Escrito por Raul Correia
«O
ano de 140 a. C. foi, a diversos títulos, de importância crucial para as
guerras hispânicas. Fábio Serviliano, governador da Ulterior, depois de ter
saqueado diversas cidades fiéis a Viriato, na Andaluzia e, talvez, no Sul de
Portugal, foi por ele vencido junto de Erisane (talvez Arce, na Andaluzia). Por
outro lado, Quinto Pompeio falhou uma vez mais a tomada da Numância na frente
da Citerior. Em face destes desaires, os Romanos decidem firmar a paz em ambas
as zonas da guerra. Viriato, na Ulterior, recebeu o título de “amigo do povo
romano” e aceitou uma trégua com o governador da província. Por seu turno,
Pompeio estabeleceu a paz com Numância, impondo aos seus habitantes o pagamento
de um tributo em prata.
Esta
situação de paz deve entender-se no âmbito mais vasto da conjuntura política
que então se vivia em Roma. Existia de há longa data no Senado romano um
poderoso partido, que defendia a necessidade da expansão territorial na área
mediterrânea. A família dos Cipiões constituía um dos seus elementos mais destacados.
Graças aos seus esforços políticos, os Romanos tinham já dilatado
extraordinariamente a sua área de influência. Tomaram e destruíram Cartago, em
146 a. C., após quatro anos de cerco, e estabeleceram uma província africana.
Para oriente, ocuparam extensos territórios na Grécia e criaram uma nova
província no antigo reino da Macedónia.
O
enorme esforço de guerra, em diversas frentes, provocava um natural desgaste na
população. Tomava corpo, com sucesso crescente, o partido dos que defendiam a
paz. As guerras hispânicas traziam, para além do mais, não poucas consequências
negativas. Por um lado, possuíam uma brutalidade invulgar: há numerosas referências
aos horrores presenciados pelos soldados romanos nestes combates. Por outro,
não proporcionavam grandes proventos: não se encontravam nas regiões periféricas
das áreas já ocupadas riquezas comparáveis com as obtidas na conquista de Nova
Cartago e da região mineira da sierra Morena, que tinham constituído poderoso
estímulo durante a primeira fase da ocupação territorial. Por estas razões, a
guerra hispânica era considerada extremamente perigosa e pouco compensadora.
Não é de estranhar que, desde o ano de 152 a. C., se tenham sentido grandes
dificuldades no recrutamento de tropas para as frentes peninsulares. Segundo
diferentes fontes, os exércitos, uma vez em solo hispânico, evitavam frequentemente
o confronto com os indígenas.
A
paz alcançada no ano de 140 a. C. pode considerar-se, por isso, uma resposta
aos anseios de boa parte da população de Roma. No Senado, porém, a força do
partido belicista era demasiado importante. Pretendia-se a paz, é certo, mas se
fosse estabelecida pela força das armas e trouxesse a rendição incondicional
dos inimigos. Assim, no ano seguinte, o Senado rompe as tréguas e envia novos
governadores para a Hispânia, com o objectivo de terminar a guerra, mas por uma
vitória esmagadora.
Na
Ulterior, Q. Servílio Cipião desencadeou uma ofensiva fulgurante, que obrigou
Viriato a refugiar-se a norte do rio Tejo, num lugar denominado “monte de Vénus”,
presumivelmente localizado algures entre Cáceres e Badajoz. As fontes referem, ainda, que teria atacado Lusitanos, Vetões e Galaicos, estes últimos mencionados pela
primeira vez nos textos sobre as guerras hispânicas. O ataque aos Vetões é admissível,
visto levar às proximidades do refúgio de Viriato. O confronto com os Galaicos
afigura-se, porém, inverosímil, por implicar uma movimentação excêntrica em
relação ao teatro das operações militares da época, por alargar excessivamente o
âmbito geográfico da campanha e por se situar na retaguarda do exército de
Viriato.
As
fontes de períodos mais recentes mencionam duas localidades de aparente
fundação romana que poderão relacionar-se com esta campanha. Uma é denominada “Castra
Servília”, presumivelmente nas imediações de Cáceres, a outra, “Caepiana”,
situava-se no território dos Célticos, em lugar indeterminado. Estas duas
povoações marcavam, decerto, a rota por onde caminharam para norte as legiões
de Servílio Cipião. Como desconhecemos em absoluto a verdadeira implantação da
segunda, torna-se difícil a sua completa reconstituição. No entanto, a localização
de Castra Servília, bem como a referência ao ataque contra os Vetões, sugere
que tenha sido utilizada a velha via interior que punha em comunicação o sul e
o norte peninsular, através das áreas ocidentais da meseta hispânica.
Face
ao avanço do general romano, Viriato, em posição difícil, enviou três
emissários para negociar a paz. Como é sabido, Cipião aliciou-os para, no
regresso, assassinarem o seu chefe. O exército lusitano, chefiado por Tântalo,
após a morte de Viriato, tentou ainda uma incursão contra os territórios do
Sul, mas foi vencido.
Destroçado
e exausto, o contingente lusitano negoceia a paz, recebendo territórios para se
instalar. É bem provável que alguns dos lusitanos, que Estrabão situa no Sul do
actual território português, ali se tenham fixado nesta época. Parece também
evidente que o exército lusitano, nos anos de 140 a 139, se encontrava, de
facto, no limite das suas capacidades. Compreendem-se os seus repetidos esforços
para acordar tréguas com os governadores da Ulterior.
Após a morte de Viriato começou, de facto, a ocupação romana do extremo ocidental da Hispânia. Na Citerior, a paz tardou alguns anos ainda. Sucessivos governadores falharam a tomada de Numância, só o conseguindo em 134 a. C., sob o comando de Públio Cipião Emiliano, o conquistador de Cartago.»
(In
«História de Portugal», Direcção de José Mattoso, Vol. I, Círculo de Leitores,
1992, pp. 216-217).
«Era
noite velha, quando Ditálcon, Andaca e Minouro regressaram ao acampamento de
Viriato. Demoraram-se mais tempo do que o cabecilha imaginara, revolvendo por
vezes na mente que fortes motivos ou razões políticas se debatiam na barraca do
general romano, para lá se deterem. De vez em quando ocorria-lhe a conjectura
de que Cépio, não reconhecendo a inviolabilidade dos seus parlamentários, os
teria mandado passar pelas armas, ou pelo menos os guardava como prisioneiros,
como reféns para lhe impor condições de rendição. Nesta prolongada preocupação
de espírito, e sob a pressão dos inesperados acontecimentos, que só poderiam
ser contrabalançados pela energia e pela astúcia, Viriato caiu num sono
profundo, como aquele em que se fica imerso antes de caminhar para a morte.
Embora profundo, o sono era agitado, como em homem acostumado a estar alerta
mesmo quando descansava; e nessa agitação, debatia-se Viriato com um pesadelo,
um sonho, que sem diferença e por fatalidade coincidia com o que estava prestes
a acontecer. Na agitação daquele sono dormido sobre a terra recalcada poucas
horas antes pelos cavalos, Viriato sentia os passos dos seus três companheiros,
que se aproximavam silenciosamente da barraca em que estava dormindo; um deles,
Minouro, afastou o pano e entrou escondendo de trás das costas um punhal de
dois gumes. Naquela ansiedade cataléptica, Viriato quis erguer-se, gritar, mas
era impossível qualquer movimento; em seguida entrou Ditálcon, e Andaca ficou
quase da parte de fora, mas era ainda visto claramente. Sob o terror do sonho
que o oprimia, Viriato viu Minouro curvar-se sobre ele, e erguendo ao ar o
braço com o punhal descarregar o golpe...
Nesse
momento de extrema angústia acorda, e entre a ilusão e a realidade, sentiu um
golpe vibrado fortemente no pescoço; antes que o sangue lhe embaraçasse a voz,
Viriato, abrindo os olhos atónitos, pôde proferir as
palavras:
–
O meu maior amigo? Minouro...
Os
borbotões de sangue que lhe encheram internamente o peito e respingaram pelos
panos da barraca, não deixaram que pudesse mais exprimir-se, e ficou exânime,
arquejando, até ao último alento, passando assim, horrorosamente, de um sonho
tremendo, em que Viriato, pela sua lealdade, não ousaria acreditar, para a
realidade trágica e afrontosa, que ia actuar como uma eterna calamidade sobre o
futuro da Lusitânia.
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| 1.ª Divisão provincial da Hispânia, 197 a. C. |
![]() |
| 2.ª Divisão provincial da Hispânia, de Augusto, 69 d. C. |
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| 3.ª Divisão provincial da Hispânia, de Diocleciano, 298 d. C. |
A
morte de Viriato fez-se com rapidez e segurança; os três companheiros da
Trimarkísia saíram da barraca sem ruído, e simulando ordens recebidas de
Viriato montaram nos seus cavalos e partiram à desfilada para o arraial
romano. Cépio estava dormindo; um cavaleiro foi acordá-lo, e dizer-lhe:
–
Morreu Viriato!
Quinto
Servílio Cépio, voltando-se sobre o lado direito para continuar o sono, deu
ordem ao cavaleiro:
– Que esses entes abjectos esperem lá fora, até que seja dia.»
Teófilo Braga («Viriato – A Epopeia Lusitana»).
«É
certamente o episódio mais conhecido, mais romanceado e mais representado
pictograficamente da vida de Viriato. O choque da sua morte e as circunstâncias
em que ocorreu levaram a que não só os Lusitanos se sentissem chocados, mas que
os próprios Romanos não a aceitassem e que a tradição conservasse para sempre
uma transmissão oral desta morte.
Temos dois relatos da morte de Viriato, um de Apiano e outro de Diodoro Sículo.
Vejamos, antes de mais, os dois relatos, primeiro o de Diodoro Sículo e depois o de Apiano:
Audax, Ditalco e Nicorontes, da cidade de Urso, parentes e amigos uns dos outros, dando-se conta de que a supremacia de Viriato estava a ser posta em perigo pelos Romanos, temendo por si próprios, decidiram prestar aos Romanos algum serviço que lhes angariasse segurança. Vendo que Viriato desejava pôr fim à guerra, ofereceram-se para persuadir Cipião a fazer um acordo de paz, se lhes fosse confiada a missão de negociar os acordos. O chefe acedeu de bom grado, e eles, apresentando-se prontamente junto de Cipião, convenceram-no sem dificuldades a garantir-lhes, a eles próprios, segurança sob a promessa de que assassinariam Viriato à traição. Dadas e recebidas garantidas a esse respeito, regressaram a toda a pressa ao acampamento. Dizendo que tinham convencido os Romanos a fazer a paz e procurando vivamente afastar do pensamento de Viriato a congeminação da verdade, levaram-no a alimentar grandes esperanças. Durante a noite, aproveitando-se da confiança que ele depositava na sua amizade, entraram às escondidas na tenda dele e, puxando as espadas, mataram Viriato com golpes certeiros. Fugindo imediatamente do acampamento através de uns atalhos da serra, puseram-se a salvo junto de Cipião. (Diodoro, XXXIII, 21).
Viriato enviou a Cipião os seus mais fiéis amigos, Audax, Ditalco e Minuro, para negociarem um tratado de paz. Estes, deixando-se corromper por Cipião com grandes presentes e muitas promessas, comprometeram-se a matar Viriato. E mataram-no da seguinte forma: Viriato, devido às suas preocupações e fadigas, dormia pouco e a maior parte das vezes repousava armado, para que, ao levantar-se subitamente, estivesse preparado para qualquer eventualidade. Por isso, era permitido aos amigos ir ter com ele, mesmo durante a noite. Segundo este costume, os cúmplices de Audax, que estavam de guarda, entraram na tenda quando ele começou a dormir, a pretexto de que havia algo de urgente, e apunhalaram-no na garganta, porque estava armado e não havia outra parte do corpo a descoberto. Sem que ninguém se apercebesse do sucedido, pois o golpe foi certeiro, fugiram para o acampamento de Cipião e reclamaram a sua recompensa. Cipião permitiu-lhes que conservassem o que já lhes tinha dado, mas quanto ao que lhe pediam remeteu-os para Roma. Ao raiar da madrugada, os serviçais de Viriato e todo o exército, convencidos que ainda dormia, estranharam que dormisse mais tempo que o habitual, até que alguns se deram conta de que jazia morto com as suas armas, imediatamente se espalhou por todo o acampamento um grande lamento e um grande clamor, chorando todos a sua morte e lamentando-se do seu próprio mal, considerando os perigos que os ameaçavam e o grande chefe que perdiam. O que mais lhes custava era não conseguirem encontrar os assassinos. (Apiano, 74).
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| A morte de Viriato, de José de Madrazo |
Na
descrição de Apiano tudo começa quando Viriato, querendo negociar com Cipião,
envia os seus fiéis amigos Áudax, Ditalco e Minuro a negociar com Cipião. Estes
deixam-se corromper pelos presentes materiais e promessas de Cipião e
comprometem-se a assassinar Viriato.
A
descrição de Diodoro difere desta nalguns pormenores, pois este diz que os
amigos de Viriato “Áudax, Ditalco e Nicorontes, da cidade de Urso, parentes e
amigos, dando-se conta de que a supremacia de Viriato estava a ser posta em
perigo pelos Romanos...” Vemos que Minuro é substituído por Nicorontes e
representam-se a si próprios e a outros e não são enviados por iniciativa de
Viriato... Não se pode esquecer que o exército lusitano era constituído por Lusitanos
propriamente ditos e depois haveria muitos outros combatentes de outras Nações
Ibéricas que se iam juntando a Viriato à medida que ele ia conquistando terras
e, neste caso concreto, estes três amigos seriam de Urso, cidade que ficava na
Betúria. Nesta versão de Diodoro, vemos ainda que as gentes de Viriato
começavam a descrer do seu poder contra Cipião e Popílio Lenate, havendo
certamente revoltas que começavam a grassar e por isso Viriato aceita a
mediação destes três que, segundo Diodoro, “decidiram prestar aos Romanos algum
serviço que lhes angariasse segurança” e “vendo que Viriato desejava pôr fim à
guerra, oferecerem-se para persuadir Cipião a fazer um tratado de paz”.
É
certo que a versão de Apiano não contradiz totalmente esta versão de Diodoro,
no entanto é substancialmente diferente porque, em Apiano, a iniciativa de
enviar os três negociadores ao acampamento inimigo partiu de Viriato e em
Diodoro são estes que tomam a iniciativa de propor a Viriato, tendo já como
objectivo oferecerem-se aos Romanos para garantirem a sua segurança. Apiano
demonstra uma maior simpatia por Viriato e pelos Lusitanos, pois eles são
enviados por Viriato e deixam-se corromper pelos Romanos. Como diríamos hoje,
há aqui corruptos e corruptor. Ora, em Diodoro, os Romanos aceitam os serviços
que lhes são oferecidos, o que demonstra uma traição, não dos Romanos, mas dos
homens de Viriato, versão que mostra ainda que Viriato já não dominava o seu
exército e os combatentes só já queriam era libertar-se da guerra. Aqui, os Romanos deixam de ser corruptores para apenas aceitarem os serviços de elementos
corruptos do exército lusitano.
Independentemente
destas contradições insanáveis nos dois textos, ambos são concordes em que,
regressados os três companheiros de Viriato ao acampamento lusitano, mataram
este quando estava a dormir e tinha guarda montada à porta. A guarda, segundo
Apiano era feita por homens da confiança de Áudax, o que mostra que este
deveria ser um lugar-tenente de Viriato e deveria ter escolhido homens seus para
poder introduzir-se na tenda, “às escondidas”, como diz Diodoro. Ali mesmo o
mataram e fugiram para o acampamento romano, certamente com as mãos ainda
manchadas do sangue de Viriato.
Recebidos
por Cipião, este não lhes pagou nada do que lhes havia prometido e mandou-os ir
a Roma procurar o produto das promessas que lhes havia feito. Verdadeira ou
falsa, aqui tem origem a célebre expressão “Roma não paga a traidores”.
Assim morreu um dos maiores chefes militares de todos os tempos, iniciador de uma táctica de guerra que ainda hoje continua a ser usada, líder incontestado, chefe político e negociador exímio que a tradição, não confirmada pelas fontes, nos habituou a ver como um pastor que, nascido na serra se teria formado correndo atrás das suas ovelhas. Só a traição dos seus homens, instigados ou não pelos Romanos, pôs fim a este herói que os seus próprios inimigos mitificaram de imediato.»
João Luís Inês Vaz («Lusitanos – No Tempo de Viriato – Quotidiano e mito»).
«No
arraial de Quinto Servílio Cépio a inesperada notícia da morte de Viriato
propagou-se com uma rapidez inaudita; perguntavam entre si os legionários:
– Quem seria o valentão que se atreveu a ir atacar pessoalmente aquele colosso?
–
Morreu em duelo Viriato!?
–
Só por traição...
– Quem foi o romano astucioso?
–
Quem teve essa glória?
–
Não há glória em matar à traição.
–
Não foi nenhum romano; foram lusitanos, e amigos de Viriato.
–
Custa a crer.
–
Eles estão aí junto da barraca de Cépio para receberem o prémio prometido.
–
Então, foi Cépio que os comprou? Que os aliciou para a traição?
–
Sim! Nada podendo pelas armas, alcançou pela astúcia o que nunca puderam
conseguir Vetílio, Plâncio, Nigídio, Fábio, Quinccio e Serviliano. É velho o
ditado, mas sempre verdadeiro: Quem não pode, trapaceia.
E
nestas conversas entre os legionários, a curiosidade aguçava-se estimulando
alguns deles para irem ver as caras dos três miseráveis que tinham, ao serviço
de Cépio, assassinado o general que Roma tanto temia. Os legionários que
passavam e encaravam com Ditálcon, Andaca e Minouro, iam dizendo entre dentes:
Ia
jurar que aqueles homens não são lusitanos!
Viste
aquele mais alto, e mais velho? Se não é um africano branco, berbere, mesmo ao
pintar!
–
E o outro? O loiro, parece celta.
–
O da cara redonda é que se assemelha mais ao tipo luso; mas assim roliço, e
puxando para a gordura... é com certeza ibero.
Afastaram-se
à pressa, porque o cônsul Quinto Servílio Cépio aparecera à porta da sua
barraca de campanha; alguns ouviram o som confuso das palavras trocadas entre
ele e os três traidores, palavras atropeladas, e d’entre as frases
destacando-se as que Cépio proferiu com acentuado e esmagador desdém:
–
Roma não tem por costume dar prémio a soldados que estrangulam o seu general.
As trombetas abafaram o resto da frase, tocando à formatura das legiões e à parada geral do exército. Enquanto esteve o exército consular em forma, Cépio conferenciou com os centúrios, estabelecendo o plano a seguir depois da morte de Viriato:
“Primeiro
intimar ao exército lusitano a rendição peremptória e incondicional; agora
privado de chefe, é de todo impossível a resistência.
“E, depois, que Décio Júnio Bruto avance com uma parte do exército romano e penetre na região da Vetónia e vá ao encontro dos Callaicos, que tratam de prestar socorro ao exército, conforme o pedido que lhes fizera o caudilho”».
Teófilo
Braga («Viriato – A Epopeia Lusitana»).
A Morte de Viriato
Um
dos historiadores a quem nos amparamos nesta nossa tentativa de contar o
passado – e que por seu turno se baseou noutros historiadores... e assim por aí
fora, até chegarmos a Heródoto, Plínio e Estrabão, que também não foram
testemunhas oculares da maioria dos factos que relatam, e portanto se ampararam
em documentos nem sempre muito seguros ou na tradição oral, menos segura ainda
– diz que Viriato se mostrou também um grande «político». Ora esta palavra, tão
gasta pelo uso imoderado que dela se tem feito, pode levar a conclusões erradas
os leitores, a quem nos esforçamos por apresentar personagens da História sob o
ponto de vista «humano», isto é, personagens que viveram e de facto, com os
condicionalismos da sua época, foram criaturas como nós.
Assim,
que o leitor nos permita dar da palavra «político» a significação que lhe foi dada
por Sócrates, um dos homens mais inteligentes de que a humanidade pode
honrar-se... e que morreu há quase dois mil e quatrocentos anos. Vale a pena
conhecer essa significação, embora ela nos afaste por momentos dos nossos Quadros da História de Portugal:
«O
político ignora o homem, aquele homem que existe dentro de todos nós. Sabe
fazer política, sabe como se faz, mas
por mais extraordinário que possa parecer não sabe que coisa é verdadeiramente a política, nunca o perguntou a si
próprio; considera obviamente que o sabe, visto que é um político e talvez um
político famoso. Assim, empenhado em fazer prevalecer “esta” política sobre
“aquela”, esquece a coisa mais importante, isto é, que a política não é uma
colecção de astutos expedientes para atrair o favor das massas e tirá-lo aos
adversários... mas sim a nobre arte de promover o bem de todos... a realização
da vida de todos segundo uma unidade de formas “humanas”, justas e sábias.»
Que
o leitor nos desculpe esta incursão por um passado ainda mais distante do que o
dos nossos lusitanos, e por um país, a Grécia, que os romanos venceram e
ocuparam, mas aonde foram buscar parte da sua civilização.
Voltemos
portanto a Viriato, e às suas qualidades de político... que consistiram
especialmente em aproveitar o entusiasmo dos celtiberos, os quais ajudaram com
armas e dinheiro, e em procurar incitá-los à luta aberta contra o inimigo
comum.
Roma
decidiu então levar a cabo os últimos esforços para conseguir estabelecer
solidamente o seu domínio sobre a Península Ibérica, e enviou novas legiões,
comandadas pelos seus melhores generais.
Quinto
Metelo parte em campanha contra os aguerridos celtiberos, e Serviliano marcha
contra os não menos aguerridos e valorosos lusitanos.
Duas
vezes derrotado, o cônsul romano, depois da segunda derrota, viu-se forçado a
assinar um tratado pelo qual Roma reconhecia o poder de Viriato.
Mas
Roma não ratifica o tratado e envia novo general, Servílio Cipião, o qual usara
de toda a sua influência para impedir a ratificação.
Cipião
renova os combates contra os lusitanos, comandados por Viriato, e alcança
alguns triunfos que, no entanto, vem a pagar com sucessivos desastres.
Para
sair da situação vergonhosa em que o colocara a sua ambição, e tendo chegado à
conclusão de que nunca conseguiria vencer, em luta leal, o seu hábil e temerário
inimigo, Cipião recorreu a um processo infame e vergonhoso: subornou três dos
companheiros de Viriato, que assassinaram o grande chefe enquanto dormia.
Crime
cobarde, e cobardemente praticado, o assassínio de Viriato deixou para sempre
amarrados ao pelourinho da História o seu instigador, Servílio Cipião, e os
seus três autores, Audas, Ditalco e Minuro...
Dos
três assassinos nada mais se conhece... A História também tem os seus caixotes
do lixo. Também pouco se sabe a respeito de Servílio Cipião... a não ser que,
tendo conseguido finalmente derrotar os lusitanos depois da morte de Viriato,
levou para Roma as palmas do triunfo... que devem ter desaparecido com ele nas
águas lodosas do Tibre.
Depois
de terem prestado as maiores honras fúnebres ao corpo de Viriato, que
incineraram entre cânticos e jogos atléticos, os lusitanos continuaram a luta,
mas novamente a sorte das armas os havia abandonado...
Assim
pereceu Viriato, que foi na Lusitânia o que, alguns anos depois, seria
Vercingétorix na Gália, embora a sorte do gaulês tivesse sido ainda pior.
Aprisionado em Alésia, foi conduzido para Roma, acorrentado, arrastado atrás do
cortejo triunfal de Júlio César... e executado ao cabo de seis anos de doloroso
cativeiro.
Assim
morreu Viriato, dizíamos, o herói que fora o pavor dos romanos. Mas, embora
privados de chefe e abandonados pela sorte, os lusitanos continuaram ainda a
combater para as suas montanhas quase inexpugnáveis, aonde as legiões romanas
temiam atacá-los.
Mas
a situação não podia prolongar-se indefinidamente, pois Roma dispunha de
legiões inumeráveis e de uma organização militar incomparável na época.
Outros
exércitos romanos, comandados pelo cônsul Décio Júnio Bruto, invadiram a região
do Douro e atacaram os principais núcleos de resistência dos lusitanos,
conseguindo pacificar a Lusitânia durante algum tempo.
Nessas
operações militares, as legiões de Décio foram, ao que parece, auxiliadas por
uma esquadra romana que singrava ao longo da costa, acompanhando-as e
desembarcando reforços sempre que eram necessários.
Essa
esquadra fortificou o porto de Olisipo, na foz do Tejo, e segundo se julga
fundou, junto da foz do Douro, a povoação de Cale, da qual, mais tarde,
derivaria o nome de Portugal.
Os
territórios pacificados – isto é, submetidos – ao norte do Douro ficaram a
partir de então na dependência de Cale, e os seus habitantes começaram a ser
conhecidos por «calaicos».
Entretanto,
o poder, tal como a miséria, senão mais, traz em si mesmo as origens da
corrupção. O miserável – não é nossa intenção generalizar, pois sempre
considerámos absurda a generalização excessiva – vende a sua consciência
(conhecem-se casos, toda a gente os conhece) para ser menos miserável – quando
em verdade passa a sê-lo mais – e o poderoso vende-se por um pouco mais de poder
– quando em verdade passa a tê-lo menos, pois se coloca na dependência daquele
a quem se vendeu.
Roma tinha o poder... e tinha a corrupção. Não tardaria muito tempo que as suas próprias lutas internas, originadas por ambições desencadeadas, a fizessem entrar na curva descendente da sua existência... e dessem novo fôlego àqueles que nunca se haviam submetido completamente ao seu jugo. Com todos os povos, em todos os casos (ou em quase todos), tem acontecido o mesmo desde que iniciam a curva descendente da sua força; por momentos, às vezes por anos, ou por séculos, continuam a subir até atingirem o ponto mais alto da curva... mas depois a descida é inevitável. Nenhum jugo é permanente, mas os mais efémeros são os que se baseiam na força.
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| Loba capitolina amamenta os gémeos Rómulo e Remo |
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| Império Romano |
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| Maquete da Roma antiga durante o reinado de Constantino, o Grande (306-337). |
Numa
bela frase latina, Tácito resumiu isto mesmo, referindo-se exactamente aos
romanos:
Ubi solitudine faciunt, pacem
apellant…– o que exactamente significa: «onde fizeram um
deserto, dizem que estabeleceram a paz...».
Apenas... na Lusitânia existiam ainda lusitanos...
(In Quadros da História de Portugal, texto de Raul Correia, Amigos do Livro, Lisboa, 1985, pp. 17-20).
“Enquanto
comandou, foi mais amado
do que jamais alguém antes dele”.
Diodoro da Sicília

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