quarta-feira, 28 de junho de 2023

"As nações marítimas aprenderam na escola náutica de Portugal, cuja ciência constituiu a base fundamental da expansão da hegemonia da Europa" (ii)

Escrito por Franco Nogueira



Mosteiro de Santa Maria da Vitória






Desde Aljubarrota que se afirmava a dinastia de Aviz. Reis e príncipes eram individualidades vigorosas. Para o governo e para o escol da nação tinham recrutado novos nomes entre as novas classes. D. João I, não obstante indeciso e demasiado cauteloso, soube deixar-se fazer pela função. Seus filhos, em especial D. Henrique e D. Pedro, foram homens de alta estirpe. D. Duarte era de temperamento taciturno, concentrado, hesitante, quase apagado: tinha no entanto preocupações intelectuais, literárias e de cultura geral: e no seu curto reinado deu à corte um tom austero e recolhido, e de boa administração. Afonso V era pessoalmente bravo e aguerrido: tinha o espírito de cavaleiro andante. Andou por África, Castela, Catalunha; passou a França; aí se avistou com Luís XI e Carlos, o Temerário. Mas enredou-se nas intrigas e disputas peninsulares, na teia de casamentos dinásticos, nos conflitos de regências. Desbaratado em Toro, teve de pôr termo às suas ambições irreais. Mas deu à política de expansão além-mar o interesse que o país requeria. Foi com D. João II que alcançou o apogeu o reinado dos príncipes de Aviz. Este conjunto de chefes, apoiados no povo, pôde dar ao reino um largo período de vida coerente: desta fica-nos um «retrato singular e prodigioso de uma nação organizada, em que os diversos grupos sociais figuram por direito próprio à volta do rei» [15].

Para além das navegações, descobertas, conquistas, feitos de armas, actividade política, a época trouxe à superfície um surto mental, literário e científico que frisava com o vigor geral da nação. É Fernão Lopes: patriarca de nacionalismo, com a sua concepção populista da história, sabe movimentar as massas por detrás das grandes figuras. São Rui de Pina, Zurara, Garcia de Resende, que nos transmitem retratos psicológicos e políticos dos vultos fundamentais. Em Damião de Góis encontramos uma compreensão humana e um espírito crítico que são oriundos do seu cosmopolitismo. E em João de Barros, muito mais tardio mas ainda produto do mesmo impulso colectivo, depara-se-nos uma historiografia que combina o sentido do espaço geográfico com as descrição das actividades militares, políticas e culturais, e que assim revelou entre nós uma concepção planetária da história [16]. Mas noutros domínios da actividade mental surgem na época nomes de grandeza, e todos reflectem o enriquecimento que a empresa de além-mar trouxe ao reino. Pedro Nunes, cosmógrafo-mor desde 1525, compõe o Tratado da Esfera para servir os navegantes: a sua obra é estimulada e fecundada pelos descobrimentos e observações e experiências dos marinheiros [17]: e por virtude desta colaboração foi dado acrescentamento decisivo ao saber de Árabes e Europeus. As nações marítimas aprenderam na escola náutica de Portugal, cuja ciência constituiu a base fundamental da expansão da hegemonia da Europa [18]. D. João de Castro, além do seu vice-reinado na Índia, pôde escrever um roteiro em que enfeixou numerosas observações e corrigiu pela experiência alguns dados da teoria do seu mestre Pedro Nunes [19]. Duarte Pacheco Pereira, que nos surge logo no início de quinhentos, elabora o seu Esmeraldo de situ orbis. Coloca na sua obra o problema da posição relativa do mar e da terra: e com «alegria intelectual» e «patriótica» conclui que «nestas coisas a Nação dos portugueses precedeu todos os antigos e modernos em tanta quantidade que eles, em nosso respeito, não souberam nada» [20]. Das plantas, drogas e simples, e da grande natureza, é dado conhecimento por Garcia da Orta e Amato Lusitano [21]: e nesse campo exibem faculdades superiores de investigação e teorização. E muitos mais – André de Gouveia, André de Resende, António de Gouveia, Francisco de Holanda, e outros – servem e engrandecem a cultura portuguesa e a cultura no sentido abstracto.

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Mas no transitar do século XV para o século XVI a morte prematura de D. João II leva ao trono o duque de Beja, Manuel. Este foi afortunado e venturoso: colheu os frutos do trabalho e da perspicácia dos seus antecessores. Gama descobre o caminho da Índia pelo mar; os vice-reis e Albuquerque constroem o império marítimo, territorial e comercial da Índias; e Fernão de Magalhães, ao serviço do rei estrangeiro, efectua a viagem em torno da terra. Julga-se o soberano omnipotente, e deslumbra-se com os êxitos que, sem esforço próprio, lhe caem no regaço. Do papel que se atribui, no reino, na Europa e até no mundo, faz espectáculo irresponsável. Seduz-se num sonho peninsular sem sentido. Envia a Roma, para deslumbrar o Papa, embaixada de ostentação: é seu chefe Tristão da Cunha: da cidade e partes de Itália acorrem multidões para ver o cortejo e o elefante guiado por um naire da Índia, que leva ao pontífice uma oferenda do rei português: e Leão X, que saiu ao pórtico do Vaticano com os seus cardeais para receber o embaixador, sente-se ofuscado por tão inusitada maravilha. Tudo eram os fumos da Índia, de que falava Albuquerque. Reflectia esses fumos a corte do rei. D. Manuel despendia o seu tempo em jogos e diversões. Tinha a paixão da música; conduzia os negócios do Estado ao som dos cantares, e observando autos e farsas; dava serões às damas galantes; e com a música de charamelas, harpas, rabecas, atabales e trombetas, dançava e bailava. Na corte estacionavam chocarreiros castelhanos, e o rei apreciava muito os seus motejos e a denúncia que faziam dos moradores de sua casa. Era aliás castelhano o ambiente da corte. Por três vezes casara o monarca em Espanha: com duas filhas e uma neta do rei católico. E estas arrastaram para Portugal um acompanhamento de serventuários e cortesãos de Castela: músicos, físicos, capelães, damas, pajens, escudeiros vinham de Espanha em profusão. Confundiu-se e misturou-se muito da nobreza dos dois países; era de finas maneiras exprimir-se em castelhano nas reuniões da alta roda, e sobretudo na corte; e até grandes homens genuinamente portugueses, sucumbiram à tentação de falar ou escrever naquela língua. Uma atmosfera de gozo eufórico dominava as vidas e os espíritos. Folgava o rei às vezes numa galeota, toldada e embandeirada de seda, e embalado de música ali mesmo despachava assuntos públicos. Deleitava-se com banquetes de fausto, e ceias, e o vinho jorrava de pichéis de prata; mandava correr touros, e então queria os fidalgos ajaezados à mourisca; e quando dava audiência havia sempre na câmara cravistas e cantores. Era regrado e temperado no apetite, e de pouco sono; mas timbrava de galante, e bem trajado; disso tanto se preocupava que todos os dias vestia alguma coisa nova; e tinha tantos trajos que por duas vezes no ano mandava repartir pelos cavaleiros e escudeiros os vestimentos e sedas já usados [22]. E os réditos do país e do império eram desperdiçados em sumptuosidades, em obras pias ao gosto do rei, em dádivas ao clero e aos mosteiros.





A nobreza antiga, tomando o partido de Castela, afundara-se em Aljubarrota: a nova nobreza, que emergira da revolução, estivera à altura das suas responsabilidades e da sua missão nacional. Por meados do século XVI, todavia, os seus descendentes apenas iam à Índia para se afidalgar, e enriquecer, e poderem depois arruinar-se em Lisboa na ostentação, ociosidade e luxo. De novo o escol entrara em decadência. Na corte intrigava-se e corrompia-se: e o rei, sem a noção exacta da grandeza e alcance de navegações e conquistas, dava o seu favor a intrigantes e corruptos. Compreende-se bem o sentido da frase de Albuquerque: «mal com os homens por amor del-rei, mal com el-rei por amor dos homens». Mais do que o desgosto pela afronta e a mágoa pela injustiça, significava a expressão de uma angústia e um cuidado de homem de governo: queria o capitão-mor dizer que se criara um abismo entre os homens e o rei; que o soberano deixara de representar e defender os interesses e as aspirações dos homens e portanto do sentir colectivo; e que os homens haviam cessado de ter confiança no rei. Este estado de espírito tinha o seu reflexo supremo na capital. Enquanto se desgovernava a África e a Índia, Lisboa era centro cosmopolita de mercados. Da lei, ordem e justiça haviam ténues vestígios; mas a cidade regurgitava de riqueza e de comércio. Acorriam produtos de Veneza, Constantinopla, Flandres, Nápoles, que só caravelas e naus portuguesas podiam transportar à África e ao Oriente; e os negociantes estrangeiros esperavam em Lisboa os carregamentos da canela, das pimentas, dos gengibres, dos marfins, das sedas, dos tapetes persas, das tecas, das cambraias, dos almíscares de Ormuz, das cânforas e lacas da China, das pedras preciosas de todas as paragens. Não se administrava, nem se governava: os preços subiam, sucediam-se as fomes. Negros e cativos faziam os serviços domésticos; os fidalgos, por ostentação, estavam na miséria; e o clero reentrava na devassidão. Entende-se Sá de Miranda: traído o sonho, retira-se da corte. Entende-se sobretudo Gil Vicente. Descrevia este a corte como «luzida, formosa e leal», e «dourada e honrada», mas também de «manhas e galas» [23]. Observando a sociedade do seu tempo, e a degradação do alto mundo, o mestre dos Autos invoca os tempos de Roma, e exorta os portugueses e repreende nobres e clero:

 

Quando Roma a todas velas

Conquistava toda a terra,

Todas donas e donzelas

Davam suas jóias belas

Para manter os da guerra.

Ó pastores da Igreja,

Morra a seita de Mafoma,

Ajudai a tal peleja

Que os açoutados vos veja

Sem apelar para Roma.

Deveis vender as taças,

Empunhar os breviários,

Fazer vasos das Cabeças,

E comer pão e rabaças

Para vencer vossos contrários [24].

 

 E ao estímulo acrescentava, para os nobres e para o povo, uma palavra de certeza:

 

Deveis, Senhores, esperar

Em Deus que vos há-de dar

Toda África na vossa mão

..........................................

E a gente popular

Avante! Não refusar.

Ponde a vida e a fazenda

Porque para tal contenda

Ninguém deve recear.

 

Por outro lado, Gil Vicente pressentia já excessivos contactos com Castela, e porque nisso via perigos perguntava:

 

Sois vós de Castela, manos,

Ou lá de baixo do extremo?

Agora nos faria o demo

A nós outros castelhanos:

Queria antes ser lagarto,

Pelos santos Evangelhos [25].

 

Perante o estado de aviltamento cívico, não poupa a corte do rei, e no Clérigo da Beira dirige-lhe as suas setas:

 

Medraria este rapaz

Na corte mais do que ninguém,

Porque lá não fazem bem

Senão a quem menos faz.

Outras manhas tem assaz,

Cada uma muito boa:

Nunca diz bem da pessoa,

Nem verdades nunca a traz.

 

E com o agravamento das condições gerais, e o abatimento moral, e o desregramento dos costumes, Gil Vicente tem a coragem de dirigir à corte um doesto severo:

 

Oh! Grande mal!

Quem cuidou que em Portugal

A Verdade andasse tão abatida,

E a mentira honrada, e com todos cabida

Por muito melhor e mais principal.

...................................................................

Oh! grande crueldade

Que os tempos de agora tem tal qualidade,

Que todos no paço já trazem por lei

Que todo aquele que falar verdade

É logo botado da graça del Re[26].

 

No fundo de tudo, este mestre Gil exprimia um sentimento igual ao de Albuquerque: o rei e os cortesãos desligavam-se do povo. E no entanto neste continuava arreigado o instinto do ultramar, o apego ao espaço português, o desejo do serviço de Deus, e o velho Gil Vicente por isso teimava:

 

Avante! Avante, Senhores,

Que na guerra com razão

Anda Deus por Capitão.

 

Mas não era só o mestre dos autos que exprimiu, com o ideal ultramarino, as preocupações do povo perante a vida da corte. A «miscelânea» de Garcia de Resende é uma longa pintura do Portugal da época. Sá de Miranda entusiasmara-se com a obra portuguesa, e a sua retirada da corte é repúdio do negativismo. Pedro de Andrade Caminha exaltara a glória quinhentista e toda a cidade de Lisboa «que dá leis ao meio-dia e ao Oriente». No mesmo sentido, o Dr. António Ferreira celebrara os «altos reis e altos feitos» e as «portuguesas conquistas e vitórias» que «do mundo deram ao mesmo mundo altas histórias». Mas às euforias sucediam-se as inquietações. O próprio Resende, faceto e picaresco, não deixa de notar:

 

Vi grandes perdas no mar,

Más novidades na terra,

Nos verões, no invernar

Vemos já também que erra.

.............................................

... e todo o al

Se nos vai de Portugal,

E não sei por que caminhos [27].

 

E mais adiante:

 

Era Portugal o cume;

Agora por mau costume

Se perdeu em poucos anos.

 

Decerto: na poesia, na arte, na literatura, muito de novo foi incorporado e constituiu valorização e renovação estética. Mas a degradação dos costumes e movimento dos espíritos, a partir de meados do século XVI, eram progressivamente mais fundos. Na Índia ainda se erguia um João de Castro: homem tratado com «veneração de rico e lástima de pobre» [28], não possuía «ouro, nem prata, nem móvel, nem coisa alguma de raiz»: e, não conseguindo empenhar os ossos de seu filho, que lhe morrera pelejando, ofereceu em hipoteca, para obter fundos destinados a obras de defesa, as suas próprias barbas, que considerava símbolo da sua honra: e sendo Vice-Rei da Índia morreu na miséria. Mas a administração e a corte de Lisboa, sem uma política e sem uma vontade, tornavam inúteis os homens de fé e de isenção. Transformava-se em negócio de alguns a empresa das navegações. Na expedição das armadas procurava-se sobretudo o lucro, e caravelas e naus eram construídas de más madeiras e à toa; mantimentos iam já deteriorados para bordo; e os capitães eram escolhidos pelo favoritismo da corte e não por experiência de oceano ou conhecimento de marinharia. Naufragava o império da Índia na corte de Lisboa: o país possuía os recursos e os homens: mas os chefes eram «mais moles do que duros». Na História Trágico-Marítima perpassava já um traço de drama nacional: era o princípio do declínio.





O rei venturoso, esbanjando riquezas e mantendo a ostentação, e ajudado pela fortuna dos homens de armas e de mar, da escola de João II, conservou uma aparência de poderio. Mas as traves estavam carcomidas. E o reinado seguinte, de D. João III, não soube travar o que podia ser travado: ao contrário, contribuiu para tornar a decadência irremediável. Demais, nos círculos da corte, e da sociedade de escol, o espírito europeu, trazido por intelectuais e poetas, lançara raízes; e esse europeísmo, alheio aos interesses vitais da nação, punha em causa os valores em que assentara a mística nacional da expansão e os princípios políticos da independência [29]. É certo que D. João III ainda teve uma visão pálida do papel de Portugal: reformou a universidade, iniciou sistematicamente a colonização do Brasil. Tinha boa vontade e inteireza de carácter; mas foi enredado por influências da corte; e a Inquisição, que permitiu, envenenou a vida nacional. A rainha, Catarina de Áustria, «foi sempre mais castelhana que portuguesa e, como o dominava inteiramente, favorecia o mais possível os seus patrícios em detrimento dos de seu marido» [30]. A infanta D. Maria casou com o príncipe de Castela, Filipe; aturada correspondência passou entre as duas cortes; e foi negociado um pacto naval em que se confundiam os navios dos dois países para defesa das respectivas costas [31]. E em cortes de Lisboa, por mandado da rainha, foi discutido o problema de saber que praças do ultramar se «deviam suster ou largar». Verificava-se e reconhecia-se a decadência: era deplorável o estado a que «somos vindos e quão diferentes nas vidas e nos costumes daqueles Portugueses antigos, usando de tamanhos excessos nas jóias, nos comeres, nos adereços de nossas casas e nos exercícios de nossas vidas», e pelo que era indispensável «apontar o modo com que se atalham tamanhos males» [32]. Mas não foi possível atalhar o mal: em 1542 eram abandonadas as praças de Azamor e Safim e mais tarde as de Alcácer e Arzila [33]. Entretanto, o rei e a corte mergulhavam mais e mais na fé e na devoção: mas não eram a fé e a devoção que haviam levado à cruzada ultramarina: as de agora tinham qualquer coisa de fúnebre, de soturno, de mórbido. À morte de D. João III, por 1557, já não era possível ocultar o declínio. Adensou-se o castelhanismo da corte. O rei ficou sempre fiel à influência de seu mestre Diogo Ortiz de Villegas, que depois fez bispo de Viseu; e a rainha dominava o seu espírito e a sua vontade. E então reproduz-se uma situação histórica: e da parte de Castela, agora já Espanha, promove-se de novo a incorporação de Portugal. Haviam sido «despedaçados tecidos vitais» [34]; a Espanha atingia um fastígio europeu; e para a Europa a independência de Portugal contava por coisa nenhuma.

Século e meio decorrera desde D. João I. Os princípios de João das Regras, o génio militar de Nuno Álvares, o povo de Álvaro Pais e Afonso Penedo, o impulso sistemático de Henrique de Sagres, a visão de Albuquerque, o pensamento histórico de D. João II, e um friso de marinheiros, sábios, homens de armas, santos e mártires, haviam construído uma grande nação que se manteve em apogeu durante cento e sessenta ou cento e setenta anos. Portugal fora o único país a dar execução prática à tese da expansão geográfica da cristandade. Mas corrompeu-se no centro vital, e definhou. Estava-se à beira de 1580: e da segunda grande crise do reino.

(In Franco Nogueira, ob. cit., , pp. 78-86).


Batalha de Alcácer-Quibir (1578), in Miscellanea, de Miguel Leitão de Andrada, 1629).















[15] António José Saraiva, Para a História da Cultura em Portugal, II, 263.

[16] António José Saraiva, Para a História da Cultura em Portugal, II, 355.

[17] Hernâni Cidade, Lições de Cultura e Literatura Portuguesa, I, 97.

[18] Jaime Cortezão, citado por Hernâni Cidade, Ibid, 100.

[19] João de Castro, Roteiro de Lisboa a Goa, ed. de 1882.

[20] Hernâni Cidade, ob. citada, II, pág. 104.

[21] Pseudónimo do Dr. João Rodrigues Castelo Branco.

[22] Retrato completo de D. Manuel pode ver-se em Damião de Góis, Crónica do felicíssimo Rei D. Manuel, IV, págs 223 e segs., ed. de 1955.

[23] Não d’Amores.

[24] Exortação da Guerra.

[25] Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela.

[26] Auto da Festa.

[27] Citado por Hernâni Cidade, numa obra nesta matéria fundamental: A literatura portuguesa e a expansão ultramarina, 1963.

[28] Jacinto Freire de Andrade, Vida de D. João de Castro, pág. 16, ed. 1968.

[29] Sobre o panorama intelectual e cultural, neste período, é fundamental a obra de J. S. da Silva Dias, A Política cultural da época de D. João III, 2 tomos, 1969.

[30] Anselmo Braancamp Freire, Vida e Obras de Gil Vicente, pág. 244.

[31] Texto em Pero de Alcáçova Carneiro, Conde da Idanha, Relações, pág. 391 (publicadas por Ernesto Campos de Andrade, 1937).

[32] Texto em Conde da Idanha, Relações, pág. 402.

[33] Ver Frei Luis de Sousa, Anais de D. João III.

[34] Oliveira Martins, História de Portugal, 339.



domingo, 25 de junho de 2023

"As nações marítimas aprenderam na escola náutica de Portugal, cuja ciência constituiu a base fundamental da expansão da hegemonia da Europa" (i)

Escrito por Franco Nogueira



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«(...) a cada grande viragem da história nacional, produz-se uma sistemática destruição de elites; e depois o processo de reconstituição demora duas a três gerações (entendendo-se que cada geração corresponde a cerca de dez anos). E na viragem do século XIV para o século XV foi patente o fenómeno. Grande foi o mérito de D. João I, de João das Regras, e dos seus partidários em terem sabido assentar as bases da criação de novas elites. E passados que foram vinte ou trinta anos, nós vemos as novas classes dirigentes e o novo escol – tanto a nobreza como o alto clero, tanto os legistas como os mercadores – inteiramente à altura das circunstâncias e defensores lúcidos dos altos interesses nacionais. Tinham-se afeito à nação. E foi a epopeia das navegações e descobrimentos: é que o fenómeno ultramarino passava a fazer parte integrante da consciência da nação e da vida portuguesa: e as novas elites, saídas da revolução, cumpriam o imperativo (cf. Jaime Cortezão, A Expansão dos Portugueses no período henriquino). Temos alguns exemplos que ficaram por símbolos supremos. No topo da pirâmide, como é evidente, está D. João II, talvez o maior génio político de toda a história de Portugal. Quando se põe o problema da entrega de Ceuta contra a libertação do Infante D. Fernando do seu cativeiro de Fez, há hesitação entre alguns círculos da Corte e entre alguns procuradores de concelhos. Mas o arcebispo de Braga e o conde de Arraiolos opõem-se tenazmente à entrega da praça de Ceuta: o Infante devia ser imolado aos altos interesses nacionais: e assim acabou por ser deliberado. E Portugal transmite então o “retrato singular e prodigioso de uma nação organizada, em que diversos grupos sociais figuram por direito próprio à volta do rei” (António José Saraiva, Para a história da cultura em Portugal, II, 263).

Mas com D. Manuel e sobretudo com D. João III entra-se em novo declínio que leva à grande crise de 1580-1640. Conta-nos Queiroz Veloso: a nobreza estava reduzida a serventuários do Paço e o povo perdera a altiva consciência do seu valor colectivo (Q. V., D. Sebastião, 22). Alcácer Quibir sorveu e destroçou a grande aristocracia; a culpa fora de todos, dizia num sermão o padre jesuíta Luís Álvares; e lamentava que não tivesse havido em Lisboa um outro tanoeiro, como dois séculos atrás, que soubesse ter “mão na rédea” a nobres e burgueses. À notícia de Alcácer Quibir, Filipe de Espanha compreende lucidamente a situação e actua com rapidez. Reúne de pronto o Conselho de Estado e manda a Lisboa um emissário especial: para os Portugueses, o lugubremente célebre Cristovão de Moura. E então Portugal escreveu, através das suas elites e da alta-roda da sociedade portuguesa, uma das páginas mais amarguradas da sua história. Cristovão de Moura seduziu, aliciou, insinuou-se, subornou. Diga-se a palavra: comprou a elite portuguesa».

Franco Nogueira («Juízo Final»).


«Não é possível operar eficazmente sem partir da realidade terra e povo português. Terra com povo; povo com terra. Em coordenadas geográficas e humanas muito próprias, de terra e povo quais são. Isto parece verdade trivialíssima, no entanto sacrificam-na os economismos abstractos, os planeamentos feitos no espaço, pouco cientes das realidades geográficas, geo-humanas e psicológicas, os espiritualismos que se esquecem das carências materiais impostas pelo crescimento demográfico e a época, ou aliados aos teóricos do tipo anterior.

O erro dos “seareiros”, dos anti-românticos e “desmistificadores” obcecados – tem estado em postular que os elementos sentimentais, míticos e místicos são incompatíveis com a solução prática dos problemas, o progresso e a eficiência técnicas. Daí pressupõem uma alternativa que em abstracto parece válida (como eles dizem) mas que os factos em especial os culminantes, invalidam estrondosamente, provando que essas duas ordens de elementos são associáveis e até susceptíveis de se reforçarem uma à outra para obtenção de resultados excepcionais.

A história portuguesa abona essa aliança, tanto nos períodos áureos como nos de abatimento colectivo, para lhe fugir. Os calculistas de 1640, porque inteligentes, nada opuseram à imagem do Bandarra no altar da Sé de Lisboa.

Escandalosa demonstração de quanto a vivência ideal é convergente com a técnica, a ciência e a economia e do que podem alcançar correlatos na paz como na guerra, acaba de ser dada ao mundo pelos israelitas, desmentindo com evidências lancinantes o racionalismo de certos filósofos e a pseudo-ciência de historiadores em voga. Sem essa vivência ideal uma nação tão pequena de modo algum poderia ter conseguido os seus prodigiosos êxitos, quer no campo educativo, quer no económico e militar. Tampouco lograria aguentar-se na borda de água de um solo exíguo e sáfaro entre os árabes hostis.

(...) Nada justifica subordinarmos o nosso espírito, a nossa concepção de vida, o nosso estilo e gostos a figurinos estrangeiros, tampouco a orgânica escolar ou o planeamento económico, cujas bases outras não podem ser que as impostas pelas condições naturais e humanas do meio que nos é próprio.»

Francisco da Cunha Leão («Ensaio de Psicologia Portuguesa»).



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Fortaleza de Sagres


"As nações marítimas aprenderam na escola náutica de Portugal, cuja ciência constituiu a base fundamental da expansão da hegemonia da Europa"


Estão as descobertas plasticamente retratadas nos painéis de Nuno Gonçalves. São os marinheiros, os pescadores, os negociantes, os capitães do mar, os nobres, os letrados, os frades, o alto clero, os cavaleiros: homens rudes mas de fé: de uma serenidade interior firmada na altivez das certezas: e seguros de que prosseguiam um ideal comum, que a todos pertencia e interessava, e que por isso merecia todos os sacrifícios. Do conjunto anónimo do povo emergiram os grandes navegadores, desde Vasco da Gama e Cabral até Bartolomeu Dias e Gil Eanes; e os grandes governadores, a um tempo gente de mar, de guerra e de governo, desde Francisco Almeida até João de Castro; e grandes narradores das viagens, de Álvaro Velho a Pero Vaz de Caminha; e os mártires e missionários como Frei Henrique de Coimbra; e exploradores como Raposo Tavares e Pedro Teixeira. Foi um multiplicar de homens de primeira grandeza, proeminentes ou obscuros, e cujo recrutamento só foi possível porque a massa estava impregnada dos mesmos sentimentos e do mesmo espírito e da mesma decisão. Mas no imenso fresco humano das navegações e descobertas, entre todas as demais, avultam três figuras: o infante de Sagres, D. João II, Afonso de Albuquerque.

Painéis de Nuno Gonçalves


Painel dos Frades

Painel dos Pescadores

Painel do Infante

Painel do Arcebispo

Painel dos Cavaleiros

Painel da Relíquia

Dos retratos do infante D. Henrique, em particular de Nuno Gonçalves, projecta-se alguém que dá uma sensação de força interior, de fé, de disciplina, de dureza austera, de entrega a um ideal, de subordinação a valores que transcendem cada homem. São toscos e ásperos os seus traços; é desapiedada e fria a sua expressão; tem a serenidade tranquila daqueles a quem nada surpreende ou excita e que, a todo o instante, estão preparados para enfrentar riscos supremos e recomeçar se preciso; e o seu olhar tem a melancolia dos que se alheiam de tudo para prosseguirem sonhos e certezas íntimas que não são abaladas por nenhum poder ou argumento. Era a sua estatura de «compassada medida e de largos e fortes membros»; e fazia um «pouco temeroso» aquele que se abeirava da sua pessoa pela primeira vez. Disponha de energia física aparentemente ilimitada; tinha a coragem dos que são indiferentes perante a morte, porque os domina a humildade da fé, como perante a vida, porque esta só lhes vale para serviço de ideias e princípios; e foi temerário no comando da primeira vaga que se lançou ao assalto de Ceuta. Inspirava sossego o seu vulto, e tinha «a palavra mansa e constante no que dizia». Em trabalhos e crises, era «mui sofrido e senhor de si»; e encarava com equanimidade a fortuna vária. Estava sempre embrenhado em «pensamentos de altas empresas e obras de generoso ânimo» [1]; trabalhava sem descanso e em muitas noites os seus olhos não conheciam sono. Foi um cruzado pela sua fé e ardor militar; e um homem de Estado pela sua frieza e sentido prático. Não suportava a agitação da corte, nem as intrigas dos grandes; e sem ser sábio preocupava-se com a ciência e a cultura como elementos do bem comum e do acrescentamento do reino. Afirmam o seu interesse pelos estudos os que mais privaram da sua existência; e dedicava-se aos problemas da astronomia, da cartografia, das artes de navegar. Reuniu em torno de si e teve a seu serviço mestres cartógrafos e peritos de marear: alemães, genoveses, flamengos, venezianos, etíopes, índios, mouros. No seu retiro algarvio foi organizador, impulsionador, animador: tinha uma política e um plano: e foi executor sistemático de uma e outro. Vivia para o seu desígnio, e apoiava-o nos interesses da nação e no sentimento colectivo: as pequenas discussões dos senhores da corte e as teses e dúvidas dos cépticos e prudentes não o afectavam. Sofria pelo cativeiro do seu irmão em Marrocos: mas recomendava o seu sacrifício supremo: porque era impensável subordinar razões de Estado e interesses nacionais à vida de um homem. Tratava-se de prosseguir sistematicamente uma empresa: nenhum desvio era lícito consentir; e nada poderia ficar dependente do acaso ou de uma vicissitude. Alcançar o Oriente e a Índia era o objectivo último: para disseminar a Cristandade, para firmar o reino em apoios exteriores, para investigar as rotas marítimas e novas terras para fazer comércio. Este foi o instinto de um povo consciente: o Infante de Sagres foi escravo dessa consciência: e por mandato deste desbravou e iniciou os caminhos de uma realização nacional preparada de longe [2].


Montante do Infante D. Henrique







Por 1460 morria Henrique de Sagres, e deixava atrás de si os fundamentos de uma obra nacional. Cinco anos antes, em 1455, nascia o que viria a ser o Príncipe Perfeito. D. João II não foi perfeito no sentido se não ter sombras nem limitações: mas no sentido de ser uma personalidade completa e um acabado homem de Estado. Não era alto, mas de meia estatura, e seco; e inspirava tanta «gravidade e autoridade que entre todos era logo conhecido por rei» [3]. Era inflexível na justiça, e não distinguia entre categorias; e não permitia que a vontade ou desejos pessoais interferissem na aplicação daquela. Constituía-se em fonte exclusiva da lei: mas uma vez formulada, cumpria-a tão perfeitamente como se fosse seu escravo. Proibiu os luxos e alguns jogos. Era vagaroso no despacho dos negócios do Estado, para os considerar com minúcia; mas era metódico e pontual nos conselhos com os seus desembargadores, vedores e escrivães. Seu prestígio e fama passaram fronteiras; no reino era acatado e temido; e só com o olhar emendava qualquer pessoa que falava ou estava como não devia. Era calmo, seguro e constante; não fazia promessas mas não faltava às que fizesse, por maiores que fossem; e só com a sua palavra iam os homens tão contentes como se já levassem em mão os despachos feitos [4]. Quando havia de se vestir ricamente, para festas, prevenia os que deviam assistir para que trajassem por igual. Convidava para a sua mesa grandes letrados, e teólogos, e homens de mérito, e seguia atento as suas boas práticas e até disputas [Garcia de Resende, ob. cit., prólogo]. Foi muito católico, e temente a Deus, e afirmava-se que fazia as suas orações com os joelhos nus em terra. Sentia-se encarnação do Estado, da coroa, do reino e dos interesses do povo. Tinha viva e rápida memória; era claro e profundo o seu juízo; e nas suas falas e sentenças havia verdade, agudeza e autoridade. Possuía largueza de ânimo, e concebia empresas estranhas e em grande [5]. Não se dava por íntimo a ninguém: «foi o príncipe do seu tempo mais privado de privados» [6]. Não aceitava favores, e ficou sempre livre de qualquer repreensão: sendo «Senhor de Senhores nunca quis ser, nem parecer, servo dos servidores» [7]. Para João II, era suprema a razão de Estado: por maior que fosse a mágoa causada, tudo havia que subordinar àquela. Surpreendeu o duque de Bragança, Fernando, em conspiração contra a coroa e em práticas e inteligência com Castela. Foi implacável na sentença: suplício em cadafalso público na cidade de Évora. Proibiu que na corte alguém se vestisse de negro; mas o rei, por ser senhor dos duques e chefe de Estado, tomou luto; e por três dias não saiu, vestindo «sempre de panos de lã pretos, e de capuzes cerrados» [8]. Em obediência às razões de Estado, por suas mãos apunhalou o duque de Viseu, e declarou perante testemunhas e em auto os motivos do seu acto. Na altura logo mandou prender outros conjurados: o bispo de Évora; D. Guterres Coutinho, comendador de Sesimbra; e D. Fernando de Meneses e Pêro de Albuquerque, e D. Pedro de Ataíde, e outros: e todos em pouco faleciam de morte que, segundo fama, não fora natural mas artificial [9]. Alguns conspiradores – conde de Penamacor e elementos da nobreza – passaram a Castela e outros reinos; e aí intrigaram e agiram contra o seu rei e o seu país. Era de grandeza a visão do monarca, e apoiava-a com uma vontade inquebrantável. Em seu filho, o príncipe Afonso, via o detentor de uma monarquia imensa, que abrangesse as Espanhas e parte de Itália, e ainda os reinos longínquos de Prestes João. Um acidente – queda de um cavalo quando corria montes – matou o príncipe Afonso. Sentiu-se o rei esmagado pela dor, e viu desfeitos os seus maiores sonhos.  Mas não se lhe entibiou o ânimo, nem a vontade. A empresa do ultramar prosseguiu com o mesmo vigor; e tão ocupado e solícito o trazia este negócio que não lhe repousava o espírito [10]. Os reinos de Prestes João podiam e deviam ser conquistados. Mandou fundar o Castelo de S. Jorge da Mina; e impulsionou sem descanso a actividade descobridora. Diogo Cão achou o Zaire e o reino do Congo; foram alcançadas as paragens de Benim; e Bartolomeu Dias atingiu e passou o Cabo das Tormentas ou da Boa Esperança. Por terra, os portugueses chegavam ao Cairo, à Etiópia, a Adem. Era a realização do plano do infante, era a florescência de tudo para quanto o reino se preparara: depois de Ceuta, pouco mais de setenta anos haviam decorrido. E era já vasto o espaço português: para sanar dúvida, e acaso evitar atritos com Castela, D. João II assentou em Tordesilhas o que pertencia a uma coroa e à outra. Seguro por este lado, e continuando as ligações com Inglaterra, propôs-se o rei cometer o passo final: a Índia. Ainda iniciou a preparação da frota. Mas por 1495, na idade de 40 anos somente e após catorze de reinado apenas, morreu D. João II. Fora depositário da coroa, o fiel zelador dos interesses do reino, a encarnação viva do Estado, e o realizador de um pensamento histórico caracterizadamente português.

Reino do Preste João

Estava reservado a um contemporâneo do rei, e que lhe sobreviveu por duas décadas, construir o império das Índias: Afonso de Albuquerque. Era este de boa estirpe, filho de senhores de terras e neto de Atouguias. Frequentou a corte, e acompanhou de perto o Príncipe Perfeito, de quem foi estribeiro-mor. Decerto recolheu de João II a noção de Estado e do seu serviço, e os princípios de governo em que o bem comum e o interesse do reino constituíam prioridade absoluta. Não era Albuquerque homem de imponente estatura física; mas tinha aspecto grave; e com a idade dava-lhe «grande veneração» a sua barba branca. Era por vezes de graças, e até de motejos; mas ficava triste quando se indignava. «Falava e escrevia muito bem, ajudado de algumas letras latinas que tinha» [11]. Possuía sagacidade, agudeza, e era ardiloso nos negócios, conformando as coisas ao seu propósito; e para todos, consoante a estação de cada um, tinha um provérbio ou máxima a dizer. Dispunha de vontade e ânimo indomáveis, e dos seus subordinados exigia esforço até à exaustão. Foi para a Índia ao serviço de D. Manuel, oito anos depois de Vasco da Gama ali haver aportado, e quando já se havia organizado aquela em Vice-Reino, sendo D. Francisco de Almeida o seu primeiro Vice- Rei. Era o ano de 1505, e Albuquerque, embarcado na armada de Tristão da Cunha, chegava às paragens do Oriente por 1506 [12]. Durante uma longa década ali trabalhou e combateu, e não tornaria ao reino. Revelou-se então Albuquerque em toda a sua plenitude de homem de pensamento e de acção. A uma concepção imperial do Estado, e a uma arguta visão de política em grande, aliou qualidades de estratega e de guerreiro. Concebeu um império índico; soube identificar, por aquele instinto divinatório que nos homens de génio supre a experiência ou o conhecimento, quais as posições geográficas fundamentais em que a construção política desse império tinha de se apoiar; e na sua conquista pôs um ânimo resoluto, uma bravura aguerrida, uma obstinação sem quebra, que arrastavam todos ao combate e destruíam no inimigo a vontade de lutar e resistir. Estava longe e só; eram precárias e deficientes as cartas daquelas paragens, e vagas e muitas vezes enganadoras as informações locais; e eram escassos os meios materiais e militares ao seu dispor. Sem embargo, Albuquerque compreendeu que, para navegar livremente no Índico e manter-se na Índia, era indispensável assenhorear-se dos estreitos de Ormuz e de Adem, dominar posições-chave na costa indostânica, assegurar-se de Ceilão, garantir a Malásia. Era inteiramente novo na época este quadro estratégico; e tão rigoroso que, não obstante as modificações nas técnicas de guerra, continuou a ser verdadeiro pelos séculos. Foram quase incessantes os combates travados; e ao mesmo tempo não eram descuradas as providências de governo. De Goa fez Albuquerque o centro irradiador de portuguesismo, de ocidente e de Cristianismo. Procurou erguer sempre bem alto o prestígio do seu rei; e para serviço deste, e em obediência à razão de Estado, era implacável na punição de faltas. Mas os rigores de Albuquerque, e a sua pertinácia e fé, se construíam um império, não estavam à medida dos homens. A autoridade, a fama, a figura legendária eram corroídas na corte de Lisboa; e foi nesta que se demoliu passo a passo a construção de Albuquerque. Este não quis «mentir ao seu rei»; e sofreu por isso intrigas da corte. Retirou o monarca a confiança ao capitão-mor; para o substituir enviou à Índia o seu mais tenaz inimigo, Lopo Soares de Albergaria; e com este foram Diogo Pereira e Diogo Mendes, que Albuquerque havia feito regressar sob prisão ao reino. Ficou então o guerreiro terrível «de mal com os homens por amor del-rei, e de mal com el-rei por amor dos homens». E «com soluços de morte» escreveu a derradeira carta ao seu rei. Albuquerque teve a percepção de que ia começar o derruir da sua obra: viu inutilizados dez anos de trabalhos: e rasgado por homens sem estatura o sonho que erguera. Por uma inconfidência de um capitão de Lopo Soares soube «coisas que para a sua saúde foram veneno, e para a quietação do seu espírito muito danosas; porque, vendo ele os que el-rei ordenara para o governo da Índia, tão contrários ao que ele entendia que deviam ser, e do que lhe tinha escrito, foram para ele uma abreviação para a morte» [13]. Por isso, na sua última carta para Lisboa, não disse mais uma palavra: nem procurou exaltar a sua obra passada, nem fez sugestões quanto ao futuro, nem mostrou ressaibo de ofensa ou ressentimento. Cingiu-se a recomendar ao soberano o seu filho Brás de Albuquerque; e «quanto às coisas da Índia, ela falará por si e por mim» [14]. Por uma madrugada de Dezembro, à entrada da barra de Goa que era sua, e depois de praticar com Frei Domingos, «das coisas de sua alma», morreu Afonso de Albuquerque. Completara 63 anos. Estava-se em 1513.


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Naquele ano cumpria o reino quase quatro séculos de existência. Na sua crónica avultavam já homens que marcam gerações porque fazem épocas. De Afonso Henriques a Nuno Álvares, de Álvaro Pais a João das Regras, de D. Dinis a D. João II, de Henrique de Sagres a Afonso de Albuquerque fora longo, doloroso e heróico o caminho andado: e também fora consciente, ordenado e sistemático: eram quatro séculos de experiência que dá a maturidade. Mas sem aquelas figuras não seria o reino o que era em 1515.

(In Franco Nogueira, As Crises e os Homens, Livraria Civilização Editora, 2.ª edição, 2000, pp. 72-78).



[1] Citações extraídas do retrato do Infante de Sagres, por João de Barros. Décadas da Ásia, I, págs 65 e 66, ed. de 1945.

[2] Apoiados nos cronistas e fontes históricas, são unânimes neste sentido os especialistas portugueses, desde Jaime Cortezão a Damião Peres. Duarte Leite, porém, embora reconheça o Infante como alta figura na luzida falange das celebridades universais, põe limites à sua acção e nega a Escola de Sagres. História dos Descobrimentos, I, 96 e segs. No mesmo sentido, Magalhães Godinho, Ensaios, II, 67 e segs. Em sentido contrário, Armando Cortesão, História da Cartografia Portuguesa, II, 1971.

[3] Garcia de Resende, Crónica de D. João II, prólogo.

[4] Garcia de Resende, ob. citada, prólogo.

[5] Rui de Pina, Crónica de D. João II, cap. LXXXII.

[6] Rui de Pina, ob. cit., cap. LXXXII.

[7] Rui de Pina, Crónica de D. João II, cap. LXXXII.

[8] Rui de Pina, ob. citada, cap. XIV.

[9] Rui de Pina, ob. citada, cap. XVIII.

[10] João de Barros, Décadas, I, cap. XII.

[11] João de Barros, Décadas, II, cap. VIII.

[12] Apenas em 1510, com a partida de Francisco de Almeida, foi Albuquerque feito governador da Índia. Nunca chegou a ser nomeado Vice-Rei.

[13] João de Barros, Décadas, II, pág. 460.

[14] João de Barros, Décadas, II, pág. 460; D. Jerónimo Osório, Da vida e feitos de el-rei D. Manuel, II, pág. 171; Manuel de Faria e Sousa, Ásia Portuguesa, I, pág. 356.

Continua


Monumento a Afonso de Albuquerque (Belém).