Escrito por Agostinho da Silva
![]() |
| Catedral de Santiago de Compostela |
«Marcada
personalidade levou Portugal a emancipar-se do Reino de Leão. Tal personalidade
era, no fundo, comum à Galiza-humana e culturalmente. Só que essa personalidade
obteve condições político-sociais autonómicas e resultantemente militares para
cá do Minho, as quais na outra banda não foram possíveis pelo directo interesse
e compromisso do feudalismo galego no jogo político leonês e pela articulação
ao Continente do centro religioso de Compostela.
A
fundação de um novo Estado representa muito; contudo na Idade Média pulularam, até
na Península, casos similares, com base natural ou sem ela, quantas vezes por
mero capricho de chefes audazes, talento político de outros, ou por conjunção
dessas determinantes.
No
caso portucalense não faltou decisão nem génio das oportunidades. A afirmação da
independência teria por certo efémeras perspectivas cada vez mais no sentido
continental e castelhanizante.
A
oposição psicológica entre portugueses e castelhanos não influíra na fundação
de Portugal. Depressa entrou em jogo, dada a evolução da Espanha, tornando-se
depois a salvaguarda irredutível do pequeno reino atlântico.
Quando
a Galiza se apercebeu de que os comandos lhe haviam fugido por completo, já
estava reduzida por força das circunstâncias a uma província marginal,
decapitada na sua nobreza, sorvida pelo poder centrípeto da grande monarquia
que ia ser filipizada.
A
independência portuguesa que alguns autores consideraram formada contra a
Galiza, só teve quando muto inicialmente e nalguns aspectos esse motivo de
querela familiar: rivalidade entre os prelados de Braga e Santiago, desforço
dos barões portucalenses contra a influência, em D. Teresa, de Fernão Peres de
Trava e da fidalguia além-minhota.
Só mais tarde pesou contra Castela a decisiva razão dos antagonismos continental e marítimo, e da dualidade psicológica. Em relação à Galiza esse imperativo de apartamento não se verificava, e caso a nossa independência tivesse sido feita contra ela, estaria condenada a vida breve.»
Francisco da Cunha Leão («O Enigma Português»).
«É
evidente que o carácter marítimo e colonial da nação portuguesa, na segunda
dinastia, não podia ter influído no facto já secular da independência. É sabido
que D. Afonso Henriques, o autor dela, não tinha navios, servindo-se dos
Cruzados para tomar Lisboa e Alcácer. A marinha foi uma criação da monarquia e
um produto da nação, depois de constituída; o carácter marítimo é histórico,
não é primitivo em um povo rural, como era o português dos primeiros tempos e
ainda hoje o é o galego. O movimento de deslocação da capital do reino para o
sul, as medidas de D. Dinis, as de D. Fernando, depois a empresa do Infante D. Henrique, são momentos sucessivos de uma história que é o nervo íntimo da vida
portuguesa. Desde a reunião das esquadras cruzadas no Tejo para a conquista de
Lisboa, desde a introdução dos genoveses, que vieram ensinar-nos a navegar,
vê-se começar a formar-se essa nação cosmopolita, destinada à vida comercial,
marítima e colonizadora.
É essa nação que a história forma; e por isso mesmo que a vida portuguesa foi marítima, e o destino da sua história o mar; por isso mesmo avultam os elementos que diariamente tornam cosmopolitas as cidades marítimas de um país cuja capital é um dos melhores portos do mundo. Portugal foi Lisboa, e sem Lisboa não teria resistido à força absorvente do movimento de unificação do corpo peninsular.»
Oliveira Martins («História de Portugal»).
![]() |
| Conquista de Lisboa (1147). |
«Na
dinâmica das nacionalidades há núcleos propulsores e a força do carácter destes
é o que sobremaneira conta. As sobreposições rigorosas das fronteiras políticas
com as da geografia, da etnia, da língua, são raras.
Neste
caso concreto – da Península – dois núcleos principais se formaram, à parte
outros secundários pela sua menor diferenciação ou capacidade afirmativa, e nos
extremos do Douro: Portucale e Castela. O elemento intermédio e originário –
asturo-leonês – subalternizou-se, imergindo nestas tendências mais fortes, mais
progressistas e naturalmente superdotadas de espírito combativo.
A
Reconquista foi uma correria. O espírito conservador leonês e a sua cunha
linguística entre as evoluções mais rápidas do romance luso-galaico e do castelhano
foram absorvidos. Certas bordaduras do romance ocidental ficaram fora das
fronteiras portuguesas, no sentido do bojo da Lusitânia, que era pouco habitado.
A castelhanização chegou aí tardiamente, mas chegou. Quanto à Galiza, muito
povoada e pertencendo ao cerne nacional do estado desmembrado, a sua gente
ficou fiel à fala medieva, à linguagem dos cancioneiros, ou seja o português
arcaico. A sujeição política não permitiu que evoluísse. Há algumas gerações
que uns punhados de intelectuais vêm transportando o adormecido idioma ao plano
culto, para a expressão literária e até filosófica. O património culto moderno
da língua galega renascida é já notável, e notável o esforço vocabular e
sintáctico, no sentido de uma disciplina e da actualização da sua capacidade
expressiva, suprindo alguns séculos de existência obscura em que andou relegada
apenas à oralidade familiar e rústica.
Em
Portugal, a distinção psicológica, tão denunciadora da etnia, tem sido apontada
por alguns escritores em traços sugestivos. Estão nestes casos Oliveira Martins, António Sardinha, Teixeira de Pascoaes, Jorge Dias e a maioria dos
críticos da literatura, como Teófilo Braga, Moniz Barreto, Fidelino de
Figueiredo, Rodrigues Lapa e outros.
Contribuição
notável é neste capítulo, a dos escritores galegos, e até de estrangeiros quais
Aubrey Bell, Menéndez y Pelayo, Unamuno e Keyserling.
Aqueles
que não valorizam decisivamente os elementos geográficos nem os antropológicos,
são levados à formulação de teses voluntaristas, políticas ou de circunstancialismo
histórico. Alinham nesta ordem de ideias Herculano, Alfredo Pimenta, Damião
Peres, Vieira de Castro, e em boa parte João Ameal. Também Oliveira Martins,
apesar de intuído tão lucidamente o estrato psicológico português, propende a
justificar pelo acaso a independência nacional. ... “O reino de Portugal formou-se pelos dous meios da revolução e da
conquista” afirma Herculano. O severo historiador, atribuindo especial
importância à política desenvolvida pelo conde D. Henrique, sua viúva e seu
filho – primeiro rei de Portugal –, não chega a negar que para isso tenha
concorrido também a vontade da população. Salienta a vontade e o calor dos
chefes como determinantes da nova nacionalidade.
O
mesmo pensa, sensivelmente, Alfredo Pimenta ao escrever: “Há já Estado. Ainda não há Nação”. E quando afirma que o “Estado português continha, em potência, a
nação portuguesa” sendo precisos três séculos para que esta passasse de
potência a acto. A Nação seria muito posterior ao Estado.
Somos
levados a pensar inversamente. Já o Arcebispo de Braga no assédio de Lisboa, ao
tentar persuadir os mouros a renderem-se não se limitou a aconselhar a
devolução da cidade aos cristãos, mas a sua devolução à Lusitânia.
Damião
Peres, admitindo embora, a partir dos meados do século IX “uma obscura elaboração político-económica” nas terras de
restauração recente, atribui a independência à “aspiração política dos grandes barões”. Um acto de vontade está na
base; Portugal segregou-se, distinguiu-se pela acção humana. D. Afonso Henriques
é a suprema expressão da tendência, o chefe esclarecido de um grupo de
valerosas vontades que fizeram Portugal “em
oposição à Galiza”.
A
importância dos factores internacionais na existência livre de Portugal tem
sido realçada por muitos autores. Disse Herculano que “desde o século XVII é a rivalidade das grandes nações que nos tem
salvado”. E a tese, retrotraída por Manuel de Oliveira Ramos até ao séc.
XIV, pela qual somos mais ou menos “um
produto da equação internacional” foi retomada com brilho por Luís Vieira
de Castro validando-a para a própria fundação da nacionalidade, em acontecimentos
germinados no séc. XI, fruto das estreitas relações de D. Hugo, abade de Cluny
com o rei de Leão, instituidor dos condados da Galiza e de Portugal. Todo o
procedimento do conde D. Henrique obedeceria a uma “inegável conexão com a Abadia de Cluny”. Examina o autor, com
numerosas observações, a interferência dessa Ordem tão poderosa, ao tempo
condutora da política da Igreja, nos acontecimentos eclesiásticos da Península,
assaz determinativos no campo político, tais como a elevação de Bernardo a
primaz das Espanhas (Toledo) e de Geraldo a arcebispo de Braga. Dada a
radicação francesa da famosa ordem monástica, a independência de Portugal seria
um galicismo conforme opinou o
historiador Pedro de Azevedo.
Tese
idêntica sustenta o espanhol Américo Castro, numa sua conhecida obra, em capítulo
que intitula sem rodeios: “A Portugal lo
hicieran independiente”. Cómoda maneira de arrumar um caso cuja evidência,
pertinácia e grandeza não se compadecem com tão rudimentar e desatenciosa
explicação!
A
acção de Cluny foi sem dúvida determinativa na criação do Condado Portucalense
como no da Galiza e em muitos outros acontecimentos do tempo que perduraram ou
não na história. Hábeis foram sem dúvida o conde e o rei do tronco borguinhão
em aproveitar a influência da Ordem e a facilitar-lhe, no que só eram
favorecidos, a capacidade civilizadora. Algo, porém, foi base, moldura e
decidiu de um pensamento, ou de uma simples ambição, a que a incipiente dinastia
teve a intuição de obedecer, num rumo próprio e desligado da demais Espanha. A
batalha de S. Mamede (na linha da anterior revolta do Conde Nuno Mendo) marca a
definitiva convergência de uma obscura elaboração local com a família suserana,
substituindo dentro desta uma autoridade por outra, capaz de interpretá-la com
mais nitidez: – a do que veio a ser o primeiro rei.
Em
restrição das teses que podemos chamar do voluntarismo aristocrático (dos
senhores territoriais, seculares e eclesiásticos), opõem outros autores teorias
democrático-burguesas. Estão nestes casos António Sérgio e Jaime Cortesão.
Para
o primeiro, “as grandes navegações dos
nossos avós e a criação do reino de que foram membros, parecem-nos duas fases
de um fenómeno único, não só português mas geral e europeu” – da
transformação da sociedade «aristocrático-rústica”
em “comercial-burguesa”. A conquista
de Lisboa como a conquista de Malaca, e também a de Ceuta em 1415, são elos do
mesmo fenómeno. Aljubarrota teria sido um embate entre os dois sistemas.
![]() |
| Mosteiro da Batalha |
E
a condição natural para a criação e expansão da nação portuguesa esteve no “significado topográfico dos nossos portos”
para o comércio europeu, na “costa
acolhedora” e climaticamente propícia para tirar riqueza ao mar – pescado e
sal.
Jaime Cortesão entende que “os elementos
decisivos da germinação política do futuro Estado português estão na costa e no
fundo dos estuários”. Dá grande importância à zona terminal do Mondego
(Montemor, Coimbra) nesta germinação. A penetração marítima era maior, o rio
mais navegável. O “comércio marítimo com
base na agricultura” e “o movimento
das comunas” são determinantes da nação e do seu conceito.
Preparação
notável foi segundo o mesmo autor operada pelos romanos, especialmente com o
sistema das estradas que, da foz do Guadiana a Lisboa, Santarém, Coimbra e
Braga levou à “atlantização do povoamento”
e à sua “unificação por meio de uma
espinha no sentido meridiano”.
Chama
ao Porto “democracia urbana” e a
Lisboa “empório cosmopolita” em obra
que expõe inteligentemente uma concepção democrática da história portuguesa.
Alguns
comentários nos suscitam as referidas teorias que acentuam traços dinâmicos da
vida nacional.
A
tendência para o trato marítimo, desenvolvimento do comércio em geral e da
classe burguesa pode considerar-se constante histórica, manifestando-se logo
que se restabelece ou campeia a paz. Tanto a seguir às cruzadas do Oriente,
como do Ocidente isso aconteceu. O conhecimento da terra fê-la gradualmente,
lentamente, progredir.
Foi
a gigantesca devassa do globo efectuada pelos portugueses em poucas décadas que
a fez sair do ritmo normal, imprimindo-lhe uma aceleração de consequências
prodigiosas. Sem cairmos em facciosismo patriótico podemos afirmar que esteve em
Portugal o motor que propulsionou, pela violação de todos os mares e continentes, a
universalização do comércio e o gigantismo da burguesia.
Rectifiquemos,
portanto, dizendo que Portugal neste aspecto foi antes causa que resultado ou
simples elo de uma cadeia. Os nossos descobrimentos marítimos deram lugar a um autêntico megassismo económico social.
Quanto à determinação marítimo-burguesa, temo-la por quase nula na génese da nacionalidade. Não passava, então, quando muito, de obscura tendência nalgumas póvoas do litoral nortenho correspondente à área autonomista. Foram os senhores territoriais ou sustentáculos, senão os principais obreiros da independência. O desenvolvimento marítimo é um efeito, um vigoroso fruto desta.»
Francisco da Cunha Leão («O Enigma Português»).
«Por
ter garantido a possibilidade, pelo menos em amostra, de arquitectar o que
teria sido um universo verdadeiramente católico, vejo eu Aljubarrota como a
maior batalha da história, a par daquela outra em que Constantino venceu
Justiniano. Não apenas por isso, no entanto. Mas igualmente porque é só em
Portugal que as outras nações da Península podem ver uma esperança e um ponto
de apoio para uma futura liberdade. Por circunstâncias próprias, e evitarei o
mais possível dizer da raça, ou de ambiente ou de economia ou de missão divina,
e por vontade intrínseca e ainda por longo treinamento, porque estas coisas na
realidade não se aprendem na fantasia, mas vendo e pelejando, Portugal, é, de
todos os cantos da Península, o único que tem verdadeiramente génio político,
talvez, de todas as gentes que falam latim pelo mundo, o único real herdeiro do
povo romano.
Só
que, por fatalidade, e logo desde o começo, faltou a Portugal, para uma plena
acção, a companhia e a integração de seu complemento natural para os lados do
Norte. A acção de Portugal no Brasil não teria sido o que foi, apesar de toda a
actuação do minhoto nas Gerais, garantindo um Brasil interior, ou do
transmontano sobre o Prata, garantindo afinal a fronteira de Oeste, se não
tivesse havido o bandeirantismo dos seus alentejanos e, indirectamente, as suas
guarnições algarvias para o Sul; a gente mais ou menos mourisca para o sul do
Tejo, a gente já de falar crioulo, os que vinham do deserto e de seu gosto
aventureiro e livre, serviram de complemento aos de Entre-Minho-e-Tejo,
verdadeira base de Portugal, o Portugal da gente que finca pé na terra e obriga
a terra a dar tudo o que tem, metal ou seiva, ou isso mesmo, base a conto de
lança. Mas, para o Norte, a Galiza não estava.
Não estava a Galiza que, para empregar as palavras do dito popular em que se define a casa bem governada, podia ter arcado enquanto Portugal barcava. Com o tal galego "sórdido", no sentido camoniano, talvez o ouro da Índia e Brasil tivesse dado maior proveito e se não tivesse, em plena época de afluxo de riquezas, de fazer aportar ao Tejo frotas de cereal para pão. Por outro lado, talvez sua “nai” não tivesse sido sempre para o galego, que emigra sem ser aventureiro, a eterna figura velada pelas lágrimas dela e pelas lágrimas dele; talvez as “campanas de Bastabales” não ressoassem na delida chuva com o tão melancólico chamar. Mas tempo vem, atrás de tempo; se há “talvez” para o passado da História, há "talvez" igualmente para o futuro da História; pode ser que um dia a reintegração da Península em si mesma, na sua liberdade essencial, se faça através da reunião de Portugal e de Galiza. Dos dois noivos que a vida separou.»
Agostinho da Silva («Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa»).
“Amor de homem e de mulher com a
presença de Deus, eis aquilo a que Portugal e Galiza se encaminhavam no
princípio de seu mundo...”
Oh que cousa de sentir
haver homem de partir,
namorado!
DIOGO
BRANDÃO
SEPARADOS
noivos. E então o podemos ver exactamente à maneira do que frequentemente
acontece na vida, como um acidente comum. O destino, ou o que mais se queira
dizer para mascarar a nossa falta de razões de carácter racional, veio e
afastou um do outro para os quais a vida só teria uma verdadeira razão de ser
se lhes tivesse sido possível construí-la unidos. Mas podemos igualmente olhar o acontecimento
de dois outros modos. Será um de supor que são os noivos separados porque de
outro modo lhes correria a existência de uma forma feliz; e, se era verdade que
matavam cedo os deuses pagãos aqueles a quem verdadeiramente amavam, talvez um
Deus cristão, aquele sob cujo signo Portugal se forma, cresce e é, talvez ele,
aos que muito ama, goste não de dar a felicidade que em geral tanto limita, mas
a experiência, a tal experiência madre da vida e das coisas, que tanto
enriquece e, se bem compreendida e cristãmente aceite, vem no fim a produzir
aquela paz que mais vale do que felicidade. Para um futuro paraíso, não só seu
próprio, mas de toda a Espanha, pois de que serve a paz que é só nossa, ou que
ilusória paz é essa, precisavam talvez Galiza e Portugal de ser separados logo
de início e de penarem suas duras penas de acção e de saudade.
Depois,
e será esta a nossa segunda perspectiva, nada incompatível com a primeira, e
que, pelo contrário, a lança mesmo numa mais larga concepção da História, pode
ser que aqui tivessem os destinos do mundo tomado Portugal e Galiza como um
perfeito espelho e um resumo de toda a restante tragédia universal. Perdido um
céu primeiro, quer o céu de que falam os textos sagrados, quer aqueles que a
mais moderna antropologia vai assinalando nos povos realmente primitivos, a
grande marca da queda não esteve em ter que se ganhar o pão com o suor do rosto
ou na dor se criar ou em se ter que arquitectar toda a complicada aparelhagem
social que hoje nos envolve. O ponto realmente sério, aquilo que marca a que
distância se veio parar da existência edénica, é que foi possível passar a
discutir se a civilização deve ser de carácter predominantemente masculino ou
predominantemente feminino; foi possível haver partidários de patriarcados e de
matriarcados e foi possível à humanidade experimentar a uma e outra forma de
governo; e foi-lhe sobretudo possível estar tão desatenta das verdadeiras
realidades e de seu direito destino, que lhe passaram despercebidas
advertências como a de Aristófanes com os seus andróginos ou a de Vinci com o
seu S. João Baptista: a advertência de que só há uma forma de harmoniosa
existência humana; aquela em que o homem e mulher funcionem como as duas partes
de um todo, como as duas faces de uma una essência; sem patriarcados nem matriarcados. Com o governo, numa vinda do Espírito Santo consolador, do
intrínseco amor que um ao outro une.
Amor
de homem e de mulher com a presença de Deus, eis aquilo a que Portugal e Galiza
se encaminhavam no princípio de seu mundo; e eis aquilo exactamente que teria,
pelas forças criadoras do amor, só ele fecundo, dado liberdade e personalidade
às outras regiões da Espanha; inclusive a Castela, liberta de possuir escravos,
o que arruína os melhores; e, porque também só o amor é santificante, despido
de seus impulsos de destruição e de morte. Só que, por uma ou outra razão, tudo
se dispôs de outro modo; e, realisticamente, como convinha a político, Portugal
se lançou à tarefa que tinha diante, tal como ele era e tal como ela, tarefa,
era.
![]() |
| Ponte Romana sobre o Minho em Lugo (Galiza). |
Mas,
por aquelas íntimas relações que unem a unidade e o múltiplo e por aquele
íntimo ser que faz serem o mesmo o que é e o que vai sendo, o destino de
separação que marcara a nacionalidade, vai marcar praticamente a vida de cada
um dos membros dessa nacionalidade. Cada casal português, como cada casal
galego, funciona como Galiza e como Portugal. A acção o chama e ele vai; a
lembrança lhe fica e ela chora. De um lado e doutro se estabelece a saudade,
que poderia ser apenas a mágoa e o desespero, embora calmo. É, porém, muito
mais do que isso. Por um lado aquelas saudades do céu que faziam andar
inflamado o Arcebispo de Braga; saudosa pena de amor de um céu que já foi e
que, só por se ter desobedecido à ordem para sempre dada, pôde alguma vez
deixar de ser um domínio dos homens. Por outro lado, o gosto amargo de sofrer o
que se entende necessário para que um dia o paraíso se possa reconquistar. Em
cada mulher de luto que passa, com seu marido vivo, é afinal dando esta faixa
ocidental da Península foros de representação universal, um símbolo de toda a
humanidade que temos diante dos olhos. Não há outro remédio senão embarcar nas
barcas que mandou lavrar el-rei; não há outro remédio senão o de se incorporar
na hoste que el-rei aprestou; os pecados se pagam; mas se sabe, no íntimo, que
a distância que se interpõe está afinal apagando a distância; e que, quando se
reencontrarem, com a tal reconcedida presença de Deus, é o passado, o já longe
passado, que afinal verão como futuro. Isto é: depois de terem afrontado tempo
e história, nada mais haverá que eternidade.
Acontece,
porém, que uma das marcas essenciais do homem está, com todos os males que tal
possa acarretar, na sua possibilidade de se opor, de resistir a Deus, e eis um
ponto em que deviam meditar todos os que pretendem conduzir homens aos seus
fins deles, não dos próprios homens; mas também é verdade que esses, por seu
turno, estão resistindo a Deus. O Português podia ter resistido ao apelo do
longe, Portugal podia-se ter recusado à acção. Tudo esteve afinal em pôr ou não
o Minho como fronteira. Esse primeiro rio que separou foi a origem de todos os
outros rios que depois separaram; rios de lágrimas. Todos podiam ter ficado
quietos em suas casas, sem que as mulheres vestissem luto, e sem que,
simbolicamente, as casas se fechassem para só reabrirem no dia em que eles
voltam, se para ficar, dobrado riso, se para retornar dobrada mágoa.
E
então voltaríamos ao tal princípio dos antropologistas. Também teria sido
possível a todo o conjunto da humanidade, quando as circunstâncias se tornaram
adversas, jogar-se no mato como um bicho doente e se deixar morrer. O homem, no
entanto, que além de tudo tinha à sua disposição os dois instrumentos
maravilhosos de um cérebro que lembra e correlata e de um polegar que se pode
opor aos outros dedos, o homem tomou a atitude que, depois, se foi repetindo
pela história: recusou render-se; e, batendo-se, sofreu, e, sofrendo,
descortinou caminho de regresso ao paraíso. Portugal, então, no seu lugar da
História, também se não rendeu e quando el-rei, o Rei dos Reis, o chamou para
seu apelido contra o infiel, também se não furtou a seu lugar na hoste.
E
se Portugal não tivesse embarcado, quem teria embarcado? O longínquo viking em que põem tanto empenho
historiadores que não compreendem não ter importância descobrir a América se
não se trata de cristianizar a América? Franceses que, quando embarcaram, o
fizeram sob o signo de Calvino e fizeram funcionar entre cristãos um
capitalismo que pode ter sido muito útil, mas é essencialmente anticristão?
Ingleses que, quando embarcaram, foi para estender pelo mundo aquela defesa da
usura que logo Bentham codificou? Toda essa Europa cujo embarque, a par de
todos os benefícios que lhe possamos creditar, o que fez, no essencial, foi
tornar quase odiado ou risível entre outros povos o nome de Cristo? Se a alguém
competia fazer-se ao mar, e eu conto o fazer-se ao mar, metaforicamente, desde
que principiou a conquista e ocupação do Alentejo, se a alguém competia
fazer-se ao mar para levar a boa nova ao infiel, esse alguém era evidentemente
o português.
Tinha
a resolução de ataque, a energia de combate e a resistência sob o tempo adverso
que faltava à doce, lírica, feminina Galiza. Tinha, como nenhum outro povo da
Espanha, aquela noção de fraternidade interna sem a qual todo o cristianismo é
mero vácuo. Fraternidade interna, fraternidade pela fusão íntima, pela
transformação ao ígneo sopro do amor de Deus e do serviço de Deus. O Português
lembrava-se, e da única forma perfeita em que o lembrar existe, que é
vivendo-o, o Português lembrava-se da irmandade antiga de mouros, de cristãos e
de judeus, antes de franceses e almorávidas; irmandade que não vinha de
conciliações e de concessões e de todos os mesquinhos arranjos a que está
demasiado habituada a nossa época, educada em tratados de comércio. A
fraternidade que ali havia era a outra, a que vinha de São Paulo proclamando
que depois do Cristo era absurda toda a distinção entre judeu e gentio, entre
incircunciso e circunciso. A que, tendo a sua raiz em Cristo, dera, além das
palavras de São Paulo, as palavras de S. João e permitia que um pintor
português fizesse assistir à missa do Espírito Santo judeus e mouros sem que
uns e outros abdicassem de suas crenças religiosas. Isto exactamente tentou
Portugal e não lhe consentiram as circunstâncias do mundo que até agora o
levasse por diante: tentou espalhar pelo universo um catolicismo tão católico
que até o infiel nele coubesse. À dimensão do catolicismo, à verticalidade do
catolicismo que lhe permite reunir a velha que humildemente reza seu
padre-nosso e S. Tomás que humidelmente constrói uma teologia; ao comprimento,
digamos assim, do catolicismo que o faz ter bispos africanos e chineses;
Portugal tentou acrescentar uma outra dimensão que, por não ser geométrica, não
é menos real: a largueza. Portugal foi o missionário da largueza do Reino de Deus
e a isso se prende provavelmente muito do seu anticlericalismo; e, no plano
antropológico, muito do seu gosto pela mestiçagem.
Se
este era, a Portugal, o chamamento de Cristo, como haveria de recusar-se? Se
este era o apelo do Menino que não queria mais nada do que dirigir-se a casa de
seu pai, a qual casa, quando viesse, seria todo o mundo inundando-se na luz de
eterna aurora, como haveria de recusar-se este S. Cristovão que, além de tudo,
não estava, como o outro, trôpego e cansado e quase moribundo, mas de pura
energia fervia e ruflava? Como havia de pôr impedimento de amores e de
saudades, embora fossem esses amores, com tudo o que da terra podem ter,
retrato de amores celestes, e embora fossem essas saudades aquelas de que se
acaba por morrer, porque são, na Babilónia, saudades de Sião e, na Jerusalém
terrestre, a cadente visão, a visão destruidora da Jerusalém celeste?
Falando a todas as Senhoras, partiam sempre delas, tristes, os olhos dos poetas, «tão tristes por vós, meu bem»; e falando de todos os poetas, desejavam todas as amadas, como as da Nazaré, que «o mar tivesse varanda, para ir ver o seu amor nos bancos da Griolanda». Mas Cristo, como uma era nova para o mundo; e a Espanha que deveria ter sido e que não foi e a Europa que, mais tarde, desviada pelo protestantismo, outras missões teria, tudo lhe ordenava que partisse. A literatura portuguesa como a vida portuguesa abrem-se sob o signo do dever de acção e sob o signo da saudade; e esses dois signos marcaram a vida do português para a história, tanto no que respeita à acção externa de Portugal como à sua vida interna. Tudo o que o Português realizou, com todas as imperfeições que são da raça humana, é de jeito missionário. E tudo o que o Português reclamou sempre de todos os governos que sucessivamente tomaram conta do país foi isso mesmo: que lhe dessem o direito de cumprir o seu dever de ser católico: isto é, fraternal e universal.
(In Agostinho da Silva, Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa, Guimarães Editores, Lisboa, pp. 35-44).
.jpg)





.jpg)


.jpg)


%20(1).jpg)

Nenhum comentário:
Postar um comentário