quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

A separação de Portugal

Escrito por Oliveira Martins







«Não há acordo sobre os elementos de que irrompeu a nacionalidade portuguesa. Não nos apontam os cronistas uma directriz. Nos textos não tem sido viável basear conclusões indiscutíveis. Nem a historiografia moderna, independente de critérios políticos e firmada na crítica das fontes, tem conseguido elucidar as origens. Herculano defendeu a tese românica ou municipalista. No âmbito das autarquias locais, decalcadas na lei romana, teria florescido a liberdade pública. Alargada aos vizinhos com interesses afins, haveria criado o ânimo de independência. Mas Herculano deixa pairar uma dúvida. Insatisfeito com a sua verdade, acrescenta algures, como explicação última, que somos independentes porque o quisemos ser. No meio das divisões, soubemos logo de início manter unidade moral; fosse qual fosse o seu partido, os barões portugueses mostravam-se conformes, ao menos passivamente, com o sistema que já então se podia classificar de política externa do país; e os actos dos príncipes eram mais o reflexo de um espírito colectivo do que a expressão de desígnios próprios. Mas é outro o caminho sugerido por Oliveira Martins. Este fundamenta a independência na vontade enérgica e na capacidade dos príncipes e barões. É a ambição individual destes que conduz à separação de Portugal da monarquia leonesa: os condes defendiam o que julgavam sua propriedade. Todavia, a esta tese simplista opõe Jaime Cortezão a tese geopolítica ou marítima. Nem a príncipes estrangeiros ou a impulsos individuais deve Portugal a sua nacionalidade. É a diferenciação geográfica, aliada à tipicidade do litoral, que dá uma feição de povo ao agregado ali estabelecido. Clima diverso do do resto da Península; abundância de largos estuários; funda penetração do oceano; existência de portos fluviais muito no interior do território; apoio marítimo estimulando o comércio transoceânico – constituem alguns dos factores fundamentais.

(...) Mas aquelas três teses não esgotam o problema das origens. Dois outros ângulos de visão têm sido encarados. Temos, antes de mais, a tese internacionalista. A independência portuguesa seria produto de uma equação internacional, de uma necessidade de equilíbrio europeu, que já então se começava a sentir; e a ligação entre o Conde D. Henrique e algumas ordens religiosas teria actuado naquele sentido, como um elemento impulsionador. E temos por último a tese lusitana. Funda-se sobretudo na tradição. Desde tempos remotos, mas sobretudo a partir do século XVI, foram os lusitanos havidos como os mais próximos ascendentes dos portugueses. Segundo Estrabão, eram “amigos da liberdade”. Ocupando a região entre Douro e Tejo, descendentes de celtas ou autóctones, foram romanizados; mas não teriam perdido pelo facto a individualidade de grande tribo, nem a autonomia como agregado social. Embora se afigure que permanece nebulosa, estudos modernos vieram dar alguma consistência para vincar a nossa diferenciação do resto da Península. Mas todas as investigações comprovam sem dúvida um facto: a existência, desde o século XII, de uma comunidade delimitada, com autonomia e unidade moral, e apresentando tipicidade perante os demais povos da Península. Poderá dizer-se, todavia, que o desenrolar da vida dessa comunidade empresta, talvez mais do que a outras, algum fundamento à tese exposta e documentada por Cortezão.»

Franco Nogueira («As Crises e os Homens»).






 


«...Galiza, Catalunha, Navarra, Andaluzia, Bascos, Levantinos, ao correr da história, pouco mais do que escravos de escravos: porque escravidão, no fim de contas, pelo que respeita a degradação humana, age para os dois lados, para o lado do opressor e para o lado do oprimido. Com uma grande vantagem a favor das regiões periféricas: é que, vencidas, jamais se submeteram; e, no momento oportuno, se poderão comportar como nações livres que jamais renegaram a sua liberdade e jamais, abandonando seus mortos, desistiram da luta.

E aqui, ao que me parece, se insere a grande façanha de Portugal. O que Portugal fez de maior no mundo não foi nem o descobrimento, nem a conquista, nem a formação de nações ultramarinas: foi o ter resistido a Castela. O ter mantido, através de sangue e fogo, o princípio da independência dos territórios periféricos. E o ter mostrado, naquilo que cabia em suas forças, e mais do que isso, porque verdadeira história só se faz assim, naquilo que estava muito para além das suas forças, de que modo uma Espanha livre e convivente poderia ter transformado a face do mundo. Aceita-se hoje em história de Roma que o assassínio de César, impedindo-o de levar por diante o seu projecto de romanização do mundo europeu, do Báltico aos Urais, veio pôr depois todos os problemas que resultaram da existência de bárbaros não romanizados; veio pôr o problema da Prússia e veio pôr o problema da Rússia. Uma Península livre e una, com regiões culturalmente autónomas e com descentralização administrativa; uma Península a que se tivesse estendido o sistema de governo peculiar da Idade Média portuguesa, isto é, o de, numa prefiguração da Commonwealth, haver uma companhia de repúblicas unificadas por uma coroa; uma Península que tivesse conservado aquele gosto de conversação, de "vida conversável", como diria mais tarde um navegador, para cristãos, judeus e árabes, essa Península, para lá de todas as contingências económicas, teria dado modelo ao mundo. Teria, como numa renda de bilros, dado o “pique” ao mundo. E o dito mundo, Europa inclusive, se podiam depois ter dado à tarefa de ir plantando alfinete e lançando ponto. Que foi decerto modo, o que fizeram, mesmo só com o trabalho de Portugal

Agostinho da Silva («Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa»).

 


«Espanha ocupou tão grande lugar no mundo, impressionou tão fortemente o mundo pelo que fez, pelo modo por que actuou, pela coragem com que volveu em acção a sua concepção ética e política de tom arcaizante que na apreciação desse labor histórico para sempre se dividiram os juízos. A sua personalidade era tão caracterizada e tão forte que não se apagou mais a chocante impressão dela sobre a Europa, espectadora e vítima. E a Europa de além Pirenéus, aberta a todas as influências e, depois do apogeu espanhol, criadora de originalidades opostas à ideologia castelhana, divorciou-se do mundo hispânico. E essas diferenças e esses contrastes de matizes religiosos, políticos, morais e artísticos logo se patentearam bem flagrantes e logo foram interpretados, umas vezes pejorativamente – e surgiu a lenda anti-espanhola, a Espanha negra – outras, intelectualmente – e surgiu toda essa longa filosofia da decadência espanhola, os arbitristas e o ensaio crítico, que é uma peculiaridade da moderna literatura de Espanha e traduz a sua inquietação espiritual como o lirismo português expressa o mais típico da nossa sensibilidade. Uns espanhóis acolheram a lenda anti-espanhola ou a silhueta negra da Espanha quinhentista e nela colaboraram; outros repudiaram-na e procederam à revisão da história; uns e outros extraíram conclusões pragmáticas, pensamento e acção política desses dois hemisférios da alma espanhola, – dos seus escóis, porque o povo permanece indiferente a essas pugnas de gente cultivada, embora muitas vezes tenha sido o mar proceloso que recolhe e dilui em proporções de tragédia o que parecia simples conflito de teorias. A sua insurreição contra os franceses e a sua cooperação nas lutas doutrinárias do carlismo com o liberalismo mostram bem como ele pode ser, pelas energias profundas que armazena, o dado essencial da equação política de Espanha. Mesmo apartados do marulhar subterrâneo dessa letargizada massa, no simples plano da crítica e acção social, na vida quotidiana, esses dois hemisférios espirituais deram à sua doutrina coerência e demasias sistemáticas, carregaram-na de paixão, de força de carácter, a grande virtude e o grande risco da alma peninsular.

E a história de Espanha passou a ser, desde que Espanha recebeu mais do que criou, um contínuo choque desses dois extremismos inconciliáveis, mas indispensáveis um ao outro, como as valvas duma castanhola, opostas e inseparáveis para produzir os típicos estalidos.

Desde que se quebrou a sua unidade moral, Espanha viveu aos bordos, às guinadas sobre a esquerda e sobre a direita, como barco puxado à sirga por forças desiguais ou desencontradas, aos tombos de margem a margem. O choque dos dois hemisférios ou das duas cotilédones da célula cerebral espanhola é o que há de mais típico na consciência espanhola, tecido de contrastes violentos, operando por mútua reacção e agora anunciando-nos um relâmpago novo, que chispe do presente caos criador.

E quem foi que lançou esse perpétuo pomo da discórdia, quem realizou a definitiva divisão da consciência espanhola? O homem que, fiel a uma tradição multissecular e mandatário representativo duma asfixiante maioria, quis realizar a unidade política e religiosa da Espanha, conculcando nacionalismos e regionalismos, supeditando privilégios e regalias de classes, extirpando heterodoxias, asfixiando a liberdade individual, mas erguendo à maior altura o poder e o ascendente da Espanha na Europa.

Desde então os espanhóis discutem o que vale mais: a glória ou a liberdade? O paraíso ou o inferno? E, um a um, se vão colocando à direita ou à esquerda daquele túnel de braços do jogo infantil...

 

Passará, não passará,

Qual deles ficará?

 

Fidelino de Figueiredo («As Duas Espanhas»).

 

«Há (...) a observar que algumas das mais gradas figuras nacionais, das nascidas em Lisboa e no Sul, ou de naturalidade incerta, pelas suas genealogias ou caracteres psicológicos denunciam em proporções variáveis a mescla lusitano galaica. Assim acontece por exemplo com Nuno Álvares Pereira, Gil Vicente, Camões, D. João de Castro, e Camilo Castelo Branco, figuras em que o fundo sentimental do Noroeste, anda aliado a elementos lusitanos.

Outras grandes figuras nacionais acusam participação de sangues exóticos: quer das raças de cor quer das nórdicas; às vezes é evidente a marca semita. Nem por isso estes contingentes deixaram de produzir homens dos mais integrados e representativos; como o Padre António Vieira, Almada Negreiros, o Infante D. Henrique e Fernando Pessoa, respectivamente.

O português é uma combinação feliz. Isolado, o elemento galaico, tanto pela base geográfica não determinativa como por temperamento, arriscar-se-ia a perder-se nas nuvens ou num trabalho de obscuro formigueiro; isolados, os lusitanos, careceriam de uma subconsciência autonómica bastante para os tornar irredutíveis à absorção castelhana, antes e além dos campos de batalha.

A Grécia não perdurou politicamente porque Atenas e Esparta, incapazes de uma fusão, jamais ultrapassaram o entendimento efémero.

Em Portugal, os elementos humanos primários, fundindo-se a caminho do Sul, na capital e a partir dela criaram uma resultante dinâmico-sentimental que se derramou no Mundo com uma força integradora extraordinária.»

Francisco da Cunha Leão («O Enigma Português»).

 


«Para um futuro paraíso, não só seu próprio, mas de toda a Espanha, pois de que serve a paz que é só nossa, ou que ilusória paz é essa, precisavam talvez Galiza e Portugal de ser separados logo de início e de penarem suas duras penas de acção e de saudade.»

Agostinho da Silva («Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa»).





A SEPARAÇÃO DE PORTUGAL

 

O condado portucalense, criado nos últimos anos do XI século a favor do conde borguinhão D. Henrique, genro de Afonso VI, pouco tempo existiu sob o regime de uma vassalagem indiscutivelmente reconhecida. Era essa a época em que a Espanha tendia a constituir-se num sistema de Estados independentes, à medida que sucessivas regiões iam saindo de sob o domínio muçulmano para o dos descendentes dos godos asturianos, ou dos seus actuais aliados[1]; e o condado portucalense obedecia a esta tendência geral, no empenho que o seu conde não mais encobriu desde a morte do sogro.

É com efeito da data do óbito de Afonso VI [1109] que deve contar-se a era da independência de Portugal; embora por largos anos ela seja mais uma ambição do que um facto; embora essa ambição traduza um pensamento que os acontecimentos posteriores da história impediram se realizasse. Qualquer que fosse o valor dado no XI século à expressão geográfica de Portucale, é facto provado, por todas as memórias e documentos desses tempos, que para ninguém deixava de considerar-se o território de entre Minho e Mondego como parte da Galiza. O facto da constituição do condado de nada vale contra esta opinião; porque demasiado se sabe que a formação dos Estados medievais, na Península e fora dela, jamais obedecia às prescrições geográficas ou etnológicas. Não se atribua pois a causas desta ordem, nem à consciência de uma solidariedade nacional, o facto da desmembração da Galiza dos fins do XI século. A cisão que o Minho demarcou obedeceu apenas a motivos de ordem política.

Isto mesmo, porém, deu causa a uma ambição, na qual devemos reconhecer o princípio da vitalidade da nação portuguesa, durante estas primeiras e ainda indecisas épocas da sua existência. A solidariedade nacional espontânea existia de facto para os galegos; e desde que a Galiza fora dividida pela política em duas, aquém e além Minho, restava saber qual dessas metades tomaria sobre si o papel de representar um sentimento de independência, comum a todos os membros ainda então desconexos do corpo peninsular.









"Brasão de Armas" do Conde D. Henrique


Várias causas concorriam para atribuir este papel à metade portuguesa da Galiza; e porventura acima de todas o facto do merecimento pessoal do conde português. Circunstâncias desta ordem eram decisivas numa época em que a anarquia sistemática da constituição da sociedade fazia principalmente depender os destinos imediatos dela da perspicácia ou da bravura dos seus chefes. Nada há de comum entre a vida destes tempos e a dos posteriores; e num certo sentido pode até dizer-se que os factos de ordem política são independentes dos de ordem social, porque a sociedade é como um elemento passivo que por este lado (mas por ele apenas) obedece às consequências do desordenado capricho dos actos e caracteres dos chefes militares que a governam, sem propriamente a representarem.

Nos primeiros três séculos, isto é, na primeira época da história portuguesa, a independência é um facto originado no merecimento pessoal dos chefes militares dos barões de aquém Minho. Nacionalidade propriamente dita, não a há; ou pelo menos não no-la revelam os monumentos históricos, unânimes, também, em revelar uma ambição colectiva ou social que se estende a toda a Galiza. Ao merecimento pessoal reúne-se, nos primeiros monarcas portugueses, a circunstância de serem os intérpretes deste sentimento. Por isso a tendência permanente e o princípio claramente definido da política portuguesa, nos primeiros séculos, é unificar a Galiza, constituindo a noroeste da Península um Estado tão homogéneo como o Aragão ou a Navarra a nordeste.

Neste propósito se filiam todas as guerras civis – se este nome convém ainda aos conflitos entre Portugal e Leão – e as repetidas alianças dos barões galegos das duas zonas divididas pelo Minho. A facilidade com que os reis portugueses transpõem armados as águas desse rio, e se apossam por várias vezes dos territórios da Galiza leonesa, são provas evidentes da opinião exposta.

Não quis a sorte que chegasse a realizar-se este primeiro pensamento político, a que chamaremos hegemonia de Portugal na Galiza, para usarmos de expressões modernas; antes ordenou que os limites convencionais do condado portucalense apenas inscrevessem o ponto de partida da formação de uma nação, cujo carácter, ulteriormente definido, proveio principalmente da fisionomia geográfica da região; de uma nação, repetimos, que veio a perder a tradição dessa primitiva origem, desde que o génio das populações de entre Mondego e Tejo sobrepujou o das do Norte, na direcção e impulso dados à vida colectiva portuguesa.

Se nesta primeira época da nossa história o pensamento oculto que dirige com maior ou menor consciência a política, é incontestavelmente o da hegemonia de Portugal na Galiza, seria absurdo supor que, ao lado deste princípio, decadente desde certa época, se não fossem também manifestando de um modo correlativo, e cada vez mais pronunciado, os sintomas da deslocação do centro vital da nação.

Inscrição rupestre em «língua lusitana» de Lamas de Moledo, Castro Daire.

A circunstância que mais decisivamente determina este carácter da nossa história primitiva é a conquista dos territórios sarracenos de aquém Mondego, levada a cabo pelos barões portugueses, sem os auxílios do suserano de Leão. É este movimento que, principiando por quebrar os laços de solidariedade entre os galegos leoneses e os portugueses, vai gradualmente adicionando a estes últimos os lusitanos (seja-nos lícito dizer assim, para mais claramente definir o nosso pensamento), até o ponto de os últimos predominarem na fisionomia posterior da nação, transferindo de Guimarães e de Coimbra, para Lisboa, a capital do reino; fazendo substituir, à vida rural, primeiro quase exclusiva, a vida comercial e marítima depois predominante e quase absoluta.

A primeira época da história portuguesa oferece pois à observação do crítico dois movimentos[2], opostos num sentido, concordes em outro, que é o da afirmação positiva da independência. Mas, se essa afirmação, terminante nas guerras leonesas, e também nas sarracenas, exprime de um lado a política de hegemonia na Galiza, do outro exprime, de um modo todavia inteiramente inconsciente e espontâneo, uma tendência contrária. É a formação de uma nação lusitana, de que a Galiza portuguesa desce à condição de província ao norte, como o Algarve, mais propriamente turdetano, vem a sê-lo ao sul. O Entre-Douro e Guadiana, isto é, a espinha dorsal da Estrela, ladeada pelas Beiras ao norte, pelo Alentejo a sul, pela Estremadura a poente: eis aí o que, logo desde o XIV século, começa a representar o corpo homogéneo da nação portuguesa.

(In Oliveira Martins, História de Portugal, Guimarães Editores, Lisboa, 22.ª edição, 2007, pp. 63-65).


[1] V. História da Civilização Ibérica, O. C., L.º III, p. 1.

[2] Resumimos à política o campo das nossas observações, por termos deixado na História da Civilização Ibérica desenhados os traços gerais dos movimentos propriamente sociais. V. livro III.


sexta-feira, 28 de novembro de 2025

O apelo de Jerusalém

Escrito por José Mattoso








 

«O interesse de Afonso Henriques pelas novas formas de vida religiosa que apareciam no Condado Portucalense manifestou-se (...) no apoio concedido aos Templários e Hospitalários e na protecção aos fundadores de Santa Cruz de Coimbra. As ordens militares e os cónegos regrantes eram, com efeito, instituições bem representativas da renovação da Igreja no princípio do século XII. Os eremitas são, por sua própria natureza, avessos a soluções institucionais, mas inserem-se na mesma corrente renovadora. Formaram, talvez, a sua componente mais radical, como haviam sido, no século IV, os do Egipto e da Síria. Inovadores, inconformistas, avessos a qualquer espécie de organização, representam bem a energia, o entusiasmo, a criatividade e o desprendimento que caracterizam o fenómeno religioso do século XII. Também apareceram em Portugal, de forma espontânea, com as mesmas características do que no resto da Europa.

O seu movimento foi relativamente efémero. Tornaram-se numerosos na primeira metade do século; depois, o seu número estabilizou-se; para o fim do século começaram a transformar-se em estabelecimentos convencionais (igrejas, paróquias, dependências de ordens religiosas) ou foram abandonados; a partir de 1200 o seu número foi diminuindo. O fenómeno eremítico tornou-se esporádico ou transferiu-se, no século XIV, para o Sul do País, sob formas que ainda não foram esclarecidas pelos investigadores. Muitos deles, de facto, acabaram por se agregar a instituições religiosas, ingressando nas fileiras das ordens monásticas ou canonicais (...), ou noutras mais austeras, como os Cistercienses ou Premonstratenses.

Afonso Henriques também acompanhou o movimento eremítico português. Fê-lo, mesmo, com uma surpreendente precocidade, porque o primeiro diploma autêntico que dele se conhece é justamente (...) uma carta de couto em favor dos eremitas de São Vicente de Fragoso, no actual concelho de Barcelos, datada de 4 de Dezembro de 1128, ou seja, meio ano antes da Batalha de São Mamede. Dir-se-ia um acto de devoção inspirado pelo desejo de fazer uma obra meritória, e assim obter a protecção divina para a confrontação decisiva que não podia deixar de sobrevir.

(...) o mosteiro de Tarouca [filiou-se] precocemente em Claraval, a comunidade de que era abade São Bernardo. Foi ele próprio, portanto, que enviou os primeiros monges a Portugal, na época em que gozava da maior influência na Cristandade ocidental. Vieram da Borgonha, pouco antes ou na mesma altura em que povoavam o mosteiro de Sobrado, na Galiza, também procedentes de Claraval, por intermédio dos quais Fernão Peres de Trava, com sua mulher e sua sobrinha Urraca, patronos desse mosteiro, lho entregaram por carta de doação de 14 de Fevereiro de 1142. É esta a primeira abadia cisterciense documentalmente conhecida na Galiza, mas é evidente a proximidade da sua entrada na ordem com a que se verifica em Tarouca.

Estes factos mostram que São Bernardo sabia muito bem quem eram Afonso Henriques e Fernão Peres de Trava. As abadias – “mãe” mantinham sempre uma relação com as suas “filhas”.»

José Mattoso («D. Afonso Henriques»).


Abade de Claraval


Mosteiro de São João de Tarouca


O APELO DE JERUSALÉM

 

Entre o Oriente e o Ocidente

 

Em Março de 1129, Afonso Henriques confirma a doação que D. Teresa, sua mãe, havia feito do castelo e do termo de Soure à Ordem Militar do Templo de Jerusalém, exactamente um ano antes[1]. A «rainha», juntamente com um grande conjunto de nobres, tinha também dado ou prometido à mesma ordem muitos outros bens, além de um domínio em Fonte Arcada (Penafiel), onde se viria a constituir uma comenda. O diploma de D. Teresa, cuja solenidade é reforçada pela confirmação de Afonso VII, feito em Zamora[2], envolvia a «rainha» e alguns dos principais nobres do Condado Portucalense, como se entre eles não houvesse divisões. Nele colaboram também os senhores galegos que, passados três meses, haveriam de ser expulsos pelo príncipe depois de arrebatar o poder de sua mãe. Esta conjugação de doadores mostra, de uma forma exemplar, que as divergências internas evidenciadas em São Mamede passavam para segundo plano quando estava em causa um ideal que envolvia toda a Cristandade, e que, desde o princípio do século, se tinha concretizado num dos seus mais poderosos movimentos da história europeia de todos os tempos: as cruzadas.

Ao usar este termo, não pretendo referir-me apenas às expedições militares a que os historiadores dão este nome, e que distinguem por meio de uma numeração precisa, para depois apontarem as suas datas, identificarem os seus chefes e descreverem os seus resultados, mas a toda a ampla corrente religiosa, cultural, social e económica orientada para Jerusalém, como se esta cidade, recuperada pela Cristandade, se tivesse tornado, na mente de todos os europeus, o centro do mundo. A «ideia» de Jerusalém passou a estar presente, de alguma maneira, na doutrina religiosa, nas crenças colectivas, na política do papado, nas instituições cristãs, na hierarquia de valores morais, nas relações sociais, nas actividades económicas, enfim, em todos os aspectos da história europeia na primeira metade do século XII. Só muito lentamente se foi dissipando nos séculos seguintes. Não se pode compreender este enorme movimento sem lembrar que representa o multiforme reverso de uma época de rápida expansão demográfica, de intensa criatividade institucional e artística e de renovação em todos os campos da existência humana. Os acontecimentos com ele relacionados não devem, por isso, interpretar-se em função das expedições militares designadas pelo nome de cruzadas, mas no contexto muito mais amplo da expansão e da renovação da Cristandade. O acto a que nos referimos, isto é, a doação de D. Teresa e dos seus barões à Ordem do Templo, e, logo a seguir, a sua confirmação por Afonso Henriques, depois de ter assumido o poder, representam, de facto, a decidida participação do Condado Portucalense nesse amplo movimento de expansão europeia e de projecção da Cristandade para fora do espaço onde, até então, tinha estado encerrada. Antes, porém, de acentuarmos este quase profético significado da doação à Ordem do Templo, temos de o enquadrar em relação com factos objectivos e precisos, bem delimitados no tempo, no espaço e na identificação dos protagonistas.

Com efeito, os documentos que servem de base a estas interpretações constituem actos surpreendentes. Chamaram a atenção dos diplomatistas e dos críticos, como Alexandre Herculano e a maioria dos autores que trataram da história portuguesa durante o reinado de Afonso Henriques, nomeadamente de Rui de Azevedo. Todavia, apesar da desconfiança com que foram examinados, não foi possível encontrar neles indícios de falsificação. São documentos autênticos[3]. O que surpreende é, por um lado, a sua precocidade em relação com a história dos primeiros anos da Ordem do Templo, e, por outro lado, o facto de num deles se encontrarem comprometidos nada menos do que dezoito senhores, incluindo o conde Fernão Peres e seu irmão Bermudo, o conde Gomes Nunes Ide Toroñol, Soeiro Mendes [de Sousa], Paio Nunes, Monio Rodrigues de Arouca, João Viegas «Ranha», e outros, provavelmente galegos. Note-se que uns continuavam fiéis a D. Teresa, outros, como Soeiro Mendes de Sousa, já tinham, talvez, tomado partido por Afonso Henriques. Teremos, pois, de ver nesta simpatia generalizada um importante indício da reacção da nobreza portucalense à luta na Terra Santa.



Uma novidade no mundo cristão

 

Trata-se, na verdade, de um acto surpreendente pela sua precocidade, visto que, em Março de 1128, os Templários não tinham ainda sido aprovados como uma ordem religiosa, constituíam uma comunidade com pouco mais de uma dúzia de membros e eram desconhecidos na maior parte da Europa. Além disso, nunca ninguém tinha tido a ideia de criar um exército de monges nem um convento de soldados. O estado da vida religiosa opunha-se à profissão das armas. A função dos milites (os que combatem) considerava-se não só diferente da função dos oratores (os que rezam) mas até incompatível com ela. A repartição da sociedade em três «ordens», uma consagrada à produção de bens materiais, outra à defesa e manutenção da ordem pela força e a terceira à intercessão das bênçãos divinas, como se imaginava a estrutura social desde os remotos tempos das tribos indo-germânicas, estava ainda na mente de toda a gente, tinha-se tornado um lugar-comum, e constituía a base de pregações populares e de considerações morais sobre os deveres de cada um dos respectivos estados. Unir num só «estado» cavaleiros e monges parecia uma inovação absurda.

Nada fazia esperar, portanto, que, quando Raymond Bernard chegou a Braga, e aí, perante a rainha D. Teresa, Fernão Peres de Trava e um grupo numeroso de senhores, os tivesse convencido a oferecerem o seu apoio e os seus bens à estranha ordem de que fazia parte, e que depois tivesse conseguido em Zamora a confirmação de Afonso VII. A sua adesão representa, temos de o admitir, um extraordinário voto de confiança numa experiência ousada, inovadora e que, naquele momento, não se imaginava ainda como especialmente vantajosa para a luta contra o Islão na fronteira portuguesa.




Hugo de Payns

 

De facto, a doação de D. Teresa fora feita nas mãos de Raymond Bernard. Era um dos companheiros de Hugo de Payns, o fundador da Ordem Militar do Templo de Jerusalém, que, com ele e mais uns cinco companheiros, tinham chegado nesse mesmo ano à Europa, onde vieram procurar apoio para a sua instituição, em bens e em colaboradores. A sua organização era muito recente. Fundada havia apenas sete anos, em 1120, contava, segundo parece, pouco mais de uma dúzia de cavaleiros. Hugo de Payns era senhor de Montigny, aparentado com os condes de Champagne, e parece ter estado uma primeira vez em Jerusalém em 1104, antes de aí voltar uns dez anos depois, para se juntar a um pequeno grupo de cavaleiros que se dedicavam a acompanhar e defender peregrinos que desembarcavam em Jafa e tinham, depois, de percorrer os caminhos terrestres que se dirigiam a Jerusalém passando normalmente por Ramallah. Durante o caminho, eram muitas vezes assaltados ou ameaçados pelos bandidos da região. Estes cavaleiros completavam, assim, a obra de misericórdia praticada, entre outros, pela confraria de leigos fundada por um tal Gerardo junto da Igreja de São João Baptista de Jerusalém, cujo objectivo principal era dar assistência aos peregrinos pobres e doentes, para os quais instituíra um grande hospício e um hospital. A confraria tinha-se tornado, em pouco tempo, uma ordem religiosa, e foi aprovada em 1113 pelo papa Pascoal II, que a colocou na dependência directa da Santa Sé. Esta ordem, chamada do Hospital de São João de Jerusalém, viria, muito mais tarde, a desenvolver as actividades militares, tornando-se assim uma ordem monástico-militar, mas era, nessa altura, estritamente caritativa.

A protecção armada concedida aos peregrinos pelos cavaleiros que patrulhavam os caminhos entre Jafa e Jerusalém tornou-se indispensável. Permitia fazer a viagem com uma relativa segurança. Interessava, portanto, a todos aqueles que colaboravam na organização das peregrinações. Por isso, Hugo de Payns e os seus companheiros foram protegidos e encorajados pelo patriarca latino de Jerusalém, Estêvão de La Ferté, e pelo rei Balduíno I (1100-1118); mas a sua falta de recursos – rendimentos para a sua subsistência, cavalos e armas – e a necessidade de recrutar novos adeptos levaram o fundador a empreender uma viagem a França, com uns cinco ou seis companheiros, para conseguir os apoios de que necessitava. Ora, apesar da novidade do projecto, e até, da sua aparente incompatibilidade com as estruturas mentais subjacentes à ideologia das «três ordens», a viagem que hoje chamaríamos de «recolha de fundos» teve um enorme sucesso. Hugo e os seus companheiros receberam uma autêntica chuva de doações, sobretudo, como era natural, em França, mas também na Inglaterra, na Flandres e em Aragão.

 



Balduíno II de Jerusalém cede o Templo de Salomão a Hugo de Payens e Godofredo de Saint-Omer.





Os Templários

 

O entusiasmo com que Hugo e os primeiros templários foram recebidos é um dos indícios mais claros da participação europeia no movimento das cruzadas, ou melhor, da responsabilidade que a maioria dos cristãos sentia acerca da necessidade de manter o Reino Latino de Jerusalém contra os ataques islâmicos, da protecção que era preciso garantir aos peregrinos e do desejo que todos tinham de ir um dia visitar os lugares santos e rezar junto do túmulo de Jesus Cristo. Dada a ampla participação de franceses, normandos, flamengos e ingleses, italianos ou alemães na primeira cruzada, não admira o sucesso que Hugo de Payns obteve. Mostra que a vantagem prática da defesa dos peregrinos e da defesa da Terra Santa relativizava a oposição dos cavaleiros aos monges, e que o projecto se considerava tão importante que só a conjugação da disciplina militar com o rigor da vida monástica podia vencer a desordem social provocada pelos cavaleiros que abusavam da sua força, e só a abnegação podia vencer o seu habitual egoísmo.

Estas circunstâncias contribuíram para a solene aprovação da ordem no conflito provincial de Troyes, reunido a 13 de Janeiro de 1129, com a presença de muitos bispos de Champagne e da Borgonha. Tratava-se aí da aplicação dos princípios da reforma gregoriana, não sob a forma intransigente e agressiva imprimida por Gregório VII, mas já na variante conciliadora e criativa que se seguiu à assinatura do Tratado de Worms (1122) entre o papa Calisto II e o imperador Henrique V, quando se começavam a imaginar as soluções institucionais que viriam, uns vinte anos mais tarde, a ser consignadas no Decretum de mestre Graciano. Estavam presentes também alguns abades cistercienses, entre eles Estêvão Harding, abade de Cister e um dos fundadores da ordem, e o seu discípulo São Bernardo, abade de Claraval. Bernardo tinha recebido pouco antes uma carta de recomendação do rei Balduíno em favor dos Templários, mas parece, de início, ter hesitado em apoiar a estranha conjugação do monacato com a cavalaria. Para ele só eram verdadeiros monges os seus, os brancos, aqueles que assumiam sem concessões a vocação contemplativa, e que rompiam radicalmente com o mundo. Todavia, acabou por se deixar seduzir. Os Templários podiam representar a redenção do detestável bando de cavaleiros que só pensava em torneios, violência e vaidade em vez de se pôr ao serviço do bem comum. Podiam criar a imagem do cavaleiro «novo», remido pela imitação de Jesus Cristo, tal como o monge cisterciense era o modelo exemplar do «homem novo», do cristão que superava o pecado pela redenção do mesmo Jesus Cristo. A regra do Templo foi aprovada.

Nem todos, porém, aceitaram a novidade. Assim o místico Guigo, primeiro prior dos Cartuxos depois de São Bruno, escrevendo a Hugo de Payns, declara que não o exorta a empreender «guerras materiais e combates visíveis», mas lhe recomenda a conquista de si próprio; deve consagrar-se à purificação dos seus vícios, em vez de se ocupar em «limpar» a terra dos bárbaros[4]. Outros autores também duvidavam da legitimidade do projecto templário. Mas em Fevereiro de 1130 rebenta em Roma o cisma de Anacleto. Uma parte importante dos cardeais apoia o antipapa Pedro Pierleone, aliás Anacleto II, que se aliava aos normandos do Sul da Itália, se opunha ao imperador e pretendia manter as estratégias reformistas anteriores ao acordo de Worms. São Bernardo, porém, juntamente com São Norberto, apoiou, com todas as suas forças, o partido de Inocêncio II, que favorecia as novas ordens cisterciense e dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, assim como a restituição aos bispos da sua intervenção na Igreja, afectada nos quarenta anos anteriores por uma estratégia redutora dos poderes episcopais. São Bernardo passou a apoiar os Templários, que lhe parecia representarem um modelo ideal de regeneração de um sector importante da sociedade. Escreveu, então, o seu célebre tratado Elogio da Nova Milícia (De laude novae militae).







Monte das Oliveiras

Flevit super illam (Ele chorou por isso), por Enrique Simonet (1892).

Adoptando uma forma literária colorida e vigorosa, o abade de Claraval tece um rasgado elogio àqueles que põem as suas armas ao serviço de Deus e, sem medo, consagram a sua vida a guiar os pobres e os fracos pelos caminhos terrestres percorridos por Jesus Cristo. Os cavaleiros mundanos vivem no luxo, amolecidos sob as suas túnicas de seda e cobertos de ouro, cultivam a frivolidade e a ligeireza, são conduzidos pela vaidade e o desejo de uma glória vã. Não formam uma «milícia» mas uma malícia. Os novos cavaleiros, pelo contrário, defendem, na Terra Santa, «a herança e a casa de Deus» manchada pelos infiéis. Os Templários guardam e protegem os lugares santos: Belém, onde «o pão vivo desceu dos céus»; Nazaré, onde Jesus cresceu; o monte das Oliveiras e o vale de Josafat, onde o Redentor sofreu; o Jordão, onde o Messias foi baptizado; o Calvário, onde o Senhor «nos lavou dos nossos pecados»; o Sepulcro, onde Cristo morto repousou, e onde os peregrinos, depois de passarem tantas provas para aí chegarem, alcançado já o seu destino, também descansam para depois regressarem em paz às suas terras. Bernardo termina, enfim, com uma exortação aos companheiros de Hugo de Payns:

«Eis que estas delícias do mundo, este tesouro celestial, esta herança dos povos fiéis [os lugares santos] são confiados, meus caros, à vossa fé, à vossa prudência e à vossa coragem. Confio que sereis capazes de guardar fielmente e com segurança este tesouro celestial se contardes sempre com o socorro de Deus e não com a vossa habilidade e com a vossa força.»[5]

O apoio de São Bernardo, que, na década de 1130, e durante os vinte anos que se seguiram, se tornou a mais influente personalidade do mundo cristão, dissipou as reticências que ainda rodeavam o projecto templário. Em 1139, o papa Inocêncio II aprovou sem reservas a nova milícia, por meio da bula Omne datum optimum, e concedeu-lhe a protecção papal, tornando-a dependente da Santa Sé e isenta da jurisdição episcopal.

 

Reacções na Hispânia

 

A viagem de propaganda empreendida pelos companheiros de Hugo de Payns não teve, no entanto, os mesmos resultados em toda a parte. De facto, não se conhecem na Península Ibérica concessões comparáveis às da França, senão em Aragão e em Portugal. Talvez por estar nessa altura demasiado absorvido em recuperar as cidades e regiões de Castela, até ali ocupadas pelo rei de Aragão, Afonso VII não fez concessões notáveis em favor dos Templários, apesar de ter confirmado a doação de D. Teresa. Devia achar preferível concentrar os seus recursos na sua própria fronteira. Podia invocar uma bula de Pascoal II, no ano 1100, pela qual o papa proibia aos nobres e milites da Hispânia tomarem parte na cruzada para não prejudicarem, com a sua ausência, a defesa dos reinos cristãos contra a as investidas dos almorávidas[6]. Este facto vem reforçar ainda mais o significado da doação de D. Teresa e dos fidalgos portugueses que assinaram as duas cartas de 1128, dando mostras de uma grande generosidade, como se sentissem a causa da Terra Santa tão fortemente como da sua própria contra o Islão. Note-se também que a diferença de comportamento para com os Templários, castelhano e leonês de um lado, e português e aragonês do outro, não se verificou só na primeira metade do século XII. Continuou nos anos seguintes, e até se acentuou com a perda de Fitero e a fundação de Calatrava, a que se seguiu a criação de outras ordens peninsulares. O rei e os nobres castelhanos e leoneses antepunham a guerra santa da sua fronteira à participação na guerra santa da Palestina.

Esta diferença de atitudes a respeito de um empreendimento comum da Cristandade, destinado a sustentar um esforço permanente de defesa dos lugares santos, como se fosse uma responsabilidade inerente a todos os cristãos, parece dar conta de duas concepções diferentes acerca da luta contra o Islão. Na tradição peninsular, a luta aparecia, segundo a ideologia cultivada pela monarquia leonesa, como o esforço de recuperação de um território injustamente perdido; por isso se chamava «Reconquista». Em Portugal, esta justificação da guerra tinha menos adeptos. Além disso, a presença de Cavaleiros franceses, e sobretudo a influência exercida pela forte personalidade do conde D. Henrique e pelos monges que adotaram os costumes cluniacenses, devem ter difundido a ideia de que a luta directa na fronteira não era mais do que uma parcela da oposição global entre a Cristandade e o Islão.

Afonso VI de Leão e Castela entrega o Condado Portucalense a D. Henrique em 1096.


 


Jerusalém terrestre e Jerusalém celeste

 

A ideia de uma confrontação de civilizações, polarizada numa oposição religiosa, como não podia deixar de ser numa época em que a identidade dos grupos sociais se reforçava por meio de referências de crença e de ritual, teve, obviamente, a sua expressão concreta no movimento das cruzadas. O apelo do papa Urbano II no Concílio de Clermont de 1095, ao convidar os turbulentos cavaleiros de França e de outros países sem contacto directo com o Islão a irem à Terra Santa para libertar o túmulo do Senhor, onde os peregrinos eram vexados pelos turcos que poucos anos antes tinham conquistado a Ásia Menor e nessa altura ameaçavam Constantinopla, suscitou, como se sabe, um entusiasmo avassalador. A participação de um grande número de cavaleiros e a presença de chefes empreendedores permitiu superar as dificuldades de um recrutamento desordenado e de uma ausência de planificação, acabando os três exércitos que então se formaram por conseguir conquistar Jerusalém no dia 13 de Julho de 1099. A vitória cristã, facilitada pelas rivalidades então existentes entre os muçulmanos, encheu a Cristandade e o papa de entusiasmo. Os navios que se dirigiam à Palestina e as estradas que atravessavam a Ásia Menor encheram-se de peregrinos. Estabeleceu-se o Reino Latino de Jerusalém e criou-se um exército capaz de o defender dos constantes ataques muçulmanos. Afluíram padres e religiosos à Cidade Santa para aí fundarem conventos e prestarem serviços religiosos. Vieram também muitos aventureiros atraídos pelas riquezas que o saque tinha posto nas mãos dos primeiros cruzados. O papa tentou coordenar a corrente que assim engrossou, concedendo privilégios e exortando à reforma dos costumes sob orientação do clero, como se estivesse para nascer um mundo novo, mais conforme com o modelo de cidade santa que Jesus Cristo queria para a sua Igreja. Assim, nos primeiros anos do século XII, a notícia do que se passava em Jerusalém concentrava todas as atenções, e imprimia novo alento contra os inimigos da fé.

O interesse pelo que se passava no Oriente, depois da conquista de Jerusalém, conjugado com a possibilidade de obter o perdão de todos os pecados e de ter garantida a vida eterna, para aqueles que tomassem a cruz e se alistassem nas fileiras dos combatentes na Palestina, assim como a esperança de participar numa viagem iniciática que prometia aos visitantes dos lugares santos revelações comparáveis com experiências místicas que transportavam os eleitos até às portas do Paraíso envolveram os cristãos de todas as nações europeias. Todos queriam participar na grande empresa que encaminhava os peregrinos para a Jerusalém dos céus através da Jerusalém terrestre. Aqueles que não podiam ou não tinham coragem de partir sentiam-se na obrigação de favorecer os que estavam dispostos a correr todos os riscos para lá chegarem. Com efeito, um dos aspectos da grande constelação de ideias centrada em torno de Jerusalém, como símbolo da renovação e de esperança, é o oferecimento de terras e de bens de todos os géneros a ordens e instituições que protegiam os peregrinos, nomeadamente o Hospital de São João, e a multiplicação de indivíduos que empreendiam a viagem, abandonando tudo e correndo todos os riscos, sem saberem se voltariam algum dia à sua terra.

Basílica do Santo Sepulcro

Peregrinos do Ocidente peninsular

 

Este ambiente de verdadeiro fascínio atingiu também o Ocidente da Península Ibérica. Aqui, porém, a novidade não consistia em participar numa grande acção militar para esmagar o Islão e os inimigos da fé – o que os reis e cavaleiros de toda a Hispânia já faziam há séculos – mas em envolver-se na renovação da vida cristã que propunha o contacto físico ou espiritual com Jerusalém como o primeiro ponto do seu programa. De facto são muitos, e bem expressivos, os testemunhos de que o fascínio dos fiéis por Jerusalém atingiu também o Ocidente da Península Ibérica.

Assim, admite-se, apesar de a evidência documental referir apenas um projecto que não se sabe se foi concretizado, que o conde D. Henrique tenha ido à Terra Santa em 1102. O bispo D. Maurício de Coimbra esteve também em Jerusalém durante quatro anos, entre 1104 e 1108, sendo então acompanhado pelo presbítero Telo, futuro arcediago da diocese e fundador do Mosteiro de Santa Cruz[7]. São Teotónio seguiu o mesmo caminho por duas vezes, sendo numa delas acompanhado por uma «não pequena multidão de peregrinos, antes de se associar a Telo para fundar o mesmo mosteiro[8]. Antes disso, em 1096, logo a seguir ao apelo de Urbano II no Concílio de Clermont, o arcebispo Bernardo de Toledo fez o voto de ir à Santa Terra, mas foi dispensado do seu cumprimento pelo próprio papa, que considerou mais importante a sua presença na Hispânia[9]. A infanta Sancha, filha de Afonso VI, parece ter passado alguns anos em Jerusalém, consagrando-se ao serviço dos peregrinos do Hospital[10]. Outra filha do mesmo rei e irmã de D. Teresa, Elvira, casou com o conde Raimundo IV de Toulouse; participaram ambos na primeira cruzada, e tiveram um filho que baptizaram no rio Jordão, o conde Afonso Jordão de Toulouse, que esteve frequentemente em Leão e Castela[11]. Os irmãos Fernão Peres e Bermudo Peres de Trava também foram a Jerusalém, talvez, mesmo, mais de uma vez, sem dúvida para expiarem o grave crime de incesto em que estiveram envolvidos, juntamente com a rainha D. Teresa[12]. O nobre Rodrigo Gonçalves de Lara, senhor de Toledo, teve de ser substituído no seu cargo de governador da cidade e de direcção dos combates da fronteira castelhana que havia assegurado durante vários anos, por ter decidido fazer a viagem à Cidade Santa pela mesma época em que esses senhores galegos lá estiveram também. Viveu algum tempo na corte do conde de Barcelona, mas ficou leproso e foi morrer à Palestina[13]. A estes exemplos relativos a personagens com alguma importância social poder-se-iam acrescentar muitos outros mais ou menos desconhecidos[14].

Tomada de Jerusalém durante a Primeira Cruzada (1099).

Como é evidente, porém, só um pequeno conjunto de peregrinos podia empreender a arriscada viagem à Terra Santa. Aqueles que não podiam fazê-la ou não tinham para isso coragem suficiente procuravam vincular-se às ordens palestinianas por meio de laços espirituais, inscrevendo os seus nomes como seus associados mediante a oferta de bens materiais, para obterem o benefício das orações e dos méritos dos seus membros. Assim fez o próprio Afonso Henriques, que, na confirmação da doação de Soure por D. Teresa, declara que a faz «por amor de Deus e para remédio de sua alma e da de seus pais e pelo cordial amor que tem para convosco, e para ter o benefício de ser irmão da vossa fraternidade»[15]. O exemplo do infante seria depois seguido por uma grande quantidade de nobres portugueses, cujos dons constituíram a base fundiária das muitas comendas mais tarde constituídas pelas mesmas ordens em várias regiões do país, sobretudo pela Ordem do Hospital[16].


A protecção aos peregrinos pobres


Como é evidente, nem todos os peregrinos da Terra Santa eram senhores poderosos ou eclesiásticos célebres. Estes foram apenas alguns dos nomes que a memória histórica registou. A documentação da época conserva, além disso, inúmeros testemunhos de nomes de peregrinos de todas as categorias sociais e a referência a peregrinos pobres, que empreendiam a sua caminhada inteiramente na providência divina. O Hospital de São João de Jerusalém, fundado pelo leigo Gerardo logo a seguir à conquista de Jerusalém, a que nos referimos anteriormente, foi criado justamente para os proteger, recolher e lhes dar assistência. Em breve se pôs em contacto com outras confrarias do mesmo género, de tal modo que, em 1113, já formava com elas uma rede da qual faziam parte hospitais em vários lugares, como Saint-Gilles-du-Gard, no Sul da França, Pisa, Bari e Tarento na Itália, ou seja, nos principais portos onde os peregrinos embarcavam para atravessarem o Mediterrâneo antes de chegarem a Jafa. A ordem religiosa caritativa assim criada foi aprovada e protegida pelo papa Pascoal II por meio da bula Pie postulatio voluntatis de 5 de Fevereiro de 1113. Embora houvesse uma ligação entre a confraria de Gerardo e os Cónegos Regrantes do Santo Sepulcro que asseguravam os ofícios divinos na Igreja de São João do Hospital, a bula considerava-as como ordens autónomas. Note-se, de passagem, que a comunidade dos Cónegos Regrantes do Santo Sepulcro resultava também de uma alteração do estatuto da comunidade do mesmo nome, transformada, havia pouco tempo, de cabido secular (sem obrigação de votos de pobreza e de obediência) em comunidade regular, com os votos religiosos habituais, sob a Regra de Santo Agostinho. As três instituições – templários, hospitalários e cónegos do Santo Sepulcro – representavam, portanto, as novas concepções da vida religiosa que se haviam formado na segunda metade do século XI, e começavam agora a triunfar sobre os princípios defendidos pelos monges de Cluny e outros do mesmo género, que haviam orientado o ideal de reforma eclesiástica até aos anos 20 do século XII. A aprovação pelo papa dos estatutos da Ordem de São João do Hospital representava bem o triunfo das novas concepções, mais adaptadas às necessidades concretas dos homens e mais intervenientes na vida social.




O envolvimento do Ocidente peninsular

 

O propósito de colaborar na criação de condições destinadas a ajudar e proteger os peregrinos pobres verificou-se também precocemente, no Ocidente peninsular. De facto, o oferecimento de terras e outros bens às instituições ligadas à Terra Santa pode-se observar desde cedo, em Leão, Galiza e Portugal. Em 1113, a rainha D. Urraca dá a Ordem de São João do Hospital a aldeia de Paradinas. Em 1116 acrescenta-lhe um grande senhorio e um domínio perto de Toro[17]. Em 1130 um tal Soeiro, provavelmente Soeiro Bermudes das Astúrias, aparece também como benfeitor da mesma ordem[18]. A existência de uma Confraria do Santo Sepulcro em Coimbra registada já em 1117 confirma a popularidade das peregrinações e da devoção ao túmulo de Jesus Cristo[19]. 

Com este enquadramento torna-se admissível a presença de uma comunidade de «pobres de Jerusalém» em Portugal já desde o ano de 1122, ou mesmo de 1112, isto é, numa data tão precoce que tem feito hesitar os historiadores quanto à autenticidade do testemunho documental em que se apoia. Trata-se do ano em que a referida comunidade, decerto já ligada aos Hospitalários, substituiu os monges de Leça (mais tarde chamado Leça de Balio), perto do Porto, por doação de D. Teresa. Havia ali, de facto, um priorado ligado ao mosteiro da Vacariça, o qual, depois de ter seguido os costumes monásticos peninsulares, adoptara, segundo parece, a Regra de São Bento. D. Teresa tinha, decerto, direitos patronais sobre ele, pois ofereceu o mosteiro e os seus domínios à Ordem do Hospital; provavelmente Martinho, o prior, que a si próprio se intitula «servo dos pobres» ou «servo dos pobres de Jerusalém», por se deixar envolver no movimento de entusiasmo por tudo o que dizia respeito à Terra Santa, resolveu associar-se com a sua comunidade à Ordem de São João do Hospital. A descoberta de um documento até há pouco desconhecido permite admitir que a transformação do mosteiro em convento hospitalário se tenha dado em 1112[20]. Apesar de tão precoce, visto ser anterior à bula de aprovação da ordem de 1113, há pouco mencionada, a data não é inverosímil, tendo em conta os contactos directos com Jerusalém testemunhados pelas peregrinações de D. Maurício e dos Presbíteros Telo e Teotónio, assim como pelas importantes doações da rainha D. Urraca em 1113 e 1116, já mencionadas.

Ao contrário do que aconteceu com a Ordem do Templo, a do Hospital viria a obter uma grande quantidade de domínios e rendimentos em Castela, embora em datas mais tardias do que as mencionadas até agora[21]. Em Portugal, os domínios dos Hospitalários multiplicaram-se sem cessar durante os séculos XII e XIII, vindo até, a tornar-se uma ameaça ao património régio, constantemente prejudicado pelas rendas que os comendadores das ordens militares lhe iam subtraindo[22].

A historiografia portuguesa tem normalmente interpretado a doação do castelo e do termo de Soure aos Templários como uma forma de reforço militar da fronteira a sul de Coimbra. De facto, o castelo estava situado junto à estrada que dava acesso à cidade, mas passava mais a leste, por Ansião, Alvorge e Germanelo, com uma variante ainda mais para leste, por Chão de Couce e Penela. Embora a povoação e o castelo tivessem constituído um centro relevante nas campanhas do emir Ali b. Yusuf em 1116 e 1117, Soure era talvez menos importante, do ponto de vista militar, do que os outros castelos que acabamos de mencionar. Nessa altura dificilmente poderia resistir à invasão. Porque as tropas almorávidas, durante as operações de cerco de uma cidade importante, costumavam devastar os seus arredores e apropriarem-se de todos os bens que podiam, além dos que necessitavam para o seu abastecimento. Por isso, os habitantes de Soure, avisados da aproximação do exército inimigo, decidiram incendiar as suas casas e refugiar-se em Coimbra, para escaparem às pilhagens, ao cativeiro ou à exterminação.

Castelo de Soure


Localização de Soure


O mais significativo, porém, é que, na altura em que D. Teresa e Afonso Henriques fizeram as suas concessões, não deviam estar à espera de que o castelo de Soure passasse, com a presença dos Templários, a desempenhar um papel de grande importância nas estruturas militares criadas em torno de Coimbra para assegurar a sua defesa, e muito menos que se tornasse ponto de partida para grandes investidas em direcção ao sul. Nessa altura, a ordem não tinha ainda sido aprovada pelas autoridades eclesiásticas, e não possuía recursos suficientes para exercer uma função militar de relevo. Tratava-se antes de uma espécie de dotação destinada a prestar ajuda às actividades dos seus membros na Terra Santa, ainda numa perspectiva de protecção dos peregrinos, à semelhança do que faziam também os estabelecimentos dos Hospitalários. De facto, os Templários só passaram a colaborar activamente nas operações de guerra na década de 1140, sobretudo depois de Afonso Henriques (ou melhor, Mendo Fernandes de Bragança) lhes ter entregue os castelos de Longroiva, Mogadouro e Penarroias em 1145. Nessa altura já se tinham tornado numa grande potência militar, financeira e política em todo o Mediterrâneo, e Soure viria em breve a ser o centro de um vasto e rico senhorio com funções bélicas importantes.

(In José Mattoso, D. Afonso Henriques, Círculo de Leitores, Sétima edição, 2012, pp. 58-66).



[1] DR 96.

[2] DR 79; cf. DR 77; B. REILLY, 1998, p. 25.

[3] R. de AZEVEDO, in DR, pp. 593 e 614-616.

[4] J. DEMURGER, 1989, pp. 45-46.

[5] Ver J. DEMURGER, 1989, pp. 48-51.

[6] M. LADERO QUESADA, 1998, p. 167.

[7] Vita Tellonis, n. 2 (ed. A. do NASCIMENTO, 1998, pp. 56-57; cf. pp. 130-131).

[8] Vita Theotonii, ns. 5 e 10-11 (ed. A. do NASCIMENTO, 1998, pp, 146-147 e 155-165).

[9] M. LADERO QUESADA, 1998, p. 107.

[10] M. CALLEJO PUERTA, 2001, p. 477.

[11] B. REILLY, 1998, pp. 15, 91, 109 e 142.

[12] M. TORRES SEVILLA QUIÑONEZ DE LÉON, 1988. Refere-se a esta viagem a informação registada pela IV Crónica Breve «foi-se pera terra d’ultramar»: ed. F. FONSECA, p. 112.

[13] M. LADERO QUESADA, 1998, p. 416; B. REILLY, 1998, p. 57.

[14] Ver, por exemplo, documentos de 1146, no Livro Santo de Santa Cruz, n. 102 e 118 (ed. L. VENTURA e A. FARIA, 1990, pp. 238 e 255); de 1178, no cartório de Pendorada (J. Mattoso, XII, p. 82).

[15] DR 96.

[16] Ver J. FIGUEIREDO, I, 1800, pp. 24-141.

[17] M. LADERO QUESADA, 1998, p. 202

[18] M. CALLEJO PUERTA, 2001, p. 477.

[19] S. GOMES, 2000, p. 115.

[20] J. FERNANDES e L. OLIVEIRA, 2005; P. COSTA, 1996.

[21] M. LADERO QUESADA, 1998, p. 501; B. REILLY, 1998, p. 272.

[22] Ver documento de 1132 e 1143 no Livro Santo, n. 15 e 25 (ed. L. VENTURA e A. FARIA, 1990, pp. 133 e 146); M. TRINDADE, 1981.