Escrito por Oliveira Martins
«Até hoje todas as sucessivas tentativas para descobrir a nossa raça têm falhado. Latinos, celtas, lusitanos e afinal moçárabes têm passado: ficam os portugueses cuja raça, se tal nome convém empregar, foi formada por sete séculos de história.»
Oliveira Martins («História de Portugal»).
«A
tradição fez sempre coincidir a fronteira oriental da Lusitânia com a actual
linha de fronteira entre Portugal e Espanha e portanto, a Lusitânia era
Portugal e os Portugueses, os descendentes dos Lusitanos.
Não
sabemos o que pensaram dos Lusitanos os povos que se seguiram aos Romanos na
ocupação do território que antes tinha sido deles, mas a recordação manteve-se
pois autores tardios nos falam dos Lusitanos e são mesmo preciosas fontes para
o seu estudo.
Na
Idade Média, a “Crónica Geral de Espanha”, de 1344 apresenta Viriato como um herói
sem pátria definida, tanto podendo ser português como espanhol, mas resistente
à ocupação ibérica e compara-o a Hércules, o mítico herói grego.
A
Lusitânia é utilizada muitas vezes pelos cronistas e pelos reis portugueses
como uma forma de justificar a independência de Portugal e os primeiros reis comparados a Viriato.
No
Renascimento, com a redescoberta dos clássicos, os humanistas vão fazer a
identificação dos heróis antigos com os vestígios e lugares de Portugal e
curiosamente, um dos primeiros a fazer a identificação da Lusitânia com
Portugal foi Gil Vicente em 1532. No seu Auto
da Lusitânia, representado perante D. João III, por ocasião do nascimento
do Príncipe D. Manuel, em 1532, os dois personagens principais chamam-se
“Lusitânia” e “Portugal”. A “Lusitânia” é uma bela filha do Sol e de Lisibeia (Lisboa), de uma beleza
estonteante e pela qual se apaixona um cavaleiro grego chamado “Portugal”, com
quem vem a casar. Temos aqui a identificação perfeita de Portugal com a
Lusitânia que, por esta época, já se começava a fazer cada vez com mais força.
Outros personagens que aparecem neste auto são os demónios Belzebu e Dinato que
são testemunhas do casamento e assistem a um diálogo curioso entre outros dois
intervenientes que são “Todo o Mundo” e “Ninguém”. Todo o Mundo representa a
arrogância, a prepotência, a vaidade, a cobiça e o amor às coisas materiais e
Ninguém representa a pobreza, o desprendimento das coisas materiais,
identificando-se com a maioria das pessoas e com uma pequena minoria, ou seja
Todo o Mundo e Ninguém, respectivamente. Atendendo ao contexto de casamento em
que estas personagens aparecem, de Portugal com a Lusitânia, representarão os
principais intervenientes do casamento de Viriato, ou seja, o próprio Viriato,
aqui representado por Ninguém e Astolpas, representado por Todo o Mundo.
É,
no entanto, na obra Antiguidades da Lusitânia, de André de Resende que se marca
o início da Arqueologia em Portugal e da identificação dos Portugueses com os
Lusitanos e de Portugal com a Lusitânia. André de Resende foi o primeiro a
fazer dos Portugueses os verdadeiros herdeiros dos Lusitanos, em linha directa
e sequencial, apesar de reconhecer a falta de coincidência entre Portugal e o
território lusitano. A Resende se devem ainda as inovações do termo lusíada e
a duplicação do Monte Hermínio, contrapondo um Hermínio Maior a um Hermínio
Menor, que seriam a Serra da Estrela e a Serra de S. Mamede, respectivamente.
Começa-se aqui a forjar a identidade nacional lusitana que não mais iria
abandonar a nossa historiografia.
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| Serra da Estrela |
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| Escultura de Nossa Senhora da Boa Estrela esculpida na rocha granítica. |
| Poço do Inferno |
Luís de Camões utiliza para a sua principal obra o neologismo introduzido por
Resende, e dá-lhe o sugestivo título de Os
Lusíadas, fazendo a plena identificação dos Portugueses com os Lusitanos e
os seus chefes, nomeadamente Viriato. Acerca deste, escreve Luís de Camões, no
Canto VIII, estrofes 5, 6 e 7.
(...)
Antes, no Canto III, estrofes 22 e 23 já havia identificado Portugal com a
Lusitânia...
Camões
faze-se eco da tradição que corria sobre a vida de Viriato, apresentando-o como
o esforçado pastor que se converteu pelas suas qualidades e pelo seu esforço,
em condutor e pastor de gentes.
Frei
Bernardo de Brito escreve a sua bem conhecida Monarquia Lusitana, tentando justificar a ideia da Pátria a partir
da antiguidade e das personagens conhecidas de então. Não se deve esquecer que
o primeiro volume é publicado em 1597, em plena ocupação espanhola e em que era
importante e necessário alimentar a Alma portuguesa na sua resistência ao
invasor.
Portugueses
e Lusitanos eram um só povo e confundiam-se nas suas obras. Era o tempo da
identificação de tudo com os clássicos e todos os actos da vida se pautavam pela
imitação dos Gregos ou Romanos. Esta identificação tinha apenas como objectivo
glorificar os Portugueses pois que, tal como os Lusitanos tinham sido os heróis
da antiguidade e o povo que mais se opôs aos Romanos, assim deviam ser agora os
Portugueses, seus verdadeiros herdeiros, que deveriam seguir o exemplo e
libertar-se do jugo espanhol.
Nos
finais do século XVII, publica-se o Viriato
Trágico, poema heróico de Brás Garcia de Mascarenhas, o mais notável
poema nacionalista escrito na altura do domínio espanhol em Portugal. Viriato é
o herói deste poema épico, ressaltando as suas qualidades de estratega militar
e de condutor de povos que, inclusive, recusa a luta quanto sente que a derrota
é certa, pois
Não
é melhor, antes que o mal suceda,
Não
ir à luta que leva à queda?
Lute
quem sabe, quem não sabe aprenda.
Logo
depois diz que:
Não
lhe negue a nação, porque merece
Ser
collocado em seu eterno archivo
Todo
foi portuguez no esforço e manha,
Sem
ter mistura de nação estranha (...)
Nasceu
naquella serra que chamada
Hermínia
foi, hoje se chama Estrella.
Brás
Garcia de Mascarenhas, como Bernardo de Brito, ao contrário de André de
Resende, eram beirões de nascença, pois Mascarenhas nasceu em Avô, na Serra da
Lousã e Bernardo de Brito em Almeida, dá a Viriato a nacionalidade portuguesa e
como local de nascimento a Serra da Estrela.
(...)
Brás Garcia de Mascarenhas vai mesmo mais longe e atribui a Viriato a
construção da Cava de Viriato em Viseu... É mais uma identificação da Beira com
Viriato e os Portugueses legitimamente considerados herdeiros dos Lusitanos
enquanto os Espanhóis representavam os Romanos nesta verdadeira novela
peninsular.
Esta
ideia da identificação de Viriato com a Beira vai fazer com que se faça a sua
reivindicação regional, como aconteceu com Viseu por estes séculos XVII e
XVIII.
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| Cava de Viriato |
Sendo
os Portugueses descendentes directos dos Lusitanos, o território Português
actual também era, em grande parte, o território lusitano. Viriato era
originário da Serra da Estrela, o lendário Mons
Herminius, as lutas de Viriato tinham-se desenrolado nas faldas da Serra e
nas planícies ribatejanas e alentejanas, Évora tinha sido transformada por Sertório
na Roma lusitana com uma administração à maneira romana. É a época da formação
dos grandes mitos da nossa história com a ligação dos nomes antigos às
povoações contemporâneas e às figuras da antiguidade entretanto descobertas ou
inventadas.
Esta
ideia, da identificação dos Portugueses com os Lusitanos, “estava fortemente
radicada entre os escritores, que a haviam recebido sem exame, lisonjeados com
o lustre que criam vinha à sua pátria deste parentesco”, como escreveu
Herculano na sua História de Portugal. Estas palavras de Herculano soam,
claramente, a um olhar crítico sobre essa identificação pois, nos séculos
seguintes ao Renascimento, esta ideia manteve-se fortemente arreigada entre os
intelectuais e deles passou ao povo que a adoptou como sua.
O
século XIX é o século do aparecimento da crítica histórica e da ciência
arqueológica, começando o arqueólogo a distanciar-se cada vez mais do
antiquário imaginativo. As reformulações começam a fazer-se sentir e muitos dos
mitos que se tinham criado na História de Portugal não resistem e Herculano é
um dos espíritos mais lúcidos a esse respeito. Apesar das revisões críticas que
são feitas, esta teoria que identificava os Portugueses com os Lusitanos vai,
no entanto, resistir às análises mais objectivas do século e ainda hoje muitos
continuam a afirmar essa identificação.
O
poeta e nacionalista Almeida Garrett, em 1824, em plena Guerra Civil, na sua
obra Flores e Frutos, inclui um
grande poema heróico a Viriato que intitula “A Caverna de Viriato”. Nela faz o
panegírico de Viriato e compara os Lusitanos, Lusos lhes chama, com os
Portugueses do seu tempo que se tornaram traidores uns dos outros e que vão
destruir a Pátria.
(...)
Antes, Almeida Garrett tinha-se já referido aos Montes Hermínios como o local de
origem de Viriato, imbuído do “espírito da serra” onde se situava a sua
caverna, e o lugar de onde ele vai descer para atormentar o mundo.
Os finais desse século XIX e os inícios do século XX são marcados por personalidades arqueológicas como Martins Sarmento e Leite de Vasconcelos e pela polémica questão da União Ibérica.
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| J. Leite de Vasconcelos |
Francisco
Martins Sarmento torna-se no grande estudioso dos castros do Norte e
considerava os Lusitanos de origem lígure, originários portanto do Norte da
Itália, e diz que a palavra Lusitani,
provirá do nome que um ramo lígure possuía na língua original, Ligusitani. Afirma assim uma origem
exterior à Península Ibérica, proveniente, portanto, da zona dos Alpes, não lhe
reconhecendo qualquer origem céltica ou autóctone.
A
influência céltica na Península Ibérica ter-se-ia ficado pelo noroeste e pelas
terras hoje espanholas das nascentes do rio Douro e do rio Ebro.
Leite
de Vasconcelos, pelo contrário, reagiu contra a sugestão da evolução
linguística proposta por Martins Sarmento, mas concorda e tenta provar a
ascendência lusitana dos Portugueses, “em alguns ramos da Ethnologia”. É o
primeiro a tentar uma sistematização dos povos lusitanos, estudando as
divindades do mundo que ele considerava lusitano e que verteu na clássica obra
“Religiões da Lusitânia”. A Lusitânia, objecto do seu estudo, é essencialmente
a província romana que ultrapassa em muito a Lusitânia que atrás definimos e
para evitar confusões ele faz logo a advertência de que “começo naturalmente
por explicar qual a acepção que lhe dou nesta obra”. Podemos dizer que toda a
investigação de Leite de Vasconcelos teve como objectivo fundamental provar que
havia uma relação directa entre Portugueses e Lusitanos, apesar da falta de
coincidência entre os territórios, pelo menos numa grande área. Tentou ainda ir
mais longe e provar que no território português vinham existindo, desde a
Pré-História, culturas próprias que moldaram o homem lusitano e,
consequentemente, o homem português.
Nos
inícios do século XX, Mendes Correia foi uma das figuras mais acérrimas
defensoras da ligação entre Portugueses e Lusitanos, contestando fortemente
Alexandre Herculano. Atravessando toda a primeira metade do século XX, veio a
ser uma das figuras de que o regime do Estado Novo se serviu para tornar essa
teoria numa afirmação científica e na afirmação de uma raça portuguesa distinta
das outras conhecidas, chegando mesmo a considerar um tipo de hominídeo próprio
do território português, o “selvagem homo
taganus” que teria vivido nas margens da Ribeira de Muge. Ora, o que hoje
se sabe desta população dos finais do Neolítico/Mesolítico é que se alimentavam
à base de moluscos de que nos deixaram imensos vestígios, os chamados
concheiros e praticavam o enterramento colocando os corpos em posição fetal. As
análises antropológicas nada revelam de diferente em relação a outros homens do
mesmo período neo/mesolítico.
Teófilo
Braga, intelectual e político, primeiro Presidente do Governo Provisório após a
instauração da República Portuguesa escreveu, em 1904, um romance intitulado Viriatho em que faz a descrição do
Lusitano combativo e atribuindo-lhe a construção da Cava de Viseu onde imagina
que decorreram os seus funerais. Era português, sem dúvida e tinha sido um dos
pais da Pátria portuguesa.
O
alemão Adolfo Schulten escreveu, em 1926, uma bibliografia de Viriato e uma
obra sobre a Hispania e aí refere que
o nome Lusitanos provém do celta, considerando-os por isso como celtas. O nome
tem a raiz lus- que entra na composição de outros nomes da Península. Apesar
dos elementos linguísticos apontarem para uma origem celta dos Lusitanos,
outros levam-no a concluir por uma origem ibérica. Conclui, pois, Schulten que
se deve “portanto, admitir que nos Lusitanos foi celtisada uma população ibero-africana mais antiga pela emigração
celta, principalmente quanto à língua”. Esta hesitação de Schulten em relação à
origem celta dos Lusitanos ou a sua origem ibérica é uma questão que tem
atravessado praticamente todos os tempos e historiadores e ainda hoje se mantém
em aberto. O Viriato de Schulten tem
sido a obra mais citada desde a sua publicação até aos anos noventa do
século passado e ainda hoje continua a ser um clássico para o estudo desse
período.
O
Estado Novo fez da questão da raça uma ideia fundamental do orgulho nacional e
por isso era importante manter e propagandear o mais possível esta ideia da
relação umbilical com os Lusitanos. A História ensinada nas escolas primárias,
Liceus e Escolas Industriais transmitia a ideia da formação da Pátria a partir
da Lusitânia, enaltecia-se a bravura dos Lusitanos e apresentava-se a dedicação
de Viriato à Pátria como um exemplo a seguir.
Em
1936, o corpo expedicionário português de voluntários enviado para combater na
Guerra Civil Espanhola, ao lado das tropas de Franco, chamava-se Os Viriatos.
Damião Peres ao publicar o seu livro “Como Nasceu Portugal”, em 1944 foi demolidor desta teoria da ligação umbilical dos Portugueses com os Lusitanos e da ideia de ir buscar as raízes da Nação tão longe e, ao sustentar que a formação de Portugal se devia fundamentalmente à vontade política de D. Afonso Henriques, provocou a ira de Mendes Correia e do regime político. Para Damião Peres, Portugal era uma realidade medieval que nasceu fruto das circunstâncias em que a vontade do conde D. Henrique e D. Teresa e, depois do filho de ambos, D. Afonso Henriques, foram determinantes.»
João Luís Inês Vaz («Lusitanos – No Tempo de Viriato»).
«A
situação geográfica da Espanha destinava-se a ser o campo de batalha onde
viriam a encontrar-se as ondas de povos que do alto da Europa descessem em
busca de novas presas, e as vagas que da África namorassem esse parayso de Dios que lhes ficava
fronteiro.
Quaisquer
que tivessem sido os embates de povos, anteriores aos de que a história nos dá
notícia, é facto que na Espanha se encontram romanos e cartagineses, vindos,
uns de além dos Pirenéus, outros da Mauritânia, continuar na Península as
guerras púnicas. É também facto que, depois e da mesma forma, se encontram os
visigodos e os árabes. Por duas vezes a Espanha representou para a Europa o
papel que no Oriente mais tarde coube à Hungria: foi a atalaia avançada e como
que o baluarte da sociedade europeia contra as invasões sarracenas.
(...) A geografia diz-nos, porém, que uma região geognosticamente constituída por formas tão diversas, dividida em bacias hidrográficas separadas entre si por cordilheiras elevadas e espessas, e cortadas de rios inavegáveis na maior parte do seu curso, favorece a formação de individualidades nacionais distintas; por isso que impedindo as comunicações fáceis entre as diferentes tribos localizadas em cada uma das zonas embaraça e demora a fusão ou penetração de umas pelas outras.
Nada
se parece menos com o castelhano grave e indolente, observa um moderno
historiador da Espanha, do que o andaluz fanfarrão e leviano.
Sob
as mesmas condições físicas de posição e clima, vemos o catalão industrioso que
esquadrinha todos os cantos do mundo em busca de fortuna, e o valenciano
cabisbaixo e sedentário que não sai da sua viçosa huerta, desse torrão que seus
avós já cultivaram. Vem depois o galego, paciente e laborioso, a oferecer por
toda a parte o trabalho dos seus braços e os seus ombros possantes para a
carga. Ao lado do aragonês, nobre e altivo nos seus farrapos, encontramos o
biscainho, vivaz, sacudido, tão vaidoso dos seus fueros, quanto o de Aragão o é da sua antiga e atrevida
advertência aos reis, si non, non! –
E nós próprios portugueses, não somos tão diversos, os do Minho, praticamente
laboriosos mas obtusos, cheios de teima e prosápias, que formámos sobre um chão
de granito um prado, como uma Irlanda, a formigar de gente – dos do Sul,
bizarros como castelhanos? dos do extremo Algarve, verdadeiros andaluzes.
Se a geografia é a nosso ver uma causa das graves diferenças que, segundo as regiões, distinguiram os espanhóis na história e os distinguem ainda hoje, mantendo visíveis caracteres etnológicos nem sempre fáceis de determinar nas suas afinidades, essa causa não basta para que, acima de tais diferenças, a história nos não mostre a existência de um pensamento ou génio peninsular, carácter fundamental da raça, principalmente afirmado, de um lado no entusiasmo religioso que pomos nas coisas da vida, do outro no heroísmo pessoal com que as realizamos. Daqui provém o facto de uma civilização particular, original e nobre.»
Oliveira
Martins («História da Civilização Ibérica»).
«Oliveira
Martins não é um historiador-filósofo, quer no sentido mais crítico e judicioso,
quer no sentido mais sintético e integrativo do termo. A sua concepção veemente
da história da pátria não se dirige de maneira singular ao espírito, mas
dirige-se às almas: dirige-se ao subtil liame entre querer e ver,
configurando-se na relação entre sentir e saber que vive e pervive na tão desdenhada
imaginação evocativa ou vidente.
É um historiador de raiz tradicional realizando-se no seio da cultura adversa: historiador peninsular, ibérico, profundamente ligado, e por vínculo anterior a todo o estudo, à tradição activa e pragmática da pátria. Di-lo-íeis sob certo aspecto um espartano que, como podeis discernir neste mesmo livro sobre o Helenismo e a Civilização Cristã, louva e admira as maravilhas da poesia e da filosofia de Atenas, permanecendo afinal fiel ao ideário simples de quantos por vários modos recusam a grande aventura do espírito. No entanto, ele sabe, e o disse nas obras às quais primeiro lembrámos, que Portugal, vivendo, segundo a secreta vocação da sua alma, a grande aventura do mundo, ficou desde Alcácer Quibir ressentido, e não completou a aventura. Será, seria esta a aventura do espírito.»
José Marinho («Estudos sobre o Pensamento Português Contemporâneo»).
«Não
é de hoje, aliás, a refutação da filosofia da história em nome de uma pretensão
científica. Numa carta escrita a Oliveira Martins em 1872, Alexandre Herculano
chamava-lhe “género de romance impertinente”. No seu lugar, antevia a “fixação
das leis gerais que, a posteriori, resultarem da identidade e universalidade
dos factos políticos e sociais em identidade universal de circunstâncias, leis
cujo conhecimento tornarão a história uma verdadeira ciência”. E depois de mais
algumas considerações secundárias, Herculano concluía: "Fora disto, filosofias
históricas, pura conversa!" [De Carta a Oliveira Martins (25-12-1872), cit. in
Alexandre Herculano, biografia de António
Borges Coelho, Ed. Presença, Lisboa, 1965.
Vale
a pena citar este outro trecho da mesma carta, bem reveladora da posição
incompreensiva de Herculano perante a filosofia da história: “Generalizações de
factos que não se conhecem ou se conhecem imperfeitamente, fazem rir, e rir
ainda mais quando se tomam por factos erros por vezes bem grosseiros. Quando as
monografias das nações do globo estiverem feitas, o que há-de ser daqui a alguns
centos de anos, então é possível a filosofia da história. Até lá, romance ou
comédia.” Herculano “profetiza” afinal o que viria a ser muito mais tarde a
recolha exaustiva de Toynbee, comparando 22 civilizações...].
Opunha-se
Herculano, arrebatada e sarcasticamente, ao que considerava a influência nefasta
da filosofia da história sobre o jovem Oliveira Martins. Mas pedia o impossível
– a fixação de leis gerais, base de uma história científica – para minorizar a
intuição de um dinamismo histórico, que Oliveira Martins, inspirado pelas
teorias dos filósofos românticos alemães, traduzia em termos sociais.
Evidentemente, a sociologia de Oliveira Martins foi contestadíssima, quer por
António Sérgio, quer, mais recentemente, por António José Saraiva e Alberto Ferreira
– e foi tanto mais contestada quanto pretendia fazer doutrina numa esfera que
se afirmava ser totalmente racionalizável (Sérgio) e científica (A. J. Saraiva,
A. Ferreira).
Oliveira Martins descobrira, no entanto, ao observar o passado, que o elemento social não era uma presença totalitária em todas as manifestações humanas, tendo de admitir, por conseguinte, uma margem superior ou menor de indeterminação, de liberdade, de criacionismo gratuito da parte de certos homens superiores ou de certas nações ou complexos civilizacionais, movidos por vagas de fundo míticas, religiosas ou psicológicas (daí a sua valoração, mais tarde considerada indevida pelos cientistas pragmáticos ou pelos cultores de uma Razão discursiva e imanente toda-poderosa – Eduardo Lourenço falaria, a propósito, do novo farisaísmo da Razão –, daí a sua valorização, dizíamos, de figuras consideradas arquetipais como as de Nuno Álvares Pereira ou de D. João II e de movimentos colectivos nacionais, como o sebastianismo). E descobrira, por outro lado, que fundar uma historiografia unicamente nos documentos paleográficos não passava de ilusão: os documentos omitem, os documentos mentem, os documentos representam, a par de um testemunho até certo ponto irrecusável, uma falsificação da realidade, por parte de observadores mal apetrechados, geralmente não independentes na sua transposição testemunhal, exprimindo fragmentária e aleatoriamente uma verdade estilhaçada, lacunar e descontínua que o historiador se esforça por tornar coerente e lógica. Mas como? Deixemos para os ingénuos ou para os mal-intencionados a pretensão de afirmarem que conseguiram a transposição científica de toda a zona enigmática para a verdade, é o ponto de vista de Oliveira Martins. Ele diz: “É quimérico, é absurdo até, imaginar construir cientificamente a história” e, aindam “ciência e história são termos que se excluem”. Só através da imaginação e da faculdade intuitiva, aliadas à razão conceptiva e à investigação, poderá o historiador reconstruir, “na sua totalidade indefinida ou caótica a realidade das coisas”. “A história não é, pois, uma ciência, mas uma arte” Uma arte narrativa, uma arte literária. A filosofia da história a pode interpretar, porque a filosofia convive com a liberdade; não a ciência da história, porque a ciência aponta à necessidade e à lei.»
António Quadros («Introdução à Filosofia da História»).
OS LUSITANOS
«O
povo desde o qual os historiadores têm tecido a genealogia portuguesa está
achado: é o dos lusitanos. Na opinião desses escritores, através de todas as
fases políticas e sociais da Espanha durante mais de três mil anos, aquela raça
de celtas soube sempre, como Anteu, erguer-se viva e forte; reproduzir-se,
imortal na sua essência; e nós os portugueses do século XIX temos a honra de ser os seus legítimos herdeiros e representantes.»
Com
esta ironia encoberta mas grave, fustigava Alexandre Herculano[1] os
seus predecessores, historiógrafos nacionais, e, segurando com valor a férula
magistral, castigava o povo culpado de acreditar numa tradição que tem para o
erudito, além de outros defeitos, o de ser recente. Só desde o fim do XV século
o nome de lusitani começa a
substituir o de portucalenses, nos
livros; mas essa inovação, perpetuando-se entre os eruditos, torna-se por fim
uma crença nacional e quase popular.
Que
valor merece a inovação? Nenhum, e por vários motivos: «Tudo falta: a
conveniência de limites territoriais, a identidade da raça, a filiação da
língua, para estabelecermos uma transição natural entre os povos bárbaros e
nós.» Ora estes argumentos, decisivos para o sábio historiador, não nos parece
a nós – perdoe-se-nos o atrevimento – que o sejam. Outro tanto sucede com todas
as nações ou quase todas, desde que procuramos estabelecer a árvore
genealógica, indo aos arcanos de um passado ignoto reconhecer a fisionomia dos
mortos de muitos séculos e determinar de entre eles os primeiros avós de uma
nação. Seria absurdo exigir conveniência de limites territoriais, ou por outra,
identidade de fronteiras, entre a localização de uma tribo primitiva, e a de
uma nação moderna: nem aos povos que hoje mais indiscutivelmente representam,
pura, uma raça, poderia fazer-se tal exigência. Se há ou não identidade de
raça, é exactamente o problema que deveria agitar-se; e, sem isso, negá-lo é
proceder dogmática e não cientificamente.
Alega-se que são indecisas as noções de Estrabão com respeito às fronteiras dos lusitanos; diz-se mais que não coincidem com as que Augusto deu à província da Lusitânia[2]. O geógrafo antigo, ora parece incluir os calaicos nos lusitanos, estendendo as fronteiras destes últimos até à costa do norte da Península, ora os separa, dando-lhes o Douro como divisória. A demarcação de Augusto adoptou esta segunda versão. As fronteiras orientais estendiam-se, quer para o geógrafo, quer, depois, para a administração romana, muito além da raia portuguesa, incluindo Salamanca, e subindo quase até próximo de Toledo. Daí para o sul, e depois para o nascente, seguindo o curso angular do Guadiana, os lusitanos de Estrabão e a Lusitânia de Augusto tinham como limite este rio, quase desde as suas fontes, e até à sua foz, na costa do nosso Algarve.
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| Mapa da Lusitânia sob o domínio romano, indicando rios e povoações e a rede conjectural de vias de comunicação, segundo Hübner. |
Se
ligássemos, pois, um valor positivo às resenhas dos antigos geógrafos, e um
alcance social-histórico à identidade das fronteiras primitivas e actuais,
parece-nos que poucas nações poderiam com melhores motivos achar na etnologia
dos antigos o fundamento da sua vida moderna. Alargue-se a fronteira do norte
ao Minho (conquista da Lusitânia sobre a Galécia), retraia-se a fronteira de
leste ao Douro (conquista da Tarraconense sobre a Lusitânia) e teremos feito
coincidir os antigos com os actuais limites. Qual é, dos primitivos, o povo que
no decurso da sua vida histórica deixou de conquistar e de ser conquistado?
Qual é o que não ganhou ou não perdeu, de um lado ou de outro, sobre ou para os
vizinhos?
Se
a maneira porque, a partir do século XV ou XVI, os historiógrafos nacionais
filiam o Portugal moderno na antiga Lusitânia justifica as fundadas ironias do
nosso grande historiador, não nos parece que o processo por ele seguido para
negar a doutrina seja conveniente, nem até verdadeira a opinião de que entre
portugueses e lusitanos nada haja de comum. Quando hoje vimos renascer de um
modo erudito, e daí afirmar-se no espírito popular, a tradição nacional
germânica, a italiana e até a romana, que valor tem o facto da tradição
lusitana ter estado obliterada por séculos, para só ressurgir numa época relativamente
próxima e de um modo erudito? Se os portugueses da Idade-Média não sabiam de
seus avós lusitanos, acaso saberiam de seus avós ítalos, romanos ou teutónicos
os piemonteses, os valáquios ou os prussianos até o XVIII século? Acaso, também,
ser-lhes-á mais possível do que a nós estabelecer uma transição natural e uma
história ininterrupta desde as primeiras idades até às modernas? Não, decerto.
Se a erudição pudesse demonstrar a unidade da raça ibérica, então os lusitanos
baixariam à condição de uma variedade sem autonomia: facto é, porém, que pouco
ou nada sabemos, nem de iberos em geral, nem de lusitanos em particular, e por
isso as fábulas dos velhos antiquários não merecem a atenção moderna. Não
haverá, porém, acaso outro caminho para atacar este problema? À falta de
monumentos escritos, nada poderá valer-nos? Entre a fábula ingénua dos
antiquários e as exigências secas e formais dos eruditos modernos, não estará
outra via? Afigura-se-nos que sim[3].
Todos
reconhecem hoje a indestrutível tenacidade das populações primitivas. Raízes
profundas que nenhuma charrua destrói apesar de revolta a leiva pelo ferro das
conquistas, depois de esmagados as folhas e troncos pelo tropear dos cavalos de
guerra, depois de queimados e reduzidos a cinzas pelos incêndios das invasões:
embora se lancem novas sementes à terra e nasçam vegetações novas, essas raízes
profundas tornam a reverdecer, crescem, dominam um chão que é seu, e afinal
convertem ou esmagam, transformam ou exterminam, de um modo obscuro, lento, mas
invencível, as plantas intrusas.
A
permanência dos caracteres primitivos dos povos, facto hoje indiscutível,
permite fazer – consinta-se-nos a expressão – a história ao inverso: julgar de
hoje para ontem, inferir do actual para o passado. A questão da raça lusitana apresenta-se-nos
pois nestes termos: há uma originalidade colectiva no povo português, em frente
dos demais povos da Península. Cremos
que a há circunscrita porém a traços secundários. Cremos que as diversas
populações da Espanha, individualizadas sim, formam, contudo, no seu conjunto,
um corpo etnológico dotado de carateres gerais comuns a todas. A unidade da
história peninsular, apesar do dualismo político dos tempos modernos, é a prova
mais patente desta opinião[4].
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| Povos da Península |
Este
dualismo, porém, leva-nos também a crer que entre as diversas tribos ibéricas,
a lusitana era, senão a mais, uma das mais individualmente caracterizadas. Não
esquecemos, decerto, a influência posterior dos sucessos da história particular
portuguesa; mas eles, por si só, não bastam para explicar o feitio diverso com
que coisas idênticas se representam no nosso espírito nacional. Há no génio
português o que quer que é de vago e fugitivo, que contrasta com a terminante
afirmativa do castelhano; há no heroísmo lusitano uma nobreza que difere da
fúria dos nossos vizinhos; há nas nossas letras e no nosso pensamento uma nota
profunda ou sentimental, irónica ou meiga, que em vão se buscaria na história
da civilização castelhana, violenta sem profundidade, apaixonada mas sem
entranhas, capaz de invectivas mas alheia a toda a ironia, amante sem meiguice,
magnânima sem caridade, mais que humana muitas vezes, outra abaixo da craveira
do homem, a entestar com as feras. Trágica e ardente sempre, a história
espanhola difere da portuguesa, que é mais propriamente épica: e as diferenças
da história traduzem as dissemelhanças do carácter.
Poderemos regressar ao passado, e
perguntar-lhe a causa primária deste fenómeno? Decerto não. Ou sombras
impenetráveis o encobrem, ou a escassez do nosso saber nos não deixou ainda
desvendá-lo. Como hipótese – e do nosso atrevimento será escusa a nossa
modéstia – somos levados a crer que a individualidade do carácter dos lusitanos
(quer neles incluamos os calaicos, quer não) provém de uma dose maior de sangue
céltico ou celta (questionou-se outrora sobre isto) que gira em nossas veias,
de mistura com o nosso sangue ibérico. Os nomes próprios de lugares, os nomes
de pessoas e divindades, tirados das inscrições latinas da Lusitânia e da
Tarraconense, que constituem o nosso Portugal, provam a preponderância de um
elemento céltico. As vagas indicações dos antigos falam-nos nos celtas das
margens do Guadiana, e dão-no-los na costa ocidental da Península. Vale porém
mais do que isso a analogia evidente entre as manifestações particulares dos
lusitanos e dos galegos, e aquela fisionomia que os estudos eruditos sobre os
celtas da França e da Irlanda têm determinado a estes últimos[5].
Tentámos há pouco esboçar a nossa fisionomia diferencial: escusado é tornar
agora ao assunto.
Se a ideia de uma filiação dos lusitanos foi expressa de um modo ridículo pelos antiquários clássicos, a ideia de uma filiação céltica ou celta teve já a mesma sorte quando, quase em nossos dias, houve quem pretendesse filiar directamente o português na língua dos bardos. Paz do esquecimento a todas as quimeras!
(In Oliveira Martins, História de Portugal, Guimarães
Editores, Lisboa, 2007, pp. 27-30).
[1] V. o seu retrato em Portugal Contemporâneo, III, O. C., pp.
155 a 164.
[2] V. História da Civilização Ibérica, O. C., pp. 47 e 48.
[3] V. acerca dos lusitanos As Raças Humanas, O. C., I, pp. 268 a
284, e II, pp. 209 nota.
[4] V. História da Civilização Ibérica, O. C., pp. 23 a 322.
[5] V. As Raças Humanas, O. C., II, v. p. 7.






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