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Jacques Maritain e o Papa Paulo VI |
«A
crise na problemática das relações entre o Estado e a Igreja, que corresponde,
aliás, à problemática das relações entre a filosofia e a teologia, deu novo
alento aos pensadores que haviam propugnado pelo regresso à Escolástica.
Verdade é que a encíclica de Leão XIII, se foi lida, observada e cumprida nos
seminários diocesanos e na Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra,
não alcançou êxito filosófico nos ambientes culturais do País.
Multiplicaram-se, sem eficiência, as traduções dos livros de Jaime Balmes. As
publicações periódicas e não-periódicas de que nos deu notícia Fortunato de
Almeida na sua História da Igreja em
Portugal não alteraram o andamento normal dos estudos superiores. Só depois
de proclamada a República Positivista começaram a ser divulgadas entre nós as
publicações do Instituto Filosófico de Lovaina e do Instituto Católico de
Paris. A propaganda neotomista de Jacques Maritain, muito conhecida pelos
leitores da Action Française, chegou
a merecer atenção popular entre os estudantes universitários portugueses, o que
hoje parece estar explicado e justificado pelas afinidades de interpretação com
a melhor tradição nacional. O segredo de tal êxito não está só na intenção
anticartesiana ou antimoderna da polémica medievalista, mas também no facto de
Jacques Maritain haver estudado profundamente a obra latina de Fr. João de S.
Tomás, conforme nos informa o Dr. António Manuel Gonçalves. Lembremos os nomes
de Alfredo Pimenta, João Ameal e Correia de Barros entre os melhores
divulgadores da filosofia neotomista, antes de fazer devida referência à obra
apologética de D. Manuel Gonçalves Cerejeira, intitulada A Igreja e o Pensamento Contemporâneo.
Mercê
de circunstâncias favoráveis, entre as quais avulta a nova solução jurídica das
relações entre o Estado e a Igreja, conhecida pela Concordata de 1940, nota-se hoje melhor revivescência da filosofia
escolástica, sem compromissos já com a interpretação positivista. Justo é
mencionar o esforço capital da cidade de Braga, onde a Província Portuguesa da
Companhia de Jesus fundou o Instituto Miguel de Carvalho, depois transformado
em Faculdade Pontifícia de Filosofia. Nas suas publicações de carácter
histórico, aquele instituto procede a uma revisão e a uma revalorização dos
escolásticos portugueses, o que virá a contribuir para anular o espírito de
subserviência perante os escritores estrangeiros, quer dizer, o espírito da
geração negativista de 1870. Conseguiram desse modo os padres jesuítas pôr
termo à desconfiança que os católicos portugueses, eivados de positivismo,
opunham à filosofia, apodando-a de filosofismo. De desejar seria também que
aquela instituição cultural propugnasse pelo cultivo filosófico da psicanálise,
da psicologia e da parapsicologia, a fim de combater o triste preconceito de
que as ciências psíquicas são necessariamente empirismo, o que está refutado
pela doutrina e pela acção de alguns ilustres membros da Companhia de Jesus.
A
parapsicologia faculta os melhores argumentos de uma apologética baseada na
verdade central do Cristianismo que é a doutrina da imortalidade da alma, ou,
melhor, da imortalidade do homem. As bem-aventuranças do Sermão da Montanha aludem a outro mundo, o da graça que completa a
natureza, o da liberdade que completa a lei, mundo novo que só pode ter
verdadeiro sentido pela remissão dos efeitos do pecado, e até do próprio pecado.
Se a apologética não estiver centrada nesta crença e nos respectivos artigos de
fé, a teologia contemporânea será incapaz de compreender, assimilando e
vencendo, as doutrinas de Marx e de Freud no que elas substituem, pelas teses
de alienação e superestrutura, como pelas teses de transferência e sublimação,
as verdades cristãs da liberdade e da graça.
Vai
sendo afirmado, dentro das instituições que renovam o cultivo da filosofia
escolástica, algum espírito de independência na interpretação do tomismo, que
tende a deixar de ser positivista para ser existencialista, interpretação
distante da verdade aristotélica, mais fiel às tradições culturais do povo
português. Do ponto de vista filosófico mais nos interessa o regresso a
Aristóteles do que à consequente interpretação da obra de S. Tomás de Aquino.
Em 1960 já é possível reler a encíclica de 1950 sem receio de que ela afecte a
pluralidade e a liberdade dos modos nacionais de filosofar.
A
tendência para fazer do tomismo, e de uma só escola tomista, ou de uma só
interpretação do tomismo, a filosofia católica, tem ido sempre esbarrar com os
ditames da experiência e do bom senso. Étienne Gilson, em um dos seus mais
divulgados livros, não deixa de remeter irónicas censuras àqueles escritores
católicos, para os quais:
“...Idade
Média quer dizer escolástica, e escolástica significa verdade, eterna
filosofia, delimitação rigorosa de um domínio dentro do qual tudo é verdade,
fora do qual tudo é erro. Nestas condições, os grandes sistemas escolásticos
serão expostos de modo tal que pareçam conter a solução antecipada de todos os
problemas filosóficos e a refutação de todos os erros. Assim nos surgem essas
exposições da doutrina tomista onde vemos um S. Tomás refutar antes de tempo os
erros de Locke, Kant, Spencer e Bergson”».
Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).
«Feliz
com a descoberta do Mestre que podia satisfazer a sua imensa sede de saber,
Tomás de Aquino tomou uma atitude inesperada, exactamente contrária à que
tomaria qualquer outro estudante. Em vez de se expandir, de se confiar, de
entrar em comunicação franca, fechou-se mais, tornou-se mais taciturno e
silencioso, exilou-se na oração e no estudo – dir-se-ia que só pensou em
armazenar cuidadosamente aquilo que ia aprendendo e mais tarde, transfigurado
pelo seu génio, devolveria ao mundo em luminoso ensino.
A
princípio, as aparências iludiram os seus companheiros que, ao verem aquele
frade moço mas corpulento, pesado e sério, refugiado num mutismo teimoso – o
classificaram, maliciosamente, com a célebre legenda: bos mutus Siliciae. Julgavam-no um ser maciço, incompreensivo,
encerrado na sua própria espessura, incapaz de assimilar as subtilezas e
transcendências da especulação.
Mas,
pouco a pouco – fonte manando do rochedo – o génio de Tomás de Aquino começou a
revelar-se. Um dia, por exemplo, seguiam os estudantes com viva atenção um
comentário de Alberto ao De Divinis Nominibus do pseudo-Areopagita. Certo
condiscípulo, ao reparar que Tomás se concentrava, supôs ser essa concentração
a prova de que não atingia o significado das palavras do Mestre. Ofereceu-se
então, generoso, para lhe repetir a lição que ambos tinham escutado. Mas o
condiscípulo depressa se perdeu ao repetir a matéria e foi o próprio bos mutus
quem, com toda a simplicidade, retomou a exposição desde o começo e lhe
acrescentou mesmo coisas que não tinham sido ditas. O outro, surpreendido e
deslumbrado, pediu-lhe que daí por diante, invertendo os papéis, lhe fizesse a
graça de lhe explicar as lições. Tomás acedeu logo, mas exigiu do companheiro
um segredo absoluto. Embora tivesse prometido, este não pôde deixar de contar o
caso a um professor, que, por sua vez, o fez saber a Alberto Magno.
Poucos
dias decorridos, o Mestre de Colónia sustentou um debate solene sobre
determinado problema de grande importância. Tomás escreveu numa folha de papel o
resumo da questão. Um condiscípulo encontrou a folha e levou-a a Alberto, que
ficou plenamente convencido dos tesouros de sabedoria e de inteligência ocultos
sob a discreta modéstia do Aquinense.
Resolveu,
por isso, submetê-lo a uma prova decisiva. Disse a um professor para encarregar
Tomás de responder em público a uma pergunta extremamente difícil. Ferido na
sua humildade, pois o facto já representava uma distinção extraordinária –
recusou o frade. O dever de obediência forçou-o a submeter-se. E no dia
seguinte, depois de ter pedido o socorro divino, aprestou-se para a melindrosa
prova.
Logo
à entrada, formulou uma distinção tal que lhe permitia inutilizar todas as
objecções e desfazer todas as obscuridades. O professor, entre surpreso e
risonho, declarou-lhe: – "Não pareceis ocupar o lugar daquele que responde, mas
sim o do mestre que decide". Respeitosamente, Tomás deixou cair esta frase admirável: "Não vejo outra maneira de responder". Se ele era, de facto, já um mestre –
como havia de mostrar as hesitações e carências dum escolar igual aos outros? A
sua superioridade aparecia-lhe, porém, tam natural que nem dava por ela...
O
professor tentou ainda opor-lhe argumentos de tal valor que os supunha
irrefutáveis. No entanto, ainda com toda a simplicidade, Tomás liquidou-os em
poucas palavras.
Depois deste episódio é que Alberto Magno
teria dito a sua frase famosa e profética: "Chamamos-lhe o boi mudo; mas um dia
os seus mugidos, a expor a doutrina, hão-de ouvir-se no mundo inteiro".
E
nunca mais um companheiro perturbou com qualquer espécie de ironia ou
irreverência as meditações inspiradas de Tomás de Aquino.»
João Ameal («São Tomás de Aquino – Iniciação ao estudo da sua figura e da sua
obra»).
«As Escolas medievais não estudavam (e o facto acha-se patente nas pesquisas de Fortunato de São Boaventura e de outros, a ele posteriores) a língua grega, ou estudavam-na pouco. Os autores da história das línguas sagradas e clássicas são unânimes em afirmar que pouco ou nenhum grego se sabia na Idade Média portuguesa. A grande filosofia grega e helénica não tinha sido desde logo chamada à ascendente civilização cristã, que a descobriu por influxo da cultura árabe, mais cedo atenta à herança filosófica helénica. O sentimento desta genealogia permaneceu no decurso do tempo, daí derivando alguma equivocidade, que se acha no criticismo da época pombalina, o qual engloba o aristotelismo na designação geral de «filosofia arábigo-peripatética», embora historiadores como Lopes Praça e José de Arriaga sugiram que o criticismo pombalino não visava tanto o aristotelismo propriamente dito, como o predomínio dos comentadores arábigo-peripatéticos, nos quais obviamente se incluíam os Conimbricenses. Não obstante, desde o século V, algum Aristóteles devinha fundamental na vertebrização do pensamento escolástico cristão, que procurava Aristóteles, não para harmonizar o pensamento grego com a revelação evangélica, mas para dispor de uma base racional sólida para a demonstração da Fé, e para a sistematização científica da dogmática. Conhecia-se de preferência o Aristóteles gramático e lógico, transmitido através dos Comentadores, sobretudo Boécio, que formara no Ocidente a logica vetus, ou logica antiqua, assente na Isagoge de Porfírio, e nos dois primeiros livros do Organon (Categorias e Perihermeneias), à qual se segue a logica nova, que já dispõe do conhecimento dos restantes livros do Organon, mas que só se torna predominante no século XIII. Os enciclopedistas medievais (árabes, judeus e cristãos), tendem a valorizar o sistema lógico de Aristóteles, cujo achamento definitivo é, para a cristandade, um fenómeno hispânico, que se gera em Toledo e se transmite ao Ocidente, através da escolástica parisiense. Na primeira metade do século XII, o cisterciense Raimundo de Sauvetât (fal. 1152), fundou a Escola de Tradutores de Toledo, que, no dizer do insuspeito Ernesto Renan, dividiria a Idade Média em duas épocas bem distintas. Raimundo dispôs-se a realizar o que os árabes tinham feito na Bagdade do século X: o aproveitamento do saber clássico, mediante a tradução para latim das obras magistrais. Nessa escola, um árabe lia o texto de obras científicas e filosóficas, ao mesmo tempo que um judeu vertia oralmente do árabe para vulgar, e um tradutor-copista cristão traduzia do vulgar (romanço) para latim. É um processo de tradução simultânea poliglota, decerto arriscado, mas, através dele, o pensamento geral de Aristóteles entra nos estudos de Paris, no começo do século XIII. Nesta altura, o Organon achava-se já em latim, na íntegra; o que se designa de lógica nova expande-se desde meados do século XII e alguns dos livros naturais são traduzidos por Geraldo de Cremona. Aristipo verte o livro dos meteoros, e outros tradutores, cujo nome ficou no esquecimento, fizeram as versões da física, do de anima e dos parva naturalia, bem como daquela parte dos livros metafísicos, a que se convencionou chamar de Metaphysica vetustissima, para a distinguir das completas traduções posteriores. A breve trecho, sobretudo a partir de 1220, através do impacto internacional das escolas parisienses, abriam-se profundas fracturas mo sistema em vigor, ou seja, o augustinismo, o platonismo augustinista, de modo a, na esfera católica, se repetir o fenómeno que, mediante a introdução de Aristóteles, se dera na filosofia árabe – o confronto de averroístas e de avicenistas, em síntese, de aristotélicos e de platónicos. Na esfera católica, esse fenómeno significar-se-ia na bifurcação das correntes escotista e tomista, senão dos voluntaristas e dos intelectualistas. A rede conventual cisterciense serviu-se dos frutos criados em Toledo.
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Mosteiro de Alcobaça |
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Estátua de Maimónides na sua casa natal de Córdova |
Os livros de Maimónides eram estudados em mais de um local da Península e, no século XV, o lisbonense Isaac Abravanel ainda afirmava lealdade a Aristóteles, o mesmo sucedendo com o seu amigo e coetâneo Fernão Lopes. A criação do Estudo Geral e a abertura da cadeira de Dialéctica tornaram Aristóteles mais estudado, enquanto os frades, que mantinham relações com as abadias de Chartres e de S. Vítor, eram motivados para o seguimento do Estagirita, pelo que, na Península, e no mesmo período, o aristotelismo platonizante é um facto triádico, por ocorrer nas tradições coexistentes, a árabe, a hebraica e a cristã. Sem bem que a literatura de tendência mística (Horto do Esposo, por exemplo) fosse muitas vezes contra o radicalismo filosófico, por temer a exorbitância da razão, as citações de Aristóteles aparecem aí, e noutros textos, equivalentes ou contemporâneos. Incidências aristotélicas são patentes na Crónica de D. Pedro e na Crónica de D. Fernando, de Fernão Lopes, cuja teoria do conhecimento é aristotélico-platonizante, e cuja prática hermenêutica manifesta, na sua obra de historiador, o realismo peculiar à lógica aristotélica. O aristotelismo político aparece no Livro Velho, do conde D. Pedro de Barcelos, na obra de Gomes Eanes de Azurara, e nas de outros escritores da mesma época. D. Duarte, que tinha Aristóteles na sua livraria, cita-o algumas vezes; o infante D. Pedro, no Da Virtuosa Benfeitoria, mostra influência aristotélica mais ampla, citando, já os livros lógicos, já os de ciências naturais, enquanto D. Duarte preferiu os lógicos, os éticos e os políticos. A presença de mestres franscicanos, como Fr. João Verba, junto destes autores, leva-nos a considerar a sua influência neles e, também, o valor que as escolas franciscanas dariam, nesse tempo, ao pensamento de Aristóteles. Da mesma geração é o infante D. Henrique, o qual, sem ter deixado trabalho escrito, estava ciente do valor medianeiro do realismo aristotélico, quanto a uma teoria das causas, sendo muito significativo que tivesse mandado reservar uma sala do Estudo Geral de Lisboa, para aí ser pintado o retrato de Aristóteles. Nesta época, o averroísmo está disseminado, algum aristotelismo entra por via averroísta, designadamente a via latina, formulada em Paris e Oxford. O Antiaverroísmo de Gomes de Lisboa remete-nos para a discussão mais ampla de nominalistas e de idealistas num momento em que a presença da filosofia tomista era já o premente, servindo de via preferencial nas escolas de várias Ordens, salvo nos Franciscanos, onde Duns Escoto fora elevado a magister. Abre ele a via Scoti, também constituída pela sua pessoal interpretação de Aristóteles, que estudou em Paris com Gonçalo Hispano. O Escoto aristotélico – Scotus aristotelicus – é um dado da filosofia e da espiritualidade medieval portuguesa, mesmo considerando que o aristotelismo escotista alcança maior enfâse nos séculos XVI e XVII. Na sucessão do pensamento, o leque de abordagens transita do estudo da lógica para a exegese cosmológica, em geral determinada por visões nominalizantes, quais as de Fr. Gonçalo Hispano (fal. 1313) e de Pedro Margalho. A predominância de Aristóteles na física pode não carecer de necessária chamada a Roberto Grosseteste, já que o empirismo cosmológico de Aristóteles é de si mesmo um empirismo organizador do cosmos. Empirismo não é sinónimo de nominalismo e de sensualismo, mas o empirismo da "revolução da experiência", a catalogação e a classificação dos fenómenos cosmográficos, e, depois, zoológicos, mineralógicos e botânicos, desde os tratados de caça aos roteiros de navegação, encontra apoio na ciência de Aristóteles, conforme se acha sugerido no gesto cosmológico do infante D. Henrique. A perspectiva aristotélica da física dava, além disso, uma consistência teológica aos Descobrimentos, já que, não sendo uma física mecanicista, mas uma física dinâmica, transfere da cinemática para a estática e, na escala ascendente, da física para a ontologia, da ciência do sensível para a ciência do ideável. Na ordem teológica, o rigor do empirismo fez-se acompanhar, já da influência escotista (espiritualidade franciscana), já da influência tomista (espiritualidade dominicana), o que não é difícil de aceitar, dada a conciliação das primeiras ideias de cada tendência na anterior influência da missionação, prevista e preconizada por Raimundo Lullo.
Os
judeus tiveram, até ao século XIV, desconfiança em Maimónides e, logo, em
Aristóteles, por causa da tese da eternidade do mundo. Ignoramos qual o grau de
temor que a desconfiança judaica importaria para o lado católico, mas, dado o
costume das disputas doutrinais, é lícito admitir que mestres católicos tinham conhecimento do clima hebraico quanto ao aristotelismo de Maimónides, clima
esse também testemunhado nas relações da teologia alcorânica e da filosofia árabe.
O aristotelismo desta época é um acontecimento, mas torna-se difícil estabelecer
uma cadeia de terminação dentro de cada escola, ou de autor para autor. O
período medieval apresenta um aristotelismo ascendente, mas ainda não florescente
e total, que só se manifestaria em abundância no século XVI.»
Pinharanda Gomes («Aristotelismo», in Dicionário de
Filosofia Portuguesa).
Santo
Alberto Magno: o Mestre de Colónia
Qual
o merecimento fundamental de Alberto de Colónia? Ter sido o primeiro a entrar,
com decisão, método e poderosas qualidades de labor e paciência, no caminho
novo que se abria então à filosofia. Dominava ainda a corrente platónica,
trespassada de luz pelas ascensões místicas de Santo Agostinho. Nos meados do
século XII, através de numerosos tradutores, Aristóteles começava a invadir as
escolas e os espíritos do Ocidente. E o que Aristóteles principalmente trazia,
era a liberdade da inteligência, as suas justas reivindicações de autonomia nos
domínios que lhe são próprios.
É
esta a grande encruzilhada histórica em que surge o drama do pensamento
medieval. Até aí, a luta entre a razão e a fé, entre a dialéctica e a teologia
– implicava o triunfo certo da última. A razão, de facto, educada na tradição
do platonismo, estava cheia de névoas e exaltações idealistas e constantemente
humilhada ante as claridades fixas e inabaláveis do dogma. Era uma razão em
transe, preparada sempre à passagem do visível ao invisível, do real ao sobre-real
– tal como a tinham modelado os Patriarcas do Cristianismo e os mestres das
Abadias e dos Mosteiros.[1]
Há
longo tempo que Boécio se dedicara à tradução de grande parte de Aristóteles,
completada pelos árabes e ensinada em muitas escolas. Quando principiaram, no
século XII, a fluir as traduções e comentários árabes, ou mesmo europeus (como,
por exemplo o De divisione philosophiae
de Gundisalvi ou as versões latinas de Gerardo de Cremona) nem todos mereciam
grande confiança. Apesar disso, o inesperado aparecimento dos livros do
Estagirita fez um tal efeito que, na afirmação lúcida dum professor de hoje,
«toda a história da filosofia do século XIII se confunde com as diversas
atitudes adoptadas perante Aristóteles ou os árabes pelos filósofos do tempo.[2]
Com
Aristóteles, de facto, penetrava-se na observação do mundo natural, onde o homem ansiava por
encontrar a base duma ciência harmoniosa. O Estagirita era esse maestro di color chi sanno, mais tarde
saudado por Dante. O seu empirismo ordenado, dedutivo, de admirável alcance
metodológico – que fazia do mundo um conjunto de interdependências hierárquicas
– vinha facilitar a conquista de novos horizontes, dar à filosofia um impulso
decisivo. Como era de prever, a abundância e riqueza dos seus textos provocaram
curiosidade e entusiasmo em todos os centros da cultura medieval – e seduziram,
especialmente, a mocidade das escolas.
A
Santa Sé, tomando em conta os perigos inegáveis que a invasão aristotélica
podia trazer, principiou acertadamente por lhe opor uma reserva categórica, até
ao momento de ser possível submetê-la à necessária filtragem. A negação duma
Providência, a teoria da criação do mundo ab
aeterno, a exclusão da imortalidade da alma e, consequentemente, dos castigos ou recompensas da outra vida – eram,
entre outras, afirmações que ameaçavam a integridade da ortodoxia. Mas certas
directrizes trazidas pelo Perípato e, sobretudo, o seu método, eram
indispensáveis aos progressos da filosofia. Urgia, portanto, dar-lhes o lugar
merecido – aproveitar-lhes os elementos fecundadores, expurgá-los de todos os
vícios fundamentais.[3]
Alberto
Magno compreendeu bem as exigências do momento e consagrou-se a um trabalho
meritório e vastíssimo de interpretação assimiladora do aristotelismo. Antes de
mais nada, impunha-se a tarefa de pôr ao alcance de todos a física, a
metafísica e a matemática de Aristóteles. «Nostra
intentio est omnes dictas partes (physicam, metaphysicam et mathematicam)
facere latinis intelligibilis» – anunciou o mestre de Colónia («Physic.», lib, tr. I, cap. I). E
cumpriu o programa estabelecido, sem se contentar com a simples reprodução de
Aristóteles, mas indo até à sua explicação e comentário, a ponto de tentar
restaurá-lo – por sobre as deformações dos alexandrinos e dos tradutores
árabes.
Digamos,
em resumo: Alberto ofereceu aos seus contemporâneos uma verdadeira enciclopédia
– e assim abriu novos rumos aos esforços do pensamento medievo. Como expositor
e glosador de Aristóteles, dos árabes, dos neo-platónicos. Ainda mais como
homem de ciência, um dos autênticos fundadores da ciência experimental, cuja
obra pode ser, no sentido construtivo e progressivo do termo, classificada de
revolucionária. Ou, melhor, de pré-revolucionária – porque a Revolução completa
seria obra do seu discípulo-mestre: Tomás de Aquino.
Simples
acumulador de materiais, falho de espírito crítico e de poder de sistematização
– diz-se. E é, em parte, verdade. Alberto preparou o terreno para a grande
colheita que não tardaria. O seu papel foi grande e belo – mas, apesar de tudo,
foi unicamente um papel de arauto. Nem por isso, todavia, o seu tempo o
confundiu com um simples scriptor, ou
com um mero compilator ou com um
qualquer commentator – porque lhe
reconheceu a categoria mais alta de auctor, citado entre aqueles que maior
autoridade possuíam nos grandes centros de ensino da Idade Média.
(In João Ameal, São Tomás de Aquino, Livraria Tavares
Martins, Porto, 1938, pp. 51-56).
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João Francisco de Barbosa Azevedo de Sande Aires da Campos |
[1] Assinala Mandonnet que esta
absorção «do objecto da filosofia no da teologia» provinha ainda de Santo
Agostinho, que nisto mais não fazia do que sofrer a influência de Platão e da
sua Escola. («Siger de Brabant et l’averroïsme latin», vol. I, pág. 55 – nota).
[2]
Étienne Gilson, «La Philosophie au Moyen Age», ed, 1925, pág. 121.
No
século XIII, diz também Mandonnet, «les groupements dans le domaine de la
philosophie et de la théologie, s’opèrent d’aprés l’attitude prise à l’égard
d’Aristote, selon qu’on lui subordonne plus ou moins rigoureusement sa pensée,
ou même qu'on s’efforce de le tenir à l’écart». (Op. cit.,
pág. 26).
[3] A atitude da Igreja, no século
XIII, para com Aristóteles, marca-se, sobretudo, pelas seguintes datas e
documentos:
1.º Em 1210, um decreto do
Concílio da Província Eclesiástica de Sens, efectuada em Paris,
proíbe, sob pena de excomunhão, ler e interpretar, naquela cidade, quer nas
lições públicas quer nas privadas, os livros de Aristóteles sobre a Filosofia
Natural, assim como os comentários desses livros.
2.º Em 1215, o legado pontifício
Roberto de Courçon, no regulamento das Escolas parisienses, renova a interdição
relativa aos livros de Aristóteles sobre a Metafísica e a Filosofia Natural – e
às «summas» dos mesmos livros. Também proíbe as doutrinas de David de Dinant,
de Amaury de Chartres e dum certo Maurício de Espanha em quem alguns
historiógrafos quiseram descobrir o próprio Averroes (Mandonnet discorda deste
ponto de vista, in op. cit., págs, 17
a 19). Podiam ser lidas, no entanto, as lógicas antiga e nova do Estagirita e
interpretada a «Ethica vetus».
3.º Em 13 de Abril de 1231,
Gregório IX, para aproveitar a oportunidade que lhe oferecia a reorganização da
Universidade de Paris e para dar satisfação equilibrada aos desejos cada vez
mais nítidos que professores e alunos mostravam de poder utilizar as obras de
Aristóteles, mantém «em princípio» (no regulamento fundamental dirigido aos
mestres e estudantes da cidade-luz) a anterior proibição, mas declara-a
provisória, até que essas obras sejam revistas e expurgadas.
4.º Em 23 de Abril do mesmo ano,
Gregório IX encarrega três professores conhecidos – Guilherme d’Auxerre, Simon
D’Authie e Étienne de Provins – de tentar essa revisão expurgadora, que se
revelava, desde logo, extremamente difícil, quer por causa da interdependência
dos tratados aristotélicos, quer da sólida e profunda unidade do pensamento do
seu autor.
5.º Em 19 de Janeiro de 1263,
Urbano IV, embora reedite as proibições, fá-lo de modo atenuado – mais a título
de aviso dado aos mestres da Faculdade das Artes que, a 19 de Março de 1255,
tinham mostrado, no Estatuto da mesma Faculdade, admitir o ensino quase
integral do Perípato, com manifesto esquecimento dos anteriores decretos
pontifícios.
Note-se que em 1256, por ordem de
Alexandre IV, Alberto Magno escrevera o seu tratado De Unitate intellectus
contra Averroem, dirigido em especial aos peripatéticos averroístas latinos.
Graças ao «Doctor Universalis» e, sobretudo, ao seu glorioso discípulo Tomás de
Aquino, Aristóteles ia ser submetido a exame pormenorizado e decisivo, de forma
a poder ser combatido e aceite nas Escolas.
E a prova é que em 1366, no século seguinte, já dois cardeais legados de Urbano V exigiam, num regulamento, que os candidatos à licenciatura em Artes conhecessem as obras completas do Estagirita.