sexta-feira, 22 de agosto de 2025

"O averroísmo é um fenómeno do aristotelismo, um aspecto parcelar das Escolásticas, necessariamente matriciado a uma leitura da doutrina aristotélica"

Escrito por Pinharanda Gomes

«O pensamento medieval foi fortemente aristotelizado, muito antes de se realizar a oposição entre Platão e Aristóteles, ou entre agostinianos e dominicanos. Durante muitos anos os estudos teológicos foram confiados a estas duas ordens religiosas, visto que só em 1400, no reinado de D. João I, há notícia de ter sido estabelecida a cadeira de Teologia na Universidade de Coimbra.

É de admitir, portanto, que a preparação arábica do aristotelismo português explique a facilidade com que, depois da Reforma e da Contra-Reforma, fosse adoptada a síntese albertino-tomista no ensinamento da Companhia de Jesus. As teses fundamentais desta doutrina, como a de o conhecimento humano ser fundado sobre a experiência sensível, as provas da existência de Deus extraídas da contemplação do mundo exterior, a indemonstrabilidade da criação do mundo no tempo, e a impossibilidade da prova ontológica, parecem conciliar-se com as tendências de um povo, cuja fé assentava no preceito de ver para crer, como S. Tomé.

Está, aliás, explicada também a natural, ou nacional, animadversão pelo protestantismo, nas tendências próprias da religiosidade portuguesa, a qual tem por características, entre outras, o culto de Santa Maria, sempre figurada em companhia de Jesus, menino, adolescente, ou adulto, e assim a iconografia nos aparece como modo de ver, para um modo de crer num cristianismo evolutivo, de criança e de criação, que progride para o advento do Espírito Santo, enfim, de uma razão que ainda está em progresso para a fé.»

Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).

 

«Este arabismo [falsafa] não obteve na língua portuguesa os direitos de fixação do hebraísmo cabala. Todavia, assim como o nome cabala exprime em síntese toda a sapiência hebraica, já esotérica, já hagádica (embora, por cabalismo, se prefira entender o esoterismo nas formas que assumiu a Ocidente a partir do século XIII) o nome falsafa sintetiza a sapiência islâmica, embora, na origem literal, falsafa seja a arabização do helenismo filosofia, tal como faylasuf arabiza o substantivo grego filósofo. Em todo o caso, falsafa, em acepção ampliada, inclui tanto a filosofia propriamente dita, ao modo helénico, como os árabes a receberam através dos sírios nos tempos da ascensão do povo do Profeta, como a filosofia relativa à mensagem alcorânica (com todas as variadas disciplinas) que se designa pelo substantivo Kalam, a teologia escolástica, e isso em virtude da aliança que a escolástica islâmica antepõe e pospõe a toda a filosofia, que será inútil para o projecto universal da nação profética, caso interrompa essa aliança com a teologia. Kalam é a coroa da falsafa, o ovo de oiro faylasuf. A tradição trilateral portuguesa inclui a herança espiritual dos três povos do livro, ahl al-kitab (judeus, cristãos, muçulmanos) e a sabedoria islâmica, embora se considere detentora do único livro verdadeiro, escrito no céu e entregue já escrito por cálamo ao profeta, não deixa de contemplar as fundamentais relações da própria sunna, com as outras duas tradições. Se é exacto que a filosofia cristã se desenvolve em vista da teologia, se é exacto que o último fim da sapiência hebraica reside na ascensão ao Inefável, é por igual exacto que o coração da filosofia islâmica bate ao ritmo da iluminação de Allah, que, Deus, é Ahad, uno, único, solitário. O elemento de analogia entre as três tradições consiste num axioma fundamental, num paradigma desocultado e professado – nem todo o saber do homem se adquire por razão, algum saber do homem é dom revelado. A plenitude do saber, sapiência ou gnosofia, ma’rifa, identifica-se com o último fim das três tradições, que, no mais, seguiram cada uma seus caminhos, ou métodos de hermenêutica espiritual. A filosofia portuguesa resulta incompreensível quando se omite a presença interactiva da philosophia, da kabbalah e da falsafa, mesmo quando se considere que a tradição dominante, por ignorância atempada das línguas, vivesse perante a sinagoga e a mesquita em filosófica separação. Esta separação tem menor efeito quando o estudo dos documentos positivos nos deixa vislumbrar as múltiplas formas de diálogo na transacção das ideias e na transferência de acervos científicos árabes para a assunção histórica da pátria. Tem somenos importância o facto de os núcleos culturais muçulmanos se situarem no levante hispânico, com excepção de Évora, de Silves e de Lisboa. Portugal e Espanha não tiveram, durante séculos, relevância para os povos que conheciam a «cabeça ali de Europa toda» (Os Lusíadas, III) como a Sefarad, e como o Al-Andaluz, cuja última ponta é o ocidente dos ocidentes, o Algarve. Andaluz é o lugar geográfico do Islão ocidental, e o movimento das taifas, ou repúblicas, esteve longe de criar cisão nos fundamentos do saber islâmico.»

Pinharanda Gomes («Dicionário de Filosofia Portuguesa»).


Castelo de Silves

«Enquanto outros povos menos fiéis a Roma, viviam já o pensamento moderno, o povo português permanecia nos quadros do pensamento medieval. Se é difícil, mas possível, estabelecer a distinção rigorosa entre a teologia e a filosofia, já não é lícito separar radicalmente entre a fé e a razão. Todos os homens da Idade Média eram religiosos: uns fortaleceram a sua alma com a sua fé judaica, cristã ou islâmica; outros viviam numa religiosidade que poderemos dizer panteísta, politeísta ou pagã; outros mantinham-se fiéis a práticas e doutrinas que hoje consideramos supersticiosas; raro seria o homem que não pensasse a sua relação com o mundo natural e sobrenatural, porque a atitude ateísta só surge na Idade Moderna, precedendo e preparando a atitude antiteísta, que é o flagelo da Idade Contemporânea.

Tardiamente se afirmou entre nós a nítida separação entre a razão e a fé, na transição do ensino franciscano para a adopção da síntese albertino-tomista. Os próprios dominicanos estão longe de admitir um racionalismo tal como se formulou na Companhia de Jesus. O racionalismo medieval, ensinado nas universidades europeias pelos compêndios dos escolásticos portugueses, aperfeiçoa-se no racionalismo moderno, principalmente depois da difusão da obra de Descartes.

Interpretamos toda a filosofia moderna como a demonstração de que o racionalismo medieval é insuficiente para elaborar um sistema filosófico. Kant, que estudou o ideal de razão pura nas obras dos Conimbricenses, completou essa demonstração. A não ser que se renuncie a filosofar, conforme propõe e impõe o positivismo, há que admitir verdades enunciadas em proposições de origem tradicional, revelada e sobrenatural, porque só elas tornam inteligível tudo o mais, só elas pacificam a ansiedade humana.

A reacção contra o racionalismo da Companhia de Jesus começou nos actos que tornaram possível a infiltração do iluminismo na cultura portuguesa, por essas associações secretas nomeadas academias ou arcádias, obra começada no reinado de D. João V e facilitada pela reforma pombalina da Universidade de Coimbra.

São de notar as três fases desta decadência. A expulsão da Companhia de Jesus foi seguida da eliminação de Aristóteles, a eliminação de Aristóteles teve como consequência a refutação da filosofia, e o ensino superior deixou de ser universitário.

Do ponto de vista português, a Escolástica está mais referida a Aristóteles do que a S. Tomás de Aquino. A má interpretação da encíclica Aeterni Patris alterou esta perspectiva histórica, permitindo substituir a filosofia helénica pelo positivismo francês, ou belga.»

Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).

 

«Assim como a Razão é o instrumento criador da Filosofia, a Revelação e consequente Fé são o suposto inicial da Teologia. S. Tomás não admite um dualismo de oposição entre a razão e a , nem tão-pouco redução de uma a outra. Cada uma delas actua legítima e autonomamente em sua esfera própria e com seus próprios métodos: o da evidência humana para a razão, o da autoridade divina para a fé. Deve acrescentar-se que esta autoridade supõe, para aceitar-se racionalmente, a prévia visão da sua credibilidade. Fora deste ponto de vista formal, resta determinar à razão e à fé os diversos tipos de verdades a cada uma reservados: o das verdades naturais à razão, e o das sobrenaturais ou absolutamente misteriosas à fé. Mas isto não quer dizer que a Revelação e, portanto, a Fé não tratem de verdades naturais e de si acessíveis à razão. Isso não é só possível, mas tem sido historicamente conveniente e até moralmente necessário para libertar o género humano na sua totalidade do cúmulo de aberrações a que havia chegado pelo uso desenfreado da razão e facilitar sobretudo aos incapazes e incultos ou absorvidos pelas preocupações materiais o acesso pronto, fácil e seguro às realidades espirituais em que se estriba o verdadeiro destino da Humanidade. Ao receber este serviço da Revelação, não deixa a Razão de, em certo sentido, o retribuir, clarificando e precisando o seu conteúdo, mostrando a sua credibilidade, resolvendo as suas dificuldades e persuadindo da sua verdade com argumentos de congruência, já que não podem ser de rigorosa demonstração.»

João Zaragüeta («S. Tomás de Aquino»).


Santa Sé

«A distinção escolástica entre a Bíblia e a Física, entre a revelação e a cosmologia, veda aos teólogos abusiva intromissão no campo científico dos estudos sobre a Natureza. Acto decisivo para a realização de uma obra que muitos julgam de racionalização, mas que foi essencialmente de defesa da fé, a introdução da obra de Aristóteles no sistema escolástico deve ser justamente interpretada por quantos admiram o génio de Santo Alberto Magno. A Física de Aristóteles caracteriza-se pela sua límpida doutrina do movimento, pela sua útil doutrina da acção e da paixão, pela sua admirável doutrina da produção, numa sistematização científica de todos os fenómenos visíveis que se completa pela relação dos lugares naturais com o lugar comum. Sucessivamente comentada pelos escolásticos e aproveitada pelos modernos, a Física de Aristóteles resistiu gloriosamente até à época em que os conceitos cosmológicos foram substituídos pelos conceitos tecnológicos, por mais próximos da experiência humana. O descrédito da física aristotélica não favoreceu contudo os pensadores que operam na legítima intenção de destrinçar na Bíblia o que é de razão e o que é de fé. A exegese bíblica tem sofrido embates de diversa ordem, e com tristeza verificamos ainda hoje que os teólogos autorizados se mostram pressurosos de realizar obra perfeita, apesar dos expressos incitamentos das encíclicas Providentissimus Deus e Divino Afflante Spiritu.

A formação medieval do racionalismo moderno nem sempre aparece claramente descrita pelos historiadores da filosofia. Ela está, porém, patente na obra de Étienne Gilson, que considera a libertação da razão humana e a consequente laicização da sociedade concluídas no século XIII. No dizer do ilustre escritor, seria S. Tomás de Aquino o primeiro dos filósofos modernos e Renato Descartes o último dos filósofos escolásticos. Esta afirmação, que a uns parecerá paradoxal e a outros surpreendente, merece ser meditada por quantos julgam que a história do pensamento europeu deve ser estudada a partir da história da filosofia grega. Depois da expulsão da Companhia de Jesus, um tipo de escolástica não-aristotélica foi precariamente esboçado pelas ordens religiosas de tradição medievalista ou moderna. Com o advento do liberalismo tudo se modificou, a ponto de a Escolástica ser considerada anacrónica sobrevivência de tenebrosa história política e eclesiástica.

(...) Verificando, porém, que na ordem apostólica é indispensável conciliar a verdade una com a expressão múltipla para que a doutrina flexível se adapte às circunstâncias e às oportunidades, visto que também na ordem do Mundo não deixam de ser o espaço e o tempo, factores de afastamento, diferenciação e diversidade, foi pelo Magistério Eclesiástico sendo consentida melhor interpretação da filosofia escolástica. Exigir a obediência de uma fidelidade literal aos escritos de S. Tomás seria exigência contraditória, porque o próprio Doutor Angélico nunca foi homem de um só livro (unius libri), antes procurava com erudição em vários autores, comentadores, compiladores e escritores a solução preferida de cada problema determinado, não deixando de invocar também a divina assistência do Espírito Santo. Admitiu o Magistério Eclesiástico que normalmente se eliminasse o que na obra de S. Tomás existe de doutrina contrária à que tenha sido definida pela Igreja na posteridade dos séculos, mas além disso aconselhou a incorporação na filosofia escolástica de todos os resultados de que a cultura vem beneficiando desde o século XIII ao nosso tempo.

Consequentemente, aquelas ordens religiosas que, durante séculos, seguiram tendências teológicas e filosóficas que divergiam do método, da doutrina e dos princípios de S. Tomás se viram obrigadas a solicitar do Magistério Eclesiástico uma margem de liberdade indispensável à sua específica missão apologética e apostólica.

É notável, neste caso, o exemplo da Ordem dos Frades Menores não só porque durante muitos séculos preferiu o ensinamento de S. Boaventura ao de S. Tomás de Aquino, mas também porque foi dentro dela que surgiu a obra de Duns Escoto, o qual remodelou profundamente a filosofia escolástica. As constituições gerais da Ordem dos Frades Menores prescreviam, com maior ou menor força, a obrigação de seguir no ensino filosófico e teológico a doutrina do Doutor Subtil. Estes documentos eram submetidos à aprovação do Papa, sendo de notar o breve Ad Eximius de 31 de Outubro de 1634, pelo qual Urbano VIII aprovou até ordenações mais rigorosas do Capítulo de Toledo.

Formaram-se também dentro da escolástica albertino-tomista escolas que se designam ou tendem a designar-se pelos respectivos centros universitários; entre nós tornaram-se célebres os conimbricenses, os eborenses e os bracarenses. Na escolástica do século vinte também se distinguem os centros de Lovaina, de Milão e de Genebra, ao lado de outros menos importantes como o Instituto Católico de Paris. A aceitação do tomismo há-de ser imediatamente seguida de pensamento que o interprete, mas de muitas interpretações surgem necessariamente as divergências e as deturpações.»

Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).






"O averroísmo é um fenómeno do aristotelismo, um aspecto parcelar das Escolásticas, necessariamente matriciado a uma leitura da doutrina aristotélica"


Apesar do significado e do valor de Averróis, o ideário averroísta não se torna compreensível sem uma referência de fundo: o averroísmo é um fenómeno do aristotelismo, um aspecto parcelar das Escolásticas, necessariamente matriciado a uma leitura da doutrina aristotélica. Aliás, Averróis é cognominado o Comentador (de Aristóteles). Esse cognome, que o distingue e singulariza é, ao mesmo tempo, o elo que o vincula a uma determinante dependência da herança aristotélica. Averróis (1126-1198) elogiado por Dante (Divina Comédia, IV, 144) por ter sido um notável comentador de Aristóteles, não fundou para si mesmo um averroísmo; este é algo que o discipulato e o epigonismo extraem do seu ensino, por isso que o averroísmo é posterior a Averróis.

(...) O início do averroísmo latino pode situar-se em 1250 (tese de Mandonnet) como antes (tese de Renan), mas o curto prazo que medeia entre a data proposta por Renan e a data sugerida por Mandonnet não afecta a realidade de um processo que tem uma clara origem peninsular, e que é sensível, embora lento, a partir da morte de Averróis. O clima escolástico favorecia a entrada de novas correntes e Alberto Magno, por exemplo, olhava com muita simpatia a filosofia arábica, da qual, nem todos os documentos recebidos eram genuínos, sabendo-se que alguns apócrifos averroizantes foram aceites como se de Averróis fossem. Tomás de Aquino inicia-se na filosofia arábica que aprofunda, trazendo para a filosofia cristã o caudal da ciência islâmica, por isso que, na opinião de Asín Palácios, Tomás de Aquino converteu a falsafa árabe à escolástica latina, sendo vários os pontos de convergência dos pensamentos do Aquinate e do Comentador. Ora, no justo momento em que a Escolástica europeia atingia o acme, mediante o aristotelismo tomista, que integrara algo de Averróis, mas o sujeitara a uma catárse, Sigério de Brabante (fal. 1282) postula o estudo de Aristóteles integral, sem nenhuma censura e sem nenhuma catarse conversória, para o que, a seu ver, era necessário dar a primazia ao estudo dos comentaristas arábicos, sobretudo de Averróis; por isso, este movimento de escola designa-se por averroísmo latino, cujo radicalismo sofre a crítica de Alberto Magno, no tratado De Unitate Intellectus (1256). Sigério não desanimou, prosseguiu, tornou o seu magistério influente, move contra ele a vontade dos opositores, gera uma profunda controvérsia que oficialmente se arrastou até 1277, com maior incidência polémica a partir de 1270, ano em que Tomás de Aquino publicou uma refutação do tratado sobre a unidade do intelecto de Sigério, cujas teses abundam na sua pessoal leitura do texto de Averróis: o intelecto humano é numericamente uno e idêntico; o mundo é eterno; a alma, forma humana enquanto forma, corrompe-se com o corpo; o livre arbítrio é uma faculdade passiva; a vontade elege por necessidade. A questão do entendimento agente agravou-se, apesar de andar agravada desde que os pós-aristotélicos se confrontaram com obscuro passo de Aristóteles (De Anima, 3, pág. 20) que Averróis interpretou como teoria da unidade do intelecto. As controvérsias na Faculdade de Artes de Paris obrigaram o bispo Estevão Tempier a condenar asperamente os averroístas, que se retiraram da Faculdade. Sigério de Brabante, Boécio de Dácia e Berneo de Nivelles viram-se sujeitos a complexo jogo de influências, que não à pura discussão filosófica. Por fim, o Papa João XXI ( = Pedro Hispano, que recebeu influência de Averróis) lançou a proibição do ensino das teses sigeristas e, portanto, do averroísmo latino, pela bula Flumen Aquae Vivae, dirigida ao bispo Tempier, com a data de 28 de Abril de 1277. O juízo do Aquinate, de que Sigério corrompia a filosofia de Aristóteles venceu, e o caminho abria-se à universalização do aristotelismo segundo a mente tomista, sem que tal impedisse João Duns Escoto (fal. 1308) de recriar o que se designa por «aristotelismo escotista», isto é, o Aristóteles interpretado por Escoto segundo o cânone da espiritualidade franscicana, aberta à consideração sobrenatural da natureza e à visão aristotélico-platonizante. Em todo o caso, João Duns Escoto, para resguardar Aristóteles, teve de atribuir a Averróis as opiniões que, por ortodoxamente inaceitáveis, levaram alguns a condenar Aristóteles. Segundo Escoto, as opiniões inaceitáveis derivam do Comentador, o maledicus Averroes. Os Carmelitas Observantes (na época ainda não havia outros, pois os Descalços surgem no século XVI) procuravam, desde 1250, suscitar nas fileiras um doutor para as suas escolas. Veio ele na pessoa de João Baconthorpe, inglês (fal. 1348) que mereceu o título de «Princeps Averroistarum». O título não lhe foi muito benéfico, pois lhe criou condições negativas para se implantar nas escolas carmelitas que, alfim, também optaram pelo aristotelismo tomista.






Contemporâneo de Sigério de Brabante, Pedro Hispano (fal. 1277) não é um averroísta por filiação doutrinal, mas a sua obra reflecte, para as escolas europeias, onde os seus escritos se liam, um largo aproveitamento das ciências naturais, das ciências psicológicas e da epistemologia de Averróis. Nos tratados zoológicos, e no De Anima, Averróis surge como ponto de referência várias vezes repetido, o que induziu Manuel Alonso a considerar Pedro Hispano um averroísta. Se assim fosse, Pedro Hispano teria condenado os seus próprios correligionários parisienses, e o enigma da morte do Papa João XXI, na casa de Viterbo, tão sobre os acontecimentos de 1277, continuaria por esclarecer; em todo o caso, o averroísmo de Pedro Hispano apresenta conotações neoplatonizantes e uma envergadura avicenizante (conforme se acha demonstrado nos estudos de João Ferreira, O. F. M.) que o desligam de ideologia averroísta, tal como esta se apresentou na versão latina. Pedro Hispano situa-se melhor no quadro dos opositores ao radicalismo averroísta latino, a par de S. Boaventura (fal. 1274) e do mais tardio Raimundo Lullo (fal. 1316), cuja doutrina de transcensão do averroísmo e de afirmação de espiritualidade platónico-aristotélica tão fundas incidências viria a ter no pensamento medieval, mormente durante o século XV.

(...) O aristotelismo exaustivo, ordenado a uma teologia tomista, que é predicado modal dos Conimbricenses, rejeita as teses do averroísmo latino, mas não deixa de considerar as aportações de Averróis trazidas ao esclarecimento da lógica, da dialéctica e da cosmologia. O aristotelismo conimbricense, sem professar o antiaverroísmo, não é averroísta, diversamente do que sucede no pensamento de Luís de Camões, que se apresenta ostensivamente anti-islâmico e antiaverroísta: «Não do confuso caos, como cuidou/ a falsa teologia e o povo escuro/ que nesta só verdade tanto errou» (Camões, Elegia V). A recusa da teoria eternomundista é, aqui, por demais evidente, e a emissão afirmativo-judicativa a que Camões procede dispensa toda a espécie de aditamento.

O cepticismo metódico de Francisco Sanches é devedor ao averroísmo, mas a oposição Cristandade/Islamidade tende a tornar Averróis obsoleto. O século XVI elevou Averróis na elevação de Aristóteles (e poderia ter elevado Maimónides, cujo pensamento se aproxima muito mais dos fins que a Escolástica latina se propunha) mas daí em diante a vertigem da queda acelera. O antiaristotelismo envolve os averroístas e, a partir de Luís António Verney, aristotélicos e averroístas são por igual tidos, havidos e julgados, porque a destruição de Aristóteles importa a destruição dos aristotélicos, e, pois, do quadro autoral a que os Conimbricenses, Pedro da Fonseca incluído, recorriam. A progressão antiaristotélica e antiaverroísta, logo desenhada em Verney, amplia-se no magistério de Manuel de Azevedo Fortes, cartesiano, e de Fr. Manuel do Cenáculo, que retoma o antiaverroísmo e o lulismo franciscanos medievais. O movimento vem a fechar-se nas teorias de José Seabra da Silva que, no manifesto Dedução Cronológica e Analítica (1767) introduz a reforma universitária e, pois, o combate aos «procuradores de Mafamede», os jesuístas, considerados preceptores do averroísmo latino. A postergação de Aristóteles implicou a postergação de Averróis, cuja influência se desvanece nos fins do século XVIII, embora possamos identificar reflexos da sua filosofia no racionalismo do século XIX e nos materialistas do século XX (Raul Proença, Lapas de Gusmão...) mas sem a presença de uma adesão hermenêutica e erística, adequada à exigência epistemológica.

Atrasados, mais uma vez, relativamente ao movimento escolástico, os Carmelitas Observantes, que tentavam salvar Aristóteles da tempestade pombalina, também se envolveram na restauração do averroísmo de João Baconthorpe. O padre Manuel Inácio Coutinho ainda edita o Compendium Philosophico-Theologicum (1734) segundo a mente do «Doutor Resoluto» João Bacon, e Miguel de Azevedo também tenta um Opusculum Philosophicum Bakonicum (1765) o qual serviu de guia às lições no Colégio da Conceição de Coimbra, mas sem notório resultado. Para o século XVIII todo o aristotelismo e todo o averroísmo eram filosofia do tempo passado. Não se entendera que a filosofia é o que nunca envelhece, porque a todo o instante se retoma, como ponto de partida.

(Pinharanda Gomes, «Averroísmo», in Dicionário de Filosofia Portuguesa, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, pp. 43-44 e 46-47).



segunda-feira, 18 de agosto de 2025

O mais importante manancial da cultura grega – aristotélica e neoplatónica – na Europa medieva dos séculos XII e XIII

Escrito por João Zaragüeta


Averróis

«Embora iniciada na Síria, a cultura do mundo muçulmano floresceu principalmente nas extremidades leste e oeste, Pérsia e Espanha. Os sírios ao tempo da conquista eram admiradores de Aristóteles, e os nestorianos preferiam Platão, filósofo favorito dos católicos. Os árabes receberam dos sírios o conhecimento da filosofia grega, e assim, desde o começo, consideraram Aristóteles mais importante do que Platão. No entanto o seu Aristóteles vestia-se de neoplatónico. Kindi (m. 873 ap.) foi o primeiro que escreveu filosofia em árabe e o único que era árabe; traduziu parte das Enneades de Plotino e publicou-a com o título de Teologia de Aristóteles. Daí grande confusão nas ideias arábicas sobre Aristóteles, que levaram séculos a corrigir.

(...) Os nestorianos, de quem o mundo muçulmano recebeu as primeiras influências gregas, não eram de modo algum puramente gregos na sua aparência. A sua escola de Edessa fora encerrada pelo imperador Zenão, em 481; os homens cultos emigraram para a Pérsia, onde continuaram a sua obra, não sem sofrerem influência persa. Os nestorianos avaliaram Aristóteles só pela sua lógica; e por ela também os filósofos árabes julgaram o princípio pela sua importância. Mais tarde estudaram também a Metafísica e o De Anima.

(...) Averróis foi tido como melhorador da interpretação árabe de Aristóteles, que fora indevidamente influenciada pelo neoplatonismo. Muito mais do que Avicena, deu a Aristóteles a espécie de reverência devida a um fundador de religião. Afirmou que a existência de Deus podia provar-se pela razão, independentemente da revelação, que é a ideia de S. Tomás de Aquino. Quanto à imortalidade, parece aderir a Aristóteles, mantendo que não a alma, mas só o intelecto (nous) é imortal, o que não assegura a imortalidade pessoal. Naturalmente os filósofos cristãos combateram esta ideia.»

Beltrão Russell («História da Filosofia Ocidental»).

 

«O perigo verdadeiro, imediato à vitória que [Tomás de Aquino] alcançara em favor de Aristóteles, apresentou-se com toda a vivacidade no caso curioso de Siger de Brabante, que vale a pena ser estudado por quem quiser começar a compreender a história estranha da Cristandade. Caracteriza-se por aquele fenómeno um tanto estranho, que tem sempre acompanhado a fé, apesar de não ser notado pelos seus modernos inimigos, e raramente mesmo pelos seus modernos amigos. É o facto simbolizado na figura do Anti-Cristo, espécie de Cristo duplicado, ou no profundo provérbio de que o demónio é o macaco imitador de Deus. É o facto de que a falsidade nunca é tão falsa como quando está próxima da verdade. Quando o golpe chega mais perto do nervo da verdade é que a consciência cristã grita de dor.


São Tomás triunfando sobre Averróis


(...) Siger de Brabante disse isto: teologicamente a Igreja tem certamente razão, mas pode não a ter cientificamente. Há duas verdades: a do mundo sobrenatural e a do mundo natural, que contradiz o primeiro. Quando falamos como naturalistas, podemos supor que o Cristianismo é asneira, mas depois, quando nos lembramos de que somos cristãos, temos de admitir que o Cristianismo é verdadeiro, mesmo que pareça loucura. Por outras palavras, Siger de Brabante rachou a cabeça humana em duas, como o golpe de que nos fala a velha lenda guerreira, e declarou que o homem tem dois entendimentos, com um dos quais deve crer totalmente, e com o outro pode totalmente descrer. Para muitos isto pareceria, pelo menos, uma paródia ao tomismo. De facto, era o assassínio do tomismo. Não eram dois modos de alcançar a mesma verdade; era um modo erróneo de pretender que há duas verdades. E torna-se muitíssimo interessante notar que foi esta a ocasião única em que o boi mudo saltou realmente como um touro bravo. Quando se ergueu para responder a Siger de Brabante, estava transfigurado por completo, e o próprio estilo das suas frases, que é como o tom da voz de um homem, alterou-se subitamente. Nunca se zangara com nenhum dos seus inimigos que discordavam dele; mas estes tinham tentado a pior das traições: tinham-no levado a concordar com eles.

Os que se queixam de os teólogos estabelecerem distinções subtis, com dificuldade poderiam encontrar melhor exemplo da sua própria sem razão. De facto, entre dois cambiantes subtis pode haver contradição pura e simples. E assim era neste caso. S. Tomás queria que a única verdade fosse atingida por dois caminhos, precisamente porque tinha a certeza de haver uma só verdade. Porque a fé era a única verdade, nada realmente dela deduzido podia vir a contradizer os factos.»

G. K. Chesterton («S. Tomás de Aquino»).


Estreito de Gibraltar, do nome árabe Jabal Tariq, ou "montanha/rochedo de Tárique", referente ao general omíada Tarik Ibn Ziyad





"Batalha de Guadalete", travada em Cádiz, a 31 de Julho de 711 (por Mariano Barbasán Lagueruela, 1882)

«Vindos da África do Norte, os Árabes invadiram a Península em 711, com um exército de doze mil homens, comandado por Tárique. A invasão procedeu de sul para o norte da Península Ibérica, mas foi detida nas Astúrias, pelos últimos representantes do reino visigótico. Entre o Islão e a Cristandade manteve-se, durante séculos, um intercâmbio linguístico, cultural e moral que a história política, quando reduzida ao simbolismo militar, não deixa perceber. Certo é, porém, que proveniente das cidades do Oriente, como do Cairo e de Bagdade, a cultura islâmica se tornou notabilíssima pela divulgação de textos gregos. Escreve Renan: “Os árabes aceitaram a cultura grega, tal como lhes fora transmitida. Os livros que mais exactamente exprimem esta transmissão foram a Teologia de Aristóteles, um apócrifo que é de crer que haja sido composto por um Árabe, e esse livro De Causis cujo carácter indeciso manteve em suspenso toda a escolástica. A filosofia árabe conservou para sempre esta marca de origem: a influência dos Alexandrinos ressurge a cada passo”. Os Árabes utilizavam principalmente os textos de Porfírio e de Alexandre de Afrodísia.

Al Hakam II, antes de ser califa em 961, reuniu em Córdova 400 000 volumes de manuscritos, recolhidos de várias partes do Oriente. Esta biblioteca serviu de exemplo a muitos aristocratas que quiseram imitar o soberano. No império dos Almóadas brilha a doutrinação de Averróis, morto em 1198.

A reconquista cristã da Península Ibérica, operada de norte a sul, significa não só a submissão dos Árabes mas também a dos Judeus; não podemos, portanto, dá-la por concluída antes de 1498. Para alguns autores espanhóis, esta reconquista religiosa deveria ser completada pela unificação política dos cinco reinos cristãos, o que se operou só no século seguinte, em 1580. Convém comparar a data em que os Árabes foram expulsos do Algarve, 1260, com a de 1492, referente à conquista de Granada pelos Reis Católicos. A poesia dos trovadores, que se aclimou entre nós durante o reinado de D. Afonso III, tem origens imprecisas que tanto podem ser atribuídas à poesia popular árabe como à poesia provençal.

Catedral de Toledo




No reino de Castela, entre 1130 e 1150, os tradutores de Toledo, João de Luna, Domingos Gonçalves e Gerardo de Cremona, traduzem Aristóteles, por indicação do arcebispo D. Raimundo e do grande chanceler de Castela.


Afonso X,  O Sábio, ditando as Cantigas de Santa Maria

Tratado de Medicina de Al-Razi traduzido por Gerardo de Cremona



Abubecre Maomé Zacaria Razi. Em persa: 

ابوبكر محمّد زکرياى رازى


Afonso X, o Sábio, promoveu a tradução e adaptação à língua castelhana de muitos textos de cultura árabe, no que foi auxiliado pelos Judeus, antes de o centro de cultura hebraica se deslocar para a Catalunha e para a Provença. Durante esta época foi criado, pelo mesmo príncipe, um colégio de estudos latinos e árabes. Fundado em 1254, foi-lhe assegurada a protecção papal por um breve firmado por Alexandre IV em 1260. A equipa de tradutores trabalhou sobretudo em Toledo, cidade que já era cristã havia dois séculos»

Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).

 

«A escolástica árabe, anterior à escolástica latina, contribuiu para o corpo metodológico e institucional desta, assim como contribuiu para a definição da escolástica hebraica.»

Pinharanda Gomes («Dicionário de Filosofia Portuguesa»).


 

O mais importante manancial da cultura grega – aristotélica e neoplatónica – na Europa medieva dos séculos XII e XIII

 

Desperta o século XIII carregado de um ar de tormenta naqueles lugares da Europa que sempre deviam ser tranquila palestra de justas intelectuais: as Universidades.

Nascidas as primeiras, logo à natural turbulência derivada da heterogeneidade pessoal, tanto discente como docente, que as formara e frequentara, se agrega a profunda inquietação nascida de um choque, já então violento, de rivalidades doutrinárias. De Espanha, patrocinada pelo Arcebispo RAIMUNDO DE TOLEDO, irrompera plenamente na Europa durante o século anterior o mais importante manancial da cultura grega – aristotélica e neoplatónica – traduzido do árabe e do hebreu pelo grupo de letrados que aquele ilustre prelado reunira à sua volta. Assim se tornaram conhecidos, de entre os árabes – AVICENA, o oriental, e o cordovês AVERRÓIS – e dos judeus – os espanhóis AVICEBRÃO e MAIMÓNIDES; e com eles se aclimataram nas Universidades as principais obras de ARISTÓTELES, se bem que através das suas versões siríacas e egípcias mais ou menos fidedignas.

Ibn Sina (Avicena)

Foi deslumbrador o resultado, mas também perturbador para a cultura escolástica ainda balbuciante: tais monumentos doutrinários, que pareciam saciar todo o afã de saber, não deixavam de oferecer perigos para o que, ao tempo, se considerava acima de toda a aspiração de humana sabedoria: a integridade da fé cristã; por isso as obras de ARISTÓTELES foram repetidas vezes censuradas pela autoridade eclesiástica. Para compreender bem isto, há que ter em conta que o ARISTÓTELES servido nessa altura com seu tempero arábico padecia daqueles graves erros teológicos a respeito de Deus e da imortalidade da alma, que logo se infiltraram na Europa sob o nome de averroísmo latino.

Enquanto se davam estas infiltrações, mantinha-se na tradição cultural da época a corrente da filosofia neoplatónica, por vezes glosada de forma heterodoxa – como a panteísta, cultivada por JOÃO ESCOTO ERÍGENA – mas também protegida pelo favor de muitos Padres da Igreja, especialmente pela máxima autoridade de SANTO AGOSTINHO, além da do prestigioso DIONÍSIO, que adoptara o pensamento do grande Platão e ainda as suas derivantes de PLOTINO como o instrumento da cultura humana mais apto a revestir a divina espiritualidade do Cristianismo. Esta tradição havia, naturalmente, de opôr-se ao assalto da fortaleza universitária por parte do intruso ARISTÓTELES e, mais ainda, dos seus comentadores não-cristãos.

Finalmente, não deixava também de ter a sua força uma corrente fomentada sobretudo pelos chamados VITORINOS – HUGO e RICARDO DE S. VÍTOR – e ainda por S. BERNARDO, corrente nitidamente hostil a toda a pretensa racionalização do dogma cristão, que só ao amparo da fé e do fervor místico da caridade parecia destinado a manter-se e a prosperar. Também a esta posição dava calor a tese anselmiana e augustiniana do crede ut intelligas, que reduz ao acto de fé a condição prévia do compreender racional.

(In João Zaragüeta, S. Tomás de Aquino no seu Tempo e Agora, Tradução de Miranda Barbosa, Casa do Castelo, Coimbra, 1945, pp. 5-8).

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Do trívio e do quadrívio em São Tomás de Aquino

Escrito por João Ameal


Bíblia de Gutenberg

«Quando exaltamos o valor prático da revolução aristotélica e a originalidade de Tomás de Aquino em chefiá-la, não queremos dizer que os filósofos escolásticos anteriores a ele não tinham sido filósofos, ou não tinham sido altamente filosóficos, ou não haviam tido contacto com a filosofia da antiguidade. Se alguma vez houve grande quebra na história filosófica, não foi antes de S. Tomás, ou no princípio da história medieval, mas sim depois de S. Tomás e nos princípios da história moderna. A grande tradição intelectual que chegou até nós, desde Pitágoras e Platão, nunca se interrompeu ou perdeu com bagatelas como o saque de Roma, o triunfo de Átila ou todas as invasões bárbaras da idade das trevas. Apenas se perdeu após a introdução da imprensa, o descobrimento da América, a fundação da Sociedade Real e todo o progresso do Renascimento e do mundo moderno. Foi aí, se o foi em qualquer parte, que se perdeu ou se quebrou o longo fio, fino e delicado, que vinha desde a antiguidade remota, o fio dessa rara mania dos homens – o hábito de pensar.»

G. K. Chesterton («S. Tomás de Aquino»).

 

«Articulam-se com os três primeiros elementos (terra, água, ar) as disciplinas do trívio, as quais podem sem desvantagem continuar a ser designadas por gramática, retórica e dialéctica. O quarto elemento, purificador e transformador, é de existência supra-terrestre e transcende a condição humana. Explica-se metodologicamente que as disciplinas do trívio, mais relacionadas com a antropologia, preparem a inevitável transferência da inquietação filosófica para os planos da cosmologia e da teologia. O quadrívio medieval, constituído pelas disciplinas designadas por música, aritmética, geometria e astronomia, não corresponde já às exigências da ciência moderna, mas nem por isso o pensador actual se afastará da verdade dominante nos estudos quadriviais. O movimento ígneo, a princípio mencionado na separação entre as trevas e a luz, foi mais tarde designado por térmico, magnético e eléctrico, sem que a ciência lograsse atingir por sucessivas sínteses a ambicionada unidade substancial. O estudo do quadrívio invade já os domínios da lógica, da gnosiologia e da epistemologia cujos processos superam os triviais, embora o movimento primordial seja susceptível de se configurar nos outros movimentos elementares, para trabalho, arte e jogo dos homens que vivem mais presos à terra.

A criança, o ser em crescimento e criação, aprende a andar e a nadar em planos visíveis no horizonte; dir-se-á também que, mantendo pura a infantil docilidade, segundo a arte de saber ouvir, aprenderá o homem a deslocar-se no ar e no fogo, ainda que invisivelmente. Entre as perturbações e as dificuldades da crise chamada adolescência despontam as primeiras asas pelas quais o homem deixa de ser para sempre um triste bípede implume. Na idade própria em que o estudante se liberta do argumento de autoridade, duvidando do que lhe foi doutrinado por parentes, sacerdotes e professores, para reflectir sobre os ensinamentos previamente adquiridos, impõe-se que o programa escolar prescreva mais profundos estudos triviais.»

Álvaro Ribeiro («Estudos Gerais»).

 


«A obra doutrinária de S. Tomás de Aquino é, antes de mais, como um imenso espelho onde se reflecte a cultura do seu tempo. Raro será o nome ilustre nas lides intelectuais, quer da antiguidade, quer da própria época do Santo Doutor, que não tenha algum eco nos seus livros. Manuseia na perfeição as fontes cristãs, tanto escriturárias como patrísticas, gregas e latinas, e cita amplamente BOÉCIO e o pseudo-DIONÍSIO AREOPAGITA; SANTO AGOSTINHO, em particular, para ele não tem segredos. Dos filósofos mais recentes conhece o filão já mencionado dos judio-arábigos – AVICEBRÃO e MAIMÓNIDES, entre os judeus; AVICENA, AVERRÓIS, AVEMPACE, ALGAZEL, entre os árabes –, os neoplatónicos BOÉCIO e DIONÍSIO, cristãos, e os pagãos PORFÍRIO, TEMÍSTIO e SIMPLÍCIO, e imperfeitamente o próprio PLOTINO. Quanto aos da antiguidade clássica, cita CÍCERO e SÉNECA, ZENÃO e EPICURO e conhece a fundo ARISTÓTELES, e através dele tem notícia de PLATÃO e dos PRÉ-SOCRÁTICOS. Fora da filosofia não há campo do saber humano que lhe seja totalmente alheio. Há nas suas obras referências a polígrafos como SANTO ISIDORO DE SEVILHA; a cultivadores da ciência jurídica, tais como GRACIANO e os jurisconsultos imperiais; a homens de ciência como GALENO e HIPÓCRATES; a geógrafos como ESTRABÃO; a historiadores como TITO LÍVIO e SALÚSTIO; e até a poetas como OVÍDIO e HORÁCIO. Dos seus imediatos predecessores são-lhe familiares SANTO ANSELMO e SÃO BERNARDO, e menciona a cada passo GILBERTO PORRETANO, ABELARDO, os VITORINOS, PEDRO LOMBARDO, DAVIDE DE DINANI, ALMARICO DE BENES, etc. Quanto aos seus contemporâneos, amigos ou adversários, alude de preferência a eles sob a anónima designação de “quidam”, própria da época, mas é fácil descobrir as suas referências. Pode dizer-se que no espírito de S. Tomás, acolhedor e hospitaleiro, encontra guarida tudo quanto de nome e digno tinha germinado o pensamento universal e que a sua alma se sentia herdeira do racionalismo harmónico dos gregos, da ponderação jurídica dos romanos e da profunda especulação dos árabes, enquanto vibrava com o ardor próprio dos jovens no anseio religioso e místico da espiritualidade judaico-cristã exaltado na tradição platónica da própria Grécia.»

João Zaragüeta («S. Tomás de Aquino no seu tempo e agora»).

 

«Desde logo, a imagem que hoje temos do esplendor escolástico é construída com base nuns quantos poucos nomes, especialmente Sto. Alberto, Sto. Tomás, S. Boaventura e Duns Scot. Se os apagâssemos dos registros, o escolasticismo não teria passado de um episódio curioso na história da educação. E esses não são nomes só de filósofos, mas de Doutores da Igreja: três santos canonizados e um bem-aventurado. Não existe o menor motivo para supor que na vida pessoal esses homens tivessem uma conduta mais frouxa, menos estrita, menos perfeita que a do “modelo pronto” que os anjos invejavam. Não vejo em que a dissolução do modelo pela “discussão racional” poderia ter contribuído nem para a sua santidade, nem para o fortalecimento do tipo especial de inteligência ao mesmo tempo filosófica e mística que os caracteriza, o qual não cresce fora e independentemente da graça santificante, mas decorre dela como um dom especial do Espírito.

Também é ingenuidade supor que essas encarnações máximas do gênio escolástico fossem produtos típicos do novo meio acadêmico, no qual, bem ao contrário, não se ajustaram confortavelmente jamais. Sua inteligência, sua rígida idoneidade, sua compreensão superior dos mistérios da fé e, last not least, sua coragem intelectual faziam desses quatro mestres os alvos preferenciais das invejas, mesquinharias e maledicências de seus colegas.»

Olavo de Carvalho («A Filosofia e seu Inverso»).





Do trívio e do quadrívio em São Tomás de Aquino

 

De facto, após um longo colapso, a cultura científica e filosófica progredia, com renovado resplendor, em todo o mundo cristão. Dois concílios realizados em Latrão, e as diligências constantes de três Papas – Inocêncio III, Honório III e Gregório IX – impulsionavam o clero para os estudos superiores.

Tudo isto determinou, como era de esperar, o envio do jovem oblato beneditino para a Universidade de Nápoles.

Segundo a orientação pedagógica de então, consagrou-se Tomás de Aquino ao estudo das chamadas artes liberales, divididas em dois grupos: as artes triviales, sermonicales, rationales, que constituíam o trivium: gramática, retórica e dialéctica; as artes quadriviales, reales, physica, mathemática, que constituíam o quadrivium: aritmética, geometria, astronomia e música.

No primeiro grupo, foi seu mestre em Nápoles Pedro Martinus, que lhe ministrou uma ampla cultura humanista e o pôs em contacto com os velhos poetas e oradores greco-latinos: Virgílio e Horácio, Ovídio e Terêncio, Juvenal e Séneca, César e Quintiliano, Cícero e Marius Vitorinus, e também com alguns escritores dos inícios da Idade-Média: Oroso, Boécio, Gregório de Tours. Ao mesmo tempo, Martinus industriava-o no conhecimento íntimo da dialéctica, logo admiravelmente apreendida e que mais tarde Tomás utilizaria com mestria inexcedível.

No segundo grupo (quadrivium), ensinou-o Pedro de Irlanda – notablizado pelos seus comentários sobre Porfírio, sobre o Perihermeneias e o De longitudine et brevitate vitae de Aristóteles – que seria chamado gemma magistrorum et laurea morum. A influência exercida por este professor no espírito do seu discípulo adivinha-se profunda – não tanto pelos vagos e incompletos dados enciclopédicos de autores antigos que lhe forneceu: os tratados de Boécio, o Astrolabio de Gerbert, as teorias euclidianas – mas porque deve ter chamado pela primeira vez a sua atenção para o nome e a obra de Aristóteles. Este simples facto marca um lugar a Pedro de Irlanda na história do pensamento humano: ter sido, porventura, o instrumento do encontro inicial de Tomás de Aquino e do Estagirita.

(In João Ameal, São Tomás de Aquino, Livraria Tavares Martins, Porto, 1937, pp. 17-18).



Scuola di Atene, por Raffaello Sanzio (1483-1520)