domingo, 6 de outubro de 2013

Aristides de Sousa Mendes: a queda de um mito (iii)

Escrito pelo embaixador Carlos Fernandes








Segundo Avraham Milgram, para o regime ditatorial de Salazar «os refugiados eram, à partida, potenciais inimigos» (op. cit., p. 72). Para o efeito, faz também a caricatura dos costumes morais do Portugal de então como avesso aos padrões da modernidade, personificados pelo progresso e pelas «ideias avançadas que sopravam das democracias ocidentais» (op. cit., pp. 141-142). Mas até aí a caricatura falha redondamente, pois Salazar sabia muito bem o que, na sua essência, tais democracias ocidentais valiam, sobretudo para a destruição do Ocidente em geral, e de Portugal em particular:

«Falamos com inteira franqueza do desconcerto europeu. Heis-de ver nos países pacifistas pregar-se a guerra santa contra os países de ordem, e os que pretendem evitar lutas entre os povos por motivos ideológicos promoverem a união das democracias contra as ditaduras. Vereis em nações que blasonam de livres serem negadas liberdades reconhecidas e praticadas nos Estados autoritários; em nome da independência dos Estados admitida a ingerência, na sua vida interna, de organismos revolucionários estrangeiros, e em nome da igualdade dos povos na comunidade internacional ir-se pouco a pouco substituindo à livre associação dos Estados um super-Estado em que por tal caminho se afundará a real independência dos pequenos países» (Oliveira Salazar, «A Embaixada da Colónia Portuguesa no Brasil e a nossa Política Externa», Discurso proferido no Gabinete do Presidente do Conselho em 15 de Abril de 1937, diante dos comissionados pela colónia portuguesa no Brasil para cumprimentar o Governo, in Discursos e Notas Políticas, II, 1935-1937, Coimbra Editora, 1945, pp. 278-279).

Miguel Bruno Duarte


«Desde o fim do processo disciplinar até quase à morte, Aristides foi inteiramente dominado pela ideia fixa, ou obsessão, de voltar a ser cônsul no estrangeiro, e, a certa altura, mesmo de voltar a sê-lo em Bordéus, chegando a pedir a anulação do decreto pelo qual fora, oficialmente, destituído daquele posto consular. Nunca admitiu que tal nomeação fosse apenas uma linda miragem. Daqui o ódio visceral a Salazar, e a sua adesão ao MUD, etc., o que nada o beneficiou.

(…) Aristides nem sequer era comedido e prudente quanto aos seus insultos contra Salazar. Isso de o apelidar como sendo "o bandido", em conversa pública com um engraxador, parece-me que não revela boa índole, além de uma grande ingratidão para com Salazar, que lhe aplicou a punição mais benévola que poderia ser-lhe aplicada (fugindo às penas criminais e disciplinares), com excepção da proposta por Paula Brito, que o Conselho do MNE não aprovou. 

(…) De facto, além de apelidar Salazar de “o bandido” em conversa com o engraxador do primo Abranches Pinto quando vai à assembleia de voto, creio que em Cabanas, perante o crucifixo e os retratos de Carmona, à direita, e de Salazar, à esquerda, (era na escola local), Aristides diz: o bom e o mau ladrão, por Carmona e Salazar».

Carlos Fernandes (op. cit., pp. 184, 188-189 e 200).





"General Coca-Cola" (Humberto Delgado).




A questão do ódio visceral contra Salazar também foi, por motivações diversas, característica comum a outras figuras previamente conotadas com o regime salazarista, nomeadamente Henrique Galvão e Humberto Delgado. Sobre este último, diz-nos o embaixador Carlos Fernandes que o seu ultra-salazarismo extinguiu-se por questões de ambição pessoal, já que lhe fora sucessivamente recusado o Governo de Angola, a administração dos Caminhos de Ferro e o Banco Nacional Ultramarino. Daí ter-se apresentado, em 1958, como candidato a Presidente da República pela oposição, passando então a apregoar-se como democrata por ressentimento ou simples oportunismo político. E quem «diria que, chegado ao Brasil em 1961, Delgado haveria de proclamar o seu visceral anticolonialismo, aliado ao anti-salazarismo!» (op. cit., pp. 202-204).

De resto, as veleidades teatrais de Humberto Delgado foram tantas, que não nos coibimos de transcrever este trecho deveras caricato no âmbito do assalto ao paquete Santa Maria por Henrique Galvão: 

«Ao anoitecer, a bordo de um pequeno barco de pesca alugado pelos repórteres das revistas Life e Time, Humberto Delgado consegue encontrar o Santa Maria. “Bem-vindo, meu general”, recebe-o Miguel Urbano Rodrigues. Dezenas de turistas fotografam o momento. Mas quando Humberto Delgado sobe a bordo, o gancho de uma grua do navio solta-se, acerta-lhe nas costas e fica preso ao seu cinto elevando-o um pouco e tirando-lhe os pés do chão. O general, vestido de fato e gravata, agarra-se à escada e ameaça cair ao mar. Mas consegue recuperar o equilíbrio, solta um palavrão e põe as culpas no jornalista que o recebe: “Vou destruí-lo!”» (in Pedro Jorge Castro, O Inimigo n.º 1 de Salazar. Henrique Galvão, o líder do assalto ao Santa Maria e do sequestro de um avião da TAP, A Esfera dos Livros, 2010, pp. 175-176).

Humberto Delgado e Henrique Galvão a bordo do paquete "Santa Maria".



Humberto Delgado e Álvaro Cunhal



Mas o caso não ficaria por aqui: 

«Dois dias depois, um jornalista português mandará para Lisboa este episódio descrito como um “pormenor pitoresco”: “Assim mesmo, um pouco pendurado e esperneando, voltou-se para trás exclamando para a sua secretária que o acompanhara na lancha e foi também a bordo: ‘Se eu morrer, diga à minha mulher: Morreu como um herói…’"» (op. cit., p. 175). 

Depois, o episódio que se segue é não menos irrisório, porque permite evidenciar a postura arrogante e a auto-importância que o ex-salazarista atribuía a si próprio: 

«Humberto Delgado começa por falar com Galvão a sós. Apenas duas horas depois manda chamar os dirigentes espanhóis, que se encontravam a beber uísque no bar. Já passa da meia-noite. Como vê que não se levantam, Frias de Oliveira avisa-os: “Sua excelência o general Delgado não gosta que o façam esperar”. “Se o teu general não quer esperar, ele que vá para o caralho”, responde Velo…”» (op. cit., p. 176).

Quanto a Henrique Galvão, o seu ressentimento e revolta contra Salazar nasceu, em grande medida, do facto de se não sentir profissionalmente reconhecido e aproveitado por um ditador que não aparava os seus anseios e ambições surreais. Aliás, o seu estilo bajulador para com Salazar não nos deixa mentir: 

«Nunca tive a fortuna de servir directamente sob o mando de V. Ex.ª, e nada do que fiz de mais visível teve o mérito de interessar V. Ex.ª a ponto de me querer conhecer mais de perto – eu fiquei, perante as circunstâncias que foram mais eloquentes que os meus actos, e perante V. Ex.ª, não como o homem que sou, na realidade das minhas qualidades e dos meus defeitos, mas como a pessoa que os elementos intermediários entre mim e V. Ex.ª querem que eu seja» (op. cit., Apêndice Documental, Anexo 2, p. 316).

Miguel Bruno Duarte







«Exigi-lhe [a Sousa Mendes] que me explicasse tão insólita actuação […] De tudo o que ouvi e do seu aspecto de grande desalinho, fiquei com a impressão de que o homem estava profundamente perturbado e fora do seu estado normal».

Pedro Teotónio Pereira


«(…) uma noite, Aristides e Andrée, tinham convidado os amigos, os que restavam, para jantar. Toda a gente tinha chegado. Andrée, cuja noção do tempo era ainda mais imprecisa do que a do dinheiro, que detestava tudo o que lhe parecesse uma imposição, brilhava pela ausência. Ao verificar que nenhum vestido lhe agradava, desmanchou um cortinado de veludo vermelho, enrolou-se nele e desceu para junto dos convidados. ‘Estava encantadora’, dirá mais tarde Aristides a Maria Rosa».

José-Alain Fralon (op. cit., p. 102).


«(…) o facto de Aristides de Sousa Mendes falecer no hospital da Ordem Terceira de S. Francisco, ao Chiado, não tem, para mim, qualquer significado especial, de riqueza ou pobreza, porque não prova nada do que, agora, pretendem provar – que morreu lá porque morreu na miséria, onde Salazar o tinha lançado. Foi para ali por razões logísticas – era o hospital mais próximo. Porque poderia ter ido, com vantagem, para um hospital público, tal qual foi para um particular. Demais, regressava de uma viagem a França, ele e a mulher, estando hospedados num hotel do Chiado, em Lisboa, o que não se faz quando se está na mais completa miséria».

Carlos Fernandes (op cit., p. 209).


«É uma grande honra e uma grande emoção estar aqui para prestar homenagem a Aristides de Sousa Mendes, este grande português, este português simples, um homem modesto que soube, contra as ordens de Salazar, cumprir os seus deveres de humanidade»

Mário Soares (Homenagem em Bordéus, num Domingo, a 29 de Maio de 1994).


«(...) É de notar que, se Aristides tivesse praticado todos os actos que Rui Afonso e outros, incluindo o filho Sebastião, dizem que ele praticou, teria cometido cinco crimes: desobediência, abuso de poder, concussão, usurpação de funções e roubo de passaportes. Mas o MNE não o acusou de nada disto. Apenas de desobediência disciplinar.

É isto perseguição?!

(...) Depois, concluído o processo, foi proposta ao seu Ministro quer a degradação de categoria quer mesmo a demissão. Salazar ignorou completamente a proposta conclusiva do procedimento disciplinar, porque, a meu ver, compreendeu que Aristides tinha grandes atenuantes. Por isso, em vez de lhe dar qualquer pena disciplinar, e muito menos as propostas, foi para uma solução diferente, que consistia numa faculdade do Ministro (vigente em França, Espanha, Itália e em muitos outros países, para eventual aplicação aos diplomatas ou cônsules que se julgava não estarem em condições de desempenhar convenientemente as suas funções), a disponibilidade fora do serviço por determinado período, podendo, quando o Ministro assim o entendesse, ser o diplomata ou cônsul chamado novamente ao serviço activo. Foi assim que Salazar, sem proposta de ninguém, coloca Aristides fora do serviço por um ano, e aguardando aposentação findo ele, já que Aristides ainda não estava próximo dos 70 anos, para ser aposentado com todo o vencimento. Não o aposentou.




Quer dizer, Aristides não foi punido disciplinarmente. E também não foi excluído da carreira consular. Apenas se lhe interrompeu o seu exercício. E daqui a legitimidade de Aristides requerer o regresso à actividade, que, para quem tiver cinco réis de senso, não pode deixar de concluir que nunca mais poderia ser a colocação como cônsul fosse onde fosse no estrangeiro. Até porque Aristides estava gravemente doente, física e psicologicamente.

Aguardando aposentação, ganhava, não trabalhando, o mesmo que ganhavam os seus colegas (...), trabalhando.

Foi esta uma perseguição quer dos serviços do MNE quer de Salazar?!

(…) No que concerne à indemnização, imposta pelo artigo 3º da Lei 51/88, o processo foi muito complicado e demorado, e, a meu ver, terminou mal.

Primeiro, houve dificuldades nunca superadas quanto ao seu cálculo, todo baseado numa suposta demissão ou aposentação compulsiva.

Ora, nós já vimos que Aristides nunca foi demitido nem aposentado, compulsivamente ou não. Foi, sim, compulsivamente, posto a aguardar aposentação, sem nunca ter sido mandado aposentar. São realidades completamente diferentes, juridicamente.

 Para calcular aquela indemnização, tentou-se saber quanto é que a Caixa Geral de Aposentações lhe teria pago. Esta não conseguiu encontrar rasto dessa aposentação, e, apesar de reiteradíssima insistência do MNE, nada veio a encontrar. É óbvio que nada poderia encontrar, uma vez que Aristides nunca foi aposentado (…).

Porém, toda a argumentação que os diversos serviços do MNE tomaram como base factual da indemnização, sem se darem ao trabalho de investigar, se com razão ou sem ela, já que tinham no MNE elementos para isso, foi a demissão ou a aposentação compulsiva, ambas inexistentes. Fizeram o mesmo que a Assembleia da República.

(…) Finalmente, depois de muitos cálculos e recálculos, chegaram os serviços do MNE à conclusão, provisória, de que a indemnização justa seria de 769.869$00.

Parecendo isto pouco, foram procurar novas bases de cálculo, e chegaram ao montante de 8.585 contos, ou, por outro cálculo mais favorável, a 14.308 contos.











Como a Lei 51/88, com base no disposto no artigo 2º do Decreto-Lei 222/75, de 9 de Maio, aditando um n.º 3 ao artigo 1º no Decreto-Lei 173/74, impôs que a indemnização fosse só para os filhos, os filhos e os netos de Aristides não se entenderam, e, assim, não foram capazes de apresentar no MNE, em tempo útil, documentação válida de habilitação de herdeiros, pelo que, afinal, nada lhes foi dado, directamente. Depois de o MNE andar a empurrar o pagamento da indemnização para o Ministério das Finanças, sem conseguir que este aceitasse o encargo, Jaime Gama, à falta de legal habilitação de herdeiros para receberem a indemnização, terá sugerido, ou aceitado a sugestão, de criar uma fundação, à qual seriam dados não só os 15.000 contos já despachados, mas, ainda, mais 50.000 contos, com 2.000 contos de subsídio anual, fundação que, com a ajuda do MNE, veio a ser constituída por escritura de 23 de Fevereiro de 2000, e reconhecida oficialmente pelo Secretário de Estado da Administração Interna, Luís Manuel dos Santos Silva Patrão, em 21 de Março do mesmo ano [os 65.000 contos, adicionados pelos 2.000 contos anuais então prometidos, vêm confirmados nos documentos anexos que o embaixador Carlos Fernandes reuniu no seu livro].

Mas, como as Finanças não quiseram pagar e não havia verba para isso no orçamento do MNE, Jaime Gama fez todas estas liberalidades extorquindo-as ao FRI (Fundo para as Relações Internacionais), que não é constituído por verbas do Estado mas sim pelas compensações pessoais emolumentarmente cobradas pelos serviços consulares portugueses.

Não é, portanto, verba do orçamento do Estado, de que o MNE é órgão. E assim se dispõe do dinheiro dos outros, ao sabor do arbítrio político do momento. O FRI não é nem pode ser político. Seria o maior abuso dos abusos politizá-lo.

(…) Hoje, francamente não sei do que vive [a Fundação Aristides de Sousa Mendes], esperando que não continue a receber do FRI o correspondente aos 2.000 contos prometidos por Jaime Gama, porque, se os recebe, é um escândalo intolerável.

E conviria saber o destino que os activistas netos de Aristides deram efectivamente à avultada verba que Jaime Gama e Ribeiro Menezes puseram à disposição deles, isto é, utilizaram-na, directa ou indirectamente, em proveito próprio, ou para outras finalidades, e, neste último caso, concretamente quais?»

Carlos Fernandes (op. cit., pp. 33-34, 237, 271-274).




O que é a Disponibilidade?






Como se tem feito, de propósito ou não, grande confusão com a colocação na disponibilidade fora do serviço, talvez valha a pena dar aqui uma explicação amiga sobre o estatuto jurídico da disponibilidade.

Antes de mais, reiteramos que a disponibilidade, mesmo fora do serviço, não é uma pena, quer disciplinar quer de outra natureza. Não vai, por conseguinte, para o registo criminal, nem é, normalmente, uma situação degradante. Mas representa, de facto, uma punição, se não é processada de acordo com o interessado.

No meu entendimento jurídico, quando este substituto jurídico fosse usado sem acordo do visado, seria já inconstitucional segundo a Constituição de 1933, também o sendo, obviamente, segundo a actual, basicamente, de 1976.

No entanto, no MNE, antes do Golpe de 25 de Abril de 1974, eu era dos poucos juristas a ter esta opinião. E até, já no domínio da Constituição actual, um tal Dr. Mário Neves achava, no MNE, que ainda era perfeitamente constitucional. Mas, o problema nunca foi discutido constitucionalmente antes do meu recurso para o STA.

Depois do 25 de Abril, o MNE continuou a prática antiga, que era, pode dizer-se, tradicional, tanto que Melo Antunes me colocou, a mim, nessa situação. Recorri e ganhei o recurso com base na inconstitucionalidade. Daí para diante, o MNE, até porque eu fui Director dos Serviços Jurídicos, aceitou que era inconstitucional, e mais ninguém, que eu saiba, foi colocado na disponibilidade fora do serviço.

Ora bem, o instituto da disponibilidade, como ele era interpretado antes do meu referido recurso, envolvia a disponibilidade em serviço (situação em que, v. g., fui colocado ao sair da Haia, em Agosto de 1974) e a disponibilidade fora de serviço, ou seja, a inactividade, em que o exímio democrata Melo Antunes depois me colocou.

Portanto, disponibilidade:

a) em serviço;
b) fora do serviço.







Ambas abriam vaga no respectivo quadro. E a disponibilidade em serviço era, frequentemente, usada - não sei se ainda é - para abrir uma vaga, e permitir assim uma promoção de alguém que se queira promover sem haver vaga.

Colocava-se na disponibilidade em serviço um diplomata ou um cônsul para poder promover um colega deles, estivesse onde estivesse, em Portugal ou no Estrangeiro, sem o afectar em nada, inclusivamente quanto ao vencimento. O Dr. Humberto Morgado era o perito nestas manobras jurídico-administrativas.

Fazia-se a promoção desejada, quando de acordo com o visado, funcionava como uma licença de mais ou menos longa duração, mas paga. Quer por iniciativa do MNE quer a requerimento do interessado, podia ser-se chamado imediatamente ao serviço, sem mais formalidades.

Porém, quando a colocação era de disponibilidade fora do serviço, apenas por decisão discricionária do Ministro, o funcionário nada podia fazer, a não ser pedir que o chamassem ao serviço, sujeitando-se à decisão descricionária do Ministro. Era assim uma situação muito precária, sendo, por isso, a meu ver, inconstitucional.

No caso de Sousa Mendes, o MNE não quis modificá-la, mantendo-o na inactividade até falecer, aguardando aposentação.

Como já tivemos ocasião de referir a pp. 33, o sub-instituto da disponibilidade fora do serviço tinha por base o entendimento superior de que o diplomata ou cônsul, dado o circunstancialismo existente, não estaria em condições psicológicas ou de outra natureza relevante, adequadas ao desempenho normal das respectivas funções. Daqui a razão por que a suspensão do exercício delas tinha, em princípio, carácter meramente temporário.

Quer dizer, a disponibilidade fora do serviço, fosse por que tempo fosse, desde que não tivesse a anuência do funcionário, era, a meu ver, inconstitucional, mesmo a segundo a Constituição de 1933. Se tivesse anuência do funcionário, era, a meu ver, não só constitucional como, sempre, do seu interesse.






Contudo, parece que a prática do MNE foi, agora, de a pôr de parte, tanto numa hipótese como na outra.

De facto, a disponibilidade fora do serviço sem anuência do funcionário, funcionava como uma punição, sem, no entanto, ser uma pena, quer disciplinar quer criminal.

Aristides sofreu-a como punição, embora muito mais leve do que a pena proposta pelo Conselho do MNE, pelo menos em teoria.

Salazar, que não era tão insensível como dizem, compreendeu a s circunstâncias da atitude de Aristides, as que lhe eram exteriores e as suas internas, do foro psicológico, e recusou-se a despromovê-lo ou a condená-lo formalmente, aplicando-lhe uma pena, mesmo que fosse só disciplinar. Não quis ir por ali. Apenas entendeu que, nas circunstâncias do momento, Sousa Mendes não se encontrava em condições de exercer convenientemente as funções de cônsul de Portugal no estrangeiro. Apesar disso, ninguém lhe agradeceu, ou compreendeu. Ou quis e quer não compreender.

Ah, mas deu-lhe cabo da vida.

Não deu, quem lhe deu cabo da vida, a ele e aos familiares, foi ele mesmo, seja qual tenha sido a motivação do seu actuar, e os méritos ou deméritos desse actuar, então ou ex post facto.

Sousa Mendes foi, praticamente, sempre cônsul no estrangeiro. Nunca serviu na Secretaria de Estado (MNE em Lisboa). César serviu, embora não em lugar de relevo e também por pouco tempo. Aristides foi assim mal habituado, já que, tanto dantes como agora, o serviço diplomático e consular faz-se, alternadamente, e com certo equilíbrio, em Lisboa e no estrangeiro.



Casa do Passal (antiga residência de Aristides em Cabanas de Viriato).



Aristides esqueceu-se disto, e, não sei porquê, parece ter-se convencido - e convencido os filhos - de que o seu lugar era sempre no estrangeiro, quando não era, e que, v. g., o Consulado de Portugal em Bordéus era dele por nomeação vitalícia, tanto que reclamou contra o decreto que o exonerou desse posto. A reintegração que ele reclamava - não pedia - era como cônsul no estrangeiro e não em Lisboa.

Na verdade, Aristides não tinha qualquer interesse, antes o contrário, na sua chamada ao serviço na Secretaria de Estado, porque ganhava o mesmo e teria de lá ir trabalhar. Só o estrangeiro lhe interessava.

Como eu já expliquei oportunamente, os diplomatas e os cônsules vão para o estrangeiro em comissão de serviço por tempo limitado, não são providos definitivamente em qualquer missão diplomática ou consular. Já referi o caso de Maria de Lurdes  Pintasilgo, que também pensava ser senhora do lugar de representante do Governo Português junto da UNESCO, em Paris.

Quanto a ser novamente colocado no estrangeiro, dando o seu passado e o recente processo de Bordéus e Bayonne, aliados ao seu estado físico e psicológico, só um Ministro irresponsável é que o faria.

Mas era só isto o que Aristides queria, por mais incrível que pareça, alegando sempre os seus serviços humanitários e as suas dificuldades financeiras, nunca as suas faltas.

Ora, não é por estes motivos que se nomeiam os funcionários diplomáticos ou consulares no estrangeiro.

Por isso, nem Salazar nem Caeiro da Mata, nem Paulo Cunha, o nomearam.

Como lembrei noutro passo deste livro, entendo que, logo em 26 de Abril de 1940, Aristides deveria ter pedido para ser deslocado para outro posto, sendo imediatamente substituído em Bordéus por cônsul de inteira confiança do MNE, excepcionalmente capaz e de boa saúde.

Não pediu, nem o MNE o transferiu, acontecendo o que aconteceu.




Assim, tornar as culpas a Salazar o bandido e o mau ladrão - das dificuldades, ou até atribulações, financeiras de Aristides, nos últimos 14 anos da sua vida, com sopa dos pobres e outras misérias degradantes, é, a meu ver, manifestamente abusivo, e uma vergonhosa falta de honestidade.

É óbvio que Aristides, mal habituado, com duas famílias e doente, sem preparação para a vida prática em geral - a experiência consular não lhe servia de nada - e sem rendimentos significativos além do seu magro vencimento de cônsul de 1.ª classe em Lisboa, não poderia viver sem grandes dificuldades. Mas isto só a ele se deveu, e parece que é, agora, o motivo da sua glória. Mas é uma glória que lhe saiu muito cara, a ele, às mulheres e aos filhos. E durará? Porque está, basicamente, alicerçada em falácias. E a verdade acaba sempre por triunfar. E mal da Humanidade se assim não fosse.

É necessário notar que este sub-instituto da disponibilidade fora do serviço, a vigorar em Portugal, vinha pelo menos desde a primeira república (como vimos, em 1919, foi aplicado a Aristides de Sousa Mendes com dois anos de inactividade).

(in op. cit., pp. 243-248).



Vincit omnia Veritas («A verdade tudo vence»).



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