Escrito por António José de Brito
«Lisboa, 18 de Fevereiro [de 1966] – Conversa miúda com Hernâni Cidade. Disse-lhe que, para ajudar a Rodésia, havia a ideia de se constituir uma Sociedade de Amigos da Rodésia. Não convinha que esta surgisse como inspirada pelo governo; e por isso parecia que os seus membros deveriam ser homens da oposição, respeitados pelo seu prestígio intelectual e pela sua integridade. Tratava-se de auxiliar a Rodésia, forma indirecta de auxiliar o ultramar português. Reacção instantânea de Hernâni Cidade, de olhos com lágrimas: “estou pronto, para esse fim faço o que o governo quiser”. Mais tarde, igual conversa com Armando Cortezão, a quem disse que eu pensava no seu nome para presidir à Sociedade. Reacção de Armando Cortezão, não de lágrimas nos olhos mas de voz quase rouca de exaltação: “Tudo, mas tudo o que o senhor quiser! A nossa África é sagrada. Ah! Se eu tivesse idade para pegar numa arma!” E este é um homem que, na guerra civil de Espanha, arriscou a vida nas brigadas internacionais. Hernâni Cidade, por seu lado, é o homem que na I Grande Guerra, como capitão miliciano, foi feito prisioneiro pelos alemães e fugiu – para poder tornar a combater.»
Franco Nogueira («Um Político Confessa-se»).
«Nos presídios de Abril
O flagelo de Abril tão-pouco poupou o ministro plenipotenciário de Salazar.
À conta de Abril, viu-se Franco Nogueira confrontado, durante vários meses, com “o vento e as Grades” de Caxias. (O Vento e as Grades é, até, o título, por sinal, de um seu livro de versos, ainda agora inédito ou já fora do mercado, e que eu, há muito, e em vão, ambiciono ler, por serem poemas oriundos do cárcere e, desse logo, e como tal, criações líricas fortemente documentais, datadas e ditadas ao poeta e diplomata para essa alta e dolorosa hora da sua vida pessoal, por essa baixa e grotesca hora da nossa vida colectiva.)
O vento pressago e de onda larga que as grades de Caxias mal coavam e não logravam, todavia, jugular, confundia-se, decerto, aos ouvidos do estadista, com a patética zoeira, o zunir desatado dos ventos da História, que ele baldadamente se esforçara sempre por deter e reorientar a rumo certo. Confundia-se, enfim, o vento de Caxias com o vento norte da desgraça sem nome que nos entrara pela porta dentro pela calada da noite de 24 para 25 do mês e do ano que se sabe – e que varria e assolava e arrasava Portugal, de cabo a cabo!
Fora o antigo ministro um dos primeiros e
prioritários alvos selectivos da sanha, da insânia e da vindicta dos capatazes d’Abril.
Discricionariamente brutalizado e detido,
e conduzido debaixo d’armas para a
cela da prisão – que regurgitava, então, de Portugueses como ele, precisamente
acusados de o serem e ferozmente perseguidos por isso mesmo, aí permaneceu
encerrado por espaço de meses e meses. Imperturbável refém aquele, porém!
Colocaram-no a ferros – e foi o mesmo que nada. Durante o tempo todo em que se manteve confinado em cativeiro, resistiu sem folga nem descanso; e muito do que veio, ao diante, a acontecer de melhor, foi obra – em grande parte – sua e da sua sereníssima postura de batalhador pertinente, pertinaz, persistente e aplicado.»
Rodrigo Emílio («Franco Nogueira ou a Gloriosa – e Inglória –
pouca sorte de se ter razão contra a História», in «Embaixador Franco Nogueira [1918-1993]
– Textos evocativos»).
«Lisboa, 21 de Junho [de 1967] – Conselho de Ministros. Três quartos de hora de exposição sobre o Médio Oriente e reunião da NATO no Luxemburgo. A propósito já não sei de quê, Salazar deixou cair esta frase: “Somos um país grande, não somos um país pequeno. Comandamos interesses muitos vastos e importantes, e isto no Mundo. Mas continuamos aferrados à ideia de que somos pequenos, planeamos em pequeno. Há que fazer tudo em grande. Mas somos para aí uns pobres e parecemos não ter envergadura para isso.”»
Franco Nogueira («Um Político Confessa-se»).
Oliveira Salazar na Assembleia Nacional |
«Transposta a
cerca de altos muros, não perdeu tempo. Acolheu-se, logo de caminho, a Londres,
e, na liberdade do exílio, deitou mãos à obra que mais permanecente o tornará: rapidamente
e em força, pôs em marcha – e, em meia dezena de anos de trabalho aturado
de investigação e escrita, adregou ultimar e pôr de pé – os seis volumes da sua
colossal biobibliopsicomonografia sobre “Salazar”, sendo que o sexto e último tomo
da série mo fez chegar ele às mãos, e aos olhos, com uma tocante dedicatória a bordo, no atrium do mortal e mortificante Verão de 1985. Foi o último aceno
escrito que me ele dirigiu por mão
própria; foi o último sinal de estima, e de vida, que dele, no fundo,
recebi também...
Através de “Salazar”,
não se tratou simplesmente de talhar e/ou tão-só de erigir do excelso estadista
– e já não era isso coisa pouco – uma estátua de todo o tamanho e a toda a
altura e estatura do biografado. Não. Franco Nogueira foi mais longe, mais além
e muito mais fundo, e acabou por traçar, sim, um sumptuoso cosmorama, um consumado
e fervilhante afresco, um palpitante
e esplendoroso painel dos últimos cem anos de História – factual, política,
social, cultural, ontológica, diplomática – de Povo nacional-universalista, de
Estado original e soberano, de Nação vocacionada e independente.
No seu portentoso trabalho,
o panegirista de Salazar acabou, assim, por projectar, em pano de
écran-gigante, um filme narrativo, de
fundo, uma longa metragem cheia
de acção, um monumental documentário, desde onde ascende, emerge, avulta,
ressalta e se alevanta, sobrenadando tudo e todos, por mérito próprio, e mais como
eleito ou como um grande isolado – que o era, afinal, pelo grau do saber e pelo
selo do seu mesmo carisma pessoal – do que como chefe político feito à pressa de ser chefe, o retrato natural e
sobrenatural d’aquele que foi só, e de longe e sem favor, e para todos os efeitos,
o maior e o melhor de nossos contemporâneos e um dos mais ínclitos e preclaros
Portugueses de sempre. António de Oliveira Salazar.
Quer o títere-mor da
abrileirice, que ainda agora aí se
manipansa e todo se derrete e desmanteiga, assim em terra como no ar, por tudo
quanto é sítio e à vista de tudo quanto é gente, e outros como ele gostem, quer
não, a verdade é esta, e as verdades – por mais proibidinhas por lei que possam
estar – são para se dizer, mormente e sobretudo quando a lei, a própria lei,
até mesmo a lei, está fora da lei! E é esse o caso, em Portugal, desde há vint’anos
bem medidos. E enquanto assim for, impõe-se fazer aquilo que Franco Nogueira
fez em “Salazar”: confrontar a
iniquidade da lei com essa e com outras verdades como essa, até que a lei dê de
si e reentre na Lei!
Por mim, já milhentas mil vezes o disse e repito: enquanto a minha mão direita não resignar de cansaço, de doença ou de velhice, enquanto me der Deus vida que baste e uns penúltimos suplementos de energia, enquanto um sopro de fôlego restar à minha voz, não cessarei de imitar o egrégio embaixador – e de louvar, celebrar, enaltecer, e com ele e como ele glorificar, por via oral ou escrita, e até ao fim do meu fim, os pensamentos, palavras, obras, exemplo e memória desse homem maiúsculo, esclarecido, empreendedor patriota, que deu rosto, corpo e alma a todo um regime, e a um regime nacional-universalista, que foi, ele próprio, por muitos e bons anos, proa e mastro desse mesmo regime e o último grande lidador do nosso Império – que sempre defendeu com arreganho, e Franco Nogueira com ele, e que outros, que não ele, nem Franco Nogueira, desalmadamente arrasaram e perderam, deitando tudo a perder...
Confesso que a lembrança disto e do mais que me dispenso enunciar, ainda agora continua a encher-me as medidas... e os olhos de lágrimas...!»
Rodrigo Emílio («Franco Nogueira ou a Gloriosa – e Inglória – pouca sorte de se ter razão contra a História», in «Embaixador Franco Nogueira [1918-1993] – Textos evocativos»).
«Iniciada antes do que se designa por
revolução de 25 de Abril de 1974,
apenas agora, ao cabo de mais de onze anos, me foi possível concluir esta
biografia. Para os hábitos portugueses, é trabalho que tem de ser considerado
excepcional, e a obra tem de ser havida por inusitada, embora em muitos países
seja curial que a história da vida e do tempo dos seus homens importantes ocupe
muitos volumes, às vezes distribuídos por vários autores. Digo trabalho
excepcional, evidentemente, apenas no sentido da sua extensão, minúcia,
documentação, e até tenacidade no esforço. Durante aqueles anos, muitas foram
as vicissitudes a enfrentar. Por um longo período, julguei mesmo inviável
prosseguir e terminar o trabalho. Primeiro, pela razão óbvia de, sem acusação,
sem interrogatório, sem julgamento, estar preso meses e meses, sem saber se o
estaria por anos; e depois porque não cessavam em Portugal as perseguições
contra mim, os insultos, as ameaças. Sendo de prever um assalto ao andar onde
moro em Lisboa, fiz dispersar toda a documentação, por residências de amigos.
Mas o facto foi misteriosamente sabido por misteriosos e solícitos vigilantes.
E aqueles amigos começaram a sentir-se também em risco; alguns foram também
vítimas de ameaças pouco veladas; houve outros que, tendo escondido malas com
documentos em jazigo de família, nem aí os consideravam salvos; e como resultado
de todo esse admirável clima de liberdade, de segurança, de respeito pela
cultura e pela história, esses amigos sentiram-se forçados a devolver para minha
casa toda a documentação, lamentando não poder mais guardá-la. Entretanto, eu
estava já exilado em Inglaterra. Então minha mulher, que se conservava em
Lisboa, tomou uma decisão, e fê-lo sem mesmo me avisar, porque a
correspondência para mim era aberta e as ligações telefónicas de minha casa estavam
sob escuta: reúne toda a documentação, os meus apontamentos, os manuscritos, e
quase uma biblioteca, em pastas e malas; e, com o auxílio de parentes, atravessa
a fronteira numa madrugada, pondo a coberto de atentados todo o material que de
outra forma estaria destinado a perda quase certa. Assim foi viável continuar e
completar em país estrangeiro o meu trabalho.
Há tempo, creio que em 1978, um dos mais eminentes poetas portugueses – Miguel Torga – escreveu: “O delírio subversivo foi longe de mais. O dilaceramento da Pátria ultrapassou aquele limite de perdição para além do qual só resta o abismo. De todos os lados o clamor é o mesmo: morra Sansão e quantos aqui estão. A tendência suicida, que dantes era de poucos, agora parece generalizada”. E Torga refere o caso de um amigo que, “aflito com este desmoronar da Pátria, compra quantos livros lhe testemunham a configuração passada”, desde guias de monumentos até álbuns de cerâmica e de mobiliário, e assim “arruma Portugal na estante”. Esta biografia, e todo o trabalho e documentos que incorpora, terão também ao menos o mérito de serem úteis àquele amigo do poeta: constituem mais um testemunho, de homens e factos do passado português, a arrumar na estante. Já é um serviço sem desdouro prestado a Portugal. Como o poeta, o “pacto que assinei não foi com o azar das circunstâncias” mas com “a terra portuguesa e a língua portuguesa”. Não tenho a pretensão de ser o homem de Sá de Miranda – mas não sou dos que assinaram pacto com outras terras, nem dos que renegaram o que haviam assinado.»
Londres, 1981/ Lisboa, 1984, Franco Nogueira («Duas Palavras Finais», in «Salazar, VI, O Último Combate (1964-1970)», Livraria Civilização Editora).
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«Eu não fui politicamente seguidor de Salazar, nem sequer de Marcelo Caetano, apesar de ser meu grande amigo, e até admirador. Mas trabalhei muito intensamente com Salazar, em assuntos de acção externa, e posso garantir-lhe o que afirmo – até desafio alguém a desmentir-me –. Ele via as consequências das consequências das consequências. Agora, geralmente, até têm dificuldade de ver o imediato.
(...) Posso garantir-lhe que a grande maioria dos que por aí andam a pretender governar-nos, demonstrando ainda mais ignorância do que voluntarismo, se fossem trabalhar com Salazar, sairiam de lá envergonhados da sua ignorância e incompetência, verificando que apenas eram uns atrevidos, quer bem quer mal intencionados.»
Embaixador Carlos Fernandes («O cônsul Aristides Sousa Mendes, A Verdade e a Mentira»).
«Na verdade, a pergunta é: e o Homem português? Caso se aproxima do fim? Chegou ao termo o seu papel histórico? Cumpriu o destino que lhe foi assinado pela Providência? Poderá avançar-se até ao extremo de se dizer que se adivinham indícios daquele fim e que este está no horizonte? Decerto: um tipo tradicional de homem português foi desfeito: nisso consistiu a ruptura. Até agora, porém, não ultrapassou aquela fronteira. Aliás, pelo mundo além e em Portugal, o marxismo-leninismo admitiu e confessou a sua falência em criar o homem novo. Importa agora averiguar em que situação se encontra o Homem português como tipo histórico. Já se viu que possui raízes bastantes à sua sobrevivência e continuidade. Mas detém outros requisitos essenciais? Tem vontade firme e energia para a sua afirmação? Tem consciência dos riscos que o cercam, das ameaças que enfrenta, das forças internas e externas que o podem destruir? Tem a noção dos graves perigos que atravessa na época que está vivendo? Tem a solidariedade suficiente para que seja coesa, e assim se manifeste e se faça respeitar aquela vontade? Estão os Portugueses dispostos aos esforços indispensáveis à salvação do Homem português? Mil outras perguntas, de matiz semelhante, se poderiam formular. E poderá dar-se-lhes uma resposta que parece válida para todas: se o povo português não quiser seguir o caminho de Bizâncio, haverá de reganhar vigorosamente a consciência nacional. É esta que se tem diluído e aviltado. Uma nação é uma realidade, diferente das demais, e antes de tudo deve ser uma realidade para os seus próprios nacionais. Estes têm, ou devem ter, uma imagem do seu passado, um perfil do seu presente, uma perspectiva do seu futuro; e de tudo decorre, ou deve decorrer, uma consciência das suas raízes, uma percepção dos seus interesses permanentes, um conhecimento dos seus meios, um quadro dos seus objectivos. Sobretudo quando bem antiga, uma nação não é o dia que vive, nem mesmo o dia seguinte: é o conjunto dos séculos passados, é a preparação constante para os séculos que hão-de vir. Convém repisar: tudo o que é, assenta em tudo o que foi. Já foi dito, mas convém repeti-lo: uma nação é um sistema de segredos, um acervo de cumplicidades, um conjunto de certezas íntimas, de que partilham todos os seus nacionais, ou ao menos a sua esmagadora maioria. Quando não circulam os segredos entre o povo, quando a cumplicidade encontra hesitações ou sofre quebras, e quando as certezas deixam de ser comuns ou sentidas em comum, então obnubila-se a consciência nacional, enfraquece a vontade, anuvia-se o espírito de resistência, degrada-se a nação; e esta passa mesmo a compreender e a dar razão às forças de desagregação que podem destruí-la, e que no caso de Portugal, vulnerável como é, podem absorvé-lo. Acontece assistir-se a acontecimentos e crises – instabilidade de governos, lutas pelo poder dentro de partidos políticos, acusações e contra-acusações de corrupção ou de incompetência, insatisfação de classes, frustração colectiva, atitudes assumidas a esmo – e tudo se atribui a factores ocasionais, a defeitos de instituições, a vícios do carácter de alguns homens, a erros de prática política; e na verdade todos estes elementos representam o seu papel, e pode ser grave a sua influência; mas no fundo de tudo há um relacionamento de causa e efeito, que não é imediatamente óbvio mas nem por isso é menos real, entre a perda ou a tibieza da consciência nacional e o esbarrondar da sociedade civil, que se quereria diferenciada e autónoma. Ignorados os segredos da grei, recusadas as cumplicidades colectivas, destruídas as certezas comuns, nada mais resta: é o princípio do fim: pode ser o próprio fim.»
Franco Nogueira («Juízo Final»).
Franco Nogueira
Alberto Franco Nogueira foi, sem dúvida, uma personalidade saliente, de aptidões múltiplas. Diplomata, homem político, crítico literário, memorialista, historiador, o seu vulto destaca-se entre os portugueses do nosso tempo - os portugueses do Portugal verdadeiro, que não do rectângulo anárquico do extremo Ocidente da U.E.
Vindo dos ambientes de esquerda, a sua percepção do interesse nacional levou-o a juntar-se a Salazar na defesa da integridade do território pátrio.
Sem dúvida, algo da sua formação originária lhe ficou presente e, por isso, nem sempre damos pela plena adesão à sua obra e às suas posições. Quando aborda o período do Estado Novo no volume consagrado a essa época, editado pela Livraria Civilização, as páginas que dedica à vida cultural, com destaque exagerado para a mera literatura e, nela, para os escritores da oposição, elogiados bem além dos méritos e elencados com minúcia (que não se verifica para outros, de quadrante oposto), são páginas que me causaram compreensível irritação.
Irritação que se transformou em indignação ao vê-lo, no seu derradeiro livro, manifestar a sua concordância com a triste des-Constituição que, infelizmente, nos rege, depois das revisões a que foi sujeita.
Mas, enfim, não é lícito avaliar uma individualidade unicamente pelos seus pontos negativos, se são aspectos positivos que nela sobrelevam.
Como memorialista e historiador, Franco Nogueira deixou-nos trabalhos notáveis.
Considero Um político confessa-se algo de extraordinariamente precioso. Fundamentalmente centrado em torno da figura de Salazar e nos momentos angustiantes da luta, no plano internacional, em prol da nação, ameaçada por imperialismos tenebrosos e, também, pela traição interna, Um político confessa-se fornece elementos inestimáveis para a compreensão do regime nos seus dessous e para a avaliação do modo de ser do Chefe da Revolução Nacional. A imagem deste agiganta-se, naturalmente, pela sua lucidez e firmeza, bem como se afirma a do seu colaborador Franco Nogueira no concernente ao combate diplomático (e isto sem auto-elogios).
Oliveira Salazar e António Ferro |
Ao lado de Um político confessa-se, salientamos, como monumento fecundo, a biografia de Salazar. Lástima que as fontes utilizadas não sejam devidamente citadas, com indicação do local e da página. Valeria bem a pena que, em vez de seis volumes, tivéssemos catorze ou quinze, recheados de notas. Não deixamos, contudo, de compreender as razões pragmático-editoriais que pesaram no sentido da supressão do aparato erudito.
Também um ou outro lapso, no tocante a movimentos de extrema-direita, e que só provam quanto Franco Nogueira estava deles afastado, não conseguem retirar valor e importância à biografia em causa.
Estamos perante um contributo decisivo para quem desejar debruçar-se sobre o momento da vida portuguesa que medeia entre 26 e 68.
Mal irá aos próprios adversários se tentarem historiar o Estado Novo sem se debruçarem, atentamente, sobre os vários tomos que Franco Nogueira consagrou a Salazar. A existência política e pessoal deste é focada com objectividade e rigor, e devidamente enquadrada no contorno exterior que, de algum modo, a condicionou.
A imagem do condutor da Situação, desde as horas altas dos anos de trinta a quarenta (culminadas com a empolgante Exposição do Mundo Português, de que as exposições dos nossos dias não passam de caricaturas sem alma – e como podia ser de outro modo, se promovidas pelos abandonistas do Ultramar?) até às derradeiras batalhas, patenteia, naturalmente, sem apologias deliberadas, a sua imensa superioridade face aos pigmeus que actualmente nos desgovernam.
Aquilo que talvez possamos considerar a doutrina política de Franco Nogueira é o «realismo nacionalista».
Trata-se da afirmação do Portugal independente, que não dispõe a abdicar dos seus interesses perante os «grandes ideais» da consciência geral, porque estes não passam de disfarces das nações poderosas que, em nome deles, procuram submeter a si os restantes povos.
Há, aqui, no plano mundial, como que um eco de Nietzsche (que, julgamos, nunca foi estudado a fundo por Franco Nogueira), com a diferença de que, neste, são os fracos que instrumentalizam os fortes com belos princípios capciosos, ao passo que naquele são os fortes que tentam captar os fracos, com boas palavras e belas ideologias.
Alberto Franco Nogueira conversando com Dean Rusk, Secretário de Estado Norte-Americano (Bruxelas, 1967). |
Esse realismo nacionalista suscita vários problemas que não vamos aqui levantar em profundidade, mas apenas esboçar.
No tocante à nação importa perguntar o que a justifica, levando a reprovar a sua destruição ou subordinação. E se o que justifica a nação é o maior valor do seu carácter universal e unificador, face aos indivíduos e aos grupos particulares, é preciso não esquecer que as nações são, ainda, algo de particular, porque várias e múltiplas. Para aceitar eticamente a nação, é preciso ir mais além dela. O simples nacionalismo não é suficiente. Há que superar as nações sem as aniquilar ou deturpar.
Claro que estes pontos de vista têm a ver com a U.E., ou a Federação Europeia, de que tanto se fala. Baseados na religião da democracia e dos direitos do homem, não representam nenhuma superação do particularismo presente nas nações, antes a sua destruição, graças à idolatria do dogmatismo demo-liberal que visa à constituição de uma espécie de imensa sociedade comercial, a nível da Terra, para satisfação das necessidades dos homens empíricos.
Franco Nogueira, obviamente, era alheio à ideia do Império das Nações. A sua perspectiva não ultrapassava o quadro nacional, mas das nações genuínas, como foram feitas por lutas e sacrifícios ao longo da História, exigindo a devoção dos seus filhos, elevando-os a um plano mais alto que o seu egoísmo e arbítrio. O nível a que se situava era, assim, incomensuravelmente melhor que o do individualismo ou personalismo alvo das apoteoses contemporâneas.
Neste tempo de desagregação, em que se chegou ao fim, ou quase fim de Portugal, nós, o emigrados do interior, que vegetamos neste rectângulo «sem rei nem lei, nem paz nem guerra»», encontramos no patriotismo de Franco Nogueira inteira razão para aplauso e nostalgia.
Por aquilo que escreveu, orientado por esse patriotismo autêntico, que o grande número já não compreende (quando fala em pátria está, apenas, a aludir a um somatório de indivíduos sempre mutável, consoante a vontade dos seus elementos – se os habitantes de Lisboa quiserem tornar-se independentes estão no seu direito, um qualquer Presidente da República agora o ensinou) manifestamos-lhe o nosso reconhecimento, a nossa gratidão, mau grado a discrepância neste ou naquele tópico.
(In Embaixador Franco Nogueira [1918-1993] – Textos evocativos, Livraria Civilização Editora, 1.ª edição/Outubro 1999, pp. 93-95).
Alberto Franco Nogueira tripulando o seu veleiro «Corsário», algures junto à costa portuguesa. |