Escrito por Álvaro Ribeiro
«Uma
das surpresas reservadas ao historiador da cultura em Portugal é verificar que
o positivismo foi em grande parte atacado por simples motivo de antipatia para
com Teófilo Braga. Os inimigos do ilustre fundador da História da Literatura
Portuguesa tinham necessariamente de ser detractores do Curso de Filosofia Positiva apenas porque Teófilo Braga buscava
abonação na obra de Augusto Comte. Tivemos, por essa mesquinha razão de
antipatia pessoal, muitos declarados antipositivistas que no íntimo eram
iluministas ou socialistas, igualmente contrários à tradicional directriz do
pensamento português.
Todo
o homem ilustre tem de ter inimigos, como todo o corpo iluminado tem de ter a
sua sombra. Aqueles que se orgulham de representar no palco da sociedade humana
o papel de críticos, censores e delatores, nem de longe suspeitam que se
encontram entre sombras caliginosas onde o destino os utiliza como seres
privados de lúcida inteligência e de verdadeira liberdade. Escolhem, por táctica,
uma posição doutrinária que contraria as ideias, os valores e os sentimentos
que prefeririam defender, e, interiormente dilacerados, definham por
incapacidade de realizar obra construtiva.
Teófilo
Braga foi, certamente, de 1870 a 1910, a figura mais representativa da literatura
portuguesa. Seja qual for o juízo que se forme sobre a sua obra, quando um dia
vier a ser apreciada fora dos preconceitos de combate, a verdade é que a ela
está referido, tácita ou expressamente, muito do que nesse período se escreveu.
Da maioria dos que usaram da pena para combaterem a obra de Teófilo Braga,
notados ontem sem que hoje sejam notáveis, ficaram apenas nomes que não seria
piedoso lembrar.
(...)
Ao longo da sua carreira de publicista, Cunha Seixas não mais deixará de atacar
a personalidade de Teófilo Braga, utilizando para isso os processos permitidos
pela crítica literária. Negará a Teófilo Braga as qualidades de escritor,
apontando nos seus livros todos os lapsos de ortografia, os erros se sintaxe,
as deselegâncias de construção; acusá-lo-á de plagiador, de ignorante, de mau
intérprete dos autores lidos, para assim lhe negar saber e erudição; combaterá
a má construção dos livros, discutirá a composição das doutrinas, e desvendará
os paralogismos mais subtis. Embora proteste não pretender ofender, em Teófilo
Braga, o “trabalhador infatigável”, não pode, contra todas as declarações em
contrário, esconder a vingança latente duma inimizade insuperável.
As
críticas de Cunha Seixas aos livros de Teófilo Braga: Miragens Seculares, História
do Romantismo em Portugal, Questões
de Arte e Literatura Portuguesa, História
Universal – são peças de um processo de exame impiedoso, e por vezes
mesquinho, de um ódio cuja expressão é apenas contida nos limites dos artigos
de jornais. Cunha Seixas nega a Teófilo Braga a qualidade de filósofo, e
demonstra que o seu positivismo, em quanto se afasta das citações de Augusto
Comte, é puro e vulgar materialismo. Não viu, porém, que as correntes
contrárias no pensamento de Teófilo Braga tornavam contraditórias a doutrinação
materialista, própria do socialismo internacional, com a teoria da cultura
nacionalista, própria da propaganda republicana.
Cunha
Seixas, escolhendo para alvo da sua inimizade o principal arguente que lhe
vedara o acesso à dignidade do magistério, e poupando nas suas críticas os
outros cientistas agnósticos, não pôde observar o que na obra de Teófilo Braga
era a primeira tentativa de formular a filosofia portuguesa, nem compreendeu o
significado do advento do positivismo entre nós. Na sua forma de movimento da
opinião pública, que irradiava por vários sectores políticos, o positivismo
efectuava uma reacção contra o liberalismo e na medida em que se apresentava
como o contrário do liberalismo, era uma formação notável de socialismo. A
crítica ao positivismo, que competiria a um liberal como Cunha Seixas, e a um
liberal de inspiração religiosa como a que dominava a tríade do pantiteísmo, só
poderia ser eficaz no terreno da filosofia do Direito ou da filosofia da
História.
Em
luta procede durante anos, desde o insucesso do concurso até à data do seu
falecimento, numa intensa campanha jornalística e numa série de livros que
constituem uma obra digna de estudo. Naquele em que trabalhou com maior
perícia, no livro Princípios Gerais de
Filosofia, ainda aparece o positivismo atacado com a veemência usada nos
anos anteriores. Ao positivismo dedica em especial a secção 2.ª do capítulo
nono desta obra notável.
Este
livro foi editado em 1898 por patrocínio de Ferreira Deusdado. Em prefácio
intitulado Esboço histórico da filosofia
em Portugal no século XIX, o editor fornece-nos uma útil bibliografia
judiciosamente comentada. Segue-se, depois, uma nota biográfica sobre a
personalidade de Cunha Seixas, a quem dedicara o conforto moral da amizade.
Não fica mal recordar, neste lance, a esquecida doutrina aristotélica, e ciceroniana, de que a amizade é a virtude preceituada e exaltada por quem se dedica à filosofia; não fica mal recordá-la, dizemos, quando a moral socialista tende a dissolver, em elementos de formação abstracta, todos os afectos e sentimentos de raiz personalista, como a admiração, a amizade e o amor. É sobre a amizade, convém lembrá-lo, que veraz se torna o sentido da fraternidade espiritual e de confraria religiosa, que se baseia a escola de arquitectura incompatível com o nivelamento igualitário, como é também contra a amizade que intrigam aqueles que levam as multidões invejosas a consentir na administração da cicuta, ou de outro veneno mais subtil mas de efeitos equivalentes, aos filósofos que sofrem acusação análoga àquela que incidiu sobre Sócrates e Pitágoras. Merece, pois, toda a nota de gratidão da posteridade a atitude nobilíssima de Ferreira Deusdado para com o inditoso filósofo Cunha Seixas.»
Álvaro Ribeiro («Os Positivistas»).
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Fresco de Rafael (Scuola di Atene). |
«Perguntaram-lhe: "Que é um amigo?" - "Uma só alma em dois corpos". (...) Interrogaram-no sobre o comportamento a ter com os amigos: "Como gostaríamos que se comportassem connosco". (...) Favorino também diz (Memórias, Livro II) que gostava de exclamar: "Ó meus amigos, não há amigo". E de facto podemos ler este dito no sétimo livro de Ética.»
A VIDA DE ARISTÓTELES segundo DIÓGENES LAÉRCIO
«Dadas
as condições que tornaram neste país mais difícil ainda do que noutros a
situação do filósofo, nada mais natural do que vermos hoje um dos mais dotados
pensadores de Portugal, e porventura da Europa do seu tempo, ignorado enquanto
viveu, silenciado após a morte. Os mais atentos à vida espiritual portuguesa,
como Sampaio Bruno, os mais generosos como Leonardo Coimbra, referiram-se-lhe
com escasso ou sonegado apreço ou muito simplesmente o ignoraram. Registam-se
três excepções que a seguir devidamente situaremos: Ferreira Deusdado, Fidelino
de Figueiredo, Álvaro Ribeiro.
(...)
Formado em Direito (...), com diuturna prática forense, Cunha Seixas é um dos
nossos pensadores contemporâneos que mais seriamente, desde Silvestre Pinheiro Ferreira, pôs o gravíssimo problema do conceito de justiça como das
dificuldades de sua ampla e não ilusória efectivação. Em relação a ele, como a
outros raros pensadores da nossa Península e da Europa, se poderia estabelecer
uma correlação subtil entre os conceitos de espaço e tempo e os de justiça e
liberdade: Cunha Seixas soube que num e noutro caso tais noções dependem de
algo muito fundo no pensamento do homem e de muito alto na hierarquia do Ser.
Metafísico,
mas já num sentido que persuade a rever o dessorado conceito da mais contestada
forma do saber, apercebeu-se o nosso filósofo com sagacidade do renovado perigo
que para a filosofia autêntica e para a nossa vida espiritual representava a
nova escolástica, não já em nome de Deus e das relações da crença e da razão, mas em nome do homem e das relações da mente circunscrita
pelo mundo da natureza e pelo mundo dos homens. Perante a escolástica
positivista, perante a sua sistemática limitada, tão rígida e tão consequente
com a vontade imperiosa, como inconsequente com a verdadeira razão
arbitrariamente detida num momento do seu processo, e desarticulada da mais
profunda razão de ser, Cunha Seixas vai ele próprio tentar um pensamento
sistemático, que não na forma sem beleza ou radiação mas no alvo último lembra
Schelling, afastando-se por outro lado, como décadas antes Silvestre Pinheiro
Ferreira se afastara, das filosofias alemãs do devir, ou, para empregar os
próprios termos do autor das Prelecções
Filosóficas, dos “Heraclitos da Alemanha”.
Pode neste ponto perguntar-se se das filosofias do tempo e do devir, dos “Heraclitos da Alemanha”, Cunha Seixas não se afastou, ele também, incompreensivamente. Nós diríamos que sim, e importa-nos atendê-lo em relação ao mais meditado desígnio deste nosso estudo.»
José Marinho («Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo»).
«Pantiteísmo etimologicamente significa Deus em tudo. Cientificamente é o sistema que, formando a conjunção de todas as ciências e exibindo as determinações destas na permanência dos seus princípios e na evolução infinda que lhes compete, exibe uma síntese harmónica de leis universais sob a unidade do absoluto.»
Cunha Seixas (»Princípios Gerais de Filosofia»).
«A
metodologia positivista das ciências, omitindo a metafísica, causou fundas
desorientações na filosofia enquanto sistema, e terá contribuído para limitar o
voo do espírito filosófico, que tem a vocação de viajar, em curso e recurso, do
natural para o sobrenatural. De outro modo dito: de reflectir o sensível e o
ideável. O pantiteísmo é, nesta circunstância,
a tentativa de uma ressistematização filosófica, levada a efeito por José Maria
da Cunha Seixas, como forma negativa (antipositivismo) e como forma afirmativa
(proposta de um novo espiritualismo). A regra panteísta "tudo é Deus" surgia-lhe qual grave equívoco. O panteísmo que, fora da simbólica e da poética,
não deixava de resumir-se ao extremo monismo que Espinosa compendiara, de modo
a não permitir novas linhas de esclarecimento, surgia a Cunha Seixas como a
oclusão dissolvente da causa primeira no próprio causado; e, neste mesmo acto
de crítica ao panteísmo, Seixas não podia esconder as sugestões e as motivações
que lhe advinham do alemão Krause, cujo idealismo, o panenteísmo, aprendera
enquanto aluno de Direito em Coimbra, onde Krause, já directamente, já através
dos seus discípulos belgas Ahrens e Tiberghien, era ensinado. A solução do krausismo
para desenvolver e rectificar o monismo panteísta, levara ao panenteísmo: tudo está em Deus. E Deus e o Mundo
reassumiam cada um a sua distinta seriedade, ainda que, para tanto, Deus nos
seja aí proposto como o recipiente do Universo, como se o Universo, criado por
Deus, não tivesse sido posto fora de Deus, para existir como criatura separada
do Criador; ou como se a causa, tendo desferido o efeito, o efeito fosse desferido
sem transferência de existência.
A definição de Deus em tudo significa que Deus, sendo Deus, está na sua obra, sem com ela se confundir. "A ideia de Deus não é uma criação do espírito mas exigência da própria realidade" (A. B. Teixeira, ob. cit., pág. 364) e, assim, o filósofo "tentou superar os reiterados embaraços do falso infinito, tentando a conciliação de imanência e transcendência, procurando não atribuir a Deus o que Deus em sua perfeição não solicita" (J. Marinho, ob. cit., pág. 76). O conceito seria vão, caso não gerasse um sistema, e não sabemos ainda se, na mente de Cunha Seixas, surgiu primeiro a nominação do sistema, ou se lhe surgiu o sistema a que deu a nominação. É possível que, visando opor-se ao primado, ou ametafísico, ou antimetafísico do positivismo, mas desejando distar-se da filosofia cristã e da teologia católica, tanto quanto equidistava de Espinosa e de Krause (para o que imergia nas derivantes aristotélicas, platónicas e kantianas, inteligidas de modo algo pessoal), é possível que o sistema lhe haja sido racionalmente revelado em corpo inteiro, já com o nome à cabeça. Esse sistema vinha a ser conjuntivo, por abarcar todas as ciências; dinâmico, por atender à permanência de princípios e à evolução infinda das ciências; espiritual, por afirmar o absoluto como princípio.»
Pinharanda Gomes («Pantiteísmo», in Dicionário de Filosofia Portuguesa).
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Jesué Pinharanda Gomes |
Cunha Seixas e a Filosofia Portuguesa
A
história da filosofia em Portugal, no século XIX, é constituída por uma série
de tentativas culturais a que a obra de Sampaio Bruno põe termo, num julgamento
penetrante, severo, e definitivo. Ao enunciar, de maneira suficientemente
clara, o problema da filosofia portuguesa, consegue o autor de A Ideia de Deus explicitar as várias e
obscuras razões que necessitaram a falência dos esforços dos precursores.
Que
aconteceu no decurso do século XIX?
À
medida que ia sendo olvidada a tradição escolar das ordens religiosas, a
relação com a teologia, – existente em todo o pensamento livre, mas evidente no
pensamento filosófico, – deixou de ser considerada no ensino público; e os
escritores leigos, que procuraram actualizar a cultura portuguesa pelo comércio
com o estrangeiro, julgaram possível substituir o primado da teologia dogmática
pelo da metafísica duvidosa ou da sociologia positiva; ora, seja por que for
promovida, a eliminação da ideia de Deus equivale, efectivamente, ao
desencontro com a verdade ou, na mesma, à desistência de filosofar.
Fiéis
à teologia católica permaneceram alguns pensadores portugueses que não deixaram
obra filosófica digna de brilhar nas condições culturais do século passado;
mais interessante é a série dos livre-pensadores que tentaram definir, em
termos heterodoxos, as novas relações da filosofia com a teologia; de entre
estes é justo destacar, pelo seu excepcional valor, José Maria da Cunha Seixas.
A
obscuridade que envolveu, até há poucos anos, o nome deste inditoso pensador,
está explicada pela paixão sectária dos positivistas que o votaram a um
desprezível esquecimento, e pela maledicência impiedosa dos literatos tristes
que ridiculizaram os ensaios poéticos do filósofo extravagante. É certo que os
escritos de José Maria da Cunha Seixas não primam pela austera beleza de estilo
clássico nem pela euritmia numerosa da frase opulenta, antes denotam a
descuidada facilidade de quem exprime em termos ingénuos um pensamento sincero
que radica em perturbada vida sentimental. Dotado de temperamento apostólico,
missionário e místico, não seguiu as vias da investigação penetrante e da
especulação profética, preferiu escrever um estilo de combate e propaganda. Mas
o historiador da filosofia que proceder ao exame dos livros elaborados por
Cunha Seixas encontrará com surpresa uma obra, notável pela quantidade e pela
qualidade.
Verifica-se,
pela análise dos seus escritos, que Cunha Seixas possuía perfeito conhecimento
da história da filosofia. Das doutrinas dos pensadores mais célebres e das
discussões sobre os problemas decisivos traçava o resumo em expressões
demasiadamente concisas, mas sempre diversas das banalidades dos compêndios e
harmonizadas com os últimos requintes da erudição. Hábil e vigoroso
argumentador, dispunha em boa ordem os elementos indispensáveis à refutação
das doutrinas de que era adversário, conseguindo impor pela veemência do
raciocínio as teses espiritualistas que outros não lograram defender, apesar de
muita luxúria expressiva. Subordinou, enfim, todos os seus trabalhos
filosóficos a uma intenção sistemática, que denominou Pantiteísmo (Deus em tudo), o que já é significativo de atitude de
boa tradição portuguesa.
Contemporâneo
de Antero de Quental, Cunha Seixas desenvolveu na linha coerente dos seus
vários livros um pensamento unitário que merece ser cotejado com as inquietas
reflexões do autor das «Odes Modernas» e que excede, sem dúvida, a altitude dos
trabalhos de Silvestre Pinheiro Ferreira, Amorim Viana e Ferreira Deusdado, que
se encontram acima dos positivistas.
José
Maria da Cunha Seixas nasceu em Trevões, a 26 de Março de 1836. A sua educação,
especialmente na infância, foi profundamente religiosa. A mãe do filósofo, cuja
piedade se desenvolvia especialmente pela leitura e pela meditação da História
Sagrada, era senhora dotada daquelas excelsas virtudes que influem
beneficamente no ambiente familiar; o pai, desejoso de aperfeiçoar a instrução
dos seus filhos, procurara nas circunstâncias provincianas a colaboração dos
professores mais competentes e tivera de recorrer necessariamente aos meios
eclesiásticos. Assim se explica que, aos 14 anos de idade, José Maria da Cunha
Seixas tomasse ordens menores e que, completos os preparatórios para o ingresso
na Universidade de Coimbra, se inscrevesse como aluno eclesiástico na Faculdade
de Teologia.
Ferreira
Deusdado observa, a este propósito, que a tão religiosas circunstâncias
educativas se devem atribuir as tendências teístas do filósofo, «sua
persistente preocupação». A observação é pertinente, mas apenas confirma, com
mais um caso, o que regularmente se encontra nas biografias dos filósofos
medievais, modernos e contemporâneos. Na vocação filosofal está sempre presente
uma determinante religiosa, como na conversão religiosa a odisseia da maioria
dos filósofos.
A
filosofia aprendida, ou ensinada, sem vocação, nunca supera os resultados da
técnica científica ou da crítica literária, e confessa o inevitável positivismo
das escolas onde não existe a invocação ritual do nome de Deus.
Não
foi, porém, da nobre Faculdade de Teologia que Cunha Seixas recebeu os graus
universitários. Embora faltem notas biográficas sobre os motivos que levaram o
estudante a inscrever-se na Faculdade de Direito, onde foi aluno distinto,
parece lícito admitir, entre os principais, o enfraquecimento da fé cristã e a
indisciplina perante a Igreja Católica. Na Faculdade de Direito exerciam então
notável influência os professores Vicente Ferrer e Rodrigues de Brito que, pelo
seu ensino, propagavam o sistema filosófico de Krause; Cunha Seixas, que
estudou os krausitas belgas e espanhóis, e que utilizou citas de Ahrens e
Tiberghien em vários trabalhos, pensou o seu pantiteísmo em oposição ao panenteísmo
de Krause; mas o misticismo adquirido na adolescência perdura, transformado, na
metafísica do pensador adulto. Ao concluir a sua formatura em direito, a 27 de
Julho de 1864, Cunha Seixas estava já, de acordo com as ideias do seu tempo,
apto a defender a atitude civilista, a que permaneceu fiel durante a vida
inteira.
Habilitado
com o diploma universitário, Cunha Seixas seguiu para Lisboa na intenção de
exercer as três profissões liberais que floresciam na sociedade
caracteristicamente burguesa: a advocacia, o jornalismo e o ensino particular.
O
constitucionalismo abrira aos oradores e aos escritores indefinidas
possibilidades de projecção política, que se tornavam realidades na governação
e na administração públicas, excepto quando o poder militar, nas suas
frequentes interrupções da ordem estabelecida, distribuía de novo modo as
pastas dos ministérios. A feliz improvisação do discurso oral ou escrito,
especialmente quando revelasse mediana cultura francesa, haveria de ter a
máxima probabilidade de êxito numa época em que ainda não eram exigidas
rigorosas condições de tecnicidade nos serviços públicos e em que não vigorava
um critério objectivo para a designação dos melhores estadistas e para a
formação do escol. Facilmente se compreende, pois, que, no constitucionalismo, a
escolha de deputados, pares e ministros, estivesse condicionada pelo
comportamento crítico dos oradores e dos escritores. A literatura influindo na
política e adquirindo prestígio na sociedade, dominou a cultura portuguesa
durante o século XIX.
Cunha
Seixas era dotado de elocução fácil, fluente e persuasiva; redigia com
habilidade jurídica os documentos exigidos pela prática forense; mas tinha
íntima repugnância pela morosa burocracia dos tribunais. O ministério
advocacional era-lhe por isso desgostante e torturante. Assim, no artigo
biográfico que o Diário Ilustrado
publicou, diz-se que Cunha Seixas: «Em 1879 sofreu pela sua boa-fé um enorme
desgosto na sua vida de advogado que por perto de um ano abandonou, até que,
animado pelos seus amigos e instado por muitos dos seus constituintes, voltou a
exercer a profissão».
É
próprio do filósofo considerar a advocacia dentro da sua missão providencial
que assenta numa ética de infinita piedade humana. Aos santos chama o povo
advogados, quando os invoca nas suas orações. A simples defesa dos direitos
adquiridos, pelo recurso aos tribunais, é já uma advocacia de ordem inferior
que terá de exercer-se por método dialéctico, incompatível, portanto, com o
espírito filosófico. Deixando de se apoiar num elemento que transcende a lei, a
advocacia dialéctica não é mais do que astuciosa manifestação daquele espírito
saturnino que devora as crenças e, com elas, as instituições. A advocacia só é
livre na medida em que pode suplicar a entidade que se encontra acima do
direito e que, por isso, contacta já com o plano divino.
Civilista,
José Maria da Cunha Seixas não confiava na tradição do direito divino dos reis,
mas nada esperava também do providencialismo das revoluções. Admirador do
Marquês de Pombal, que considerava precursor da Revolução Francesa, propugnou
pela extensiva realização das ideias igualitárias dentro da legalidade
estabelecida pelo constitucionalismo liberal. Cunha Seixas é, efectivamente, um
dos representantes daquela decadência do pensamento monarquista que, forçado
pelo positivismo, se acentua no reinado de D. Luís e termina pela admissão da
experiência republicana. Neste ponto aparece bem nítido que o erro da indecisão
metafísica de Cunha Seixas consistiu em não ver que a política progressista,
dissolvendo levianamente o vínculo português entre a Igreja e o Estado,
incorria no perigo de descer a escala que vai da teologia para a sociologia. O
mesmo perigo foi visto, com máxima lucidez, pelos raros doutrinadores
republicanos que não perfilharam o positivismo. Eis o que confere excepcional
superioridade à crítica de Sampaio Bruno.
Cunha
Seixas militou em alguns dos partidos políticos e da sua abnegação foi recompensado com o
desengano, tal como aconteceria a outros filósofos portugueses. É que o
filósofo, qualquer que seja a sua relação com a política nacional, não pode
permanecer subordinado à limitada orientação de qualquer partido. Educador de
políticos, mais do que de político, o filósofo procede segundo uma visão
futurista, pelo que virtualmente se antecipa a toda a actividade social.
Compreende-se, portanto, que os homens de vontade e acção, dirigentes empíricos
das organizações partidárias, releguem para um plano minorativo a colaboração
dos filósofos que lhes pode ser útil num período de doutrina e de propaganda,
mas que lhes será incómoda, e nociva logo que ascendam à plenitude de
governação. No ano de 1880, o partido progressista, em que Cunha Seixas se
encontrava filiado, subiu ao poder. Surgiria, portanto, a oportunidade de os
governantes convidarem o seu compartidário
de excepcional valor a prestar à Nação muitos úteis serviços, entre os quais
estaria, sem dúvida, incluída a reforma do Curso Superior de Letras nos termos
preconizados pelo filósofo na Galeria de
Ciências Contemporâneas. Mas Cunha Seixas, em vez de se manter na
expectativa, não resistiu aos ímpetos dominantes do seu temperamento e
apressou-se a escrever no Diário do
Comércio uma série de artigos pela qual exigia o cumprimento do programa
político e combatia todos os desvios da directriz ministerial. A independência
da sua crítica não era compatível com a disciplina partidária. Em breve prazo
reconheceu não serem os caminhos da política militante os mais próprios para
quem se propõe, acima de tudo, defender a Verdade, a Beleza e a Bondade,
afirmar o primado da vida espiritual.
A
filosofia não se prolonga em política, mas perpetua-se pela actividade docente.
Toda a influência da filosofia na sociedade se exerce por intermédio da escola.
Noutras modalidades de cultura, poderá ser diferente o critério apreciativo; na
tradição filosófica, porém, mais importante é a relação do mestre com os
discípulos do que a do escritor com o público. A arte da filosofia depende da
vida da oração. Os escritos podem autenticar o valor de uma personalidade, mas
não provam, por isso, que o seu autor haja cumprido a missão filosofal:
transmitir a vida do pensamento próprio, iluminado por graça divina, a outros
homens que de tão sublime revelação se testemunham agradecidos.
Não
sabemos se Cunha Seixas exerceu o ensino naquelas escolas livres de tipo
socrático a que hoje damos a designação de tertúlias;
sabemos que praticou o ensino particular em alguns colégios de Lisboa, e que
escreveu também dois compêndios para uso das escolas liceais e comerciais.
Foi-lhe vedado, todavia, ascender ao magistério universitário, onde desejaria
formar discípulos, e não pôde, portanto, conferir ao pantiteísmo as condições indispensáveis para uma difusão benéfica
na sociedade portuguesa.
Não
pode ser omitido, na biografia de Cunha Seixas, o episódio do concurso para professor da Cadeira de História universal e pátria no Curso Superior de Letras. Não pode ser
omitido, porque determina e explica, em grande parte, a obstinação da polémica
de Cunha Seixas contra o positivismo dominante. Mas, além disso, o episódio é
significativo porque inaugura uma atitude a que o Curso Superior de Letras
permanecerá fiel, e que constituirá depois uma tradição respeitada pela
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Toda a escola superior deve ser
ciosa da unidade nas doutrinas que professa e propaga, pelo que se compreende
que evite recrutar novos membros do seu corpo docente entre as personalidades
que se manifestem discordes da ortodoxia estabelecida: a dificuldade consiste,
porém, em conciliar a fidelidade à tradição venerada com a admissão dos heterodoxos,
consentida pelo liberal regime dos concursos públicos.
A
narrativa do concurso de 1878-79 encontra-se resumida no capítulo IV de um livro
que, por ser muito útil para o estudo do positivismo em Portugal, nos parece
digno de menção. Referimo-nos à dissertação do Sr. Dr. Manuel Busquets de Aguiar,
intitulada O Curso Superior de Letras
(1858-1911).
O
concurso foi aberto em consequência do falecimento do professor Augusto
Seromenho, colaborador das «Conferências do Casino» e paleógrafo ilustre.
Sabendo-se
que Teófilo Braga exercia o magistério positivista desde 1872, compreende-se
facilmente o interesse do Curso Superior de Letras em não deixar sentar na cadeira vaga um homem que
contradissesse as doutrinas de Augusto Comte.
Diz
o Sr. Dr. Manuel Busquets que se apresentaram como candidatos, Alberto Augusto
de Almeida Pimentel, José Maria da Cunha Seixas, Manuel de Arriaga Brun da
Silveira, e Zófimo José Consiglieri Pedroso Gomes da Silva. Alberto Pimentel
desistiu do concurso, os três candidatos que prestaram provas foram aprovados
por unanimidade, mas a escolha recaiu logicamente no positivista Consiglieri
Pedroso que havia sido aluno da escola.
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Teófilo Braga |
«Com
data de 17 de Janeiro desse ano – informa-nos o autor citado –, fez Cunha
Seixas um enérgico protesto contra a decisão do júri, e dirigindo graves
censuras a Teófilo Braga, que acusou de falta de imparcialidade, no que devia
ter tido razão, dadas as diferenças de ideias do candidato e do argumentador.
Teófilo Braga tinha tão pouca confiança na sua defesa, que a fez por carta
confidencial para que não ficassem provas das suas afirmações, o que é para
admirar, dado o costumado desassombro das suas atitudes»[1].
A
injustiça dos concursos é tardiamente demonstrada pela lição dos historiadores.
O Curso Superior de Letras, já que defendia o positivismo, fez muito bem em
eleger Consiglieri Pedroso; a cultura portuguesa, porém, não recebeu benefício
de tão legítima escolha. Ao compararmos hoje a bibliografia de Consiglieri
Pedroso com a de Cunha Seixas, a vocação docente de um e a de outro, podemos
lamentar que o verdadeiro filósofo tivesse sido afastado do convívio com os
estudantes e condenar, para sempre, os malefícios da indiscutida ficção
igualitária dos concursos promovidos para dar satisfação ao público!
Cunha
Seixas teria, pois, que recorrer à imprensa para comunicar o seu pensamento aos
espíritos de escol e para tentar influir na sociedade portuguesa; exercendo o
jornalismo, na qualidade de redactor profissional ou de assíduo colaborador, e
coligindo em volumes os artigos mais significativos e mais brilhantes, procurou
o filósofo aperfeiçoar e explicitar a obscura doutrina pantiteísta que tão
pouco interessaria aos escritores contemporâneos. Apesar de interrompida por
frequentes expressões de desânimo, – desculpáveis, aliás, num pensador sincero
e num homem infeliz – a propaganda do pantiteísmo abrange um período de mais de
trinta anos!...
O
bibliógrafo terá de encontrar, certamente, muitas dificuldades quando proceder
ao inventário de todos os escritos de Cunha Seixas, mas, ao folhear a imprensa
do século passado, irá sendo agradavelmente surpreendido com a intenção
educativa ou, digamos, cultural da maioria dos jornais que se publicavam no
nosso País. Sirva de exemplo o Comércio
de Portugal, onde Cunha Seixas pôde inserir alguns dos melhores escritos.
Esse diário de grande formato dedicava sempre a primeira das suas quatro
páginas, e parte da segunda, exclusivamente à publicação de artigos sobre
questões científicas, literárias ou políticas, para assim permitir aos leitores
a formação de opiniões diversas perante a variedade das doutrinas; pelo
contrário, comprimia as notícias nas fórmulas de mais sóbria objectividade, sem
expressões alarmantes, e reduzia os anúncios aos termos elementares e
informativos; o mais importante jornal burguês obedecia assim àquelas normas de
honestidade que condicionaram a rara placidez dos tempos idos. A melhor
imprensa novecentista parece ter estado, efectivamente, ao serviço do
autodidacta que se propunha adquirir habilitações
literárias para subir de plano social, ou para fiscalizar a administração
pública; correspondia, dessa maneira, à possibilidade de formação de um novo
escol, numa época de indeterminação aristocrática, motivado pela decadência do
Clero, da Nobreza e das corporações profissionais. No século XX, porém, já a
imprensa desistia da missão educativa para exercer a função de propaganda, e
até de combate, honrando-se mais com a extensão da tiragem do que com o elenco
dos colaboradores.
Bibliófilo,
Cunha Seixas na imprensa critica obras literárias e filosóficas de autores
portugueses e estrangeiros, em artigos que contêm sempre vestígios de uma
leitura inteligente, ainda quando destituídos de plano construtivo e de
elegância formal. Se é lícito deixar na margem do esquecimento os artigos de
crítica às obras literárias de Bulhão Pato, Simões Dias, António Macedo
Papança, Ernesto Marecos, Reis Damaso, Acúrcio Garcia Ramos, A. L. Gonçalves de
Freitas, A. C. Borges de Figueiredo, Zeferino Brandão, J. S. de Sousa Fernandes,
já não pode o estudioso deixar de se referir à crítica filosófica das obras de
Teófilo Braga e de Domingos Tarroso.
Humilhado
no concurso de 1878, Cunha Seixas procuraria denunciar os erros existentes na
obra do seu inimigo. Para tornar mais copioso o mostruário, começava por
apontar os lapsos de ortografia e de sintaxe, prosseguia depois na descoberta
de erros de facto e de inexactidões históricas, para, finalmente desnudar as
contradições do doutrinador positivista. Assim analisou as obras intituladas História Universal, História do Romantismo em Portugal, Miragens Seculares e Questões
de arte e literatura portuguesa em artigos que, pelo carácter acrimonioso,
não deixariam de ser apreciados entre os invejosos do ilustre historiador da
literatura. Mas a parcela mais valiosa da crítica de Cunha Seixas, aquela que
ainda conserva interesse filosófico, residia na demonstração de que Teófilo
Braga, procedendo como revolucionário político, não poderia manter-se na
disciplina ortodoxa do reacionário Augusto Comte, pelo que teria naturalmente
de resvalar do positivismo para o materialismo.
Com
efeito, o positivismo é um sistema de transição, parte de um socialismo para
chegar a outro socialismo, porque nega a legitimação metafísica e teológica da
liberdade.
A
crítica de Cunha Seixas, ao denunciar as proposições materialistas que
encontrava na obra do teorizador da República positivista, consistia, afinal,
em explicar a infidelidade ao cientismo pela necessária admissão, consciente ou
inconsciente, da metafísica em qualquer sistema filosófico. Tal crítica, de
estilo didáctico, análoga à que havia sido formulada por outros filósofos
europeus, não possuía a virtude indispensável para refutar o positivismo já
dominante em Portugal. Crítica eficiente, porque de tradição portuguesa, só
mais tarde, e no Porto, seria inaugurada por Sampaio Bruno que assim
caracterizou o movimento precursor: «Este movimento reconstrutivo operou-se
deficientemente entre nós, porque quedou nas ambições metafísicas dos Srs.
Domingos Tarroso e Cunha Seixas, nos reptos intermitentes de Antero de Quental
e nas indecisões teoréticas de Oliveira Martins»[2]. Não
podia ser expressa em termos mais claros a notável condenação de Sampaio Bruno.
A
série mais brilhante de artigos de crítica filosófica é aquela em que Cunha Seixas
se demora na apreciação do pensamento cientista de Domingos Tarroso. O nosso
filósofo louva o raro empreendimento de Domingos Tarroso publicar A Filosofia da Existência num país onde
predominam os historiadores, e fala com admiração da cultura do autor, sabendo
que ele é um voluntarioso autodidacta de pouco mais de vinte anos. Não deixa,
porém de impugnar com argumentação penetrante, e por vezes dissolvente, a obra
de Domingos Tarroso que replica em cartas, sem conseguir restabelecer na
primitiva integridade as teses duramente refutadas.
Esta
discussão interessa sobremaneira ao historiador da filosofia em Portugal,
porque oferece certa semelhança com a crítica que mais tarde será feita por
Sampaio Bruno ao pensamento racionalista do matemático Amorim Viana.
Domingos Tarroso procurou elaborar um sistema de filosofia científica, aceitando o atomismo sem professar, todavia, o materialismo, posto que admitira a distinção existentiva entre Deus e a Natureza. Cunha Seixas mostra que, não atribuindo substância ao objecto das ciências noológicas, Domingos Tarroso contradiz-se num nihilismo final que suscita um pessimismo análogo aos de Schopenhauer e de Hartmann. Mais ainda: a aventura de conciliar, no mesmo sistema, a excessiva confiança na imutabilidade das leis naturais, com o princípio explicativo da contínua evolução, e de cindir a teoria do conhecimento pela distinção entre qualidades primeiras e qualidades segundas, a que era impelido pelo atomismo, obrigaria Domingos Tarroso a dissolver a Natureza no fantasma do Nada, sem lhe opor sequer uma teodiceia de nítidas linhas significativas.
A
esta doutrina opõe Cunha Seixas uma constante defesa da metafísica, que julga
menos considerada pela tendência experimentalista de Domingos Tarroso, e,
também, a hipótese da preexistência das leis do espírito humano característica
do racionalismo europeu. Mas, da amigável discussão entre estes dois homens
cultos, não poderia nascer qualquer luz. Pelo contrário, da crítica de Sampaio
Bruno a Amorim Viana, condenatória do racionalismo e da metafísica, haveria de
resultar um enunciado mais preciso do problema da filosofia portuguesa.
Criticou
Cunha Seixas o livro «Poemas Modernos», da autoria de Domingos Tarroso.
Discutiu demoradamente o prefácio, intitulado «A evolução e a poesia culta», e
analisou depois alguns poemas, observando o carácter panteísta e pessimista da
poesia do autor. Esta série de artigos, de diminuto valor, contém todavia na
conclusão uma doutrina que viria a ser de muita importância para a filosofia
portuguesa: Cunha Seixas opõe à teoria naturalista dos sexos, vulgar entre os
pessimistas, o pensamento optimista da solidariedade universal e da satisfação
do sentimento do belo pela realidade do amor.
Outro
notável estudo é constituído pela série de artigos de crítica à conferência do
Sr. José Maria da Ponte da Horta, acerca dos infinitamente pequenos. Cunha
Seixas analisa, com o máximo rigor, as noções do corpo, matéria, átomo, éter e energia,
para depois impugnar a afirmação materialista, feita pelo orador, de que a vida
é o produto necessário das leis da matéria e da energia. Desenvolve depois
algumas considerações sobre a aporia do uno e do múltiplo, com referência aos
argumentos de Zenão de Eleia contra a inteligibilidade do movimento, afirmando
o primado da unidade metafísica sobre a pluralidade experimental.
![]() |
Aquiles e a tartaruga |
As
críticas às obras de pensadores estrangeiros, também lhe serviam de temas para
artigos de jornal. Cunha Seixas, apesar de descontente com a cultura
portuguesa, não descia ao ponto de aconselhar incondicionalmente aos leitores
seus contemporâneos os livros recebidos de Além-Pirenéus; sempre os apreciava
com aquela independência de juízo que caracteriza o livre-pensador, se não com
aquele orgulho legítimo em quem se apresenta como fundador de um sistema
original. Tão longe do isolamento cultural que necessariamente degenera em
mesquinho passadismo, como da subserviência ao pensamento estrangeiro,
manifestada pela frenesia das traduções, Cunha Seixas soube manter-se numa
posição equilibrada e digna para a filosofia portuguesa. Verdade é também que,
na extensa bibliografia do erudito Cunha Seixas, resulta mínimo o trabalho de
tradução. O bibliógrafo apenas regista traduções ou imitações, em verso, no
livro intitulado Estreias que se
publicou em 1864.
Diz-nos,
Brito Aranha, o continuador da obra de Inocêncio Francisco da Silva, que o
livro Estreias continha cinco partes.
1.ª – Poesias diversas; 2.ª – Traduções ou imitações, em verso; 3.ª – Lamentações, em prosa; 4.ª Esboços morais e políticos; 5.ª Considerações sobre o iberismo, em que
se defende calorosamente a independência de Portugal. Vê-se, pois, que nos
escritos reunidos em Estreias se
encontram já as directrizes dos futuros trabalhos do autor. Efectivamente, nos
ensaios literários, filosóficos, jurídicos e didácticos que constituem a vasta
bibliografia de Cunha Seixas, o autor desenvolve, estimulado pelos aspectos da
cultura sua contemporânea, um pensamento sempre subordinado à mesma oculta ou
mística unidade.
Dois
livros se destacam, porém, que, pela boa composição literária em capítulos de
graduada complexidade, se nos afiguram serem os trabalhos tecnicamente mais
perfeitos: a Galeria de Ciências
Contemporâneas e os Princípios Gerais
de Filosofia.
O
primeiro, redigido logo a seguir ao concurso de 1878, é constituído pela
crítica à estrutura do Curso Superior de Letras, condenada aliás por outros
escritores competentes, e contém uma proposta do ensino que deveria ser
ministrado na nova escola de humanidades. A cada uma das «cadeiras»,
consideradas indispensáveis num instituto de nível europeu, dedica o
pedagogista um ou mais capítulos, descrevendo as origens, as vicissitudes
históricas e a situação actual da ciência que corresponde à respectiva
disciplina, e faculta, por vezes, alguns preceitos de metodologia e de
didáctica. A Galeria de Ciências
Contemporâneas é, pois, um estudo que pode ainda hoje ser lido com muito
proveito.
![]() |
Ferreira Deusdado |
O
segundo dos livros que merece maior referência, intitula-se Princípios Gerais de Filosofia. O autor,
que faleceu no dia 27 de Maio de 1895, não pôde ultimá-lo com aquele
aperfeiçoamento que desejaria, pelo que da publicação de tão valiosa obra se
encarregou Ferreira Deusdado, dedicado amigo de Cunha Seixas. Na «Notícia
biográfica do autor», Ferreira Deusdado relata-nos o seguinte:
«O
presente livro que hoje vem a público não é senão a primeira parte duma obra
maior em que o autor esgotou toda a sua vida.
Tendo
publicado volumes diversos, só a esta obra ele chamava o seu livro.
Chegou
a fazer imprimir essa obra inteira, faltando só o resto e o índice; dessa
impressão fez brochar alguns pouquíssimos exemplares que deu para serem lidos a
especialistas íntimos.
Estando
as folhas assim impressas na tipografia, deu-se aí um desastre casual, que as
inutilizou absolutamente a todas. Um desses exemplares brochados serviu de
original e começou a reimprimir a obra em tipo e formato diversos.
Achavam-se
as folhas impressas desta primeira parte, não ainda feita a impressão do título,
do prólogo, nem do índice, quando o autor foi colhido pela morte. Essas folhas
incompletas, algumas truncadas, foram no seu espólio de inventário judicial
vendidas como papel a peso para embrulhos e adquiridos já em segunda mão pelo
Sr. Eduardo Augusto da Cunha Seixas, que zelosamente as fez juntar e completar
para editar este livro»[3].
A
obra de Cunha Seixas não exerceu apreciável influência no pensamento dos
contemporâneos e foi caindo a pouco e pouco no mais injusto esquecimento. Todas
as injustiças são explicáveis, dependendo embora a respectiva inteligência das
alterações da axiologia que o tempo se encarrega de operar. Os valores
dominantes depois da questão «Bom Senso e Bom Gosto» foram adversos às
tendências místicas do pensador que não aceitava o realismo na literatura, o
positivismo na filosofia e o republicanismo na política; para ser estimado
pelos escritores mais novos, deveria Cunha Seixas pertencer aos cenáculos dos
literatos revolucionários, em vez de acompanhar o movimento progressista e
liberal; para que os historiadores arrancassem o seu nome do olvido, seria
indispensável esperar pela hora de rever a cultura legada pelo século passado.
Mais
interessa, porém, abandonar o plano de contingência histórica e verificar se a
obra de Cunha Seixas representa, para além do tempo, uma contribuição
perdurável para a filosofia portuguesa. A este problema que é, sem dúvida, o
mais importante, não é possível atribuir uma solução positiva.
Nos
livros de Cunha Seixas verifica o examinador as mesmas deficiências que
desvalorizam e inutilizam muitos dos trabalhos filosóficos dos portugueses mais
cultos.
Ao
procurar resolver distintamente cada problema filosófico, o autor erudito
enumera as soluções que foram sucessivamente propostas pelos pensadores
europeus, ainda que de segunda ou terceira ordem, critica-as e porventura
refuta-as, para apresentar imediatamente
o seu ponto de vista pessoal. O autor parece ignorar o que mais lhe competia
descobrir: que o mesmo problema tem uma história em Portugal, implícita nas
obras religiosas e literárias, se não explícita em trabalhos de carácter
filosófico. Assim, desligando-se da tradição nacional para atender apenas à
erudição estrangeira, o autor desenraizado sujeita-se a ver envelhecer
esterilmente a sua obra, à medida que, para além das fronteiras, se vai
modificando o panorama cultural. Poucos anos bastam para que os livros assim
construídos deixem de ter qualquer interesse para os nacionais.
Embora
seja inútil indagar das razões que levam os escritores portugueses a proceder
de tal modo para com antepassados e contemporâneos, vale a pena apontar o
contraste com os autores estrangeiros: estes, pelo contrário, raramente deixam
de se filiar na tradição pensante da sua nacionalidade.
Em
consequência deste defeituoso processo na composição dos seus livros, não foi
dada a Cunha Seixas a possibilidade de determinar quais têm sido, na filosofia
portuguesa, os problemas constantes e de os relacionar com os problemas
adventícios de duração efémera.
Animado
de adversidade para com a Escolástica, não se encontrava disposto a estudar as
obras dos nossos filósofos anteriores à reforma pombalina da Universidade de
Coimbra. Não admitiu, talvez, que seria possível distinguir, por método filosófico, na
literatura dos séculos passados, os pensamentos diversos que se exprimiam em
fórmulas comuns, e não suspeitou, sequer, da existência de uma tradição
imperativa, a que obedecia ao lutar contra o positivismo. Não soube ler a obra
de Teófilo Braga, não descobriu a influência que no pensamento português havia
exercido a prosa de Dante.
Dentro
da Escolástica foram dadas soluções várias ao problema das relações da teologia
com a filosofia[4].
Fora da Escolástica, o livre-pensamento encontraria para o mesmo problema novas
e diferentes soluções. E se, na segunda metade do século XIX, houve quem visse
no livre-pensamento uma atitude compatível com o ateísmo, deve-se o facto a uma
lamentável decadência da cultura portuguesa. Os problemas do Curso Superior de
Letras, professores portugueses de filosofia estrangeira, orientaram a política
nacional para a República Positivista.
Todas
as tentativas agnósticas, em Edmundo Husserl, para construir uma filosofia estritamente científica equivalem a
revoltas contra a tradição e permitem a aceitação do ateísmo; mas essas
tentativas assentam exactamente na limitação negativa da liberdade de pensar. O
ateu não é um livre-pensador, porque o pensamento, (desde que a esta palavra se
atribua o significado filosófico, em vez da definição vulgar que pode ser
registada por qualquer dicionarista) não subsiste fora da misteriosa relação da
consciência humana com a realidade divina.
Cunha
Seixas interpretava essa inefável relação em termos de misticidade, conforme se
depreende da designação geral de Pantiteísmo.
Sem aprofundar o estudo das teorias do mal e do erro, e, com elas, a do destino
humano, procurou difundir as parcelas de verdade e de bem que ia adquirindo
pelo digno esforço da leitura e da meditação. Nunca esqueceu, porém, que a
filosofia tem de estar de algum modo relacionada com a teologia, e tanto basta
para que o seu nome seja digno de figurar na história da filosofia portuguesa.
Ensinaram-lhe
os pensadores alemães que o problema das relações do finito com o infinito
assume a mais alta importância no domínio da filosofia. O vulgo considera o
infinito apenas no espaço ou no tempo, sem suspeitar que a crítica brevemente
desfaz tão rudes ilusões; o filósofo, reconhecendo os limites das condições
terrestres, procura o infinito criador nos mundos supernos ou infernos; assim,
na filosofia o infinito aparece como atributo de Deus, dando motivo à formação
de uma teologia, ou permanece ínsito no poder inconsciente que constrói e
destrói as coisas finitas, e que, de sistema para sistema, pode adquirir
diversa denominação.
É
inegável que a tradição portuguesa, pela sua oposição ao dogma da imutabilidade
das leis naturais, consiste na mais autêntica fidelidade à atitude de
considerar o verdadeiro infinito em Deus.
Deixando atrás de si a cultura mediterrânea, que ainda não possuía o autêntico conceito de infinito, e abrindo para além do Atlântico horizontes ainda não ultrapassados pelo pensamento europeu, a filosofia portuguesa, foi pouco a pouco tomando consciência da sua originalidade. No pantiteísmo de Cunha Seixas, no messianismo de Sampaio Bruno, no criacionismo de Leonardo Coimbra encontram-se elementos que permitem habilitar a filosofia portuguesa a exercer a missão que porventura lhe esteja destinada. Queiram agora as novas gerações reconhecer o primado da filosofia sobre a política, para que se possa, enfim, realizar tão admirável prodígio!...
(In
57 – Movimento de Cultura Portuguesa,
Ano III, n.º 6 (Março, 1959), pp. 14-19).
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