cunha Seixas é, efectivamente, um dos representantes daquela decadência do pensamento monarquista que, forçado pelo positivismo, se acentua no reinado de D. Luís e termina pela admissão da experiência republicana. Neste ponto aparece bem nítido que o erro da indecisão metafísica de Cunha Seixas consistiu em não ver que a política progressista, dissolvendo levianamente o vínculo português entre a Igreja e o Estado, incorria no perigo de descer a escala que vai da teologia para a sociologia. O mesmo perigo foi visto, com máxima lucidez, pelos raros doutrinadores republicanos que não perfilharam o positivismo. Eis o que confere excepcional superioridade à crítica de Sampaio Bruno.

Cunha Seixas militou em alguns dos partidos políticos e da sua abnegação foi recompensado com o desengano, tal como aconteceria a outros filósofos portugueses. É que o filósofo, qualquer que seja a sua relação com a política nacional, não pode permanecer subordinado à limitada orientação de qualquer partido. Educador de políticos, mais do que de político, o filósofo procede segundo uma visão futurista, pelo que virtualmente se antecipa a toda a actividade social. Compreende-se, portanto, que os homens de vontade e acção, dirigentes empíricos das organizações partidárias, releguem para um plano minorativo a colaboração dos filósofos que lhes pode ser útil num período de doutrina e de propaganda, mas que lhes será incómoda, e nociva logo que ascendam à plenitude de governação. No ano de 1880, o partido progressista, em que Cunha Seixas se encontrava filiado, subiu ao poder. Surgiria, portanto, a oportunidade de os governantes convidarem o seu  compartidário de excepcional valor a prestar à Nação muitos úteis serviços, entre os quais estaria, sem dúvida, incluída a reforma do Curso Superior de Letras nos termos preconizados pelo filósofo na Galeria de Ciências Contemporâneas. Mas Cunha Seixas, em vez de se manter na expectativa, não resistiu aos ímpetos dominantes do seu temperamento e apressou-se a escrever no Diário do Comércio uma série de artigos pela qual exigia o cumprimento do programa político e combatia todos os desvios da directriz ministerial. A independência da sua crítica não era compatível com a disciplina partidária. Em breve prazo reconheceu não serem os caminhos da política militante os mais próprios para quem se propõe, acima de tudo, defender a Verdade, a Beleza e a Bondade, afirmar o primado da vida espiritual.





A filosofia não se prolonga em política, mas perpetua-se pela actividade docente. Toda a influência da filosofia na sociedade se exerce por intermédio da escola. Noutras modalidades de cultura, poderá ser diferente o critério apreciativo; na tradição filosófica, porém, mais importante é a relação do mestre com os discípulos do que a do escritor com o público. A arte da filosofia depende da vida da oração. Os escritos podem autenticar o valor de uma personalidade, mas não provam, por isso, que o seu autor haja cumprido a missão filosofal: transmitir a vida do pensamento próprio, iluminado por graça divina, a outros homens que de tão sublime revelação se testemunham agradecidos.

Não sabemos se Cunha Seixas exerceu o ensino naquelas escolas livres de tipo socrático a que hoje damos a designação de tertúlias; sabemos que praticou o ensino particular em alguns colégios de Lisboa, e que escreveu também dois compêndios para uso das escolas liceais e comerciais. Foi-lhe vedado, todavia, ascender ao magistério universitário, onde desejaria formar discípulos, e não pôde, portanto, conferir ao pantiteísmo as condições indispensáveis para uma difusão benéfica na sociedade portuguesa.

Não pode ser omitido, na biografia de Cunha Seixas, o episódio do concurso para professor da Cadeira de História universal e pátria no Curso Superior de Letras. Não pode ser omitido, porque determina e explica, em grande parte, a obstinação da polémica de Cunha Seixas contra o positivismo dominante. Mas, além disso, o episódio é significativo porque inaugura uma atitude a que o Curso Superior de Letras permanecerá fiel, e que constituirá depois uma tradição respeitada pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Toda a escola superior deve ser ciosa da unidade nas doutrinas que professa e propaga, pelo que se compreende que evite recrutar novos membros do seu corpo docente entre as personalidades que se manifestem discordes da ortodoxia estabelecida: a dificuldade consiste, porém, em conciliar a fidelidade à tradição venerada com a admissão dos heterodoxos, consentida pelo liberal regime dos concursos públicos.

A narrativa do concurso de 1878-79 encontra-se resumida no capítulo IV de um livro que, por ser muito útil para o estudo do positivismo em Portugal, nos parece digno de menção. Referimo-nos à dissertação do Sr. Dr. Manuel Busquets de Aguiar, intitulada O Curso Superior de Letras (1858-1911).

O concurso foi aberto em consequência do falecimento do professor Augusto Seromenho, colaborador das «Conferências do Casino» e paleógrafo ilustre.

Sabendo-se que Teófilo Braga exercia o magistério positivista desde 1872, compreende-se facilmente o interesse do Curso Superior de Letras em não deixar sentar na cadeira vaga um homem que contradissesse as doutrinas de Augusto Comte.

Diz o Sr. Dr. Manuel Busquets que se apresentaram como candidatos, Alberto Augusto de Almeida Pimentel, José Maria da Cunha Seixas, Manuel de Arriaga Brun da Silveira, e Zófimo José Consiglieri Pedroso Gomes da Silva. Alberto Pimentel desistiu do concurso, os três candidatos que prestaram provas foram aprovados por unanimidade, mas a escolha recaiu logicamente no positivista Consiglieri Pedroso que havia sido aluno da escola.

Teófilo Braga

«Com data de 17 de Janeiro desse ano – informa-nos o autor citado –, fez Cunha Seixas um enérgico protesto contra a decisão do júri, e dirigindo graves censuras a Teófilo Braga, que acusou de falta de imparcialidade, no que devia ter tido razão, dadas as diferenças de ideias do candidato e do argumentador. Teófilo Braga tinha tão pouca confiança na sua defesa, que a fez por carta confidencial para que não ficassem provas das suas afirmações, o que é para admirar, dado o costumado desassombro das suas atitudes»[1].

A injustiça dos concursos é tardiamente demonstrada pela lição dos historiadores. O Curso Superior de Letras, já que defendia o positivismo, fez muito bem em eleger Consiglieri Pedroso; a cultura portuguesa, porém, não recebeu benefício de tão legítima escolha. Ao compararmos hoje a bibliografia de Consiglieri Pedroso com a de Cunha Seixas, a vocação docente de um e a de outro, podemos lamentar que o verdadeiro filósofo tivesse sido afastado do convívio com os estudantes e condenar, para sempre, os malefícios da indiscutida ficção igualitária dos concursos promovidos para dar satisfação ao público!

Cunha Seixas teria, pois, que recorrer à imprensa para comunicar o seu pensamento aos espíritos de escol e para tentar influir na sociedade portuguesa; exercendo o jornalismo, na qualidade de redactor profissional ou de assíduo colaborador, e coligindo em volumes os artigos mais significativos e mais brilhantes, procurou o filósofo aperfeiçoar e explicitar a obscura doutrina pantiteísta que tão pouco interessaria aos escritores contemporâneos. Apesar de interrompida por frequentes expressões de desânimo, – desculpáveis, aliás, num pensador sincero e num homem infeliz – a propaganda do pantiteísmo abrange um período de mais de trinta anos!...

O bibliógrafo terá de encontrar, certamente, muitas dificuldades quando proceder ao inventário de todos os escritos de Cunha Seixas, mas, ao folhear a imprensa do século passado, irá sendo agradavelmente surpreendido com a intenção educativa ou, digamos, cultural da maioria dos jornais que se publicavam no nosso País. Sirva de exemplo o Comércio de Portugal, onde Cunha Seixas pôde inserir alguns dos melhores escritos. Esse diário de grande formato dedicava sempre a primeira das suas quatro páginas, e parte da segunda, exclusivamente à publicação de artigos sobre questões científicas, literárias ou políticas, para assim permitir aos leitores a formação de opiniões diversas perante a variedade das doutrinas; pelo contrário, comprimia as notícias nas fórmulas de mais sóbria objectividade, sem expressões alarmantes, e reduzia os anúncios aos termos elementares e informativos; o mais importante jornal burguês obedecia assim àquelas normas de honestidade que condicionaram a rara placidez dos tempos idos. A melhor imprensa novecentista parece ter estado, efectivamente, ao serviço do autodidacta que se propunha adquirir habilitações literárias para subir de plano social, ou para fiscalizar a administração pública; correspondia, dessa maneira, à possibilidade de formação de um novo escol, numa época de indeterminação aristocrática, motivado pela decadência do Clero, da Nobreza e das corporações profissionais. No século XX, porém, já a imprensa desistia da missão educativa para exercer a função de propaganda, e até de combate, honrando-se mais com a extensão da tiragem do que com o elenco dos colaboradores.

Bibliófilo, Cunha Seixas na imprensa critica obras literárias e filosóficas de autores portugueses e estrangeiros, em artigos que contêm sempre vestígios de uma leitura inteligente, ainda quando destituídos de plano construtivo e de elegância formal. Se é lícito deixar na margem do esquecimento os artigos de crítica às obras literárias de Bulhão Pato, Simões Dias, António Macedo Papança, Ernesto Marecos, Reis Damaso, Acúrcio Garcia Ramos, A. L. Gonçalves de Freitas, A. C. Borges de Figueiredo, Zeferino Brandão, J. S. de Sousa Fernandes, já não pode o estudioso deixar de se referir à crítica filosófica das obras de Teófilo Braga e de Domingos Tarroso.







Humilhado no concurso de 1878, Cunha Seixas procuraria denunciar os erros existentes na obra do seu inimigo. Para tornar mais copioso o mostruário, começava por apontar os lapsos de ortografia e de sintaxe, prosseguia depois na descoberta de erros de facto e de inexactidões históricas, para, finalmente desnudar as contradições do doutrinador positivista. Assim analisou as obras intituladas História Universal, História do Romantismo em Portugal, Miragens Seculares e Questões de arte e literatura portuguesa em artigos que, pelo carácter acrimonioso, não deixariam de ser apreciados entre os invejosos do ilustre historiador da literatura. Mas a parcela mais valiosa da crítica de Cunha Seixas, aquela que ainda conserva interesse filosófico, residia na demonstração de que Teófilo Braga, procedendo como revolucionário político, não poderia manter-se na disciplina ortodoxa do reacionário Augusto Comte, pelo que teria naturalmente de resvalar do positivismo para o materialismo.

Com efeito, o positivismo é um sistema de transição, parte de um socialismo para chegar a outro socialismo, porque nega a legitimação metafísica e teológica da liberdade.

A crítica de Cunha Seixas, ao denunciar as proposições materialistas que encontrava na obra do teorizador da República positivista, consistia, afinal, em explicar a infidelidade ao cientismo pela necessária admissão, consciente ou inconsciente, da metafísica em qualquer sistema filosófico. Tal crítica, de estilo didáctico, análoga à que havia sido formulada por outros filósofos europeus, não possuía a virtude indispensável para refutar o positivismo já dominante em Portugal. Crítica eficiente, porque de tradição portuguesa, só mais tarde, e no Porto, seria inaugurada por Sampaio Bruno que assim caracterizou o movimento precursor: «Este movimento reconstrutivo operou-se deficientemente entre nós, porque quedou nas ambições metafísicas dos Srs. Domingos Tarroso e Cunha Seixas, nos reptos intermitentes de Antero de Quental e nas indecisões teoréticas de Oliveira Martins»[2]. Não podia ser expressa em termos mais claros a notável condenação de Sampaio Bruno.

A série mais brilhante de artigos de crítica filosófica é aquela em que Cunha Seixas se demora na apreciação do pensamento cientista de Domingos Tarroso. O nosso filósofo louva o raro empreendimento de Domingos Tarroso publicar A Filosofia da Existência num país onde predominam os historiadores, e fala com admiração da cultura do autor, sabendo que ele é um voluntarioso autodidacta de pouco mais de vinte anos. Não deixa, porém de impugnar com argumentação penetrante, e por vezes dissolvente, a obra de Domingos Tarroso que replica em cartas, sem conseguir restabelecer na primitiva integridade as teses duramente refutadas.

Esta discussão interessa sobremaneira ao historiador da filosofia em Portugal, porque oferece certa semelhança com a crítica que mais tarde será feita por Sampaio Bruno ao pensamento racionalista do matemático Amorim Viana.

Domingos Tarroso procurou elaborar um sistema de filosofia científica, aceitando o atomismo sem professar, todavia, o materialismo, posto que admitira a distinção existentiva entre Deus e a Natureza. Cunha Seixas mostra que, não atribuindo substância ao objecto das ciências noológicas, Domingos Tarroso contradiz-se num nihilismo final que suscita um pessimismo análogo aos de Schopenhauer e de Hartmann. Mais ainda: a aventura de conciliar, no mesmo sistema, a excessiva confiança na imutabilidade das leis naturais, com o princípio explicativo da contínua evolução, e de cindir a teoria do conhecimento pela distinção entre qualidades primeiras e qualidades segundas, a que era impelido pelo atomismo, obrigaria Domingos Tarroso a dissolver a Natureza no fantasma do Nada, sem lhe opor sequer uma teodiceia de nítidas linhas significativas.




A esta doutrina opõe Cunha Seixas uma constante defesa da metafísica, que julga menos considerada pela tendência experimentalista de Domingos Tarroso, e, também, a hipótese da preexistência das leis do espírito humano característica do racionalismo europeu. Mas, da amigável discussão entre estes dois homens cultos, não poderia nascer qualquer luz. Pelo contrário, da crítica de Sampaio Bruno a Amorim Viana, condenatória do racionalismo e da metafísica, haveria de resultar um enunciado mais preciso do problema da filosofia portuguesa.

Criticou Cunha Seixas o livro «Poemas Modernos», da autoria de Domingos Tarroso. Discutiu demoradamente o prefácio, intitulado «A evolução e a poesia culta», e analisou depois alguns poemas, observando o carácter panteísta e pessimista da poesia do autor. Esta série de artigos, de diminuto valor, contém todavia na conclusão uma doutrina que viria a ser de muita importância para a filosofia portuguesa: Cunha Seixas opõe à teoria naturalista dos sexos, vulgar entre os pessimistas, o pensamento optimista da solidariedade universal e da satisfação do sentimento do belo pela realidade do amor.

Outro notável estudo é constituído pela série de artigos de crítica à conferência do Sr. José Maria da Ponte da Horta, acerca dos infinitamente pequenos. Cunha Seixas analisa, com o máximo rigor, as noções do corpo, matéria, átomo, éter e energia, para depois impugnar a afirmação materialista, feita pelo orador, de que a vida é o produto necessário das leis da matéria e da energia. Desenvolve depois algumas considerações sobre a aporia do uno e do múltiplo, com referência aos argumentos de Zenão de Eleia contra a inteligibilidade do movimento, afirmando o primado da unidade metafísica sobre a pluralidade experimental.

Aquiles e a tartaruga

As críticas às obras de pensadores estrangeiros, também lhe serviam de temas para artigos de jornal. Cunha Seixas, apesar de descontente com a cultura portuguesa, não descia ao ponto de aconselhar incondicionalmente aos leitores seus contemporâneos os livros recebidos de Além-Pirenéus; sempre os apreciava com aquela independência de juízo que caracteriza o livre-pensador, se não com aquele orgulho legítimo em quem se apresenta como fundador de um sistema original. Tão longe do isolamento cultural que necessariamente degenera em mesquinho passadismo, como da subserviência ao pensamento estrangeiro, manifestada pela frenesia das traduções, Cunha Seixas soube manter-se numa posição equilibrada e digna para a filosofia portuguesa. Verdade é também que, na extensa bibliografia do erudito Cunha Seixas, resulta mínimo o trabalho de tradução. O bibliógrafo apenas regista traduções ou imitações, em verso, no livro intitulado Estreias que se publicou em 1864.

Diz-nos, Brito Aranha, o continuador da obra de Inocêncio Francisco da Silva, que o livro Estreias continha cinco partes. 1.ª – Poesias diversas; 2.ª – Traduções ou imitações, em verso; 3.ª – Lamentações, em prosa; 4.ª Esboços morais e políticos; 5.ª Considerações sobre o iberismo, em que se defende calorosamente a independência de Portugal. Vê-se, pois, que nos escritos reunidos em Estreias se encontram já as directrizes dos futuros trabalhos do autor. Efectivamente, nos ensaios literários, filosóficos, jurídicos e didácticos que constituem a vasta bibliografia de Cunha Seixas, o autor desenvolve, estimulado pelos aspectos da cultura sua contemporânea, um pensamento sempre subordinado à mesma oculta ou mística unidade.

Dois livros se destacam, porém, que, pela boa composição literária em capítulos de graduada complexidade, se nos afiguram serem os trabalhos tecnicamente mais perfeitos: a Galeria de Ciências Contemporâneas e os Princípios Gerais de Filosofia.

O primeiro, redigido logo a seguir ao concurso de 1878, é constituído pela crítica à estrutura do Curso Superior de Letras, condenada aliás por outros escritores competentes, e contém uma proposta do ensino que deveria ser ministrado na nova escola de humanidades. A cada uma das «cadeiras», consideradas indispensáveis num instituto de nível europeu, dedica o pedagogista um ou mais capítulos, descrevendo as origens, as vicissitudes históricas e a situação actual da ciência que corresponde à respectiva disciplina, e faculta, por vezes, alguns preceitos de metodologia e de didáctica. A Galeria de Ciências Contemporâneas é, pois, um estudo que pode ainda hoje ser lido com muito proveito.


Ferreira Deusdado

O segundo dos livros que merece maior referência, intitula-se Princípios Gerais de Filosofia. O autor, que faleceu no dia 27 de Maio de 1895, não pôde ultimá-lo com aquele aperfeiçoamento que desejaria, pelo que da publicação de tão valiosa obra se encarregou Ferreira Deusdado, dedicado amigo de Cunha Seixas. Na «Notícia biográfica do autor», Ferreira Deusdado relata-nos o seguinte:

«O presente livro que hoje vem a público não é senão a primeira parte duma obra maior em que o autor esgotou toda a sua vida.

Tendo publicado volumes diversos, só a esta obra ele chamava o seu livro.

Chegou a fazer imprimir essa obra inteira, faltando só o resto e o índice; dessa impressão fez brochar alguns pouquíssimos exemplares que deu para serem lidos a especialistas íntimos.

Estando as folhas assim impressas na tipografia, deu-se aí um desastre casual, que as inutilizou absolutamente a todas. Um desses exemplares brochados serviu de original e começou a reimprimir a obra em tipo e formato diversos.

Achavam-se as folhas impressas desta primeira parte, não ainda feita a impressão do título, do prólogo, nem do índice, quando o autor foi colhido pela morte. Essas folhas incompletas, algumas truncadas, foram no seu espólio de inventário judicial vendidas como papel a peso para embrulhos e adquiridos já em segunda mão pelo Sr. Eduardo Augusto da Cunha Seixas, que zelosamente as fez juntar e completar para editar este livro»[3].

A obra de Cunha Seixas não exerceu apreciável influência no pensamento dos contemporâneos e foi caindo a pouco e pouco no mais injusto esquecimento. Todas as injustiças são explicáveis, dependendo embora a respectiva inteligência das alterações da axiologia que o tempo se encarrega de operar. Os valores dominantes depois da questão «Bom Senso e Bom Gosto» foram adversos às tendências místicas do pensador que não aceitava o realismo na literatura, o positivismo na filosofia e o republicanismo na política; para ser estimado pelos escritores mais novos, deveria Cunha Seixas pertencer aos cenáculos dos literatos revolucionários, em vez de acompanhar o movimento progressista e liberal; para que os historiadores arrancassem o seu nome do olvido, seria indispensável esperar pela hora de rever a cultura legada pelo século passado.

Mais interessa, porém, abandonar o plano de contingência histórica e verificar se a obra de Cunha Seixas representa, para além do tempo, uma contribuição perdurável para a filosofia portuguesa. A este problema que é, sem dúvida, o mais importante, não é possível atribuir uma solução positiva.

Nos livros de Cunha Seixas verifica o examinador as mesmas deficiências que desvalorizam e inutilizam muitos dos trabalhos filosóficos dos portugueses mais cultos.

Ao procurar resolver distintamente cada problema filosófico, o autor erudito enumera as soluções que foram sucessivamente propostas pelos pensadores europeus, ainda que de segunda ou terceira ordem, critica-as e porventura refuta-as, para apresentar imediatamente o seu ponto de vista pessoal. O autor parece ignorar o que mais lhe competia descobrir: que o mesmo problema tem uma história em Portugal, implícita nas obras religiosas e literárias, se não explícita em trabalhos de carácter filosófico. Assim, desligando-se da tradição nacional para atender apenas à erudição estrangeira, o autor desenraizado sujeita-se a ver envelhecer esterilmente a sua obra, à medida que, para além das fronteiras, se vai modificando o panorama cultural. Poucos anos bastam para que os livros assim construídos deixem de ter qualquer interesse para os nacionais.

Embora seja inútil indagar das razões que levam os escritores portugueses a proceder de tal modo para com antepassados e contemporâneos, vale a pena apontar o contraste com os autores estrangeiros: estes, pelo contrário, raramente deixam de se filiar na tradição pensante da sua nacionalidade.




Em consequência deste defeituoso processo na composição dos seus livros, não foi dada a Cunha Seixas a possibilidade de determinar quais têm sido, na filosofia portuguesa, os problemas constantes e de os relacionar com os problemas adventícios de duração efémera.

Animado de adversidade para com a Escolástica, não se encontrava disposto a estudar as obras dos nossos filósofos anteriores à reforma pombalina da Universidade de Coimbra. Não admitiu, talvez, que seria possível distinguir, por método filosófico, na literatura dos séculos passados, os pensamentos diversos que se exprimiam em fórmulas comuns, e não suspeitou, sequer, da existência de uma tradição imperativa, a que obedecia ao lutar contra o positivismo. Não soube ler a obra de Teófilo Braga, não descobriu a influência que no pensamento português havia exercido a prosa de Dante.

Dentro da Escolástica foram dadas soluções várias ao problema das relações da teologia com a filosofia[4]. Fora da Escolástica, o livre-pensamento encontraria para o mesmo problema novas e diferentes soluções. E se, na segunda metade do século XIX, houve quem visse no livre-pensamento uma atitude compatível com o ateísmo, deve-se o facto a uma lamentável decadência da cultura portuguesa. Os problemas do Curso Superior de Letras, professores portugueses de filosofia estrangeira, orientaram a política nacional para a República Positivista.

Todas as tentativas agnósticas, em Edmundo Husserl, para construir uma filosofia estritamente científica equivalem a revoltas contra a tradição e permitem a aceitação do ateísmo; mas essas tentativas assentam exactamente na limitação negativa da liberdade de pensar. O ateu não é um livre-pensador, porque o pensamento, (desde que a esta palavra se atribua o significado filosófico, em vez da definição vulgar que pode ser registada por qualquer dicionarista) não subsiste fora da misteriosa relação da consciência humana com a realidade divina.

Cunha Seixas interpretava essa inefável relação em termos de misticidade, conforme se depreende da designação geral de Pantiteísmo. Sem aprofundar o estudo das teorias do mal e do erro, e, com elas, a do destino humano, procurou difundir as parcelas de verdade e de bem que ia adquirindo pelo digno esforço da leitura e da meditação. Nunca esqueceu, porém, que a filosofia tem de estar de algum modo relacionada com a teologia, e tanto basta para que o seu nome seja digno de figurar na história da filosofia portuguesa.

Ensinaram-lhe os pensadores alemães que o problema das relações do finito com o infinito assume a mais alta importância no domínio da filosofia. O vulgo considera o infinito apenas no espaço ou no tempo, sem suspeitar que a crítica brevemente desfaz tão rudes ilusões; o filósofo, reconhecendo os limites das condições terrestres, procura o infinito criador nos mundos supernos ou infernos; assim, na filosofia o infinito aparece como atributo de Deus, dando motivo à formação de uma teologia, ou permanece ínsito no poder inconsciente que constrói e destrói as coisas finitas, e que, de sistema para sistema, pode adquirir diversa denominação.

É inegável que a tradição portuguesa, pela sua oposição ao dogma da imutabilidade das leis naturais, consiste na mais autêntica fidelidade à atitude de considerar o verdadeiro infinito em Deus.




Deixando atrás de si a cultura mediterrânea, que ainda não possuía o autêntico conceito de infinito, e abrindo para além do Atlântico horizontes ainda não ultrapassados pelo pensamento europeu, a filosofia portuguesa, foi pouco a pouco tomando consciência da sua originalidade. No pantiteísmo de Cunha Seixas, no messianismo de Sampaio Bruno, no criacionismo de Leonardo Coimbra encontram-se elementos que permitem habilitar a filosofia portuguesa a exercer a missão que porventura lhe esteja destinada. Queiram agora as novas gerações reconhecer o primado da filosofia sobre a política, para que se possa, enfim, realizar tão admirável prodígio!...  

(In 57 – Movimento de Cultura Portuguesa, Ano III, n.º 6 (Março, 1959), pp. 14-19).



[1] Manuel Busquets de Aguiar, O Curso Superior de Letras.

[2] Bruno, O Brasil Mental, pág. 245.

[3] Ferreira Deusdado. In: Cunha Seixas – Princípios Gerais de Filosofia.

[4] Sobre a Escolástica ler o Capítulo II do Esboço histórico-literário da Faculdade de Teologia pelo Dr. Manuel da Mota Veiga.

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