terça-feira, 11 de novembro de 2025

Os Lusitanos

Escrito por Oliveira Martins



«Até hoje todas as sucessivas tentativas para descobrir a nossa raça têm falhado. Latinos, celtas, lusitanos e afinal moçárabes têm passado: ficam os portugueses cuja raça, se tal nome convém empregar, foi formada por sete séculos de história.»

Oliveira Martins («História de Portugal»).

 

«A tradição fez sempre coincidir a fronteira oriental da Lusitânia com a actual linha de fronteira entre Portugal e Espanha e portanto, a Lusitânia era Portugal e os Portugueses, os descendentes dos Lusitanos.

Não sabemos o que pensaram dos Lusitanos os povos que se seguiram aos Romanos na ocupação do território que antes tinha sido deles, mas a recordação manteve-se pois autores tardios nos falam dos Lusitanos e são mesmo preciosas fontes para o seu estudo.

Na Idade Média, a “Crónica Geral de Espanha”, de 1344 apresenta Viriato como um herói sem pátria definida, tanto podendo ser português como espanhol, mas resistente à ocupação ibérica e compara-o a Hércules, o mítico herói grego.

A Lusitânia é utilizada muitas vezes pelos cronistas e pelos reis portugueses como uma forma de justificar a independência de Portugal e os primeiros reis comparados a Viriato.

No Renascimento, com a redescoberta dos clássicos, os humanistas vão fazer a identificação dos heróis antigos com os vestígios e lugares de Portugal e curiosamente, um dos primeiros a fazer a identificação da Lusitânia com Portugal foi Gil Vicente em 1532. No seu Auto da Lusitânia, representado perante D. João III, por ocasião do nascimento do Príncipe D. Manuel, em 1532, os dois personagens principais chamam-se “Lusitânia” e “Portugal”. A “Lusitânia” é uma bela filha do Sol e de Lisibeia (Lisboa), de uma beleza estonteante e pela qual se apaixona um cavaleiro grego chamado “Portugal”, com quem vem a casar. Temos aqui a identificação perfeita de Portugal com a Lusitânia que, por esta época, já se começava a fazer cada vez com mais força. Outros personagens que aparecem neste auto são os demónios Belzebu e Dinato que são testemunhas do casamento e assistem a um diálogo curioso entre outros dois intervenientes que são “Todo o Mundo” e “Ninguém”. Todo o Mundo representa a arrogância, a prepotência, a vaidade, a cobiça e o amor às coisas materiais e Ninguém representa a pobreza, o desprendimento das coisas materiais, identificando-se com a maioria das pessoas e com uma pequena minoria, ou seja Todo o Mundo e Ninguém, respectivamente. Atendendo ao contexto de casamento em que estas personagens aparecem, de Portugal com a Lusitânia, representarão os principais intervenientes do casamento de Viriato, ou seja, o próprio Viriato, aqui representado por Ninguém e Astolpas, representado por Todo o Mundo.

É, no entanto, na obra Antiguidades da Lusitânia, de André de Resende que se marca o início da Arqueologia em Portugal e da identificação dos Portugueses com os Lusitanos e de Portugal com a Lusitânia. André de Resende foi o primeiro a fazer dos Portugueses os verdadeiros herdeiros dos Lusitanos, em linha directa e sequencial, apesar de reconhecer a falta de coincidência entre Portugal e o território lusitano. A Resende se devem ainda as inovações do termo lusíada e a duplicação do Monte Hermínio, contrapondo um Hermínio Maior a um Hermínio Menor, que seriam a Serra da Estrela e a Serra de S. Mamede, respectivamente. Começa-se aqui a forjar a identidade nacional lusitana que não mais iria abandonar a nossa historiografia.

Serra da Estrela

Escultura de Nossa Senhora da Boa Estrela esculpida na rocha granítica.


Poço do Inferno

Luís de Camões utiliza para a sua principal obra o neologismo introduzido por Resende, e dá-lhe o sugestivo título de Os Lusíadas, fazendo a plena identificação dos Portugueses com os Lusitanos e os seus chefes, nomeadamente Viriato. Acerca deste, escreve Luís de Camões, no Canto VIII, estrofes 5, 6 e 7.

(...) Antes, no Canto III, estrofes 22 e 23 já havia identificado Portugal com a Lusitânia...

Camões faze-se eco da tradição que corria sobre a vida de Viriato, apresentando-o como o esforçado pastor que se converteu pelas suas qualidades e pelo seu esforço, em condutor e pastor de gentes.

Frei Bernardo de Brito escreve a sua bem conhecida Monarquia Lusitana, tentando justificar a ideia da Pátria a partir da antiguidade e das personagens conhecidas de então. Não se deve esquecer que o primeiro volume é publicado em 1597, em plena ocupação espanhola e em que era importante e necessário alimentar a Alma portuguesa na sua resistência ao invasor.

Portugueses e Lusitanos eram um só povo e confundiam-se nas suas obras. Era o tempo da identificação de tudo com os clássicos e todos os actos da vida se pautavam pela imitação dos Gregos ou Romanos. Esta identificação tinha apenas como objectivo glorificar os Portugueses pois que, tal como os Lusitanos tinham sido os heróis da antiguidade e o povo que mais se opôs aos Romanos, assim deviam ser agora os Portugueses, seus verdadeiros herdeiros, que deveriam seguir o exemplo e libertar-se do jugo espanhol.

Nos finais do século XVII, publica-se o Viriato Trágico, poema heróico de Brás Garcia de Mascarenhas, o mais notável poema nacionalista escrito na altura do domínio espanhol em Portugal. Viriato é o herói deste poema épico, ressaltando as suas qualidades de estratega militar e de condutor de povos que, inclusive, recusa a luta quanto sente que a derrota é certa, pois

 



Não é melhor, antes que o mal suceda,

Não ir à luta que leva à queda?

Lute quem sabe, quem não sabe aprenda.

 

Logo depois diz que:

 

Não lhe negue a nação, porque merece

Ser collocado em seu eterno archivo

Todo foi portuguez no esforço e manha,

Sem ter mistura de nação estranha (...)

 

Nasceu naquella serra que chamada

Hermínia foi, hoje se chama Estrella.

 

Brás Garcia de Mascarenhas, como Bernardo de Brito, ao contrário de André de Resende, eram beirões de nascença, pois Mascarenhas nasceu em Avô, na Serra da Lousã e Bernardo de Brito em Almeida, dá a Viriato a nacionalidade portuguesa e como local de nascimento a Serra da Estrela.

(...) Brás Garcia de Mascarenhas vai mesmo mais longe e atribui a Viriato a construção da Cava de Viriato em Viseu... É mais uma identificação da Beira com Viriato e os Portugueses legitimamente considerados herdeiros dos Lusitanos enquanto os Espanhóis representavam os Romanos nesta verdadeira novela peninsular.

Esta ideia da identificação de Viriato com a Beira vai fazer com que se faça a sua reivindicação regional, como aconteceu com Viseu por estes séculos XVII e XVIII.



Cava de Viriato


Sendo os Portugueses descendentes directos dos Lusitanos, o território Português actual também era, em grande parte, o território lusitano. Viriato era originário da Serra da Estrela, o lendário Mons Herminius, as lutas de Viriato tinham-se desenrolado nas faldas da Serra e nas planícies ribatejanas e alentejanas, Évora tinha sido transformada por Sertório na Roma lusitana com uma administração à maneira romana. É a época da formação dos grandes mitos da nossa história com a ligação dos nomes antigos às povoações contemporâneas e às figuras da antiguidade entretanto descobertas ou inventadas.

Esta ideia, da identificação dos Portugueses com os Lusitanos, “estava fortemente radicada entre os escritores, que a haviam recebido sem exame, lisonjeados com o lustre que criam vinha à sua pátria deste parentesco”, como escreveu Herculano na sua História de Portugal. Estas palavras de Herculano soam, claramente, a um olhar crítico sobre essa identificação pois, nos séculos seguintes ao Renascimento, esta ideia manteve-se fortemente arreigada entre os intelectuais e deles passou ao povo que a adoptou como sua.

O século XIX é o século do aparecimento da crítica histórica e da ciência arqueológica, começando o arqueólogo a distanciar-se cada vez mais do antiquário imaginativo. As reformulações começam a fazer-se sentir e muitos dos mitos que se tinham criado na História de Portugal não resistem e Herculano é um dos espíritos mais lúcidos a esse respeito. Apesar das revisões críticas que são feitas, esta teoria que identificava os Portugueses com os Lusitanos vai, no entanto, resistir às análises mais objectivas do século e ainda hoje muitos continuam a afirmar essa identificação.

O poeta e nacionalista Almeida Garrett, em 1824, em plena Guerra Civil, na sua obra Flores e Frutos, inclui um grande poema heróico a Viriato que intitula “A Caverna de Viriato”. Nela faz o panegírico de Viriato e compara os Lusitanos, Lusos lhes chama, com os Portugueses do seu tempo que se tornaram traidores uns dos outros e que vão destruir a Pátria.

(...) Antes, Almeida Garrett tinha-se já referido aos Montes Hermínios como o local de origem de Viriato, imbuído do “espírito da serra” onde se situava a sua caverna, e o lugar de onde ele vai descer para atormentar o mundo.

Os finais desse século XIX e os inícios do século XX são marcados por personalidades arqueológicas como Martins Sarmento e Leite de Vasconcelos e pela polémica questão da União Ibérica.


J. Leite de Vasconcelos


Francisco Martins Sarmento torna-se no grande estudioso dos castros do Norte e considerava os Lusitanos de origem lígure, originários portanto do Norte da Itália, e diz que a palavra Lusitani, provirá do nome que um ramo lígure possuía na língua original, Ligusitani. Afirma assim uma origem exterior à Península Ibérica, proveniente, portanto, da zona dos Alpes, não lhe reconhecendo qualquer origem céltica ou autóctone.

A influência céltica na Península Ibérica ter-se-ia ficado pelo noroeste e pelas terras hoje espanholas das nascentes do rio Douro e do rio Ebro.

Leite de Vasconcelos, pelo contrário, reagiu contra a sugestão da evolução linguística proposta por Martins Sarmento, mas concorda e tenta provar a ascendência lusitana dos Portugueses, “em alguns ramos da Ethnologia”. É o primeiro a tentar uma sistematização dos povos lusitanos, estudando as divindades do mundo que ele considerava lusitano e que verteu na clássica obra “Religiões da Lusitânia”. A Lusitânia, objecto do seu estudo, é essencialmente a província romana que ultrapassa em muito a Lusitânia que atrás definimos e para evitar confusões ele faz logo a advertência de que “começo naturalmente por explicar qual a acepção que lhe dou nesta obra”. Podemos dizer que toda a investigação de Leite de Vasconcelos teve como objectivo fundamental provar que havia uma relação directa entre Portugueses e Lusitanos, apesar da falta de coincidência entre os territórios, pelo menos numa grande área. Tentou ainda ir mais longe e provar que no território português vinham existindo, desde a Pré-História, culturas próprias que moldaram o homem lusitano e, consequentemente, o homem português.

Nos inícios do século XX, Mendes Correia foi uma das figuras mais acérrimas defensoras da ligação entre Portugueses e Lusitanos, contestando fortemente Alexandre Herculano. Atravessando toda a primeira metade do século XX, veio a ser uma das figuras de que o regime do Estado Novo se serviu para tornar essa teoria numa afirmação científica e na afirmação de uma raça portuguesa distinta das outras conhecidas, chegando mesmo a considerar um tipo de hominídeo próprio do território português, o “selvagem homo taganus” que teria vivido nas margens da Ribeira de Muge. Ora, o que hoje se sabe desta população dos finais do Neolítico/Mesolítico é que se alimentavam à base de moluscos de que nos deixaram imensos vestígios, os chamados concheiros e praticavam o enterramento colocando os corpos em posição fetal. As análises antropológicas nada revelam de diferente em relação a outros homens do mesmo período neo/mesolítico.

Teófilo Braga, intelectual e político, primeiro Presidente do Governo Provisório após a instauração da República Portuguesa escreveu, em 1904, um romance intitulado Viriatho em que faz a descrição do Lusitano combativo e atribuindo-lhe a construção da Cava de Viseu onde imagina que decorreram os seus funerais. Era português, sem dúvida e tinha sido um dos pais da Pátria portuguesa.




O alemão Adolfo Schulten escreveu, em 1926, uma bibliografia de Viriato e uma obra sobre a Hispania e aí refere que o nome Lusitanos provém do celta, considerando-os por isso como celtas. O nome tem a raiz lus- que entra na composição de outros nomes da Península. Apesar dos elementos linguísticos apontarem para uma origem celta dos Lusitanos, outros levam-no a concluir por uma origem ibérica. Conclui, pois, Schulten que se deve “portanto, admitir que nos Lusitanos foi celtisada uma população ibero-africana mais antiga pela emigração celta, principalmente quanto à língua”. Esta hesitação de Schulten em relação à origem celta dos Lusitanos ou a sua origem ibérica é uma questão que tem atravessado praticamente todos os tempos e historiadores e ainda hoje se mantém em aberto. O Viriato de Schulten tem sido a obra mais citada desde a sua publicação até aos anos noventa do século passado e ainda hoje continua a ser um clássico para o estudo desse período.

O Estado Novo fez da questão da raça uma ideia fundamental do orgulho nacional e por isso era importante manter e propagandear o mais possível esta ideia da relação umbilical com os Lusitanos. A História ensinada nas escolas primárias, Liceus e Escolas Industriais transmitia a ideia da formação da Pátria a partir da Lusitânia, enaltecia-se a bravura dos Lusitanos e apresentava-se a dedicação de Viriato à Pátria como um exemplo a seguir.

Em 1936, o corpo expedicionário português de voluntários enviado para combater na Guerra Civil Espanhola, ao lado das tropas de Franco, chamava-se Os Viriatos.

Damião Peres ao publicar o seu livro “Como Nasceu Portugal”, em 1944 foi demolidor desta teoria da ligação umbilical dos Portugueses com os Lusitanos e da ideia de ir buscar as raízes da Nação tão longe e, ao sustentar que a formação de Portugal se devia fundamentalmente à vontade política de D. Afonso Henriques, provocou a ira de Mendes Correia e do regime político. Para Damião Peres, Portugal era uma realidade medieval que nasceu fruto das circunstâncias em que a vontade do conde D. Henrique e D. Teresa e, depois do filho de ambos, D. Afonso Henriques, foram determinantes.»

João Luís Inês Vaz («Lusitanos – No Tempo de Viriato»).

 

«A situação geográfica da Espanha destinava-se a ser o campo de batalha onde viriam a encontrar-se as ondas de povos que do alto da Europa descessem em busca de novas presas, e as vagas que da África namorassem esse parayso de Dios que lhes ficava fronteiro.

Quaisquer que tivessem sido os embates de povos, anteriores aos de que a história nos dá notícia, é facto que na Espanha se encontram romanos e cartagineses, vindos, uns de além dos Pirenéus, outros da Mauritânia, continuar na Península as guerras púnicas. É também facto que, depois e da mesma forma, se encontram os visigodos e os árabes. Por duas vezes a Espanha representou para a Europa o papel que no Oriente mais tarde coube à Hungria: foi a atalaia avançada e como que o baluarte da sociedade europeia contra as invasões sarracenas.

(...) A geografia diz-nos, porém, que uma região geognosticamente constituída por formas tão diversas, dividida em bacias hidrográficas separadas entre si por cordilheiras elevadas e espessas, e cortadas de rios inavegáveis na maior parte do seu curso, favorece a formação de individualidades nacionais distintas; por isso que impedindo as comunicações fáceis entre as diferentes tribos localizadas em cada uma das zonas embaraça e demora a fusão ou penetração de umas pelas outras.



Nada se parece menos com o castelhano grave e indolente, observa um moderno historiador da Espanha, do que o andaluz fanfarrão e leviano.

Sob as mesmas condições físicas de posição e clima, vemos o catalão industrioso que esquadrinha todos os cantos do mundo em busca de fortuna, e o valenciano cabisbaixo e sedentário que não sai da sua viçosa huerta, desse torrão que seus avós já cultivaram. Vem depois o galego, paciente e laborioso, a oferecer por toda a parte o trabalho dos seus braços e os seus ombros possantes para a carga. Ao lado do aragonês, nobre e altivo nos seus farrapos, encontramos o biscainho, vivaz, sacudido, tão vaidoso dos seus fueros, quanto o de Aragão o é da sua antiga e atrevida advertência aos reis, si non, non! – E nós próprios portugueses, não somos tão diversos, os do Minho, praticamente laboriosos mas obtusos, cheios de teima e prosápias, que formámos sobre um chão de granito um prado, como uma Irlanda, a formigar de gente – dos do Sul, bizarros como castelhanos? dos do extremo Algarve, verdadeiros andaluzes.

Se a geografia é a nosso ver uma causa das graves diferenças que, segundo as regiões, distinguiram os espanhóis na história e os distinguem ainda hoje, mantendo visíveis caracteres etnológicos nem sempre fáceis de determinar nas suas afinidades, essa causa não basta para que, acima de tais diferenças, a história nos não mostre a existência de um pensamento ou génio peninsular, carácter fundamental da raça, principalmente afirmado, de um lado no entusiasmo religioso que pomos nas coisas da vida, do outro no heroísmo pessoal com que as realizamos. Daqui provém o facto de uma civilização particular, original e nobre.»

Oliveira Martins («História da Civilização Ibérica»).

 

«Oliveira Martins não é um historiador-filósofo, quer no sentido mais crítico e judicioso, quer no sentido mais sintético e integrativo do termo. A sua concepção veemente da história da pátria não se dirige de maneira singular ao espírito, mas dirige-se às almas: dirige-se ao subtil liame entre querer e ver, configurando-se na relação entre sentir e saber que vive e pervive na tão desdenhada imaginação evocativa ou vidente.

É um historiador de raiz tradicional realizando-se no seio da cultura adversa: historiador peninsular, ibérico, profundamente ligado, e por vínculo anterior a todo o estudo, à tradição activa e pragmática da pátria. Di-lo-íeis sob certo aspecto um espartano que, como podeis discernir neste mesmo livro sobre o Helenismo e a Civilização Cristã, louva e admira as maravilhas da poesia e da filosofia de Atenas, permanecendo afinal fiel ao ideário simples de quantos por vários modos recusam a grande aventura do espírito. No entanto, ele sabe, e o disse nas obras às quais primeiro lembrámos, que Portugal, vivendo, segundo a secreta vocação da sua alma, a grande aventura do mundo, ficou desde Alcácer Quibir ressentido, e não completou a aventura. Será, seria esta a aventura do espírito

José Marinho («Estudos sobre o Pensamento Português Contemporâneo»).

 

«Não é de hoje, aliás, a refutação da filosofia da história em nome de uma pretensão científica. Numa carta escrita a Oliveira Martins em 1872, Alexandre Herculano chamava-lhe “género de romance impertinente”. No seu lugar, antevia a “fixação das leis gerais que, a posteriori, resultarem da identidade e universalidade dos factos políticos e sociais em identidade universal de circunstâncias, leis cujo conhecimento tornarão a história uma verdadeira ciência”. E depois de mais algumas considerações secundárias, Herculano concluía: "Fora disto, filosofias históricas, pura conversa!" [De Carta a Oliveira Martins (25-12-1872), cit. in Alexandre Herculano, biografia de António Borges Coelho, Ed. Presença, Lisboa, 1965.

Vale a pena citar este outro trecho da mesma carta, bem reveladora da posição incompreensiva de Herculano perante a filosofia da história: “Generalizações de factos que não se conhecem ou se conhecem imperfeitamente, fazem rir, e rir ainda mais quando se tomam por factos erros por vezes bem grosseiros. Quando as monografias das nações do globo estiverem feitas, o que há-de ser daqui a alguns centos de anos, então é possível a filosofia da história. Até lá, romance ou comédia.” Herculano “profetiza” afinal o que viria a ser muito mais tarde a recolha exaustiva de Toynbee, comparando 22 civilizações...].


Opunha-se Herculano, arrebatada e sarcasticamente, ao que considerava a influência nefasta da filosofia da história sobre o jovem Oliveira Martins. Mas pedia o impossível – a fixação de leis gerais, base de uma história científica – para minorizar a intuição de um dinamismo histórico, que Oliveira Martins, inspirado pelas teorias dos filósofos românticos alemães, traduzia em termos sociais. Evidentemente, a sociologia de Oliveira Martins foi contestadíssima, quer por António Sérgio, quer, mais recentemente, por António José Saraiva e Alberto Ferreira – e foi tanto mais contestada quanto pretendia fazer doutrina numa esfera que se afirmava ser totalmente racionalizável (Sérgio) e científica (A. J. Saraiva, A. Ferreira).

Oliveira Martins descobrira, no entanto, ao observar o passado, que o elemento social não era uma presença totalitária em todas as manifestações humanas, tendo de admitir, por conseguinte, uma margem superior ou menor de indeterminação, de liberdade, de criacionismo gratuito da parte de certos homens superiores ou de certas nações ou complexos civilizacionais, movidos por vagas de fundo míticas, religiosas ou psicológicas (daí a sua valoração, mais tarde considerada indevida pelos cientistas pragmáticos ou pelos cultores de uma Razão discursiva e imanente toda-poderosa – Eduardo Lourenço falaria, a propósito, do novo farisaísmo da Razão –, daí a sua valorização, dizíamos, de figuras consideradas arquetipais como as de Nuno Álvares Pereira ou de D. João II e de movimentos colectivos nacionais, como o sebastianismo). E descobrira, por outro lado, que fundar uma historiografia unicamente nos documentos paleográficos não passava de ilusão: os documentos omitem, os documentos mentem, os documentos representam, a par de um testemunho até certo ponto irrecusável, uma falsificação da realidade, por parte de observadores mal apetrechados, geralmente não independentes na sua transposição testemunhal, exprimindo fragmentária e aleatoriamente uma verdade estilhaçada, lacunar e descontínua que o historiador se esforça por tornar coerente e lógica. Mas como? Deixemos para os ingénuos ou para os mal-intencionados a pretensão de afirmarem que conseguiram a transposição científica de toda a zona enigmática para a verdade, é o ponto de vista de Oliveira Martins. Ele diz: “É quimérico, é absurdo até, imaginar construir cientificamente a história” e, aindam “ciência e história são termos que se excluem”. Só através da imaginação e da faculdade intuitiva, aliadas à razão conceptiva e à investigação, poderá o historiador reconstruir, “na sua totalidade indefinida ou caótica a realidade das coisas”. “A história não é, pois, uma ciência, mas uma arte” Uma arte narrativa, uma arte literária. A filosofia da história a pode interpretar, porque a filosofia convive com a liberdade; não a ciência da história, porque a ciência aponta à necessidade e à lei.»

António Quadros («Introdução à Filosofia da História»).

 


 

OS LUSITANOS


«O povo desde o qual os historiadores têm tecido a genealogia portuguesa está achado: é o dos lusitanos. Na opinião desses escritores, através de todas as fases políticas e sociais da Espanha durante mais de três mil anos, aquela raça de celtas soube sempre, como Anteu, erguer-se viva e forte; reproduzir-se, imortal na sua essência; e nós os portugueses do século XIX temos a honra de ser os seus legítimos herdeiros e representantes.»

Com esta ironia encoberta mas grave, fustigava Alexandre Herculano[1] os seus predecessores, historiógrafos nacionais, e, segurando com valor a férula magistral, castigava o povo culpado de acreditar numa tradição que tem para o erudito, além de outros defeitos, o de ser recente. Só desde o fim do XV século o nome de lusitani começa a substituir o de portucalenses, nos livros; mas essa inovação, perpetuando-se entre os eruditos, torna-se por fim uma crença nacional e quase popular.

Que valor merece a inovação? Nenhum, e por vários motivos: «Tudo falta: a conveniência de limites territoriais, a identidade da raça, a filiação da língua, para estabelecermos uma transição natural entre os povos bárbaros e nós.» Ora estes argumentos, decisivos para o sábio historiador, não nos parece a nós – perdoe-se-nos o atrevimento – que o sejam. Outro tanto sucede com todas as nações ou quase todas, desde que procuramos estabelecer a árvore genealógica, indo aos arcanos de um passado ignoto reconhecer a fisionomia dos mortos de muitos séculos e determinar de entre eles os primeiros avós de uma nação. Seria absurdo exigir conveniência de limites territoriais, ou por outra, identidade de fronteiras, entre a localização de uma tribo primitiva, e a de uma nação moderna: nem aos povos que hoje mais indiscutivelmente representam, pura, uma raça, poderia fazer-se tal exigência. Se há ou não identidade de raça, é exactamente o problema que deveria agitar-se; e, sem isso, negá-lo é proceder dogmática e não cientificamente.

Alega-se que são indecisas as noções de Estrabão com respeito às fronteiras dos lusitanos; diz-se mais que não coincidem com as que Augusto deu à província da Lusitânia[2]. O geógrafo antigo, ora parece incluir os calaicos nos lusitanos, estendendo as fronteiras destes últimos até à costa do norte da Península, ora os separa, dando-lhes o Douro como divisória. A demarcação de Augusto adoptou esta segunda versão. As fronteiras orientais estendiam-se, quer para o geógrafo, quer, depois, para a administração romana, muito além da raia portuguesa, incluindo Salamanca, e subindo quase até próximo de Toledo. Daí para o sul, e depois para o nascente, seguindo o curso angular do Guadiana, os lusitanos de Estrabão e a Lusitânia de Augusto tinham como limite este rio, quase desde as suas fontes, e até à sua foz, na costa do nosso Algarve.


Mapa da Lusitânia sob o domínio romano, indicando rios e povoações e a rede conjectural de vias de comunicação, segundo Hübner.

Se ligássemos, pois, um valor positivo às resenhas dos antigos geógrafos, e um alcance social-histórico à identidade das fronteiras primitivas e actuais, parece-nos que poucas nações poderiam com melhores motivos achar na etnologia dos antigos o fundamento da sua vida moderna. Alargue-se a fronteira do norte ao Minho (conquista da Lusitânia sobre a Galécia), retraia-se a fronteira de leste ao Douro (conquista da Tarraconense sobre a Lusitânia) e teremos feito coincidir os antigos com os actuais limites. Qual é, dos primitivos, o povo que no decurso da sua vida histórica deixou de conquistar e de ser conquistado? Qual é o que não ganhou ou não perdeu, de um lado ou de outro, sobre ou para os vizinhos?

Se a maneira porque, a partir do século XV ou XVI, os historiógrafos nacionais filiam o Portugal moderno na antiga Lusitânia justifica as fundadas ironias do nosso grande historiador, não nos parece que o processo por ele seguido para negar a doutrina seja conveniente, nem até verdadeira a opinião de que entre portugueses e lusitanos nada haja de comum. Quando hoje vimos renascer de um modo erudito, e daí afirmar-se no espírito popular, a tradição nacional germânica, a italiana e até a romana, que valor tem o facto da tradição lusitana ter estado obliterada por séculos, para só ressurgir numa época relativamente próxima e de um modo erudito? Se os portugueses da Idade-Média não sabiam de seus avós lusitanos, acaso saberiam de seus avós ítalos, romanos ou teutónicos os piemonteses, os valáquios ou os prussianos até o XVIII século? Acaso, também, ser-lhes-á mais possível do que a nós estabelecer uma transição natural e uma história ininterrupta desde as primeiras idades até às modernas? Não, decerto. Se a erudição pudesse demonstrar a unidade da raça ibérica, então os lusitanos baixariam à condição de uma variedade sem autonomia: facto é, porém, que pouco ou nada sabemos, nem de iberos em geral, nem de lusitanos em particular, e por isso as fábulas dos velhos antiquários não merecem a atenção moderna. Não haverá, porém, acaso outro caminho para atacar este problema? À falta de monumentos escritos, nada poderá valer-nos? Entre a fábula ingénua dos antiquários e as exigências secas e formais dos eruditos modernos, não estará outra via? Afigura-se-nos que sim[3].

Todos reconhecem hoje a indestrutível tenacidade das populações primitivas. Raízes profundas que nenhuma charrua destrói apesar de revolta a leiva pelo ferro das conquistas, depois de esmagados as folhas e troncos pelo tropear dos cavalos de guerra, depois de queimados e reduzidos a cinzas pelos incêndios das invasões: embora se lancem novas sementes à terra e nasçam vegetações novas, essas raízes profundas tornam a reverdecer, crescem, dominam um chão que é seu, e afinal convertem ou esmagam, transformam ou exterminam, de um modo obscuro, lento, mas invencível, as plantas intrusas.

A permanência dos caracteres primitivos dos povos, facto hoje indiscutível, permite fazer – consinta-se-nos a expressão – a história ao inverso: julgar de hoje para ontem, inferir do actual para o passado. A questão da raça lusitana apresenta-se-nos pois nestes termos: há uma originalidade colectiva no povo português, em frente dos demais povos da Península. Cremos que a há circunscrita porém a traços secundários. Cremos que as diversas populações da Espanha, individualizadas sim, formam, contudo, no seu conjunto, um corpo etnológico dotado de carateres gerais comuns a todas. A unidade da história peninsular, apesar do dualismo político dos tempos modernos, é a prova mais patente desta opinião[4].


Povos da Península

Este dualismo, porém, leva-nos também a crer que entre as diversas tribos ibéricas, a lusitana era, senão a mais, uma das mais individualmente caracterizadas. Não esquecemos, decerto, a influência posterior dos sucessos da história particular portuguesa; mas eles, por si só, não bastam para explicar o feitio diverso com que coisas idênticas se representam no nosso espírito nacional. Há no génio português o que quer que é de vago e fugitivo, que contrasta com a terminante afirmativa do castelhano; há no heroísmo lusitano uma nobreza que difere da fúria dos nossos vizinhos; há nas nossas letras e no nosso pensamento uma nota profunda ou sentimental, irónica ou meiga, que em vão se buscaria na história da civilização castelhana, violenta sem profundidade, apaixonada mas sem entranhas, capaz de invectivas mas alheia a toda a ironia, amante sem meiguice, magnânima sem caridade, mais que humana muitas vezes, outra abaixo da craveira do homem, a entestar com as feras. Trágica e ardente sempre, a história espanhola difere da portuguesa, que é mais propriamente épica: e as diferenças da história traduzem as dissemelhanças do carácter.

Poderemos regressar ao passado, e perguntar-lhe a causa primária deste fenómeno? Decerto não. Ou sombras impenetráveis o encobrem, ou a escassez do nosso saber nos não deixou ainda desvendá-lo. Como hipótese – e do nosso atrevimento será escusa a nossa modéstia – somos levados a crer que a individualidade do carácter dos lusitanos (quer neles incluamos os calaicos, quer não) provém de uma dose maior de sangue céltico ou celta (questionou-se outrora sobre isto) que gira em nossas veias, de mistura com o nosso sangue ibérico. Os nomes próprios de lugares, os nomes de pessoas e divindades, tirados das inscrições latinas da Lusitânia e da Tarraconense, que constituem o nosso Portugal, provam a preponderância de um elemento céltico. As vagas indicações dos antigos falam-nos nos celtas das margens do Guadiana, e dão-no-los na costa ocidental da Península. Vale porém mais do que isso a analogia evidente entre as manifestações particulares dos lusitanos e dos galegos, e aquela fisionomia que os estudos eruditos sobre os celtas da França e da Irlanda têm determinado a estes últimos[5]. Tentámos há pouco esboçar a nossa fisionomia diferencial: escusado é tornar agora ao assunto.

Se a ideia de uma filiação dos lusitanos foi expressa de um modo ridículo pelos antiquários clássicos, a ideia de uma filiação céltica ou celta teve já a mesma sorte quando, quase em nossos dias, houve quem pretendesse filiar directamente o português na língua dos bardos. Paz do esquecimento a todas as quimeras!

(In Oliveira Martins, História de Portugal, Guimarães Editores, Lisboa, 2007, pp. 27-30).






[1] V. o seu retrato em Portugal Contemporâneo, III, O. C., pp. 155 a 164.

[2] V. História da Civilização Ibérica, O. C., pp. 47 e 48.

[3] V. acerca dos lusitanos As Raças Humanas, O. C., I, pp. 268 a 284, e II, pp. 209 nota.

[4] V. História da Civilização Ibérica, O. C., pp. 23 a 322.

[5] V. As Raças Humanas, O. C., II, v. p. 7.

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