quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Santo Alberto Magno: o Mestre de Colónia

Escrito por João Ameal







Jacques Maritain e o Papa Paulo VI







«A crise na problemática das relações entre o Estado e a Igreja, que corresponde, aliás, à problemática das relações entre a filosofia e a teologia, deu novo alento aos pensadores que haviam propugnado pelo regresso à Escolástica. Verdade é que a encíclica de Leão XIII, se foi lida, observada e cumprida nos seminários diocesanos e na Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra, não alcançou êxito filosófico nos ambientes culturais do País. Multiplicaram-se, sem eficiência, as traduções dos livros de Jaime Balmes. As publicações periódicas e não-periódicas de que nos deu notícia Fortunato de Almeida na sua História da Igreja em Portugal não alteraram o andamento normal dos estudos superiores. Só depois de proclamada a República Positivista começaram a ser divulgadas entre nós as publicações do Instituto Filosófico de Lovaina e do Instituto Católico de Paris. A propaganda neotomista de Jacques Maritain, muito conhecida pelos leitores da Action Française, chegou a merecer atenção popular entre os estudantes universitários portugueses, o que hoje parece estar explicado e justificado pelas afinidades de interpretação com a melhor tradição nacional. O segredo de tal êxito não está só na intenção anticartesiana ou antimoderna da polémica medievalista, mas também no facto de Jacques Maritain haver estudado profundamente a obra latina de Fr. João de S. Tomás, conforme nos informa o Dr. António Manuel Gonçalves. Lembremos os nomes de Alfredo Pimenta, João Ameal e Correia de Barros entre os melhores divulgadores da filosofia neotomista, antes de fazer devida referência à obra apologética de D. Manuel Gonçalves Cerejeira, intitulada A Igreja e o Pensamento Contemporâneo.

Mercê de circunstâncias favoráveis, entre as quais avulta a nova solução jurídica das relações entre o Estado e a Igreja, conhecida pela Concordata de 1940, nota-se hoje melhor revivescência da filosofia escolástica, sem compromissos já com a interpretação positivista. Justo é mencionar o esforço capital da cidade de Braga, onde a Província Portuguesa da Companhia de Jesus fundou o Instituto Miguel de Carvalho, depois transformado em Faculdade Pontifícia de Filosofia. Nas suas publicações de carácter histórico, aquele instituto procede a uma revisão e a uma revalorização dos escolásticos portugueses, o que virá a contribuir para anular o espírito de subserviência perante os escritores estrangeiros, quer dizer, o espírito da geração negativista de 1870. Conseguiram desse modo os padres jesuítas pôr termo à desconfiança que os católicos portugueses, eivados de positivismo, opunham à filosofia, apodando-a de filosofismo. De desejar seria também que aquela instituição cultural propugnasse pelo cultivo filosófico da psicanálise, da psicologia e da parapsicologia, a fim de combater o triste preconceito de que as ciências psíquicas são necessariamente empirismo, o que está refutado pela doutrina e pela acção de alguns ilustres membros da Companhia de Jesus.

A parapsicologia faculta os melhores argumentos de uma apologética baseada na verdade central do Cristianismo que é a doutrina da imortalidade da alma, ou, melhor, da imortalidade do homem. As bem-aventuranças do Sermão da Montanha aludem a outro mundo, o da graça que completa a natureza, o da liberdade que completa a lei, mundo novo que só pode ter verdadeiro sentido pela remissão dos efeitos do pecado, e até do próprio pecado. Se a apologética não estiver centrada nesta crença e nos respectivos artigos de fé, a teologia contemporânea será incapaz de compreender, assimilando e vencendo, as doutrinas de Marx e de Freud no que elas substituem, pelas teses de alienação e superestrutura, como pelas teses de transferência e sublimação, as verdades cristãs da liberdade e da graça.

Vai sendo afirmado, dentro das instituições que renovam o cultivo da filosofia escolástica, algum espírito de independência na interpretação do tomismo, que tende a deixar de ser positivista para ser existencialista, interpretação distante da verdade aristotélica, mais fiel às tradições culturais do povo português. Do ponto de vista filosófico mais nos interessa o regresso a Aristóteles do que à consequente interpretação da obra de S. Tomás de Aquino. Em 1960 já é possível reler a encíclica de 1950 sem receio de que ela afecte a pluralidade e a liberdade dos modos nacionais de filosofar.




A tendência para fazer do tomismo, e de uma só escola tomista, ou de uma só interpretação do tomismo, a filosofia católica, tem ido sempre esbarrar com os ditames da experiência e do bom senso. Étienne Gilson, em um dos seus mais divulgados livros, não deixa de remeter irónicas censuras àqueles escritores católicos, para os quais:

“...Idade Média quer dizer escolástica, e escolástica significa verdade, eterna filosofia, delimitação rigorosa de um domínio dentro do qual tudo é verdade, fora do qual tudo é erro. Nestas condições, os grandes sistemas escolásticos serão expostos de modo tal que pareçam conter a solução antecipada de todos os problemas filosóficos e a refutação de todos os erros. Assim nos surgem essas exposições da doutrina tomista onde vemos um S. Tomás refutar antes de tempo os erros de Locke, Kant, Spencer e Bergson”».

Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).

 

«Feliz com a descoberta do Mestre que podia satisfazer a sua imensa sede de saber, Tomás de Aquino tomou uma atitude inesperada, exactamente contrária à que tomaria qualquer outro estudante. Em vez de se expandir, de se confiar, de entrar em comunicação franca, fechou-se mais, tornou-se mais taciturno e silencioso, exilou-se na oração e no estudo – dir-se-ia que só pensou em armazenar cuidadosamente aquilo que ia aprendendo e mais tarde, transfigurado pelo seu génio, devolveria ao mundo em luminoso ensino.

A princípio, as aparências iludiram os seus companheiros que, ao verem aquele frade moço mas corpulento, pesado e sério, refugiado num mutismo teimoso – o classificaram, maliciosamente, com a célebre legenda: bos mutus Siliciae. Julgavam-no um ser maciço, incompreensivo, encerrado na sua própria espessura, incapaz de assimilar as subtilezas e transcendências da especulação.

Mas, pouco a pouco – fonte manando do rochedo – o génio de Tomás de Aquino começou a revelar-se. Um dia, por exemplo, seguiam os estudantes com viva atenção um comentário de Alberto ao De Divinis Nominibus do pseudo-Areopagita. Certo condiscípulo, ao reparar que Tomás se concentrava, supôs ser essa concentração a prova de que não atingia o significado das palavras do Mestre. Ofereceu-se então, generoso, para lhe repetir a lição que ambos tinham escutado. Mas o condiscípulo depressa se perdeu ao repetir a matéria e foi o próprio bos mutus quem, com toda a simplicidade, retomou a exposição desde o começo e lhe acrescentou mesmo coisas que não tinham sido ditas. O outro, surpreendido e deslumbrado, pediu-lhe que daí por diante, invertendo os papéis, lhe fizesse a graça de lhe explicar as lições. Tomás acedeu logo, mas exigiu do companheiro um segredo absoluto. Embora tivesse prometido, este não pôde deixar de contar o caso a um professor, que, por sua vez, o fez saber a Alberto Magno.

Poucos dias decorridos, o Mestre de Colónia sustentou um debate solene sobre determinado problema de grande importância. Tomás escreveu numa folha de papel o resumo da questão. Um condiscípulo encontrou a folha e levou-a a Alberto, que ficou plenamente convencido dos tesouros de sabedoria e de inteligência ocultos sob a discreta modéstia do Aquinense.

Resolveu, por isso, submetê-lo a uma prova decisiva. Disse a um professor para encarregar Tomás de responder em público a uma pergunta extremamente difícil. Ferido na sua humildade, pois o facto já representava uma distinção extraordinária – recusou o frade. O dever de obediência forçou-o a submeter-se. E no dia seguinte, depois de ter pedido o socorro divino, aprestou-se para a melindrosa prova.




Logo à entrada, formulou uma distinção tal que lhe permitia inutilizar todas as objecções e desfazer todas as obscuridades. O professor, entre surpreso e risonho, declarou-lhe: – "Não pareceis ocupar o lugar daquele que responde, mas sim o do mestre que decide". Respeitosamente, Tomás deixou cair esta frase admirável: "Não vejo outra maneira de responder". Se ele era, de facto, já um mestre – como havia de mostrar as hesitações e carências dum escolar igual aos outros? A sua superioridade aparecia-lhe, porém, tam natural que nem dava por ela...

O professor tentou ainda opor-lhe argumentos de tal valor que os supunha irrefutáveis. No entanto, ainda com toda a simplicidade, Tomás liquidou-os em poucas palavras.

Depois deste episódio é que Alberto Magno teria dito a sua frase famosa e profética: "Chamamos-lhe o boi mudo; mas um dia os seus mugidos, a expor a doutrina, hão-de ouvir-se no mundo inteiro".

E nunca mais um companheiro perturbou com qualquer espécie de ironia ou irreverência as meditações inspiradas de Tomás de Aquino.»

João Ameal («São Tomás de Aquino – Iniciação ao estudo da sua figura e da sua obra»).

 

«As Escolas medievais não estudavam (e o facto acha-se patente nas pesquisas de Fortunato de São Boaventura e de outros, a ele posteriores) a língua grega, ou estudavam-na pouco. Os autores da história das línguas sagradas e clássicas são unânimes em afirmar que pouco ou nenhum grego se sabia na Idade Média portuguesa. A grande filosofia grega e helénica não tinha sido desde logo chamada à ascendente civilização cristã, que a descobriu por influxo da cultura árabe, mais cedo atenta à herança filosófica helénica. O sentimento desta genealogia permaneceu no decurso do tempo, daí derivando alguma equivocidade, que se acha no criticismo da época pombalina, o qual engloba o aristotelismo na designação geral de «filosofia arábigo-peripatética», embora historiadores como Lopes Praça e José de Arriaga sugiram que o criticismo pombalino não visava tanto o aristotelismo propriamente dito, como o predomínio dos comentadores arábigo-peripatéticos, nos quais obviamente se incluíam os Conimbricenses. Não obstante, desde o século V, algum Aristóteles devinha fundamental na vertebrização do pensamento escolástico cristão, que procurava Aristóteles, não para harmonizar o pensamento grego com a revelação evangélica, mas para dispor de uma base racional sólida para a demonstração da Fé, e para a sistematização científica da dogmática. Conhecia-se de preferência o Aristóteles gramático e lógico, transmitido através dos Comentadores, sobretudo Boécio, que formara no Ocidente a logica vetus, ou logica antiqua, assente na Isagoge de Porfírio, e nos dois primeiros livros do Organon (Categorias e Perihermeneias), à qual se segue a logica nova, que já dispõe do conhecimento dos restantes livros do Organon, mas que só se torna predominante no século XIII. Os enciclopedistas medievais (árabes, judeus e cristãos), tendem a valorizar o sistema lógico de Aristóteles, cujo achamento definitivo é, para a cristandade, um fenómeno hispânico, que se gera em Toledo e se transmite ao Ocidente, através da escolástica parisiense. Na primeira metade do século XII, o cisterciense Raimundo de Sauvetât (fal. 1152), fundou a Escola de Tradutores de Toledo, que, no dizer do insuspeito Ernesto Renan, dividiria a Idade Média em duas épocas bem distintas. Raimundo dispôs-se a realizar o que os árabes tinham feito na Bagdade do século X: o aproveitamento do saber clássico, mediante a tradução para latim das obras magistrais. Nessa escola, um árabe lia o texto de obras científicas e filosóficas, ao mesmo tempo que um judeu vertia oralmente do árabe para vulgar, e um tradutor-copista cristão traduzia do vulgar (romanço) para latim. É um processo de tradução simultânea poliglota, decerto arriscado, mas, através dele, o pensamento geral de Aristóteles entra nos estudos de Paris, no começo do século XIII. Nesta altura, o Organon achava-se já em latim, na íntegra; o que se designa de lógica nova expande-se desde meados do século XII e alguns dos livros naturais são traduzidos por Geraldo de Cremona. Aristipo verte o livro dos meteoros, e outros tradutores, cujo nome ficou no esquecimento, fizeram as versões da física, do de anima e dos parva naturalia, bem como daquela parte dos livros metafísicos, a que se convencionou chamar de Metaphysica vetustissima, para a distinguir das completas traduções posteriores. A breve trecho, sobretudo a partir de 1220, através do impacto internacional das escolas parisienses, abriam-se profundas fracturas mo sistema em vigor, ou seja, o augustinismo, o platonismo augustinista, de modo a, na esfera católica, se repetir o fenómeno que, mediante a introdução de Aristóteles, se dera na filosofia árabe – o confronto de averroístas e de avicenistas, em síntese, de aristotélicos e de platónicos. Na esfera católica, esse fenómeno significar-se-ia na bifurcação das correntes escotista e tomista, senão dos voluntaristas e dos intelectualistas. A rede conventual cisterciense serviu-se dos frutos criados em Toledo. 

Mosteiro de Alcobaça





Em 1150, o arcebispo bracarense, D. João Peculiar, deslocou-se àquela cidade, sendo crível que, por todas as razões de cultura e de prestígio, obras toledanas tivessem vindo para escolas e livrarias portuguesas, tanto mais que a comunidade cisterciense de Alcobaça, com sua enorme apetência cultural, não se alhearia dos próprios frutos. Faltam documentos que garantam que Alcobaça aderisse de imediato ao Aristóteles toledano, antes pode ter esperado que as controvérsias parisienses (em que Pedro Hispano, ou Pedro Julião, em devido tempo Papa João XXI, teve lugar de primacialidade decisória, em matéria de conflitos ideológicos) o apurassem para a disciplina teológica. De resto, sem escola de ciências, e apenas com escolas triviais, o Aristóteles que mais importava não era o das ciências naturais; era o gramático e o lógico, o organizador dos métodos gramáticos, hermenêuticos e dialécticos. Exemplo demonstrativo de que assim foi encontra-se no aristotelismo ecléctico de Pedro Hispano que, tendo comentado as obras de Aristóteles foi, pelo seu trabalho de lógica, as Summulae Logicales, que obteve mais longa permanência nas escolas da Europa, onde só começou a deixar de ser estudado no século XVI. Se bem que se formasse no país (o problema da formação filosófica de Pedro Hispano acha-se solvido nos estudos de João Ferreira, de Francisco da Gama Caeiro e de J. M. da Cruz Pontes, que a situam na sua terra natal) Pedro Hispano actuou no estrangeiro, pelo que a sua obra não determinou, no seu país, um aristotelismo fundamental, continuando a seguir-se a linha platonizante e augustinista, caso isto seja de concluir do espólio literário inerente à cuidaçom celestrial, de que nos ficaram mais testemunhos do que de tratados aristotélicos, pelo menos em referência à herança nas escolas medievais de Alcobaça, de Coimbra, de Braga e de Lisboa. Nelas, há dois aspectos a atender: o da influência de Santo Agostinho propriamente dito, e o do augustinismo, não raro baseado em obras apócrifas e imitativas, da autoria de augustinistas. Vistas a forma modelar como entendeu a lógica aristotélica e a influência prolongada que exerceu nas escolas ocidentais, torna-se evidente que um dos momentos mais altos do aristotelismo ocidental se situa na obra lógica e psicológica de Pedro Hispano conforme já o entendeu Dante, ao mencioná-lo na Divina Comédia (Paraíso, 12, 134-135). Dadas as premissas anteriores, e mesmo que, para as escolas portuguesas, o Organon tivesse interesse mais objectivo e imediato do que as obras de ciências naturais, admite-se que também estas existiram em algumas bibliotecas conventuais e catedrais. A hipótese, sugerida por certos autores (de ser um texto aristotélico o De Physica, doado, em 1285, pelo cónego João Gonçalves à Sé de Coimbra, e de outro texto aristotélico ser o tratado de meteorologia, legado em 1275 por Mestre Gil ao Convento Franciscano de Leiria) é francamente aceitável, mesmo que possa não se ter a certeza absoluta, uma vez que os documentos de doação omitem os autores daqueles livros. Do mesmo século XIII há certo número de códices utilizados em Alcobaça, que, sendo escola modelo, não deixaria de contagiar as outras escolas pelos seus interesses. Assim, do século XIII, no Fundo Alcobacense (repartido pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo e pela Biblioteca Nacional de Lisboa) ainda restam os Comentários, de Adão Marsh (Marisco) aos oito livros da Física, a três da Geração e Corrupção, a quatro dos Meteoros, o que prova a importação dos textos naturais, a par dos textos lógicos. Além destes, Alcobaça tinha dez livros da Ética, dois livros de Oeconomia (atribuídos a Aristóteles) e oito do Politicorum, sendo também credível que fosse lido o célebre De Causis, que os árabes conheciam bem, e onde se pretendia ver o sistema de teologia de Aristóteles. Sobre os livros de Oeconomia, e antes de 1283, o bispo de Évora, D. Durando Pais, escreveu um comentário, que passa por constituir um dos melhores textos da doutrina medieval portuguesa, tendo sido reeditado (1955) com estudo de Moses Bensabat Amzalak. O aristotelismo português desta época ainda é pouco conhecido, na medida em que nos falece uma adequada hermenêutica e uma rigorosa exegese que descubra, nos argumentos dos pensadores medievais, as possíveis e as inequívocas incidências de Aristóteles, mesmo que o seu nome se ache omisso, tanto mais que, a partir dos fins do século XIII, estudantes portugueses atendiam aulas em Paris e, ao mesmo tempo, havia letrados judeus e árabes vivendo a nosso lado, atentos à meditação aristotélica. 


Estátua de Maimónides na sua casa natal de Córdova



Os livros de Maimónides eram estudados em mais de um local da Península e, no século XV, o lisbonense Isaac Abravanel ainda afirmava lealdade a Aristóteles, o mesmo sucedendo com o seu amigo e coetâneo Fernão Lopes. A criação do Estudo Geral e a abertura da cadeira de Dialéctica tornaram Aristóteles mais estudado, enquanto os frades, que mantinham relações com as abadias de Chartres e de S. Vítor, eram motivados para o seguimento do Estagirita, pelo que, na Península, e no mesmo período, o aristotelismo platonizante é um facto triádico, por ocorrer nas tradições coexistentes, a árabe, a hebraica e a cristã. Sem bem que a literatura de tendência mística (Horto do Esposo, por exemplo) fosse muitas vezes contra o radicalismo filosófico, por temer a exorbitância da razão, as citações de Aristóteles aparecem aí, e noutros textos, equivalentes ou contemporâneos. Incidências aristotélicas são patentes na Crónica de D. Pedro e na Crónica de D. Fernando, de Fernão Lopes, cuja teoria do conhecimento é aristotélico-platonizante, e cuja prática hermenêutica manifesta, na sua obra de historiador, o realismo peculiar à lógica aristotélica. O aristotelismo político aparece no Livro Velho, do conde D. Pedro de Barcelos, na obra de Gomes Eanes de Azurara, e nas de outros escritores da mesma época. D. Duarte, que tinha Aristóteles na sua livraria, cita-o algumas vezes; o infante D. Pedro, no Da Virtuosa Benfeitoria, mostra influência aristotélica mais ampla, citando, já os livros lógicos, já os de ciências naturais, enquanto D. Duarte preferiu os lógicos, os éticos e os políticos. A presença de mestres franscicanos, como Fr. João Verba, junto destes autores, leva-nos a considerar a sua influência neles e, também, o valor que as escolas franciscanas dariam, nesse tempo, ao pensamento de Aristóteles. Da mesma geração é o infante D. Henrique, o qual, sem ter deixado trabalho escrito, estava ciente do valor medianeiro do realismo aristotélico, quanto a uma teoria das causas, sendo muito significativo que tivesse mandado reservar uma sala do Estudo Geral de Lisboa, para aí ser pintado o retrato de Aristóteles. Nesta época, o averroísmo está disseminado, algum aristotelismo entra por via averroísta, designadamente a via latina, formulada em Paris e Oxford. O Antiaverroísmo de Gomes de Lisboa remete-nos para a discussão mais ampla de nominalistas e de idealistas num momento em que a presença da filosofia tomista era já o premente, servindo de via preferencial nas escolas de várias Ordens, salvo nos Franciscanos, onde Duns Escoto fora elevado a magister. Abre ele a via Scoti, também constituída pela sua pessoal interpretação de Aristóteles, que estudou em Paris com Gonçalo Hispano. O Escoto aristotélico – Scotus aristotelicus – é um dado da filosofia e da espiritualidade medieval portuguesa, mesmo considerando que o aristotelismo escotista alcança maior enfâse nos séculos XVI e XVII. Na sucessão do pensamento, o leque de abordagens transita do estudo da lógica para a exegese cosmológica, em geral determinada por visões nominalizantes, quais as de Fr. Gonçalo Hispano (fal. 1313) e de Pedro Margalho. A predominância de Aristóteles na física pode não carecer de necessária chamada a Roberto Grosseteste, já que o empirismo cosmológico de Aristóteles é de si mesmo um empirismo organizador do cosmos. Empirismo não é sinónimo de nominalismo e de sensualismo, mas o empirismo da "revolução da experiência", a catalogação e a classificação dos fenómenos cosmográficos, e, depois, zoológicos, mineralógicos e botânicos, desde os tratados de caça aos roteiros de navegação, encontra apoio na ciência de Aristóteles, conforme se acha sugerido no gesto cosmológico do infante D. Henrique. A perspectiva aristotélica da física dava, além disso, uma consistência teológica aos Descobrimentos, já que, não sendo uma física mecanicista, mas uma física dinâmica, transfere da cinemática para a estática e, na escala ascendente, da física para a ontologia, da ciência do sensível para a ciência do ideável. Na ordem teológica, o rigor do empirismo fez-se acompanhar, já da influência escotista (espiritualidade franciscana), já da influência tomista (espiritualidade dominicana), o que não é difícil de aceitar, dada a conciliação das primeiras ideias de cada tendência na anterior influência da missionação, prevista e preconizada por Raimundo Lullo.






Os judeus tiveram, até ao século XIV, desconfiança em Maimónides e, logo, em Aristóteles, por causa da tese da eternidade do mundo. Ignoramos qual o grau de temor que a desconfiança judaica importaria para o lado católico, mas, dado o costume das disputas doutrinais, é lícito admitir que mestres católicos tinham conhecimento do clima hebraico quanto ao aristotelismo de Maimónides, clima esse também testemunhado nas relações da teologia alcorânica e da filosofia árabe. O aristotelismo desta época é um acontecimento, mas torna-se difícil estabelecer uma cadeia de terminação dentro de cada escola, ou de autor para autor. O período medieval apresenta um aristotelismo ascendente, mas ainda não florescente e total, que só se manifestaria em abundância no século XVI.»

Pinharanda Gomes («Aristotelismo», in Dicionário de Filosofia Portuguesa).

 

Santo Alberto Magno: o Mestre de Colónia

 

Qual o merecimento fundamental de Alberto de Colónia? Ter sido o primeiro a entrar, com decisão, método e poderosas qualidades de labor e paciência, no caminho novo que se abria então à filosofia. Dominava ainda a corrente platónica, trespassada de luz pelas ascensões místicas de Santo Agostinho. Nos meados do século XII, através de numerosos tradutores, Aristóteles começava a invadir as escolas e os espíritos do Ocidente. E o que Aristóteles principalmente trazia, era a liberdade da inteligência, as suas justas reivindicações de autonomia nos domínios que lhe são próprios.

É esta a grande encruzilhada histórica em que surge o drama do pensamento medieval. Até aí, a luta entre a razão e a fé, entre a dialéctica e a teologia – implicava o triunfo certo da última. A razão, de facto, educada na tradição do platonismo, estava cheia de névoas e exaltações idealistas e constantemente humilhada ante as claridades fixas e inabaláveis do dogma. Era uma razão em transe, preparada sempre à passagem do visível ao invisível, do real ao sobre-real – tal como a tinham modelado os Patriarcas do Cristianismo e os mestres das Abadias e dos Mosteiros.[1]

Há longo tempo que Boécio se dedicara à tradução de grande parte de Aristóteles, completada pelos árabes e ensinada em muitas escolas. Quando principiaram, no século XII, a fluir as traduções e comentários árabes, ou mesmo europeus (como, por exemplo o De divisione philosophiae de Gundisalvi ou as versões latinas de Gerardo de Cremona) nem todos mereciam grande confiança. Apesar disso, o inesperado aparecimento dos livros do Estagirita fez um tal efeito que, na afirmação lúcida dum professor de hoje, «toda a história da filosofia do século XIII se confunde com as diversas atitudes adoptadas perante Aristóteles ou os árabes pelos filósofos do tempo.[2]

Com Aristóteles, de facto, penetrava-se na observação do mundo natural, onde o homem ansiava por encontrar a base duma ciência harmoniosa. O Estagirita era esse maestro di color chi sanno, mais tarde saudado por Dante. O seu empirismo ordenado, dedutivo, de admirável alcance metodológico – que fazia do mundo um conjunto de interdependências hierárquicas – vinha facilitar a conquista de novos horizontes, dar à filosofia um impulso decisivo. Como era de prever, a abundância e riqueza dos seus textos provocaram curiosidade e entusiasmo em todos os centros da cultura medieval – e seduziram, especialmente, a mocidade das escolas.




A Santa Sé, tomando em conta os perigos inegáveis que a invasão aristotélica podia trazer, principiou acertadamente por lhe opor uma reserva categórica, até ao momento de ser possível submetê-la à necessária filtragem. A negação duma Providência, a teoria da criação do mundo ab aeterno, a exclusão da imortalidade da alma e, consequentemente, dos castigos ou recompensas da outra vida – eram, entre outras, afirmações que ameaçavam a integridade da ortodoxia. Mas certas directrizes trazidas pelo Perípato e, sobretudo, o seu método, eram indispensáveis aos progressos da filosofia. Urgia, portanto, dar-lhes o lugar merecido – aproveitar-lhes os elementos fecundadores, expurgá-los de todos os vícios fundamentais.[3]

Alberto Magno compreendeu bem as exigências do momento e consagrou-se a um trabalho meritório e vastíssimo de interpretação assimiladora do aristotelismo. Antes de mais nada, impunha-se a tarefa de pôr ao alcance de todos a física, a metafísica e a matemática de Aristóteles. «Nostra intentio est omnes dictas partes (physicam, metaphysicam et mathematicam) facere latinis intelligibilis» – anunciou o mestre de Colónia («Physic.», lib, tr. I, cap. I). E cumpriu o programa estabelecido, sem se contentar com a simples reprodução de Aristóteles, mas indo até à sua explicação e comentário, a ponto de tentar restaurá-lo – por sobre as deformações dos alexandrinos e dos tradutores árabes.

Digamos, em resumo: Alberto ofereceu aos seus contemporâneos uma verdadeira enciclopédia – e assim abriu novos rumos aos esforços do pensamento medievo. Como expositor e glosador de Aristóteles, dos árabes, dos neo-platónicos. Ainda mais como homem de ciência, um dos autênticos fundadores da ciência experimental, cuja obra pode ser, no sentido construtivo e progressivo do termo, classificada de revolucionária. Ou, melhor, de pré-revolucionária – porque a Revolução completa seria obra do seu discípulo-mestre: Tomás de Aquino.

Simples acumulador de materiais, falho de espírito crítico e de poder de sistematização – diz-se. E é, em parte, verdade. Alberto preparou o terreno para a grande colheita que não tardaria. O seu papel foi grande e belo – mas, apesar de tudo, foi unicamente um papel de arauto. Nem por isso, todavia, o seu tempo o confundiu com um simples scriptor, ou com um mero compilator ou com um qualquer commentator – porque lhe reconheceu a categoria mais alta de auctor, citado entre aqueles que maior autoridade possuíam nos grandes centros de ensino da Idade Média.

(In João Ameal, São Tomás de Aquino, Livraria Tavares Martins, Porto, 1938, pp. 51-56).


João Francisco de Barbosa Azevedo de Sande Aires da Campos



[1] Assinala Mandonnet que esta absorção «do objecto da filosofia no da teologia» provinha ainda de Santo Agostinho, que nisto mais não fazia do que sofrer a influência de Platão e da sua Escola. («Siger de Brabant et l’averroïsme latin», vol. I, pág. 55 – nota).

[2] Étienne Gilson, «La Philosophie au Moyen Age», ed, 1925, pág. 121.

No século XIII, diz também Mandonnet, «les groupements dans le domaine de la philosophie et de la théologie, s’opèrent d’aprés l’attitude prise à l’égard d’Aristote, selon qu’on lui subordonne plus ou moins rigoureusement sa pensée, ou même qu'on s’efforce de le tenir à l’écart». (Op. cit., pág. 26).

[3] A atitude da Igreja, no século XIII, para com Aristóteles, marca-se, sobretudo, pelas seguintes datas e documentos:

1.º Em 1210, um decreto do Concílio da Província Eclesiástica de Sens, efectuada em Paris, proíbe, sob pena de excomunhão, ler e interpretar, naquela cidade, quer nas lições públicas quer nas privadas, os livros de Aristóteles sobre a Filosofia Natural, assim como os comentários desses livros.

2.º Em 1215, o legado pontifício Roberto de Courçon, no regulamento das Escolas parisienses, renova a interdição relativa aos livros de Aristóteles sobre a Metafísica e a Filosofia Natural – e às «summas» dos mesmos livros. Também proíbe as doutrinas de David de Dinant, de Amaury de Chartres e dum certo Maurício de Espanha em quem alguns historiógrafos quiseram descobrir o próprio Averroes (Mandonnet discorda deste ponto de vista, in op. cit., págs, 17 a 19). Podiam ser lidas, no entanto, as lógicas antiga e nova do Estagirita e interpretada a «Ethica vetus».

3.º Em 13 de Abril de 1231, Gregório IX, para aproveitar a oportunidade que lhe oferecia a reorganização da Universidade de Paris e para dar satisfação equilibrada aos desejos cada vez mais nítidos que professores e alunos mostravam de poder utilizar as obras de Aristóteles, mantém «em princípio» (no regulamento fundamental dirigido aos mestres e estudantes da cidade-luz) a anterior proibição, mas declara-a provisória, até que essas obras sejam revistas e expurgadas.

4.º Em 23 de Abril do mesmo ano, Gregório IX encarrega três professores conhecidos – Guilherme d’Auxerre, Simon D’Authie e Étienne de Provins – de tentar essa revisão expurgadora, que se revelava, desde logo, extremamente difícil, quer por causa da interdependência dos tratados aristotélicos, quer da sólida e profunda unidade do pensamento do seu autor.

5.º Em 19 de Janeiro de 1263, Urbano IV, embora reedite as proibições, fá-lo de modo atenuado – mais a título de aviso dado aos mestres da Faculdade das Artes que, a 19 de Março de 1255, tinham mostrado, no Estatuto da mesma Faculdade, admitir o ensino quase integral do Perípato, com manifesto esquecimento dos anteriores decretos pontifícios.

Note-se que em 1256, por ordem de Alexandre IV, Alberto Magno escrevera o seu tratado De Unitate intellectus contra Averroem, dirigido em especial aos peripatéticos averroístas latinos. Graças ao «Doctor Universalis» e, sobretudo, ao seu glorioso discípulo Tomás de Aquino, Aristóteles ia ser submetido a exame pormenorizado e decisivo, de forma a poder ser combatido e aceite nas Escolas.

E a prova é que em 1366, no século seguinte, já dois cardeais legados de Urbano V exigiam, num regulamento, que os candidatos à licenciatura em Artes conhecessem as obras completas do Estagirita.




sexta-feira, 22 de agosto de 2025

"O averroísmo é um fenómeno do aristotelismo, um aspecto parcelar das Escolásticas, necessariamente matriciado a uma leitura da doutrina aristotélica"

Escrito por Pinharanda Gomes

«O pensamento medieval foi fortemente aristotelizado, muito antes de se realizar a oposição entre Platão e Aristóteles, ou entre agostinianos e dominicanos. Durante muitos anos os estudos teológicos foram confiados a estas duas ordens religiosas, visto que só em 1400, no reinado de D. João I, há notícia de ter sido estabelecida a cadeira de Teologia na Universidade de Coimbra.

É de admitir, portanto, que a preparação arábica do aristotelismo português explique a facilidade com que, depois da Reforma e da Contra-Reforma, fosse adoptada a síntese albertino-tomista no ensinamento da Companhia de Jesus. As teses fundamentais desta doutrina, como a de o conhecimento humano ser fundado sobre a experiência sensível, as provas da existência de Deus extraídas da contemplação do mundo exterior, a indemonstrabilidade da criação do mundo no tempo, e a impossibilidade da prova ontológica, parecem conciliar-se com as tendências de um povo, cuja fé assentava no preceito de ver para crer, como S. Tomé.

Está, aliás, explicada também a natural, ou nacional, animadversão pelo protestantismo, nas tendências próprias da religiosidade portuguesa, a qual tem por características, entre outras, o culto de Santa Maria, sempre figurada em companhia de Jesus, menino, adolescente, ou adulto, e assim a iconografia nos aparece como modo de ver, para um modo de crer num cristianismo evolutivo, de criança e de criação, que progride para o advento do Espírito Santo, enfim, de uma razão que ainda está em progresso para a fé.»

Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).

 

«Este arabismo [falsafa] não obteve na língua portuguesa os direitos de fixação do hebraísmo cabala. Todavia, assim como o nome cabala exprime em síntese toda a sapiência hebraica, já esotérica, já hagádica (embora, por cabalismo, se prefira entender o esoterismo nas formas que assumiu a Ocidente a partir do século XIII) o nome falsafa sintetiza a sapiência islâmica, embora, na origem literal, falsafa seja a arabização do helenismo filosofia, tal como faylasuf arabiza o substantivo grego filósofo. Em todo o caso, falsafa, em acepção ampliada, inclui tanto a filosofia propriamente dita, ao modo helénico, como os árabes a receberam através dos sírios nos tempos da ascensão do povo do Profeta, como a filosofia relativa à mensagem alcorânica (com todas as variadas disciplinas) que se designa pelo substantivo Kalam, a teologia escolástica, e isso em virtude da aliança que a escolástica islâmica antepõe e pospõe a toda a filosofia, que será inútil para o projecto universal da nação profética, caso interrompa essa aliança com a teologia. Kalam é a coroa da falsafa, o ovo de oiro faylasuf. A tradição trilateral portuguesa inclui a herança espiritual dos três povos do livro, ahl al-kitab (judeus, cristãos, muçulmanos) e a sabedoria islâmica, embora se considere detentora do único livro verdadeiro, escrito no céu e entregue já escrito por cálamo ao profeta, não deixa de contemplar as fundamentais relações da própria sunna, com as outras duas tradições. Se é exacto que a filosofia cristã se desenvolve em vista da teologia, se é exacto que o último fim da sapiência hebraica reside na ascensão ao Inefável, é por igual exacto que o coração da filosofia islâmica bate ao ritmo da iluminação de Allah, que, Deus, é Ahad, uno, único, solitário. O elemento de analogia entre as três tradições consiste num axioma fundamental, num paradigma desocultado e professado – nem todo o saber do homem se adquire por razão, algum saber do homem é dom revelado. A plenitude do saber, sapiência ou gnosofia, ma’rifa, identifica-se com o último fim das três tradições, que, no mais, seguiram cada uma seus caminhos, ou métodos de hermenêutica espiritual. A filosofia portuguesa resulta incompreensível quando se omite a presença interactiva da philosophia, da kabbalah e da falsafa, mesmo quando se considere que a tradição dominante, por ignorância atempada das línguas, vivesse perante a sinagoga e a mesquita em filosófica separação. Esta separação tem menor efeito quando o estudo dos documentos positivos nos deixa vislumbrar as múltiplas formas de diálogo na transacção das ideias e na transferência de acervos científicos árabes para a assunção histórica da pátria. Tem somenos importância o facto de os núcleos culturais muçulmanos se situarem no levante hispânico, com excepção de Évora, de Silves e de Lisboa. Portugal e Espanha não tiveram, durante séculos, relevância para os povos que conheciam a «cabeça ali de Europa toda» (Os Lusíadas, III) como a Sefarad, e como o Al-Andaluz, cuja última ponta é o ocidente dos ocidentes, o Algarve. Andaluz é o lugar geográfico do Islão ocidental, e o movimento das taifas, ou repúblicas, esteve longe de criar cisão nos fundamentos do saber islâmico.»

Pinharanda Gomes («Dicionário de Filosofia Portuguesa»).


Castelo de Silves

«Enquanto outros povos menos fiéis a Roma, viviam já o pensamento moderno, o povo português permanecia nos quadros do pensamento medieval. Se é difícil, mas possível, estabelecer a distinção rigorosa entre a teologia e a filosofia, já não é lícito separar radicalmente entre a fé e a razão. Todos os homens da Idade Média eram religiosos: uns fortaleceram a sua alma com a sua fé judaica, cristã ou islâmica; outros viviam numa religiosidade que poderemos dizer panteísta, politeísta ou pagã; outros mantinham-se fiéis a práticas e doutrinas que hoje consideramos supersticiosas; raro seria o homem que não pensasse a sua relação com o mundo natural e sobrenatural, porque a atitude ateísta só surge na Idade Moderna, precedendo e preparando a atitude antiteísta, que é o flagelo da Idade Contemporânea.

Tardiamente se afirmou entre nós a nítida separação entre a razão e a fé, na transição do ensino franciscano para a adopção da síntese albertino-tomista. Os próprios dominicanos estão longe de admitir um racionalismo tal como se formulou na Companhia de Jesus. O racionalismo medieval, ensinado nas universidades europeias pelos compêndios dos escolásticos portugueses, aperfeiçoa-se no racionalismo moderno, principalmente depois da difusão da obra de Descartes.

Interpretamos toda a filosofia moderna como a demonstração de que o racionalismo medieval é insuficiente para elaborar um sistema filosófico. Kant, que estudou o ideal de razão pura nas obras dos Conimbricenses, completou essa demonstração. A não ser que se renuncie a filosofar, conforme propõe e impõe o positivismo, há que admitir verdades enunciadas em proposições de origem tradicional, revelada e sobrenatural, porque só elas tornam inteligível tudo o mais, só elas pacificam a ansiedade humana.

A reacção contra o racionalismo da Companhia de Jesus começou nos actos que tornaram possível a infiltração do iluminismo na cultura portuguesa, por essas associações secretas nomeadas academias ou arcádias, obra começada no reinado de D. João V e facilitada pela reforma pombalina da Universidade de Coimbra.

São de notar as três fases desta decadência. A expulsão da Companhia de Jesus foi seguida da eliminação de Aristóteles, a eliminação de Aristóteles teve como consequência a refutação da filosofia, e o ensino superior deixou de ser universitário.

Do ponto de vista português, a Escolástica está mais referida a Aristóteles do que a S. Tomás de Aquino. A má interpretação da encíclica Aeterni Patris alterou esta perspectiva histórica, permitindo substituir a filosofia helénica pelo positivismo francês, ou belga.»

Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).

 

«Assim como a Razão é o instrumento criador da Filosofia, a Revelação e consequente Fé são o suposto inicial da Teologia. S. Tomás não admite um dualismo de oposição entre a razão e a , nem tão-pouco redução de uma a outra. Cada uma delas actua legítima e autonomamente em sua esfera própria e com seus próprios métodos: o da evidência humana para a razão, o da autoridade divina para a fé. Deve acrescentar-se que esta autoridade supõe, para aceitar-se racionalmente, a prévia visão da sua credibilidade. Fora deste ponto de vista formal, resta determinar à razão e à fé os diversos tipos de verdades a cada uma reservados: o das verdades naturais à razão, e o das sobrenaturais ou absolutamente misteriosas à fé. Mas isto não quer dizer que a Revelação e, portanto, a Fé não tratem de verdades naturais e de si acessíveis à razão. Isso não é só possível, mas tem sido historicamente conveniente e até moralmente necessário para libertar o género humano na sua totalidade do cúmulo de aberrações a que havia chegado pelo uso desenfreado da razão e facilitar sobretudo aos incapazes e incultos ou absorvidos pelas preocupações materiais o acesso pronto, fácil e seguro às realidades espirituais em que se estriba o verdadeiro destino da Humanidade. Ao receber este serviço da Revelação, não deixa a Razão de, em certo sentido, o retribuir, clarificando e precisando o seu conteúdo, mostrando a sua credibilidade, resolvendo as suas dificuldades e persuadindo da sua verdade com argumentos de congruência, já que não podem ser de rigorosa demonstração.»

João Zaragüeta («S. Tomás de Aquino»).


Santa Sé

«A distinção escolástica entre a Bíblia e a Física, entre a revelação e a cosmologia, veda aos teólogos abusiva intromissão no campo científico dos estudos sobre a Natureza. Acto decisivo para a realização de uma obra que muitos julgam de racionalização, mas que foi essencialmente de defesa da fé, a introdução da obra de Aristóteles no sistema escolástico deve ser justamente interpretada por quantos admiram o génio de Santo Alberto Magno. A Física de Aristóteles caracteriza-se pela sua límpida doutrina do movimento, pela sua útil doutrina da acção e da paixão, pela sua admirável doutrina da produção, numa sistematização científica de todos os fenómenos visíveis que se completa pela relação dos lugares naturais com o lugar comum. Sucessivamente comentada pelos escolásticos e aproveitada pelos modernos, a Física de Aristóteles resistiu gloriosamente até à época em que os conceitos cosmológicos foram substituídos pelos conceitos tecnológicos, por mais próximos da experiência humana. O descrédito da física aristotélica não favoreceu contudo os pensadores que operam na legítima intenção de destrinçar na Bíblia o que é de razão e o que é de fé. A exegese bíblica tem sofrido embates de diversa ordem, e com tristeza verificamos ainda hoje que os teólogos autorizados se mostram pressurosos de realizar obra perfeita, apesar dos expressos incitamentos das encíclicas Providentissimus Deus e Divino Afflante Spiritu.

A formação medieval do racionalismo moderno nem sempre aparece claramente descrita pelos historiadores da filosofia. Ela está, porém, patente na obra de Étienne Gilson, que considera a libertação da razão humana e a consequente laicização da sociedade concluídas no século XIII. No dizer do ilustre escritor, seria S. Tomás de Aquino o primeiro dos filósofos modernos e Renato Descartes o último dos filósofos escolásticos. Esta afirmação, que a uns parecerá paradoxal e a outros surpreendente, merece ser meditada por quantos julgam que a história do pensamento europeu deve ser estudada a partir da história da filosofia grega. Depois da expulsão da Companhia de Jesus, um tipo de escolástica não-aristotélica foi precariamente esboçado pelas ordens religiosas de tradição medievalista ou moderna. Com o advento do liberalismo tudo se modificou, a ponto de a Escolástica ser considerada anacrónica sobrevivência de tenebrosa história política e eclesiástica.

(...) Verificando, porém, que na ordem apostólica é indispensável conciliar a verdade una com a expressão múltipla para que a doutrina flexível se adapte às circunstâncias e às oportunidades, visto que também na ordem do Mundo não deixam de ser o espaço e o tempo, factores de afastamento, diferenciação e diversidade, foi pelo Magistério Eclesiástico sendo consentida melhor interpretação da filosofia escolástica. Exigir a obediência de uma fidelidade literal aos escritos de S. Tomás seria exigência contraditória, porque o próprio Doutor Angélico nunca foi homem de um só livro (unius libri), antes procurava com erudição em vários autores, comentadores, compiladores e escritores a solução preferida de cada problema determinado, não deixando de invocar também a divina assistência do Espírito Santo. Admitiu o Magistério Eclesiástico que normalmente se eliminasse o que na obra de S. Tomás existe de doutrina contrária à que tenha sido definida pela Igreja na posteridade dos séculos, mas além disso aconselhou a incorporação na filosofia escolástica de todos os resultados de que a cultura vem beneficiando desde o século XIII ao nosso tempo.

Consequentemente, aquelas ordens religiosas que, durante séculos, seguiram tendências teológicas e filosóficas que divergiam do método, da doutrina e dos princípios de S. Tomás se viram obrigadas a solicitar do Magistério Eclesiástico uma margem de liberdade indispensável à sua específica missão apologética e apostólica.

É notável, neste caso, o exemplo da Ordem dos Frades Menores não só porque durante muitos séculos preferiu o ensinamento de S. Boaventura ao de S. Tomás de Aquino, mas também porque foi dentro dela que surgiu a obra de Duns Escoto, o qual remodelou profundamente a filosofia escolástica. As constituições gerais da Ordem dos Frades Menores prescreviam, com maior ou menor força, a obrigação de seguir no ensino filosófico e teológico a doutrina do Doutor Subtil. Estes documentos eram submetidos à aprovação do Papa, sendo de notar o breve Ad Eximius de 31 de Outubro de 1634, pelo qual Urbano VIII aprovou até ordenações mais rigorosas do Capítulo de Toledo.

Formaram-se também dentro da escolástica albertino-tomista escolas que se designam ou tendem a designar-se pelos respectivos centros universitários; entre nós tornaram-se célebres os conimbricenses, os eborenses e os bracarenses. Na escolástica do século vinte também se distinguem os centros de Lovaina, de Milão e de Genebra, ao lado de outros menos importantes como o Instituto Católico de Paris. A aceitação do tomismo há-de ser imediatamente seguida de pensamento que o interprete, mas de muitas interpretações surgem necessariamente as divergências e as deturpações.»

Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).






"O averroísmo é um fenómeno do aristotelismo, um aspecto parcelar das Escolásticas, necessariamente matriciado a uma leitura da doutrina aristotélica"


Apesar do significado e do valor de Averróis, o ideário averroísta não se torna compreensível sem uma referência de fundo: o averroísmo é um fenómeno do aristotelismo, um aspecto parcelar das Escolásticas, necessariamente matriciado a uma leitura da doutrina aristotélica. Aliás, Averróis é cognominado o Comentador (de Aristóteles). Esse cognome, que o distingue e singulariza é, ao mesmo tempo, o elo que o vincula a uma determinante dependência da herança aristotélica. Averróis (1126-1198) elogiado por Dante (Divina Comédia, IV, 144) por ter sido um notável comentador de Aristóteles, não fundou para si mesmo um averroísmo; este é algo que o discipulato e o epigonismo extraem do seu ensino, por isso que o averroísmo é posterior a Averróis.

(...) O início do averroísmo latino pode situar-se em 1250 (tese de Mandonnet) como antes (tese de Renan), mas o curto prazo que medeia entre a data proposta por Renan e a data sugerida por Mandonnet não afecta a realidade de um processo que tem uma clara origem peninsular, e que é sensível, embora lento, a partir da morte de Averróis. O clima escolástico favorecia a entrada de novas correntes e Alberto Magno, por exemplo, olhava com muita simpatia a filosofia arábica, da qual, nem todos os documentos recebidos eram genuínos, sabendo-se que alguns apócrifos averroizantes foram aceites como se de Averróis fossem. Tomás de Aquino inicia-se na filosofia arábica que aprofunda, trazendo para a filosofia cristã o caudal da ciência islâmica, por isso que, na opinião de Asín Palácios, Tomás de Aquino converteu a falsafa árabe à escolástica latina, sendo vários os pontos de convergência dos pensamentos do Aquinate e do Comentador. Ora, no justo momento em que a Escolástica europeia atingia o acme, mediante o aristotelismo tomista, que integrara algo de Averróis, mas o sujeitara a uma catárse, Sigério de Brabante (fal. 1282) postula o estudo de Aristóteles integral, sem nenhuma censura e sem nenhuma catarse conversória, para o que, a seu ver, era necessário dar a primazia ao estudo dos comentaristas arábicos, sobretudo de Averróis; por isso, este movimento de escola designa-se por averroísmo latino, cujo radicalismo sofre a crítica de Alberto Magno, no tratado De Unitate Intellectus (1256). Sigério não desanimou, prosseguiu, tornou o seu magistério influente, move contra ele a vontade dos opositores, gera uma profunda controvérsia que oficialmente se arrastou até 1277, com maior incidência polémica a partir de 1270, ano em que Tomás de Aquino publicou uma refutação do tratado sobre a unidade do intelecto de Sigério, cujas teses abundam na sua pessoal leitura do texto de Averróis: o intelecto humano é numericamente uno e idêntico; o mundo é eterno; a alma, forma humana enquanto forma, corrompe-se com o corpo; o livre arbítrio é uma faculdade passiva; a vontade elege por necessidade. A questão do entendimento agente agravou-se, apesar de andar agravada desde que os pós-aristotélicos se confrontaram com obscuro passo de Aristóteles (De Anima, 3, pág. 20) que Averróis interpretou como teoria da unidade do intelecto. As controvérsias na Faculdade de Artes de Paris obrigaram o bispo Estevão Tempier a condenar asperamente os averroístas, que se retiraram da Faculdade. Sigério de Brabante, Boécio de Dácia e Berneo de Nivelles viram-se sujeitos a complexo jogo de influências, que não à pura discussão filosófica. Por fim, o Papa João XXI ( = Pedro Hispano, que recebeu influência de Averróis) lançou a proibição do ensino das teses sigeristas e, portanto, do averroísmo latino, pela bula Flumen Aquae Vivae, dirigida ao bispo Tempier, com a data de 28 de Abril de 1277. O juízo do Aquinate, de que Sigério corrompia a filosofia de Aristóteles venceu, e o caminho abria-se à universalização do aristotelismo segundo a mente tomista, sem que tal impedisse João Duns Escoto (fal. 1308) de recriar o que se designa por «aristotelismo escotista», isto é, o Aristóteles interpretado por Escoto segundo o cânone da espiritualidade franscicana, aberta à consideração sobrenatural da natureza e à visão aristotélico-platonizante. Em todo o caso, João Duns Escoto, para resguardar Aristóteles, teve de atribuir a Averróis as opiniões que, por ortodoxamente inaceitáveis, levaram alguns a condenar Aristóteles. Segundo Escoto, as opiniões inaceitáveis derivam do Comentador, o maledicus Averroes. Os Carmelitas Observantes (na época ainda não havia outros, pois os Descalços surgem no século XVI) procuravam, desde 1250, suscitar nas fileiras um doutor para as suas escolas. Veio ele na pessoa de João Baconthorpe, inglês (fal. 1348) que mereceu o título de «Princeps Averroistarum». O título não lhe foi muito benéfico, pois lhe criou condições negativas para se implantar nas escolas carmelitas que, alfim, também optaram pelo aristotelismo tomista.






Contemporâneo de Sigério de Brabante, Pedro Hispano (fal. 1277) não é um averroísta por filiação doutrinal, mas a sua obra reflecte, para as escolas europeias, onde os seus escritos se liam, um largo aproveitamento das ciências naturais, das ciências psicológicas e da epistemologia de Averróis. Nos tratados zoológicos, e no De Anima, Averróis surge como ponto de referência várias vezes repetido, o que induziu Manuel Alonso a considerar Pedro Hispano um averroísta. Se assim fosse, Pedro Hispano teria condenado os seus próprios correligionários parisienses, e o enigma da morte do Papa João XXI, na casa de Viterbo, tão sobre os acontecimentos de 1277, continuaria por esclarecer; em todo o caso, o averroísmo de Pedro Hispano apresenta conotações neoplatonizantes e uma envergadura avicenizante (conforme se acha demonstrado nos estudos de João Ferreira, O. F. M.) que o desligam de ideologia averroísta, tal como esta se apresentou na versão latina. Pedro Hispano situa-se melhor no quadro dos opositores ao radicalismo averroísta latino, a par de S. Boaventura (fal. 1274) e do mais tardio Raimundo Lullo (fal. 1316), cuja doutrina de transcensão do averroísmo e de afirmação de espiritualidade platónico-aristotélica tão fundas incidências viria a ter no pensamento medieval, mormente durante o século XV.

(...) O aristotelismo exaustivo, ordenado a uma teologia tomista, que é predicado modal dos Conimbricenses, rejeita as teses do averroísmo latino, mas não deixa de considerar as aportações de Averróis trazidas ao esclarecimento da lógica, da dialéctica e da cosmologia. O aristotelismo conimbricense, sem professar o antiaverroísmo, não é averroísta, diversamente do que sucede no pensamento de Luís de Camões, que se apresenta ostensivamente anti-islâmico e antiaverroísta: «Não do confuso caos, como cuidou/ a falsa teologia e o povo escuro/ que nesta só verdade tanto errou» (Camões, Elegia V). A recusa da teoria eternomundista é, aqui, por demais evidente, e a emissão afirmativo-judicativa a que Camões procede dispensa toda a espécie de aditamento.

O cepticismo metódico de Francisco Sanches é devedor ao averroísmo, mas a oposição Cristandade/Islamidade tende a tornar Averróis obsoleto. O século XVI elevou Averróis na elevação de Aristóteles (e poderia ter elevado Maimónides, cujo pensamento se aproxima muito mais dos fins que a Escolástica latina se propunha) mas daí em diante a vertigem da queda acelera. O antiaristotelismo envolve os averroístas e, a partir de Luís António Verney, aristotélicos e averroístas são por igual tidos, havidos e julgados, porque a destruição de Aristóteles importa a destruição dos aristotélicos, e, pois, do quadro autoral a que os Conimbricenses, Pedro da Fonseca incluído, recorriam. A progressão antiaristotélica e antiaverroísta, logo desenhada em Verney, amplia-se no magistério de Manuel de Azevedo Fortes, cartesiano, e de Fr. Manuel do Cenáculo, que retoma o antiaverroísmo e o lulismo franciscanos medievais. O movimento vem a fechar-se nas teorias de José Seabra da Silva que, no manifesto Dedução Cronológica e Analítica (1767) introduz a reforma universitária e, pois, o combate aos «procuradores de Mafamede», os jesuístas, considerados preceptores do averroísmo latino. A postergação de Aristóteles implicou a postergação de Averróis, cuja influência se desvanece nos fins do século XVIII, embora possamos identificar reflexos da sua filosofia no racionalismo do século XIX e nos materialistas do século XX (Raul Proença, Lapas de Gusmão...) mas sem a presença de uma adesão hermenêutica e erística, adequada à exigência epistemológica.

Atrasados, mais uma vez, relativamente ao movimento escolástico, os Carmelitas Observantes, que tentavam salvar Aristóteles da tempestade pombalina, também se envolveram na restauração do averroísmo de João Baconthorpe. O padre Manuel Inácio Coutinho ainda edita o Compendium Philosophico-Theologicum (1734) segundo a mente do «Doutor Resoluto» João Bacon, e Miguel de Azevedo também tenta um Opusculum Philosophicum Bakonicum (1765) o qual serviu de guia às lições no Colégio da Conceição de Coimbra, mas sem notório resultado. Para o século XVIII todo o aristotelismo e todo o averroísmo eram filosofia do tempo passado. Não se entendera que a filosofia é o que nunca envelhece, porque a todo o instante se retoma, como ponto de partida.

(Pinharanda Gomes, «Averroísmo», in Dicionário de Filosofia Portuguesa, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, pp. 43-44 e 46-47).