segunda-feira, 28 de agosto de 2023

"O amor é uma realidade imaginária, e por isso mesmo dificilmente inteligível"

Escrito por Álvaro Ribeiro



Expulsão de Adão e Eva, por Alexandre Cabanel.


«Pinharanda Gomes classifica-o entre os "gnósticos" no seu Dicionário de Filosofia Portuguesa. Há, com efeito, em Álvaro Ribeiro o desgosto do mundo humano e a ideia de que a salvação vem pelo conhecimento. Como, porém, o conhecimento é interpretado em analogia com “O Homem conheceu a Mulher” do Génesis, o seu pensamento opõe-se a todas as correntes gnósticas que põem como condição do aperfeiçoamento humano a abstenção de relações sexuais ou a tolerância delas como um mal necessário, segundo o ensino de São Paulo. Deste ponto de vista, Álvaro Ribeiro não é um “gnóstico”, é um adversário da Gnose.

Aquilo a que podemos chamar a baixa gnose e que perpetua degeneradamente o ensino de São Paulo, na impossibilidade de reprimir o puro, natural, santo impulso do amor entre o homem e a mulher, procedeu à sua conspurcação pelo cinema, pela imprensa, pela rádio, pela televisão, pela pornografia, fingindo defendê-lo ao tornar patente e público o que só é verdadeiramente pelo segredo e pela relação individual. A colectivização do acto sexual constitui a última e aparentemente decisiva, julgam eles, consagração da magia negra pelo socialismo. Compreende-se assim que o nome de Álvaro Ribeiro seja silenciado e odiado à esquerda e à direita.

O amor entre o homem e a mulher é, em primeiro plano, uma relação sem mácula de duas naturezas. Pela palavra, a relação natural torna-se transparente do sobrenatural. A sua socialização movimenta as palavras e as imagens obscenas que atraem o que no sobrenatural constitui o mais baixo e reles demonismo. A palavra é pelo pensamento como o acto é pela palavra. Só o pensamento, criando as palavras da imaginação amorosa faz nascer o acto que eleva e redime. O pensamento é, porém, como o filósofo diz, uma actividade invisível do espírito cujo meio próprio é o segredo e o mistério.

Assim se evidencia a íntima relação da filosofia com o amor. Pelo pensamento poderemos viver o mistério que é o universo, o imenso universo de que o amor entre o homem e a mulher assistido por Deus é a renovação miniaturial, mas infinita. O perfeito amor é o que corresponde a uma perfeita filosofia e essa é a de Deus que devemos procurar imitar.»

António Telmo («A Ilha do Amor no Pensamento de Álvaro Ribeiro»).


«As teses da biografia íntima do pensador sublinham as posições da sua biografia exterior. Se conseguirmos estabelecer esta relação sublimante, conseguiremos apreciar a verdade concreta, a firmeza real das teses e do pensamento. Um exemplo: Álvaro Ribeiro teve uma infância difícil que lhe tornou tormentosa a transição à fala e para sempre lhe perturbou as capacidades de expressão oral. Todavia, enunciou a tese oposta a esta posição e empenhou-se permanentemente em afirmar e demonstrar que a fala é o mais elevado valor da natureza humana e a expressão a garantia da realidade, ou da verdade, do pensamento. Escreve, sobre esta tese, as melhores páginas que jamais se escreveram sobre a caracterização da língua portuguesa, da língua francesa e da língua alemã, como línguas da filosofia e, identificando a tradição com a pátria, enunciou a tese de que “a tradição é a língua”, isto é, de que na língua se guardam os significados, os conceitos e as ideias que, em suas sucessivas e múltiplas variantes, constituem a riqueza de pensamento de um povo, constituem a própria pátria, porque a pátria é uma entidade espiritual.

Outra posição de Álvaro Ribeiro foi a ausência de família, posição infeliz ou negativa em que o pensador firmou a tese contrária: a de que na família reside o elemento mais firme e fecundo da educação, não podendo nós esquecer que esta tese, de âmbito à primeira vista limitado, se amplia na tese inspirada na ética aristotélica, de que toda a filosofia é uma doutrina da educação ou uma teoria do ensino.

Ainda outra posição na biografia exterior de Álvaro Ribeiro, foi a da constante pobreza em que toda a vida viveu e, por vezes, muito sofreu. Todavia, o pensador, em vez de cair em qualquer vulgar preconização socialista da igual distribuição da riqueza, antes afirmou a sua concordância com as teses do liberalismo chegando até a enaltecer o positivismo – que doutrinariamente refutou – de Teófilo Braga por haver contrariado, com êxito, o republicanismo sindicalista de figuras da 1.ª República que lhe estariam mais próximas – dele, Álvaro Ribeiro – como o portuense Basílio Teles.»

Orlando Vitorino («As Teses da Filosofia de Álvaro Ribeiro»).



Orlando Vitorino


«O liberalismo da razão pura, ou o liberalismo puro, nunca poderia ser operante na vida social. Ele tem sido, porém, apresentado pelos doutrinários na expressão radical da liberdade indefinida ou infinita, na confiança plena dada à iniciativa particular, e na admissão providencialista do jogo das leis naturais. É evidente que tal liberdade concedida à motivação egoísta das actividades humanas tende a criar o estado de guerra, ou o seu análogo, na vida social, visto que as leis naturais são contingentes e estão maculadas pelo mal. Ao egoísmo dos homens sucede o egoísmo das instituições, e o próprio princípio associativo, ao intitular-se de socorro-mútuo, nessa designação exclui aqueles que, sofrendo de facto, não beneficiam de auxílio por não estarem em situação legal. O princípio regulamentar de só conceder benefícios aos sócios é a perfeita negação da caridade. A instituição egoísta fortalece o princípio da tirania, acabando por negar e contradizer a liberdade indefinida e infinita.

Não há, porém, puro liberalismo, nem liberalismo de razão pura, como não há puro naturalismo que se regule por leis físicas. A liberdade está condicionada pelo processo educativo, pela possibilidade de aperfeiçoar cada homem actualmente existente, e, mais ainda, pela possibilidade de transformar o género humano durante o processo infinito de redenção. A natureza, dizem os teólogos, tem de ser completada pela graça, e sem a graça não é possível a glória. A acção educativa é, portanto, uma acção de auxílio, e não uma intervenção de constrangimento. É de advertir que ao falarmos do processo educativo não nos referimos apenas à escolaridade. A escola moderna tende a desinteressar-se  mais do composto humano para se subordinar aos interesses mais imediatos, mais urgentes e mais prementes da sociedade.

Explicado assim que a liberdade depende da verdade, e não da vontade mais ou menos opiniosa, resta resolver o problema de saber quem é livre. É este, aliás, o problema equivalente ao de saber quem é sui juris. O doente, o degenerado e o anormal, seres nos quais a vontade não é livre, não podem exercer os direitos de concessão universal; nesse caso estão as crianças, quer dizer, os seres humanos em fase biológica de crescimento; outrora foram também considerados menores as mulheres e os escravos. Entre as pessoas legalmente consideradas livres, nem todas podem exercer os seus direitos, porque estes vão sendo cada vez mais condicionados por certas provas de ciência ou de liberdade. A burocracia faminta de papéis exige certidões, certificados e atestados que o cidadão obtém à custa de muitas humilhações perante os seus semelhantes, ou até perante os seus inferiores. A sociedade duvida cada vez mais de que os seus membros amem a verdade, tenham palavra de honra, sejam livres. Estas exigências burocráticas que tendem a aumentar com o rodar dos tempos, demonstram bem a distância que existe entre a vontade animal e a liberdade humana.»

Álvaro Ribeiro («Escola Formal»).

 

«A liberdade exige que o indivíduo possa prosseguir os seus propósitos; quem é livre em tempo de paz não está cativo dos desígnios concretos da sua comunidade. Essa liberdade de decisão individual deve-se à definição de distintos direitos individuais – os direitos de propriedade, por exemplo – e de áreas em que cada um pode usar para os seus próprios fins os meios com que conta ao seu dispor. Isto é, uma clara área de liberdade é definida para cada um. Tal é de capital importância. Ter algo de seu, mesmo que pouco, é igualmente o fundamento para formar uma personalidade própria e criar um ambiente distintivo em que cada pessoa prossiga os seus desideratos individuais.

A confusão nasce do pressuposto vulgar de que é possível ter esse tipo de liberdade sem restrições. Este pressuposto surge no aperçu atribuído a Voltaire de que “quand je peux faire ce que je veux, voilá la liberté” (“a liberdade é fazer o que bem entendo”), na afirmação de Bentham de que “toda a lei é um mal porque toda a lei é uma infracção à liberdade” (1789/1887: 48), na definição de Bertrand Russell de liberdade como “ausência de obstáculos à concretização dos nossos desejos” (1940: 251), e em inúmeras outras fontes. A liberdade universal é, não obstante, impossível neste sentido porque a liberdade de cada um claudicaria ante a liberdade ilimitada, isto é, na ausência de restrições, de todos os demais.

A questão é, portanto, como alcançar a maior liberdade possível para todos. Isso pode ser alcançado mediante a restrição da liberdade de todos por via de regras abstractas que impedem a coerção arbitrária ou discriminatória por ou de outras pessoas, evitando qualquer invasão da livre esfera individual de cada um (ver Hayek 1960 e 1973...). Em resumo, objectivos concretos comuns são substituídos por regras abstractas comuns. O governo é somente necessário para impor essas regras abstractas e, assim, proteger o indivíduo contra a coerção ou invasão da sua livre esfera pessoal por outrem. A obediência forçada a propósitos comuns concretos é equivalente a escravidão ao passo que a obediência a regras abstractas comuns – por mais pesadas que possam ainda fazer-se sentir – abre campo à mais extraordinária liberdade e diversidade. Por vezes, supõe-se que essa diversidade possa, contudo, redundar em caos ameaçando a ordem relativa que associamos à civilização, mas maior diversidade gera mais ordem. Daí que o tipo de liberdade possível graças à adesão a regras abstractas, em oposição à liberdade de restrições, seja, como Proudhon observou certa vez, “a mãe e não a filha da ordem!”».

Friedrich A. Hayek («Arrogância Fatal: Os Erros do Socialismo»).





«A Liberdade não é, ao contrário do que a etimologia da palavra possa sugerir, uma derrogação de todos os constrangimentos, mas sim a aplicação da mais efectiva observância de cada um dos justos constrangimentos a todos os membros de uma sociedade livre, sejam eles magistrados ou súbditos.»

Adam Ferguson


«Amor não quer cordeiros nem bezerros.»

Luís de Camões




O Amor


O amor é uma realidade imaginária, e por isso mesmo dificilmente inteligível. Quem estiver livre de confundir a imaginação com a representação mental e com a percepção, quem souber que a imaginação é criadora, saberá também que o amor se distingue do eros por um carácter sobrenatural. A atracção dos sexos, cuja fenomenologia naturalista se apresenta à consciência humana em imagens perturbantes, significa apenas uma relação a compor na correlação própria da analogia.

A linha de demarcação entre o natural e o sobrenatural não será a mesma para um critério histórico e para um critério metafísico, mas seja qual for o critério adoptado, sempre a distinção há-de contribuir para a inteligência da condição sexual da humanidade [1]. Os fins superiores da vida humana realizam-se por mediação do amor, graças à imaginação que os amantes intercalam no que naturalmente é comparável ao procedimento das espécies zoológicas. A decadência da arte explica a redução da vida amorosa à vida erótica quando a humanidade sofre o cansaço de imaginar.

O estudo do amor conduz necessariamente ao estudo dos mitos, e a presença da mitologia é critério bastante para separar a poesia lírica da poesia de amor. Está no Simpósio de Platão a prova filosófica de que o conceito de Eros não é suficiente para explicar a ideia de Amor. Admitido que o amor propõe à consciência um problema humano, um segredo natural e um mistério divino, convém reconhecer que na adunação está efectivamente a religião.

Alguns compêndios de psicologia inserem, no capítulo dedicado à vida afectiva, breves referências ao amor, mas tudo confundem com o tratamento esquemático das emoções, dos sentimentos e das paixões. É, todavia, evidente que o amor não pode ser classificado entre os fenómenos afectivos. O amor é uma realidade transhumana e transcendente, de que podemos ou não ter consciência, embora seja certo que esta realidade revela a sua verdade mediante emoções, sentimentos e paixões.

Incluir o estudo do amor nos livros de psicologia equivale a reconhecer que só pela palavra, pelo modo por que a psique formula o seu logos, sabemos que o amor é algo desconhecido pelos animais. A arte da palavra é efectivamente o que humaniza e imanentiza essa realidade transcendente a que damos o nome de amor. Neste aspecto se vê quanto a psicologia se relaciona com a literatura.


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O vero atractivo da obra literária está na promessa de descrever, e de narrar, como é que as personagens tomam consciência do amor, não só para o exprimir mas também para o explicar. Muitas vezes tal consciência não se dá perfeitamente, e então é o escritor quem excita o leitor a assumir consciência da inconsciência das personagens, acrescentando com a ironia reflexiva um motivo de maior interesse na feitura do romance. Vendo que as personagens vivem emoções, sentimentos e paixões que, por motivos vários, não se referem directamente ao ser amado, o leitor observa uma inconsciência que há-de ter efeitos dolorosos, traumáticos, alarmantes, até ao momento trágico em que as personagens se desenganam e se defrontam com a vontade.

O carácter involuntário e inexplicável do amor é que permite confundi-lo com a paixão, e neste engano diz o vulgo que determinado homem está apaixonado. O homem que ama sabe que é livre, mas a sua libertação passa do sofrimento para o sentimento, e do sentimento para a imaginação, segundo um ritual de expressão e de comunicação a que a mulher, já prevenida e preparada, naturalmente se conforma. Errada é, pois, a nomenclatura da sedução, da conquista e da posse, porque, oriunda dos domínios da vontade e da violência, não pode adequadamente cingir os aspectos evasivos do amor.

O amor humano abrange as ordens corporal, anímica e espiritual. Nisso se distingue, sem comparação degradante, com o instinto de reprodução dos animais. A ética do amor seria mera convenção moral, sempre discutível, se a perfeita união da mulher com o homem não tivesse repercussões virtuosas ou pecaminosas na ordem do Espírito.

A união amorosa realiza-se em três planos que poderíamos dizer da vida afectiva, da vida imaginativa e da vida racional, escala cuja ascensão e descensão abre sempre novos horizontes aos amantes. A imaginação é, efectivamente, o poder mais alto que ao ser humano foi dado para atenuar a dor, se não para atingir o prazer. Quando a razão expulsa a imaginação, quando o ser amante julga o ser amado, a conclusão chama-se divórcio, separação de dois egoísmos.

Confundir a vida instintiva, a que o sedutor se cinge, com a vida emocional, apenas porque uma e outra se denunciam pelo comportamento fisiológico, equivale a confundir imanência com transcendência. A palavra intervém sempre para humanizar a vida, e é pela magia das palavras, ou pela poesia, que o homem e a mulher se podem assegurar de estarem ou não perante o amor. Sem eloquência não há vida amorosa, e a prova é que para simular o amor em actos de sedução é indispensável recorrer a palavras falsas.

Toda a nossa atenção incide sobre os verbos que exprimem a consciência do estado amativo, e sobre eles é possível fazer um admirável estudo de psicologia e de filologia. A consciência exprime-se por locuções em que entram os verbos auxiliares, seguidos de nome predicativo do sujeito, quando por egoísmo a pessoa não excedeu o grau de liricidade. Uma vez reconhecida a pessoa amada, uma vez imaginada a superioridade da pessoa amada, já o amor se exprime por verbos activos e transitivos, verbos que pedem complemento directo.

A declaração de amor utiliza verbos como desejar, querer, gostar, etc., mas também usa substantivos verbais, quer dizer, os substantivos que designam acções e paixões, embora não seja esta a definição corrente na nomenclatura gramatical. Afeição, admiração, adoração substantivam mas exprimem actividades da alma amante, a que responde a alma amada com a passividade de termos tais como compaixão, simpatia, ternura, querença. A imaginação, exprimindo hipérboles, compõe os dizeres amorosos com as promessas de eternidade.




Ao estudo da linguagem do amor pertence também o estudo dos termos de comparação de que o amante se utiliza quando pretende louvar a pessoa amada. Lembremo-nos do Cântico dos Cânticos, e por esse exemplo nos guiemos para observar a relatividade das circunstâncias e das oportunidades que sugerem as metáforas da poesia de amor. O estudo estilístico terá de ser acompanhado pelos estudos foclórico e etnográfico, sabido que a poesia primitiva, ou popular, é a matriz das mais altas obras da literatura.

É indispensável, como vemos, um certo domínio da linguagem para atingir alta consciência do amor. A infância, isto é, a idade em que a criança não fala, ou ainda não fala correctamente, não pode ser idade de amor. A precocidade da mulher em relação ao homem, no desembaraço da fala, na escolha ou invenção de expressões melodiosas, na espontânea aptidão para cantar, são indícios de que para o sexo feminino o amor contém maior importância do que lhe atribui o sexo masculino.

Há muitos escritores que, cientes da verdade de que logo ao nascer pertencemos a um dos sexos, afirmam que a consciência do amor possa surgir antes da puberdade, e confirmam a sua tese mediante a descrição fenomenológica de emoções, sentimentos e paixões que se revelam na puerícia, idade que se conta dos sete aos catorze anos. Estes amores, falsamente chamados infantis, porque quem ainda não fala ainda não sabe amar, têm até sido poeticamente descritos em diários, memórias e obras literárias. Tais documentos humanos de imperfeita consciência do amor revelam uma expressão que ainda não é comunicação, ou comunicativa, provam que é indispensável o tempo próprio para que se verifique o trânsito da potência ao acto.

Durante a puerícia é mais natural a indiferença ou o desinteresse de um sexo pelo outro do que a curiosidade tendenciosa para as relações sexuais, embora a imitação das atitudes e dos procedimentos dos adultos possa surgir de exemplos dados no ambiente social. Muitos incitamentos exteriores apressam a curiosidade pela temática amorosa, e muitos exemplos incitam a puerícia a um desequilíbrio moral pela precocidade erótica. Será difícil preservar o pudor natural das crianças num ambiente em que os chamados meios de difusão da cultura estão, e não podem deixar de estar, impregnados de problemática afrodisíaca [2].

Incitar os adolescentes a que procurem pessoas que não respeitam, não estimam, não amam, para com elas praticarem a simulação do amor, num contrato miserável e por vários aspectos comparável ao homicídio, é um crime, porque transforma os vivos em mortos. Esta negação do amor, professada por aqueles que chamam ao casamento um contrato, segundo uma definição já condenada na Filosofia do Direito de Hegel, contradiz a teologia do matrimónio e, com ela, o significado espiritual da vida humana [3]. Tal simulação chega a ser tolerada por pessoas que se jactam de bom comportamento moral.

O preconceito egoísta denuncia-se, porém, na unilateralidade das expressões vigentes. Cada pessoa pretende resolver apenas o seu próprio problema sexual, indiferente a quaisquer razões de amor. Assim, em consequência desta atitude solipsista, os verbos casar, separar e divorciar são usados na conjugação reflexa, o que é linguisticamente bem significativo do carácter individualista dos nossos costumes e da nossa legislação.

Além destes aspectos, que alarmam o moralista, convém prestar atenção a que se acentua cada vez mais a tendência para a masculinização da cultura durante a idade escolar. Quanto mais vencer a tese da igualdade dos sexos perante o padrão masculino, quanto mais a mulher se desvestir dos atributos de feminilidade, por influência da escola, tanto mais a vida amorosa tenderá a descer à preocupação elementar da satisfação dos instintos. A mulher crê na superioridade da cultura masculina, pretende absorvê-la e assimilá-la, mas na medida em que imita o homem vai considerando ridículos e desprezíveis os atributos que outrora eram tidos por característicos da feminilidade.

As doutrinas religiosas explicam a relação da mulher com o homem pelo simbolismo da relação da carne com o espírito. O matrimónio solidário dos mistérios da encarnação, da redenção e da ressurreição, sacramentando confere as graças especiais dos casados e dignifica a geração humana. Infelizmente, porém, as doutrinas religiosas vão-se adulterando em doutrinas sociológicas, e já os moralistas se contentam apenas com sobrepor ao facto natural o direito social.

A moral condena, pelo ridículo, o homem que de qualquer modo se afemina, e a lei intimida-o até com violentas sanções; mas a sociedade tolera que a mulher a pouco e pouco adquira atitudes e hábitos masculinos, desde o corte do cabelo até ao vestuário de uniforme. A transfiguração da mulher, nos limites consentidos pela Natureza e tolerados pela Sociedade, não pode deixar de adulterar a significação do amor, da maternidade e da família. O homem há-de sentir-se humilhado quando reconhecer que a mulher, em vez de manifestar a superioridade que é própria do seu sexo, perverte a imaginação em inteligência, para dominar nos campos abertos ao instinto combativo.

Ninguém observa com atenção suficiente que é injusto obrigar a rapariga a receber o mesmo ensino escolar que foi destinado para o rapaz, e que tal injustiça é clamante no período dos sete aos catorze anos. É de alarmar a ignorância de que a mesma idade cronológica não corresponde nos dois sexos a iguais idades biológicas e psicológicas, pelo que não pode haver ensino simultâneo dos mesmos programas escolares. A rapariga cumpre mais aceleradamente o ciclo da evolução, que pode dar-se por definido na puberdade, pela consciência da finalidade maternal, que a torna verdadeiramente mulher, enquanto o rapaz só nesta idade desperta para a seriedade da vida à chamada da vocação.

Diz-se que as raparigas são mais precoces do que os rapazes, mas convém explicar esta noção de precocidade pelos seus motivos biológicos e psicológicos. Fácil é verificar quanto as raparigas são sensíveis ao ridículo, dotadas de aptidão para as expressões cómicas, que transmitem umas às outras com risinhos em voz baixa; fácil é verificar que os rapazes se dedicam à exteriorizar a vontade, falando alto e gritando, satisfazendo por processos violentos a sua profunda tendência expansionista. As raparigas cedo se dedicam ao estudo das pessoas, dos caracteres e dos temperamentos, ganhando assim superioridade sobre os rapazes que, mais reflexivos, e intimidados, só depois da adolescência hão-de entender a diferente psicologia de cada sexo.

A tendência para o individual, o pessoal e o concreto é mais nítida na rapariga, que tem melhor memória para o jogo lúdico das palavras, enquanto que o rapaz, para dar à vontade a justificação racional, tende para o juízo reflexivo e para a abstracção. Não há, para a dialéctica, metodologia mais útil do que seguir as fases do jogo, da arte e do trabalho nas várias idades, para ver como elas naturalmente se diferenciam conforme os sexos. A rapariga tende espontaneamente a brincar com a boneca, a exercitar a sua habilidade manual nos trabalhos relacionados com a alimentação, o vestuário, o mobiliário e a habitação, a distinguir-se no que se convencionou chamar «artes decorativas»; enquanto o rapaz se concentra com os brinquedos mecânicos, em busca de uma física que ninguém o auxilia a descobrir, ou a arquitectar edifícios que se transformem em fábricas por virtude da engenharia, ou a procurar mundo onde possa dar expansão às suas tendências combativas, aventureiras e nómadas.

Vemos assim que o programa de ensino deve ter por lema transitar do concreto para o abstracto, considerando primeiro a antropologia com a biografia e a história, seguidamente as ciências biológicas e a geografia, depois a física e as técnicas industriais, e por fim a matemática. Claro está que a ordenação minuciosa das matérias destas disciplinas não pode ser a mesma para raparigas e para rapazes, se atendermos a que a evolução biológica e psicológica de ambos os sexos não é simultânea, e que portanto não podem ser simultâneos os mesmos centros de interesse. Raparigas e rapazes não podem aprender ao mesmo tempo as mesmas disciplinas ou, com maior exactidão, exercitar os processos mentais que tais disciplinas exigem, mas é nesta desarticulação das ciências e das artes para fins didácticos que falham muitos redactores de testes, de pontos para exame e de livros escolares.

Só depois da puberdade, fixada e definida a alma, é que começa a deixar de ser perigosa para ambos os sexos a uniformidade didáctica e a ser conveniente o ensino comum. O ingresso nas escolas de habilitação profissional, tanto das profissões inferiores como das profissões superiores, poderá ser condicionado por um exame de aptidão, mas nunca por um exame à soma de conhecimentos que pode e deve ser diferente, que pode e deve ser desigual, nos estudantes dos dois sexos. A complementaridade de pontos de vista, masculinos e femininos, perante a mesma técnica, a mesma ciência ou a mesma metafísica, será um benefício social.

Muito grandes são os estragos que na alma feminina exerce o ensino público, sempre que pela masculinização tende para a uniformização que nunca chega a ser espiritual. Nem todas as mulheres se defendem daquela linguagem impessoal, ou abstracta, que estrutura as técnicas, as ciências e as metafísicas; nem todas as mulheres se libertam daqueles modos de raciocinar ou de pensar, que docilmente assimilaram enquanto estiveram na escola. Felizmente, porém, maior é o número daquelas que se desprendem de pesos mortos, que lhe dificultam a vida, para regressarem ao que efectivamente é a sua vocação natural e sobrenatural.

A mulher consciente sabe que o seu primeiro dever é ser bela, que deve cultivar e aperfeiçoar o seu tipo de beleza, visto que de um modo geral se pode dizer que não há mulheres feias. A fealdade só é ostensiva na mulher que não cuida do seu corpo, do seu vestuário, da sua habitação. A mulher dotada de imaginação saberá sempre valorizar a parcela de beleza com que foi brindada por Deus.

A mulher comunica-nos a sensação de beleza quando tem consciência do valor do seu corpo. Quando a mulher se compenetra de que o seu corpo deve ser belo como um templo, também o resguarda dos olhares profanos como quem reserva um tesouro. A simetria, a estabilidade e a altura da mulher dão à sua figura algo de hierático e arquitectónico, inspirando os pintores a representarem a beleza invisível em retratos que hão-de ser sempre admiráveis.

A pintura esforça-se por fixar todas as gradações do pudor feminino, porque a arte é a representação sensível do insensível, que se aperfeiçoa ascendendo do problema para o segredo, e do segredo para o mistério. O pudor feminino é graça que todos os homens respeitam, quando a reconhecem autêntica e sincera. Tal respeito perdura até nos tempos em que a dança, os desportos e a ginástica parecem aconselhar à mulher a completa desnudação, antecedente de uma dádiva  total, sem reserva nem escolha.

A mulher é atraente, mas para atrair acentua a sua beleza com ornatos de joalharia. A mulher sabe sempre que o homem tantas vezes ignora quando interpreta o simbolismo das jóias. Assim realça a fronte com o diadema, as orelhas com os brincos, o colo com os colares, os braços com as pulseiras, os dedos com os anéis, para que a fragilidade da carne aumente de beleza no contraste com a preciosidade dos metais.



A mulher é atraente na medida em que a beleza, valor estético, significa atracção. Bem sabemos que a beleza feminina é efémera, móvel e simbólica, mas há mulheres que a podem conservar por graça que dura a vida inteira. Na sua mobilidade, a mulher pretende impressionar um só tipo de homem, ou um só homem, aquele que já elegeu ou que há-de ser eleito, porque é feminino viver no signo da monogamia, exclusiva e total.

Erram quantos julgam ser a mulher naturalmente vaidosa. A vaidade é ávida de aplausos e louvores, e vaidosos são os homens que exultam com as condecorações no peito e com as coroas na cabeça – sejam coroas de metais, de louros ou de espinhos –, contanto que assim ostentem o sinal de estarem dependentes da opinião dos seus semelhantes. A mulher procede muito mais por opinião própria, com a perseverança de quem persegue um destino, resignada e paciente.

Acumulando motivos de distinção entre as outras mulheres, e de brilho que impressione os olhos dos homens, cada qual pretende exteriorizar simbolicamente o que a sociedade lhe impede de exprimir directamente pelas emoções. A moda, ou mudança de vestuário, vale de discurso alegórico pelo qual a mulher, quando sabe perfeitamente o simbolismo das cores e das formas, torna a sua alma inteligível a quem for capaz de a entender. Nada contraria tanto a feminilidade como a renúncia à liberdade de expressão simbólica, nada lhe repugna tanto como a obrigação de vestir um uniforme.

Ninguém ignora o simbolismo do preto e do branco no vestuário, ninguém ignora o significado do luto e da candura, da viuvez e da virgindade. Todas as cores são dotadas de significação notável, todas as figuras que contornam as cores representam realidades inteligíveis, e não há mulher que desdenhe a graça de rever no espelho os fantasiosos enfeites da sua arte admirável. Adivinhar o que o símbolo diz quando falta a palavra, eis o que só é dado aos homens que estudam fora dos livros a estética, porque a estética, ciência dos símbolos ou simbologia, tem por efeito exercitar a alma na intuição precisa dos segredos naturais.

A sociedade não consente que a mulher exprima tumultuariamente as suas emoções, nega-lhe o direito de manifestar o natural anseio de obter a companhia do varão, obriga-a retrair-se numa atitude expectante, e assim é o sexo feminino impelido a usar a linguagem indirecta dos símbolos, espera ser desejado enquanto não lhe for lícito desejar. Decerto que o desejo não é ainda amor, decerto que o desejo é obscura consciência do instinto que quer ser dado à luz gloriosa da sensação, mas consciência dolorosa e sofredora. A equivalência entre desejo e sofrimento, em que por leviandade de alma poucos reparam, torna-se evidente a quem passou sede ou fome, conforme aliás se diz em comparações usuais da linguagem erótica.

A mulher tem por mister esforçar-se por ser admirada, desejada e amada, para que entre os sucessivos pretendentes vá eliminando os que menos lhe agradam até à hora decisiva da escolha. As palavras compaixão, condolência e concordância, que podem valer de sinónimos para simpatia, denotam bem que o amor se revela pela simultaneidade de dois sofrimentos, pela esperança comum de sublimar a dor pelo prazer. Toda a arte de amar gira em torno da compaixão, conforme demonstrou Miguel de Unamuno no livro intitulado Del Sentimiento Trágico de la Vida.




A mulher declara a compaixão pelo homem de quem admira a superioridade, qualquer que seja o tipo social da superioridade. Enquanto umas mulheres julgam, porém, essa superioridade desejável só para seu benefício, antegozando graças a obter mediante o casamento, tão estáveis quanto garantidas pela legislação civil, outras não ignoram que a superioridade masculina aparece desarmada neste mundo, e que a sociedade não reconhece à primeira vista os santos, os heróis e os génios. A mulher amante dispõe-se a subordinar a sua vida à vida do seu amado, e, nesta subordinação tão voluntária como consciente, gratifica o homem com a possibilidade de seguir a sua carreira, de vencer e de triunfar.

Condenáveis e lamentáveis nos parecem todas as mulheres que, dando ouvidos a terceiras pessoas, impediram os seus maridos de realizarem as obras a que deveriam ter-se dedicado por vocação. Grande é o número de artistas, escritores e pensadores que, contrariados pelo egoísmo pessoal, familiar ou mundano de suas mulheres, desistiram para sempre de cumprir a missão superior. Todos nós conhecemos vários exemplos na sociedade contemporânea, e se bem que a decência impeça de os apresentar a execração pública, nada evita que sejam por vezes relembrados em conversas particulares ou confidenciais.

O mérito, para não dizermos o dever, da mulher casada está em adaptar-se às condições sociais do marido, e não na perfídia que contraria a vocação masculina, alegando exigências de economia familiar. Todos os homens concordam com igual doutrina quando, enternecidos pelo amor ou até pela amizade, afirmam que não desejariam que as suas mulheres trabalhassem fora do lar, e quando, em consequência dessa doutrina, procuram acesso a profissões mais remuneradas, para acertarem enfim a economia doméstica. O egoísmo masculino renega, porém, aquela doutrina, quando admite que as mulheres dos outros percam a beleza, a saúde e até a honra no exercício das mais duras profissões do comércio, da indústria e da agricultura.

A mulher faz a graça ou a desgraça do homem, porque lhe propõe as ideias, emoções e figuras que estimulam ou atenuam a sua actividade. Da qualidade destas figuras, emoções, ideias, que pairam na atmosfera de sonho, de poesia ou de realidade, depende a possibilidade de o homem ser herói, artista ou santo. Na mulher que escolheu, e que escolheu porque a considerou bondosa, bela ou inteligente, o homem, senhor da sua liberdade, hipotecou perigosamente o seu destino [4].

A mulher bem avisada deve estar preparada para reconhecer quão fraco é na vida íntima do lar o homem que parece forte na via pública, conhecer os desânimos, as desistências, as covardias do sexo masculino nas horas de perturbação, e reanimar o amado para nova luta contra falsos amigos e verdadeiros inimigos [5]. É por isso que a mulher casada, pela sua dedicação a um só homem, realiza um sacrifício incomparavelmente mais valioso do que as mulheres que, repartindo o seu zelo pelos serviços de instituições, tais como as puericultoras, as enfermeiras e as espias, não sabem o que é dádiva total de pessoa a pessoa. A mulher casada pode ser obrigada a suportar integralmente o peso da infelicidade que recai sobre o seu marido, quando outras circunstâncias dramáticas não afectam a vida conjugal, o que não acontece às mulheres solteiras que, embora lutando com as asperezas e as dificuldades do exercício de uma profissão, gozam de um prestígio cada vez mais garantido pelos costumes, pelos regulamentos e pelas leis.


Eros e Psique

A monogamia, que as instituições defendem a favor da mulher, depende em grande parte da conservação do sigilo conjugal. Estranho é que na lei não esteja prescrito este dever de ambos os cônjuges, porque sem a conservação do sigilo conjugal não pode haver fidelidade amorosa, nem pode o casamento realizar plenamente os fins da família. Ao tornar público o que é privado, ao relatar em conversas fúteis e inúteis todas as experiências dolorosas, desde as doenças do corpo, alma e espírito, até aos desastres nos ócios e nos negócios, o cônjuge inconfidente devassa a intimidade do lar, abre a porta à devassidão.

Verdade é que a moral não faz pressão para que o sigilo conjugal seja de lei. A moral representa os sentimentos da mediocridade e da mediania em transigência mais ou menos elástica com os supremos valores. Ora todos observamos que os homens, logo na adolescência, são instigados a confessar as aventuras eróticas de que foram protagonistas, e assim, para satisfazerem a vaidade própria do sexo masculino, pecam contra a gratidão devida ao sexo feminino.

O mancebo que narra um encontro erótico, seja em conversa alegre ou em poema lírico, e que não guarda total segredo sobre a identidade da mulher, está a aviltar-se, sem que disso tenha consciência, perante os que escutam, ou os que o lêem, com sorriso acolhedor, irónico e condenatório. Não observa que a si mesmo confere um atestado de delator o homem incapaz de defender pelo segredo a honra da mulher. Na ausência será escarnecido pelos companheiros, esse homem que sobrepõe o amor-próprio ao amor alheio, esse homem que não merece ter amigos.

A condição do amor é uma vida secreta, que só pode exprimir-se por alegorias. Toda a literatura, exactamente porque usa de liberdades poéticas, confirma a verdade transmitida por velhas tradições. Mal vai aos homens e aos povos que, por esquecimento da sabedoria tradicional, já não entendem os motivos profundos desta condição.

O amor tem de ser secreto porque contra ele luta a entidade mais poderosamente inimiga da vida, que é a inveja. Até as inocentes crianças, maculadas pelo pecado original de não poderem ver o amor, riem maliciosamente dos namorados e dos amantes, quando não os perseguem e perturbam até lhes frustrarem as condições de felicidade. É dos adultos, porém, que surgem os processos auxiliares da inveja, dirigidos para combater eficazmente o amor, para reprimir a exteriorização das emoções, dos sentimentos e das paixões, para enfraquecer no condicionamento sociológico as energias criadoras da vida.

A maledicência, que é um dos processos mais vulgares no combate da inveja contra o amor, a maledicência, que tem por fim a desonra do homem ou da mulher, é significativa de falta de imaginação. A maledicência é, por isso, um sinal de decadência. Quem diz o mal torna-se a pouco e pouco incapaz de ouvir o bem.

(In Álvaro Ribeiro, A Razão Animada, Sumário de antropologia, Livraria Bertrand, 1957, pp. 249-263).





[1] Edith Stein, Frauenbildung und Frauenberufe, Munchen, 1949. Tradução francesa de Marie-Laure Rouveyre, com o título La Femme et sa Destinée, Paris, 1956.

[2] Henri Bergson, Les Deux Sources de la Morale et de la Religion, Paris, 1932, p. 326.

[3] G. W. P. Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts, Berlin, 1833, §§ 75 e 163.

[4] John Stuart Mill, Autobiography, London, 1873. Tradução portuguesa de Flausino Torres, com o título Memórias, Lisboa, s. d.

[5] Ashley Montagu, The Natural Superiority of Women, London, 1954.






sábado, 26 de agosto de 2023

"Amor é fogo que arde sem se ver..."

Escrito por Luís de Camões



Amor é fogo que arde sem se ver;

É ferida que dói e não se sente;

É um contentamento descontente

É dor que desatina sem doer;

 

É um não querer mais que bem querer;

É solitário andar por entre a gente;

É nunca contentar-se de contente;

É cuidar que se ganha em se perder;

 

É querer estar preso por vontade;

É servir a quem vence, o vencedor;

É ter com quem nos mata lealdade.

 

Mas como causar pode seu favor

Nos corações humanos amizade,

Se tão contrário a si é o mesmo amor?

 

Luís de Camões (Rimas).


Gruta de Camões em Macau.

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Da índole amorosa do português

Escrito por Francisco da Cunha Leão


Serra do Marão

«(...) À voz do sangue responde a voz da terra; e este diálogo misterioso mostra os caracteres da nossa íntima fisionomia portuguesa.

A Ibéria foi primitivamente povoada por diversos Povos de que descendem os actuais castelhanos, vascos, andaluzes, galegos, catalães, portugueses, etc.

Aqueles Povos pertenciam a dois ramos étnicos distintos, diferenciados por estigmas de natureza física e moral.

Um dos ramos é o ariano (gregos, romanos, godos, celtas, etc.); e o outro, é o semita (fenícios, judeus e árabes).

O Ária criou a civilização greco-romana, o culto plástico da Forma, a beleza concebida dentro da Realidade próxima e tangível, o Paganismo; o Semita criou a civilização judaica, a Bíblia, o culto do Espírito, a unidade divina, a beleza concebida para além da Matéria.

O Ária cantou, nos cumes do Parnaso, a verde alegria terrestre, a infância, a superfície angélica da Vida; o Semita glorificou, nos cerros do Calvário, a dor salvadora que nos eleva para o céu, o céu da Redenção, pelo sacrifício do individual ao espiritual.

Vénus é a suprema flor do Naturalismo grego; a Virgem Dolorosa, a suprema flor do Espiritualismo judaico. A primeira simboliza o amor carnal que continua a vida, esta, o amor ideal que a purifica e diviniza.

O Ária (celtas, gregos e romanos) trouxe, portanto, à Ibéria o Naturalismo, e o Semita, (árabes e judeus) o Espiritualismo.

Povos destes dois ramos étnicos tão diferentes, misturam-se na Península, originando as antigas Nacionalidades que Castela submeteu à sua hegemonia, com excepção de Portugal. Todavia, conservam uma certa independência moral revelada pelos idiomas ainda hoje falados na Espanha.

Portugal resiste, há oito séculos, ao poder absorvente de Castela. Demonstra este facto que, de todas as velhas Nacionalidades peninsulares, foi Portugal a dotada com mais força de carácter ou de raça.»

Teixeira de Pascoaes («Arte de Ser Português»).

 

«Se o corpo de Vénus é feito de espuma do mar, a Virgem Maria é a mais alta e translúcida espuma da Alma.»

Leonardo Coimbra («Camões e a Fisionomia da Pátria»).


O Nascimento de Vénus, do pintor William-Adolphe Bouquereau.

«A arte de amar, ensinada por vários tratadistas que se limitam a explicar o que é explicável, não preceitua mais do que exercício incessante da imaginação. Quem pela primeira vez declara o amor, por palavras bem ou mal inspiradas, assume o compromisso de repetir diariamente essa declaração, mas obriga-se também a inventar processos sempre diferentes de manifestar a fidelidade e a lealdade ao ente amado. Fazer voto de amor, por qualquer fórmula de juramento, é devoção que logo se transforma em obrigação.

Toda a arte do homem amante está em fazer louvar a mulher amada, em evitar a repetição que mecaniza, banaliza e adormece a vida sentimental, em reconhecer a gradação subtil dos diferentes vínculos de amor. A graciosidade da linguagem do adolescente que perpassa na dialéctica dos amantes, o ideal de fidelidade electiva que enobrece e sublima os mútuos juramentos, o encanto sentimental que se corporiza no apogeu da volúpia, constituem graus de uma fenomenalidade que só o escritor de génio pode exprimir sem banalidade, estultícia ou profanação. Torna-se patente a inépcia do romancista que se demora no descritivo e no narrativo, por preconceitos naturalistas ou realistas, quando seria o momento literário de vencer o empirismo pelo raciocínio e o realismo pela imaginação.

Na penumbra propícia a um ritual sagrado existem segredos naturais que o literato vulgar não sabe descrever. Quem não os respeita, reverencia e venera, quem sobre eles se propõe projectar a cruenta luz meridiana, confessa por isso não compreender a analogia profunda da morte com o amor, patenteia ignorar a significação da palavra metamorfose. Confessa assim, e também, que ainda não soube atribuir significado religioso aos actos habituais da vida quotidiana.

Conhece talvez o literato a antiquíssima comparação do sono com a morte, mas não aproveita, antes despreza, essa comparação que a literatura tornou banal. Nunca meditou, porém, na analogia do cerrar dos olhos com a cerração da noite, do leito com o túmulo, dos brancos lençóis com os alvos mármores. Ao despir-se, ao deitar-se, o homem desenvolve-se das roupas que o aquecem, protegem ou mascaram; goza um prazer que não é mais do que alívio do sofrimento inconsciente que lhe deu a canseira do trabalho quotidiano; não repara, porém, que no acto prefigura o despir das faculdades vigilantes que a alma há-de perder para atingir a nudez esotérica.

O artista que não respeita o ritual da desnudação, é artista que não compreende o nascimento, o amor e a morte; não sabe distinguir a verdade nua da verdade revelada; tenderá sempre a descrever o encontro dos amantes em termos de pornografia ou, seja, de profanação. Não compreenderá a beleza secreta da palavra sacrifício, nem, portanto, o encanto eloquente da renascença ou, que o mesmo é dizer, da ressurreição.»

Álvaro Ribeiro («A Razão Animada»).


Marte sendo desarmado por Vénus, por Jacques-Louis David.


Da índole amorosa do português


«De amor escrevo, de amor trato e vivo.»

Luís de Camões


O carácter do amor foi por nós observado, a traços largos, numa rubrica de «O Enigma Português, onde vincámos neste aspecto e sobre o fundo comum peninsular, a diferença entre portugueses e castelhanos, tão denunciada na literatura e na história.

Aliás esse carácter é dos mais versados pelos estudiosos das nossas letras. Na definição das linhas míticas em que se dispuseram determinadas tendências nacionais fixámos uma que respeita à sublimação da mulher e outra à supervivência do amor [1].

Interessa-nos agora focar as contradições estranhas que a sensibilidade e o comportamento dos portugueses neste capítulo retratam.

Embora menos estremados que nos castelhanos o amor e a sexualidade, esta distorsão não deixa de nos aparecer, às vezes, em termos chocantes.

Logo na poesia trovadoresca se bifurcam duas linhas com atitudes diametralmente opostas em relação à mulher – o que foi observado por numerosos críticos. Uma de idealidade, em que a mulher querida é como que entronizada, posta em adoração, e objecto de culto cujo teor se apresenta devotado e casto; boa parte dessas cantigas – as «de amigo» – coloca o troveiro na boca da namorada, protagonista de um sentimento que então já se revela inquieto, magoado – o amor saudoso. «Quem tem amores não dorme» viria a traduzir a sabedoria do povo, num conceito que os poetas esgotadamente glosariam – eles e os novelistas.

O gosto de sofrer aliado ao gosto de amar em termos de «amar é sofrer» vem salientado por José Régio e Alberto de Serpa na antologia que organizaram da nossa poesia de amor [2]. Nas palavras introdutórias a esse trabalho, também se fala do «dom de sublimação do instinto primário», da «transfiguração do desejo em admiração e saudade» como traços característicos. «Min tormenta», lá diz João Lobeira nos lais de Leonoreta. «Morte, morte de amor melhor que a vida!» (Bocage) exprime o pathos erótico de um povo a que não falta certo masoquismo e saboreada renúncia [3]. O «morrer de amor» é uma das características da literatura portuguesa, segundo Carolina Michaëlis.

A extrema vivência amorosa ressalta da «pequena história» às vezes decisiva, tornada grande, ilustra a poesia e a novelística, dos Cancioneiros e do Amadis, à lírica de Camões, às églogas, a Gonzaga e Bocage, às Cartas de Soror Mariana, às novelas de Camilo, a João de Deus, Nobre, Florbela, etc...


Não minguam testemunhos de vária procedência acerca disso, a começar pelos Espanhóis, que personalizavam a obsessão amorosa, galanteadora, a um tempo intrépida e torturada, em portugueses. Esse renome passou os Pirenéus e a Mancha para exprimir um determinado tipo de amor «à portuguesa».

Anote-se a primazia, mesmo a realeza do amor na temática do género literário que mais nos distingue. Sem aquela especial compleição amorosa teríamos sido tão grandes em Poesia? Decerto que não, pois se eliminarmos do nosso florilégio a lírica de amor ele fica extraordinariamente empobrecido [4].

O facto de na contemporaneidade alguns dos melhores poetas terem fugido ao tema, ou iludido o tema, por influxo de moda universal, não invalida a afirmação. É avultada a legião dos que graças ao amor entram a versejar.

Muitos dos principais poetas continuaram a sacrificar-lhe poemas dos melhores como Teixeira de Pascoais (leia-se a genial «Elegia do Amor»), Afonso Duarte, José Régio, o próprio Torga, cuja «Ode a Vénus» é uma das mais belas sublimações do «génio da espécie»; e o tema subsiste de primeira plana com aspectos novos também, no sentido de evitar a monotonia que afectara a lírica amorosa, em David Mourão-Ferreira e Tereza Horta, por exemplo.

Apesar do grande esforço de renovação desta poesia, menos estremada do sexo, mais intelectualizada ou ironizada, o velho fundo absorvente e idealista mantém-se. Na sua própria degradação, o fado reflete-o, nostálgico de pureza.

A outra corrente, da sátira também de amor, tende ao obsceno, é com frequência grosseira e pornográfica. A mulher que não corresponde àquela idealidade, ou a trai, aparece desrespeitada em termos boçais e bem assim o marido enganado ou condescendente. Aí o trato é assoalhado ao vivo e com a mais desbocada linguagem. Os cancioneiros medievais e a obra de Bocage são exemplos flagrantes desta extremação [5] que tantas vezes co-habita em paredes meias.

Dificilmente se encontram a picante malícia, os subtis mal-entendidos das letras francesas. Dos satiristas do amor e da mulher, bem poucos, além de Augusto Gil, e nem sempre, conseguem aproximar-se desse espírito. O cosmopolita Feijó não deixa de ter a mão pesada.

Não que a sensualidade abandone a poesia sublimadora do amor. Ela entrelaça-se num tipo de lirismo de teor dominantemente casto, e a partir dos mesmos trovadores. Na sua forma espiritualista é o que o ensaísta galego Daniel Cortezón chama «amor-saudade», tem carácter avitalista, em contraposição ao amor biológico, subordinado ao «génio da espécie» [6]. Exemplifica o primeiro caso Macias, o Namorado, famoso poeta. No segundo, podemos incluir o mitológico D. João Tenório, em que a sexualidade totalmente se extrema, tomando ganas de força devastadora e subversiva das barreiras ético-sociais.



Quando estranha ao factor sentimental, a sensualidade dos portugueses mostra-se pouco selectiva, indiscriminada, o que os favoreceu no entendimento com os povos de cor e esteve na base da extensa mestiçagem que prestes franjou, consolidando-a, a fixação lusíada nos trópicos, onde surgiram numerosos grupos étnicos, de ligação com as sociedades aborígenas da Ásia, África e América, nas quais o elemento europeu comum garante um mínimo de unidade inter-continental com fulcro metropolitano.

Não são propriamente as ligações ilícitas que o escandalizam, e muitas foram admitidas sem chalaça. Não respeita, porém, a poliandria, nem mesmo casamentos, além do segundo.

Implacável na exigência do amor, desde que o reconheça vê nele um sinal de predestinação, admite-o como coisa séria, tocada de transcendência, que invalida os juízos dos mortais. Foi o caso dos amores de Dom Pedro e Dona Inez, feitos florir pelo tempo fora, em sequência condigna do louco enlevo e fidelidade cega desses amantes, cuja trágica desgraça respeitou e redimiu, transmudando-a em mito de amor eterno.

Neste país onde uma adoração amorosa abundante e obsessiva marcou a expressão literária, é de estranhar o prosaísmo, a reserva mental, o tom sardónico do seu adagiário a propósito da mulher. São de velha data usuais anexins como estes: «A mulher e o pedrado quer-se pisado», «Ainda não é nascida, já espirra», «O homem na praça, a mulher em casa», «Mula que faz him e mulher que fala latim, raramente tem bom fim», «A mulher e a galinha, com o sol recolhida», «A mulher e a cachorra, a que mais cala é a mais boa», «De má mulher te guarda e de boa não fies nada», etc...

Ditos deste jaez, classificáveis em marialvismo e machismo, se adoptássemos a acepção de Cardoso Pires [7] dariam longo rol. Machismo, sem dúvida, e estremado, que é de homem suspeitoso, ciente dos seus costumes abusadores e do semelhante, este que reduz a fêmea, cativa ou a trabalhar para ele, que lhe desdenha a ilustração e se teme da sua tagarelice [8].

Os hábitos já evoluíram mas sem alteração substancial da mentalidade, porquanto no sub-consciente de muitos portugueses, até dos que se ufanam de liberais e progressistas, chibantemente engravatados, em maior ou menor grau ainda perdura.

Em que medida os costumes sarracenos teriam influído nesse espírito restrito da liberdade feminina? É possível que no rastro de uma dominação mourisca demorada nos ficasse tal herança, a par das «mouras encantadas».


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Não obstante do Noroeste, e desde épocas imemoriais, veio-nos uma tradição de matriarcado, atestada por arqueólogos como Caro Baroja, e confirmada pela história. A preponderância das mulheres foi grande no priscialinismo e nunca deixou de exercer-se na faixa ocidental, especialmente na Galiza. A poesia dos Cancioneiros documenta-a, como vimos. Até o extraordinário culto de Nossa Senhora denuncia uma étnica tendência para a sublimação da mulher.

A nossa história, com mais ou menos fantasia, floresce de heroínas. Não lhe falta um longo friso de mulheres ilustres, do povo às mais altas estirpes. Nomeá-las seria fastidioso, mas o seu renome vai dos feitos da defensão militar e ultramarina, às práticas virtuosas, à iniciativa de obras sociais, às letras, às artes, aos actos de governo. Mostraram heroísmo tanto na guerra e no amor, quanto em santidade.

O maior poeta da Galiza foi mulher – Rosalia –, igualmente o maior romancista: Emilia Pardo Bazán, Entre as combatentes, Maria Pita, defensora da Corunha contra os ingleses. Unamuno, verificando essa importância da mulher, entende ser característica de raça velha, cansaço de civilização.

Oliveira Martins também chamou a atenção para a importância da mulher do Minho, a propósito de «Maria da Fonte», a Joana d’Arc do Setembrismo», no que foi chasqueado por Camilo, chamando à mulher do Minho «besta de carga» e à lendária cabecilha do movimento patuleia nada menos que «beberrona e malandra» [9]. D. António da Costa chega a dizer: «Nesta província... a mulher é que toma verdadeiramente o lugar do homem, e o homem não passa de acessório» [10].

Deste novelo de factos e comportamentos antagónicos, bastante poderá inferir-se numa tentativa de interpretação. O português é de índole amorosa, vive com intensidade os seus afectos, insofrido, sôfrego, absorvente na fase da efervescência do amor, cujo objecto poeticamente exalta, mesmo nos desvairos sensuais. Mas se a dona o desilude, facilmente descamba para a recriminação satírica, tanto mais que não admite no sexo feminino a volubilidade carnal que ao macho reserva, e de que tem mais ou menos consciência. Há nesta atitude, em transposição colectiva, o que os psico-analistas chamam processo de «projecção», de que atribui a outrem intenções que se nega a reconhecer em si mesmo, ou defeitos que pressente possuir.

O temperamento apaixonado, exclusivista dos portugueses faz deles grandes amorosos e porventura, na continuidade, incómodos amantes. De um ponto de vista libertino, do erotismo intelectual puramente hedonista, do prazer pelo prazer, são maus amantes, porque emotivos em demasia. Amor que «não sossega a coisa amada» servindo-nos de uma expressão de Vinícius de Morais.


D. Juan, no momento da luta.

Haverá no entanto amor digno desse nome, verdadeiro amor, sem busca desesperada e ardente do absoluto? Não estará nisso a mais bela transcensão do homem, o aniquilamento na realização plena? Tal procura, não tem entre nós o cunho elementar só de extremismo físico, a sanha de fornicação do galaroz D. Juan Tenório. A compleição afectiva interfere no sentido de uma posse mais total, em humana plenitude, cópula de corpos e almas; subtiliza, comove a crueza do sexo. Bem viu um actual ficcionista português no incontestável donjuanismo autóctone, feição de compromisso, com amolecimentos sentimentais e sociais, que lhe minoram a «crueldade testicular» e o apartam do genuíno donjuanismo, repelido e satirizado cá [11]. Porventura a aceitação, o êxito amoroso do português (o «portuguesismo valente») provenha de ser um sedutor incorrigível, atrevido, mas facilmente enamorável; de constituir uma presa possível como afinal o rei D. Fernando tão amador de mulheres e «achegador a elas», mas sua vítima, ainda que formoso e inconstante.

No amor consolidado pelo casamento ou ligação estável, acentua-se o preconceito do prestígio masculino que o meio aliás impõe ao homem, pelo que este se encosta aos ditames de uma sabedoria vulgar assente na autoridade do pater e na suspicácia dos defeitos da mulher («As verdades são dos homens, as mentiras das mulheres»).

Tal reserva em parte demonstra, pelo carácter de defesa, certo reconhecimento implícito do valor do outro sexo, cujo vantagem chega a ser temida, em alguns aspectos.

A despeito da fraseologia sentenciosa e mordaz, fruto de um realismo rural cônscio da sujeição biológica da fêmea e da sua fraqueza provocante em relação ao ímpeto e à mobilidade natural do macho, e apesar do brio varonil muito agudo em povo criado no prez das coisas másculas e pronto a captar o ridículo, aquela sisudez também se filia no ideal do lar com fulcro na virtude da mulher, cuja inspiração cristã é evidente. Vê na esposa, ou nela exige ver, depositária das virtudes tradicionais da gens – a mãe que prolonga outra mãe cujo exemplo é exalçado – e que mantém na ara doméstica um fogo paralelo ao dos altares.

As famílias assim robustas aglutinam-se como corais e proliferam. Nelas estão os viveiros do génio terrantês e os abrigos seguros dos filhos ainda que pródigos.

Houve quem denunciasse na mulher portuguesa um ressaibo oriental; a meiguice dos olhos, uma doçura de ser, a um tempo grave e submissa que é de quem nasceu para ser amada («para la caricia y el rendimiento», observou Unamuno).

Ao centro: Miguel de Unamuno.

Dos olhos vem por transparência muito da vida interior. Não é o brilho intenso e dominador das espanholas que «barren la calle com sus miradas», nem o picante frívolo e inteligente das francesas, nem aquele olhar que nas britânicas tem «um arcanjo e um demónio a iluminá-lo» misto de angélico devaneio e frieza, ou a bruma indecifrável das nórdicas e seus relâmpagos de iniciativa.

Abandono sonhador e uma ajuizada ternura denunciam a mulher portuguesa. Em novas são garotas, meninas ou raparigas, termos que impressionam Valéry-Larbaud [12]. Capaz de heróica devoção, resistente, sofrida, revela-se realista no casal e defende, pela pressão dos sentimentos, o seu domínio. Este aspecto celoso foi notado há muito pelos nossos vizinhos [13].

Em que medida tais caracteres determinam o comportamento do homem e as contradições discernidas? O citado grande pensador espanhol inclina-se a explicar pelo nosso tipo feminino o tom erótico-patético do lirismo.

Reflectindo um pouco, vê-se que o amoroso que exalta a namorada e a conduz à igreja para uma união definitiva, não tarda em apossar-se do comando, em reaver, cauteloso, uma situação de que só transitoriamente abdicara.

O prosaísmo suspeitoso que ressuma do adagiário e o comportamento vulgar do marido traiem assim, como observámos, intenção defensiva perante o ascendente inicial da donzela-dona. Este é susceptível de reforço para o que indirectamente concorrem a volubilidade do homem e um espírito de aventura que em vários aspectos, até no económico, o afecta enquanto viril.

Uma filosofia prudente, apoiada no consenso moral, ajuda-o a restringir o poder feminino além do círculo estreito do lar. Não falta quem pendure, logo à entrada da porta, um azulejo de mau gosto onde se lê: «Cá em casa manda ela, mas nela mando eu». Jactância, ao fim e ao cabo subvertida pela emoliente erosão das mulheres, mais persistentes no seu fito, mais concretas.

O homem vai «em contrapartida procurar no café ou em reuniões de homens a expressão da sua personalidade viril» diz um autor contemporâneo [14], no que afinal confirma a estranheza de muitos estrangeiros pela superabundância de homens nos lugares públicos.

Paul Descamps, em livro de 1935, apontou entre nós a radicação de costumes que insere em matriarcais, tais como o papel primacial da mulher na educação dos filhos e a frequente designação destes pelos nomes das mães (e até dos maridos pelos nomes das mulheres), muito usada nalgumas províncias. Não somos apesar de tudo, o país da Lei Sálica e do monsieur-dame.




A mulher espera, sabe esperar, eminentemente conservadora da etnia nacional, e a verdade é que pela confiança, nem sempre só com os anos [15] ou a viuvez, consegue uma situação de chefia, apoiada na maternidade, cujo prestígio é enorme em povo comovediço, radicalmente cristão. Ela prolonga a família, elemento estável que em regra sobrevive ao consorte, e refaz os patrimónios tantas vezes comprometidos pelo marido estroina.

(In Francisco da Cunha Leão, Ensaio de Psicologia Portuguesa, Guimarães Editores, Lisboa, 1971, pp. 105-117).



[1] Ver «Linhas míticas da História nacional», no volume «O que é o Ideal Português» – Edições Tempo, 1961.

[2] «Alma minha gentil...» – Portugália Editora.

[3] Alguns psicanalistas (Freud, Helene Deutsch) estabeleceram conexão entre masoquismo e feminilidade, o que foi confirmado em motivações mais culturais que sexuais por Karen Horney, revisionista da Psicanálise (Ver: «El nuevo Psicanálisis», da autoria de Karen Horney, tradução do inglês – Fondo de Cultura Economica – México – Buenos Aires). Tem sido observado no temperamento português algo de feminino, o que pode estar em secreta relação com o amor torturado que tanto o caracteriza.

[4] Denis de Rougement no livro «L’amour et l’Occident (Livraria Plon – Paris) observa: «Ce qui exalte le lyrisme occidental ce n’est pas le plaisir des sens, ni la paix féconde du couple. C’est moins l’amour comblé que la passion d’amour. Et passion signifie souffrance».

Isto é dito a propósito da sua profunda análise do mito de Tristão, em que há o acordo do Amor e da Morte. No entanto se é característica ocidental ela deve singular vivência entre nós, onde o velho mito céltico se repetiu com nova formosura na história de Dom Pedro e Dona Inez. Ressonância étnica profunda?

[5] Ver a notável edição crítica das «Cantigas de escárneo e mal dizer» de Rodrigues Lapa.

[6] «De la Saudade y sus formas».

[7] «Cartilha do Marialva».

[8] Francisco Xavier de Oliveira, apesar de homem do Século das Luzes, tem opiniões como esta: «Verdadeiramente a mulher é ligeyríssima por natureza, e emprega-se gostosamente nas cousas de pouca importância pela debilidade do seu juíso». «Cartas familiares, históricas e críticas».

[9] «Maria da Fonte» – Lello & Irmão – Porto.

[10] «No Minho».

[11] Urbano Tavares Rodrigues, «O mito de D. João e o donjuanismo em Portugal» – Livraria Ática.

[12] «Divertissement philologique».

[13] Ver «Portugal e os portugueses em Tirso de Molina» por Manuel de Sousa Pinto – 1914.

[14] Ruben A, «Autobiografia», vol. I, p. 34.

[15] Liberdade e iniciativa que «apenas ganham quando caducas», segundo o mesmo escritor, acima citado.