Escrito por Oliveira Martins
«Não
há acordo sobre os elementos de que irrompeu a nacionalidade portuguesa. Não
nos apontam os cronistas uma directriz. Nos textos não tem sido viável basear
conclusões indiscutíveis. Nem a historiografia moderna, independente de
critérios políticos e firmada na crítica das fontes, tem conseguido elucidar as
origens. Herculano defendeu a tese
românica ou municipalista. No âmbito das autarquias locais, decalcadas na
lei romana, teria florescido a liberdade pública. Alargada aos vizinhos com
interesses afins, haveria criado o ânimo de independência. Mas Herculano deixa
pairar uma dúvida. Insatisfeito com a sua verdade, acrescenta algures, como
explicação última, que somos independentes porque o quisemos ser. No meio das
divisões, soubemos logo de início manter unidade moral; fosse qual fosse o seu
partido, os barões portugueses mostravam-se conformes, ao menos passivamente,
com o sistema que já então se podia classificar de política externa do país; e
os actos dos príncipes eram mais o reflexo de um espírito colectivo do que a expressão
de desígnios próprios. Mas é outro o caminho sugerido por Oliveira Martins.
Este fundamenta a independência na vontade enérgica e na capacidade dos
príncipes e barões. É a ambição individual destes que conduz à separação de
Portugal da monarquia leonesa: os condes defendiam o que julgavam sua
propriedade. Todavia, a esta tese simplista opõe Jaime Cortezão a tese geopolítica ou marítima. Nem a
príncipes estrangeiros ou a impulsos individuais deve Portugal a sua
nacionalidade. É a diferenciação geográfica, aliada à tipicidade do litoral,
que dá uma feição de povo ao agregado ali estabelecido. Clima diverso do do
resto da Península; abundância de largos estuários; funda penetração do oceano;
existência de portos fluviais muito no interior do território; apoio marítimo
estimulando o comércio transoceânico – constituem alguns dos factores
fundamentais.
(...) Mas aquelas três teses não esgotam o problema das origens. Dois outros ângulos de visão têm sido encarados. Temos, antes de mais, a tese internacionalista. A independência portuguesa seria produto de uma equação internacional, de uma necessidade de equilíbrio europeu, que já então se começava a sentir; e a ligação entre o Conde D. Henrique e algumas ordens religiosas teria actuado naquele sentido, como um elemento impulsionador. E temos por último a tese lusitana. Funda-se sobretudo na tradição. Desde tempos remotos, mas sobretudo a partir do século XVI, foram os lusitanos havidos como os mais próximos ascendentes dos portugueses. Segundo Estrabão, eram “amigos da liberdade”. Ocupando a região entre Douro e Tejo, descendentes de celtas ou autóctones, foram romanizados; mas não teriam perdido pelo facto a individualidade de grande tribo, nem a autonomia como agregado social. Embora se afigure que permanece nebulosa, estudos modernos vieram dar alguma consistência para vincar a nossa diferenciação do resto da Península. Mas todas as investigações comprovam sem dúvida um facto: a existência, desde o século XII, de uma comunidade delimitada, com autonomia e unidade moral, e apresentando tipicidade perante os demais povos da Península. Poderá dizer-se, todavia, que o desenrolar da vida dessa comunidade empresta, talvez mais do que a outras, algum fundamento à tese exposta e documentada por Cortezão.»
Franco Nogueira («As Crises e os Homens»).
«...Galiza,
Catalunha, Navarra, Andaluzia, Bascos, Levantinos, ao correr da história, pouco
mais do que escravos de escravos: porque escravidão, no fim de contas, pelo que
respeita a degradação humana, age para os dois lados, para o lado do opressor e
para o lado do oprimido. Com uma grande vantagem a favor das regiões
periféricas: é que, vencidas, jamais se submeteram; e, no momento oportuno, se
poderão comportar como nações livres que jamais renegaram a sua liberdade e
jamais, abandonando seus mortos, desistiram da luta.
E aqui, ao que me parece, se insere a grande façanha de Portugal. O que Portugal fez de maior no mundo não foi nem o descobrimento, nem a conquista, nem a formação de nações ultramarinas: foi o ter resistido a Castela. O ter mantido, através de sangue e fogo, o princípio da independência dos territórios periféricos. E o ter mostrado, naquilo que cabia em suas forças, e mais do que isso, porque verdadeira história só se faz assim, naquilo que estava muito para além das suas forças, de que modo uma Espanha livre e convivente poderia ter transformado a face do mundo. Aceita-se hoje em história de Roma que o assassínio de César, impedindo-o de levar por diante o seu projecto de romanização do mundo europeu, do Báltico aos Urais, veio pôr depois todos os problemas que resultaram da existência de bárbaros não romanizados; veio pôr o problema da Prússia e veio pôr o problema da Rússia. Uma Península livre e una, com regiões culturalmente autónomas e com descentralização administrativa; uma Península a que se tivesse estendido o sistema de governo peculiar da Idade Média portuguesa, isto é, o de, numa prefiguração da Commonwealth, haver uma companhia de repúblicas unificadas por uma coroa; uma Península que tivesse conservado aquele gosto de conversação, de "vida conversável", como diria mais tarde um navegador, para cristãos, judeus e árabes, essa Península, para lá de todas as contingências económicas, teria dado modelo ao mundo. Teria, como numa renda de bilros, dado o “pique” ao mundo. E o dito mundo, Europa inclusive, se podiam depois ter dado à tarefa de ir plantando alfinete e lançando ponto. Que foi decerto modo, o que fizeram, mesmo só com o trabalho de Portugal.»
Agostinho da Silva («Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa»).
«Espanha
ocupou tão grande lugar no mundo, impressionou tão fortemente o mundo pelo que
fez, pelo modo por que actuou, pela coragem com que volveu em acção a sua
concepção ética e política de tom arcaizante que na apreciação desse labor
histórico para sempre se dividiram os juízos. A sua personalidade era tão
caracterizada e tão forte que não se apagou mais a chocante impressão dela sobre
a Europa, espectadora e vítima. E a Europa de além Pirenéus, aberta a todas as
influências e, depois do apogeu espanhol, criadora de originalidades opostas à ideologia
castelhana, divorciou-se do mundo hispânico. E essas diferenças e esses
contrastes de matizes religiosos, políticos, morais e artísticos logo se patentearam
bem flagrantes e logo foram interpretados, umas vezes pejorativamente – e surgiu
a lenda anti-espanhola, a Espanha negra – outras, intelectualmente – e surgiu
toda essa longa filosofia da decadência espanhola, os arbitristas e o ensaio
crítico, que é uma peculiaridade da moderna literatura de Espanha e traduz a
sua inquietação espiritual como o lirismo português expressa o mais típico da
nossa sensibilidade. Uns espanhóis acolheram a lenda anti-espanhola ou a
silhueta negra da Espanha quinhentista e nela colaboraram; outros repudiaram-na
e procederam à revisão da história; uns e outros extraíram conclusões
pragmáticas, pensamento e acção política desses dois hemisférios da alma
espanhola, – dos seus escóis, porque o povo permanece indiferente a essas pugnas
de gente cultivada, embora muitas vezes tenha sido o mar proceloso que recolhe
e dilui em proporções de tragédia o que parecia simples conflito de teorias. A
sua insurreição contra os franceses e a sua cooperação nas lutas doutrinárias
do carlismo com o liberalismo mostram bem como ele pode ser, pelas energias
profundas que armazena, o dado essencial da equação política de Espanha. Mesmo
apartados do marulhar subterrâneo dessa letargizada massa, no simples plano da
crítica e acção social, na vida quotidiana, esses dois hemisférios espirituais
deram à sua doutrina coerência e demasias sistemáticas, carregaram-na de
paixão, de força de carácter, a grande virtude e o grande risco da alma
peninsular.
E
a história de Espanha passou a ser, desde que Espanha recebeu mais do que
criou, um contínuo choque desses dois extremismos inconciliáveis, mas
indispensáveis um ao outro, como as valvas duma castanhola, opostas e inseparáveis
para produzir os típicos estalidos.
Desde
que se quebrou a sua unidade moral, Espanha viveu aos bordos, às guinadas sobre
a esquerda e sobre a direita, como barco puxado à sirga por forças desiguais ou
desencontradas, aos tombos de margem a margem. O choque dos dois hemisférios ou
das duas cotilédones da célula cerebral espanhola é o que há de mais típico na
consciência espanhola, tecido de contrastes violentos, operando por mútua
reacção e agora anunciando-nos um relâmpago novo, que chispe do presente caos
criador.
E
quem foi que lançou esse perpétuo pomo da discórdia, quem realizou a definitiva
divisão da consciência espanhola? O homem que, fiel a uma tradição multissecular
e mandatário representativo duma asfixiante maioria, quis realizar a unidade
política e religiosa da Espanha, conculcando nacionalismos e regionalismos,
supeditando privilégios e regalias de classes, extirpando heterodoxias,
asfixiando a liberdade individual, mas erguendo à maior altura o poder e o
ascendente da Espanha na Europa.
Desde
então os espanhóis discutem o que vale mais: a glória ou a liberdade? O paraíso
ou o inferno? E, um a um, se vão colocando à direita ou à esquerda daquele
túnel de braços do jogo infantil...
Passará,
não passará,
Qual
deles ficará?
Fidelino de Figueiredo («As Duas Espanhas»).
«Há
(...) a observar que algumas das mais gradas figuras nacionais, das nascidas em
Lisboa e no Sul, ou de naturalidade incerta, pelas suas genealogias ou
caracteres psicológicos denunciam em proporções variáveis a mescla lusitano
galaica. Assim acontece por exemplo com Nuno Álvares Pereira, Gil Vicente,
Camões, D. João de Castro, e Camilo Castelo Branco, figuras em que o fundo
sentimental do Noroeste, anda aliado a elementos lusitanos.
Outras
grandes figuras nacionais acusam participação de sangues exóticos: quer das raças
de cor quer das nórdicas; às vezes é evidente a marca semita. Nem por isso
estes contingentes deixaram de produzir homens dos mais integrados e
representativos; como o Padre António Vieira, Almada Negreiros, o Infante D. Henrique e Fernando Pessoa, respectivamente.
O
português é uma combinação feliz. Isolado, o elemento galaico, tanto pela base
geográfica não determinativa como por temperamento, arriscar-se-ia a perder-se
nas nuvens ou num trabalho de obscuro formigueiro; isolados, os lusitanos,
careceriam de uma subconsciência autonómica bastante para os tornar
irredutíveis à absorção castelhana, antes e além dos campos de batalha.
A
Grécia não perdurou politicamente porque Atenas e Esparta, incapazes de uma
fusão, jamais ultrapassaram o entendimento efémero.
Em Portugal, os elementos humanos primários, fundindo-se a caminho do Sul, na capital e a partir dela criaram uma resultante dinâmico-sentimental que se derramou no Mundo com uma força integradora extraordinária.»
Francisco da Cunha Leão («O Enigma Português»).
«Para um futuro paraíso, não só seu próprio, mas de toda a Espanha, pois de que serve a paz que é só nossa, ou que ilusória paz é essa, precisavam talvez Galiza e Portugal de ser separados logo de início e de penarem suas duras penas de acção e de saudade.»
Agostinho da Silva («Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa»).
A SEPARAÇÃO DE PORTUGAL
O
condado portucalense, criado nos últimos anos do XI século a favor do conde
borguinhão D. Henrique, genro de Afonso VI, pouco tempo existiu sob o regime de
uma vassalagem indiscutivelmente reconhecida. Era essa a época em que a Espanha
tendia a constituir-se num sistema de Estados independentes, à medida que
sucessivas regiões iam saindo de sob o domínio muçulmano para o dos
descendentes dos godos asturianos, ou dos seus actuais aliados[1]; e o
condado portucalense obedecia a esta tendência geral, no empenho que o seu
conde não mais encobriu desde a morte do sogro.
É
com efeito da data do óbito de Afonso VI [1109] que deve contar-se a era da
independência de Portugal; embora por largos anos ela seja mais uma ambição do
que um facto; embora essa ambição traduza um pensamento que os acontecimentos
posteriores da história impediram se realizasse. Qualquer que fosse o valor
dado no XI século à expressão geográfica de Portucale,
é facto provado, por todas as memórias e documentos desses tempos, que para
ninguém deixava de considerar-se o território de entre Minho e Mondego como
parte da Galiza. O facto da constituição do condado de nada vale contra esta
opinião; porque demasiado se sabe que a formação dos Estados medievais, na
Península e fora dela, jamais obedecia às prescrições geográficas ou
etnológicas. Não se atribua pois a causas desta ordem, nem à consciência de
uma solidariedade nacional, o facto da desmembração da Galiza dos fins do XI
século. A cisão que o Minho demarcou obedeceu apenas a motivos de ordem
política.
Isto
mesmo, porém, deu causa a uma ambição, na qual devemos reconhecer o princípio
da vitalidade da nação portuguesa, durante estas primeiras e ainda indecisas
épocas da sua existência. A solidariedade nacional espontânea existia de facto
para os galegos; e desde que a Galiza fora dividida pela política em duas,
aquém e além Minho, restava saber qual dessas metades tomaria sobre si o papel
de representar um sentimento de independência, comum a todos os membros ainda
então desconexos do corpo peninsular.
![]() |
"Brasão de Armas" do Conde D. Henrique |
Várias
causas concorriam para atribuir este papel à metade portuguesa da Galiza; e
porventura acima de todas o facto do merecimento pessoal do conde português. Circunstâncias
desta ordem eram decisivas numa época em que a anarquia sistemática da
constituição da sociedade fazia principalmente depender os destinos imediatos
dela da perspicácia ou da bravura dos seus chefes. Nada há de comum entre a
vida destes tempos e a dos posteriores; e num certo sentido pode até dizer-se
que os factos de ordem política são independentes dos de ordem social, porque a
sociedade é como um elemento passivo que por este lado (mas por ele apenas)
obedece às consequências do desordenado capricho dos actos e caracteres dos
chefes militares que a governam, sem propriamente a representarem.
Nos
primeiros três séculos, isto é, na primeira época da história portuguesa, a
independência é um facto originado no merecimento pessoal dos chefes militares
dos barões de aquém Minho. Nacionalidade propriamente dita, não a há; ou pelo
menos não no-la revelam os monumentos históricos, unânimes, também, em revelar
uma ambição colectiva ou social que se estende a toda a Galiza. Ao merecimento
pessoal reúne-se, nos primeiros monarcas portugueses, a circunstância de serem
os intérpretes deste sentimento. Por isso a tendência permanente e o princípio
claramente definido da política portuguesa, nos primeiros séculos, é unificar a
Galiza, constituindo a noroeste da Península um Estado tão homogéneo como o
Aragão ou a Navarra a nordeste.
Neste
propósito se filiam todas as guerras civis – se este nome convém ainda aos
conflitos entre Portugal e Leão – e as repetidas alianças dos barões galegos
das duas zonas divididas pelo Minho. A facilidade com que os reis portugueses
transpõem armados as águas desse rio, e se apossam por várias vezes dos
territórios da Galiza leonesa, são provas evidentes da opinião exposta.
Não
quis a sorte que chegasse a realizar-se este primeiro pensamento político, a
que chamaremos hegemonia de Portugal na Galiza, para usarmos de expressões
modernas; antes ordenou que os limites convencionais do condado portucalense
apenas inscrevessem o ponto de partida da formação de uma nação, cujo carácter,
ulteriormente definido, proveio principalmente da fisionomia geográfica da
região; de uma nação, repetimos, que veio a perder a tradição dessa primitiva
origem, desde que o génio das populações de entre Mondego e Tejo sobrepujou o
das do Norte, na direcção e impulso dados à vida colectiva portuguesa.
Se
nesta primeira época da nossa história o pensamento oculto que dirige com maior
ou menor consciência a política, é incontestavelmente o da hegemonia de
Portugal na Galiza, seria absurdo supor que, ao lado deste princípio, decadente
desde certa época, se não fossem também manifestando de um modo correlativo, e
cada vez mais pronunciado, os sintomas da deslocação do centro vital da nação.
![]() |
| Inscrição rupestre em «língua lusitana» de Lamas de Moledo, Castro Daire. |
A
circunstância que mais decisivamente determina este carácter da nossa história
primitiva é a conquista dos territórios sarracenos de aquém Mondego, levada a
cabo pelos barões portugueses, sem os auxílios do suserano de Leão. É este
movimento que, principiando por quebrar os laços de solidariedade entre os
galegos leoneses e os portugueses, vai gradualmente adicionando a estes últimos
os lusitanos (seja-nos lícito dizer
assim, para mais claramente definir o nosso pensamento), até o ponto de os
últimos predominarem na fisionomia posterior da nação, transferindo de
Guimarães e de Coimbra, para Lisboa, a capital do reino; fazendo substituir, à
vida rural, primeiro quase exclusiva, a vida comercial e marítima depois
predominante e quase absoluta.
A primeira época da história portuguesa oferece pois à observação do crítico dois movimentos[2], opostos num sentido, concordes em outro, que é o da afirmação positiva da independência. Mas, se essa afirmação, terminante nas guerras leonesas, e também nas sarracenas, exprime de um lado a política de hegemonia na Galiza, do outro exprime, de um modo todavia inteiramente inconsciente e espontâneo, uma tendência contrária. É a formação de uma nação lusitana, de que a Galiza portuguesa desce à condição de província ao norte, como o Algarve, mais propriamente turdetano, vem a sê-lo ao sul. O Entre-Douro e Guadiana, isto é, a espinha dorsal da Estrela, ladeada pelas Beiras ao norte, pelo Alentejo a sul, pela Estremadura a poente: eis aí o que, logo desde o XIV século, começa a representar o corpo homogéneo da nação portuguesa.
(In Oliveira Martins, História de Portugal, Guimarães Editores, Lisboa, 22.ª edição, 2007, pp. 63-65).
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