domingo, 1 de agosto de 2010

Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica (ii)

Escrito por Álvaro Ribeiro



Dante Alighieri


Seria extremamente útil escrever a história do aristotelismo em Portugal, começando pela recensão de todos os textos em que Aristóteles é citado. É de crer, porém, que as obras de Dante foram, efectivamente, aquelas que mais influíram no aristotelismo português. A assimilação do pensamento dantesco transparece até mesmo nos escritos daqueles que não o citam. Aludimos, sem dúvida, às obras de D. Duarte e do Infante D. Pedro (11).

O pensamento medieval foi fortemente aristotelizado, muito antes de se realizar a oposição entre Platão e Aristóteles, ou entre agostinianos e dominicanos. Durante muitos anos os estudos teológicos foram confiados a estas duas ordens religiosas, visto que só em 1400, no reinado de D, João I, há notícia de ter sido estabelecida a cadeira de Teologia na Universidade de Coimbra (12).

É de admitir, portanto, que a preparação arábica do aristotelismo português explique a facilidade com que, depois da Reforma e da Contra-Reforma, fosse adoptada a síntese albertino-tomista no ensinamento da Companhia de Jesus. As teses fundamentais desta doutrina, como a de o conhecimento humano ser fundado sobre a experiência sensível, as provas da existência de Deus extraídas da contemplação do mundo exterior, a indemonstrabilidade da criação do mundo no tempo, e a impossibilidade da prova ontológica, parecem conciliar~se com as tendências de um povo, cuja fé assentava no preceito de ver para crer, como S. Tomé.

Está, aliás, explicada também a natural, ou nacional, animadversão pelo protestantismo, nas tendências próprias da religiosidade portuguesa, a qual tem por características, entre outras, o culto de Santa Maria, sempre figurada em companhia de Jesus, menino, adolescente, ou adulto, e assim a iconografia nos aparece como modo de ver, para um modo de crer num cristianismo evolutivo, de criança e de criação, que progride para o advento do Espírito Santo, enfim, de uma razão que ainda está em progresso para a fé (13).

Pietà de Michelangelo


Enquanto outros povos menos fiéis a Roma, viviam já o pensamento moderno, o povo português permanecia nos quadros do pensamento medieval. Se é difícil, mas possível, estabelecer a distinção rigorosa entre a teologia e a filosofia, já não é lícito separar radicalmente entre a fé e a razão. Todos os homens da Idade Média eram religiosos: uns fortaleceram a sua alma com a sua fé judaica, cristã ou islâmica; outros viviam numa religiosidade que poderemos dizer panteísta, politeísta ou pagã; outros mantinham-se fiéis a práticas e doutrinas que hoje consideramos supersticiosas; raro seria o homem que não pensasse a sua relação com o mundo natural e sobrenatural, porque a atitude ateísta só surge na Idade Moderna, precedendo e preparando a atitude antiteísta, que é o flagelo da Idade Contemporânea.

Tardiamente se afirmou entre nós a nítida separação entre a razão e a fé, na transição do ensino franciscano para a adopção da síntese albertino-tomista. Os próprios dominicanos estão longe de admitir um racionalismo tal como se formulou na Companhia de Jesus. O racionalismo medieval, ensinado nas universidades europeias pelos compêndios dos escolásticos portugueses, aperfeiçoa-se no racionalismo moderno, principalmente depois da difusão da obra de Descartes.

Interpretamos toda a filosofia moderna como a demonstração de que o racionalismo medieval é insuficiente para elaborar um sistema filosófico. Kant, que estudou o ideal de razão pura nas obras dos Conimbricenses, completou essa demonstração. A não ser que se renuncie a filosofar, conforme propõe e impõe o positivismo, há que admitir verdades enunciadas em proposições de origem tradicional, revelada e sobrenatural, porque só elas tornam inteligível tudo o mais, só elas pacificam a ansiedade humana.

A reacção contra o racionalismo da Companhia de Jesus começou nos actos que tornaram possível a infiltração do iluminismo na cultura portuguesa, por essas associações secretas nomeadas academias ou arcádias, obra começada no reinado de D. João V e facilitada pela reforma pombalina da Universidade de Coimbra (14).

São de notar as três fases desta decadência. A expulsão da Companhia de Jesus foi seguida da eliminação de Aristóteles, a eliminação de Aristóteles teve como consequência a refutação da filosofia, e o ensino superior deixou de ser universitário.

Do ponto de vista português, a Escolástica está mais referida a Aristóteles do que a S. Tomás de Aquino. A má interpretação da encíclica Aeterni Patris alterou esta perspectiva histórica, permitindo substituir a filosofia helénica pelo positivismo francês, ou belga.






A Escolástica caracteriza-se filosoficamente por aceitar a tese entre as leis do pensar e as leis do ser, tese da qual se infere a possibilidade humana de conhecer absolutamente a verdade. A esta tese está ligado o merecido atributo de lógica, porque relacionado com o logos, referido que seja a Heraclito, o Obscuro, ou a S. João, o Evangelista. Nem a gramática, nem a retórica, nem a dialéctica nos oferecem mais do que as leis do escrever e do falar, porque o pensar excede-as por imanência e transcendência.

A aceitação da lógica de Aristóteles, superior à de Platão e à de Plotino, corresponde a um momento de mais lúcida visão do propósito da filosofia escolástica. Toda a filosofia helénica poderá ser interpretada como uma variação de doutrinas sobre a irrealidade do mundo sensível. Não aludiremos apenas ao cepticismo grego que por demais se compadece com o pessimismo trágico, segundo a interpretação de Burckhardt, Nietzsche e H. S. Chamberlain. Referimo-nos a toda a linha de oposição dialéctica entre o sensível e o inteligível tendente para a desvaloração do homem, do mundo e de Deus. A tradição semítica, pelo contrário, admitindo a criação divina e a criatura humana, marcava acento valorativo sobre o carácter espectacular do mundo sensível, embora induzisse os pensadores religiosos nos erros que resultam de má interpretação das relações entre a imanência e a transcendência.

A lógica aristotélica daria expressão, comunicação e demonstração a três tradições religiosas que conviria unificar. Antes do aristotelismo de Santo Alberto Magno já a Escolástica estava habilitada a resolver o problema da solidariedade da teologia cristã com a filologia latina e com a filosofia grega, num corpo doutrinal capaz de flutuar sobre as correntes que dissolvem as relações da razão com a fé. Efectivamente a fé define-se, nos dizeres de S. Paulo, como a relação do visível com o invisível (15). Esta relação só é apreensível por símbolos, mas como o símbolo se presta a uma pluralidade de interpretações que faculta o trânsito da heterodoxia para a heresia, tiveram os Santos Padres e os concílios o cuidado de procurar fórmulas inequívocas, para o que recorreram aos termos da filosofia grega e da eloquência romana (16). Os doutores escolásticos não só continuaram a missão dos concílios, que na definição da fé procede da flutuação simbólica para a fixação dogmática, mas quiseram também fazer a dedução cronológica dos dogmas, que não é arbitrária ou artificial porque deve reflectir o plano divino segundo as sistematizações teológicas, ou sumas. Os séculos XII e XIII são os séculos das sumas, entre as quais se distinguem as de Hugo de S. Vítor, a de Pedro Lombardo, a de Alexandre de Halles e a de S. Tomás. Ora os autores dessas sumas quiseram também fixar a argumentação probante de cada um desses dogmas. O ideal seria de com tais encadeamentos de raciocínios querer forçar a convicção dos leigos, dos gentios e dos infiéis.

Explica-se assim a formação do racionalismo medieval, precursor do racionalismo moderno. A partir dele vai sendo cada vez mais condicionada, e depois restringida, a liberdade de interpretar os símbolos, os mistérios e os sacramentos, agora definidos numa rigorosa sequência de palavras, em fórmulas que se denominam dogmas. Maior liberdade é concedida às artes plásticas que exprimem pensamentos vedados às artes da palavra. Estas ficam perfeitamente limitadas nos colégios, nos mosteiros e nas Universidades. Além da rigorosa disciplina do trívio, a constituição das Universidades consolida o predomínio da filosofia grega e do direito romano, doutrinas estas que hão-de estruturar a própria Igreja Católica. Depois de fortes lutas contra a teologia, que ainda defende a fé em termos de S. Paulo, e que ainda defende a tradição, a revelação e o sobrenatural, procuram os escolastas tornar independentes a filosofia jurídica e a filosofia natural, segundo um racionalismo que constituirá sem dificuldade o direito, a sociologia e a tecnologia.

Conversão de S. Paulo

Vem a Escolástica reforçar a tese, já anunciada por Santo Agostinho e aperfeiçoada por Santo Alberto Magno, de que os redactores da Bíblia tiveram intenção de ensinar a primeira verdade religiosa, mas não se propuseram dizer a última palavra na ciência. Esta tese deve ser interpretada para bem da liberdade de pensamento. Merece, efectivamente, demorada atenção o problema delicadíssimo de expor em termos figurativos, e portanto obtidos por analogia das imagens do mundo sensível, a transcendente doutrina da criação do mundo e do homem, segundo a tradição do Génesis. Incorrem muitas vezes os redactores de livros escolares nos mais grosseiros e mais ridículos erros de anacronismo e antropormofismo, geralmente agravados por más ilustrações devidas a artistas plásticos. A transladação livre e a paráfrase profana da narrativa bíblica decaem por vezes em termos impiedosos para com a doutrina sagrada, sem que valha a desculpa de qualquer utilidade para a didáctica ou de vantagem para a propagação da fé. Nada obsta, antes a prudência aconselha, que o dogma seja formulado em expressões sublimes que o libertem de noções comprometedoras com as limitações do tempo e do espaço.

A distinção escolástica entre a Bíblia e a Física, entre a revelação e a cosmologia, veda aos teólogos abusiva intromissão no campo científico dos estudos sobre a Natureza. Acto decisivo para a realização de uma obra que muitos julgam de racionalização, mas que foi essencialmente de defesa da fé, a introdução da obra de Aristóteles no sistema escolástico deve ser justamente interpretada por quantos admiram o génio de Santo Alberto Magno. A Física de Aristóteles caracteriza-se pela sua límpida doutrina do movimento, pela sua útil doutrina da acção e da paixão, pela sua admirável doutrina da produção, numa sistematização científica de todos os fenómenos visíveis que se completa pela relação dos lugares naturais com o lugar comum. Sucessivamente comentada pelos escolásticos e aproveitada pelos modernos, a Física de Aristóteles resistiu gloriosamente até à época em que os conceitos cosmológicos foram substituídos pelos conceitos tecnológicos, por mais próximos da experiência humana. O descrédito da física aristotélica não favoreceu contudo os pensadores que operam na legítima intenção de destrinçar na Bíblia o que é de razão e o que é de fé. A exegese bíblica tem sofrido embates de diversa ordem, e com tristeza verificamos ainda hoje que os teólogos autorizados se mostram pressurosos de realizar obra perfeita, apesar dos expressos incitamentos das encíclicas Providentissimus Deus e Divino Afflante Spiritu (17).





A formação medieval do racionalismo moderno nem sempre aparece claramente descrita pelos historiadores da filosofia. Ela está, porém, patente na obra de Étienne Gilson, que considera a libertação da razão humana e a consequente laicização da sociedade concluídas no século XIII. No dizer do ilustre escritor, seria S. Tomás de Aquino o primeiro dos filósofos modernos e Renato Descartes o último dos filósofos escolásticos. Esta afirmação, que a uns parecerá paradoxal e a outros surpreendente, merece ser meditada por quantos julgam que a história do pensamento europeu deve ser estudada a partir da história da filosofia grega. Depois da expulsão da Companhia de Jesus, um tipo de escolástica não-aristotélica foi precariamente esboçado pelas ordens religiosas de tradição medievalista ou moderna. Com o advento do liberalismo tudo se modificou, a ponto de a Escolástica ser considerada anacrónica sobrevivência de tenebrosa história política e eclesiástica.

Está ainda por descrever o quadro histórico da nossa filosofia no século XIX. Será, para isso, indispensável coligir toda a bibliografia dispersa, tendo em atenção não só os livros estrangeiros para português traduzidos, mas também a produção nacional dispersa em opúsculos, folhetos e jornais. Só assim podemos determinar o que foi lido entre nós, já que a simples conjectura de um paralelismo franco-português não convém à fase actual das investigações históricas. No entanto podemos dizer que entre 1830 e 1870 predominou na cultura católica o tradicionalismo, como processo de reacção contra o racionalismo escolástico, cartesiano, kantista (18). Em Portugal o movimento tradicionalista deixou vestígios entre os leitores de Maistre, Bonnald e Lamennais, mas principalmente nos admiradores do Padre Joachim Ventura di Raulica, como se infere do livro de Amorim Viana, significativamente intitulado Defesa do Racionalismo e Análise da Fé. O facto poderá ser talvez explicado pela convergência dos aspectos teológico, filosófico e político da doutrina tradicionalista que exprimia reacção legitimista ao liberalismo dominante. Seja como for, a verdade é que em todo o século XIX se acentua nas escolas religiosas uma revivescência do iluminismo de Santo Agostinho e de S. Boaventura, tal como nas escolas profanas se nota uma tendência para aceitar o predomínio da intuição sensível, ou da intuição intelectual, sobre os processos lentos e laboriosos da razão humana.

A iluminação interior, propiciada pelo ensino escolar, assegura a verdadeira liberdade humana, a qual não é constituída pelo livre arbítrio da vontade animal, mas pela participação na ciência de origem divina. Se estudarmos as manifestações espontâneas do pensamento expresso nas obras da literatura romântica e da política liberal, se atendermos à sucessão das escolas e à sequência dos partidos, para extrairmos a filosofia implícita, tenderemos a ver como o predomínio do iluminismo cristão se compadece e compatibiliza com o iluminismo judaico e islâmico.

Sócrates

O iluminismo, doutrinal da luz interior, é de tipo oriental. Segundo o iluminismo, a verdade não resulta da prática docente; descobre-se na alma humana, afastando os obstáculos corporais, passionais e intelectuais, segundo um procedimento de que ainda há eco em Sócrates. A alma humana tem de ser libertada da doutrina que estabelece a distinção entre o Criador e a Criatura, do princípio de individuação natural, para que se realize a adunação mística ou búdica.

Dentro da ortodoxia católica o iluminismo teve como altos representantes Santo Agostinho e S. Boaventura, em cuja doutrina predominam os termos de contemplação, intuição e visão beatífica, posto que o objecto da filosofia e o fim superior do homem é o amor de Deus. O iluminismo propende, porém, para a heterodoxia, como no caso do quietismo de Madame Guyon, ressalvado por Fénelon, para o abandono dos sacramentos e da doutrina que os justifica, num mundo aberto à acção do homem.

Esta dilatação da fé, dilatação da luz, e consequentemente da liberdade, tendia a impelir para o domínio da teologia, ortodoxa ou heterodoxa, tudo quanto não pode ser demonstrado pela razão natural. Este alargamento da fé, por adesão a objectos intelectuais que não são dados da Revelação, nem estão contidos na Sagrada Escritura, tendia para o fideísmo, doutrina da subjectividade infinita que na Alemanha haveria de obter grande número de adeptos.

O iluminismo foi cultivado nas sociedades secretas que prepararam o advento do liberalismo. Em política, o iluminismo defendia o segredo de Estado contra a razão de Estado. Ele foi, por isso, a filosofia oculta que, doutrinando a nova nobreza, sustentou durante um século as instituições monárquicas. O liberalismo britânico não pode ser entendido senão em função dos estudos filosóficos de Locke, Berkeley e Hume sobre a essência do espírito humano. Kant resolveu o problema iluminista pela formulação do pensamento categorial, ou categórico, e sem receio de erro poderemos verificar que ao longo do século XIX predomina a discussão das categorias.

Durante a vigência da monarquia liberal vão sendo as funções da Nobreza transferidas para o Funcionalismo público, recrutado por um processo individualista que não atende a exigências de genealogia. A escolha dos melhores, formativa da nova aristocracia, depende de vários critérios, mas é legalizada por quem assume as funções superiores de julgar do bem e do mal. Vigora o regime das provas públicas, tanto no concurso determinado segundo condições regulamentares, como na eleição e no leilão. Um júri examina quem compra por preço mais elevado, quem fornece por mais barato custo, quem escreve melhor tese de doutoramento, quem responde precisamente a um questionário, enfim, qual dos elegíveis deve ser eleito. Em vez do acesso orgânico, consagrativo de longa experiência do ofício, faz-se o recrutamento entre os desconhecidos que inesperadamente surgem a reclamar os seus direitos. É indispensável observar esta decadência do iluminismo para entender as relações da filosofia com a política do século XIX. Deixando de ser uma doutrina secreta e orgânica, própria de espíritos superiores, para passar a doutrina pública e mecânica acessível a toda a gente, o pensamento categorial contribuiu para a corrupção da Nobreza pela dissolução da Família. Desvalorizada a educação de pai para filho, com o estabelecimento de escolas públicas e particulares, negando o poder da hereditariedade e a influência do hábito familiar, deixou de ser entendida a vantagem de transmitir ao primogénito, àquele que mais cedo e por mais tempo beneficia de um ensino incomparável, os direitos e os deveres do ofício a que estava ligado um nome honrado e respeitável. Atacada a Família nos seus privilégios de projecção social, e consequentemente a Nobreza, não tardaria o momento de a mesma doutrina atingir «o duro ofício de reinar».



Manuel Kant



A doutrina estática do quadro das categorias sofreu depois a sobreposição das tríades dinâmicas, propiciatórias dos movimentos messianistas ou messiânicos. A tríade dos sucessores de Kant, a tese, antítese e síntese de Fichte, Schelling e Hegel não obteve vigência notável na Península Ibérica. Na sua conferência intitulada «O Idealismo Alemão e a Filosofia do Direito em Portugal», o Prof. Dr. Luís Cabral de Moncada precisou a influência de Karl Friedrich Krause nas correntes do ensino universitário (19). É de crer, porém, que mais ampla projecção das doutrinas krausistas venha a ser verificada pela análise literária de vários escritos oitocentistas.

Krause distingue-se de Hegel por não estender sobre a linha crónica a dedução das três teses, ou dos três conceitos, do pensamento em devir. Em vez da dedução cronológica, adequada ao espírito messiânico, admitia a ordenação sobre o espaço e o tempo. A tríade de Krause é constituída pelos termos Unidade, Variedade e Harmonia, triângulo cuja significação política parece adequado à monarquia liberal e ao regime parlamentarista. Aquela tríade alemã é, sem dúvida, superior à tríade do rito francês, não só pela real dignidade filosófica, mas também pela isenção moral ante ressentimentos que naturalmente surgem da perpétua antinomia entre a Liberdade e a Igualdade, dos conflitos morais e das subversões políticas, numa dialéctica insuperável pela Fraternidade católica ou universal.

Discípulo independente de Krause, o inditoso filósofo português José Maria da Cunha Seixas foi, sem dúvida, a personalidade mais representativa do iluminismo liberal. A sua oposição ao positivismo ainda não foi suficientemente valorizada pelo que significa na história das relações entre a filosofia e a política. O nosso doutrinador do panteísmo previu lucidamente os perigos do messianismo que se ocultava na tríade de Augusto Comte, ou lei dos três estados, dominadora não já de um quadro das categorias, mas de uma classificação das ciências. A dedução cronológica realizava o efeito psicodinâmico de preparar o advento do terceiro estado, do Estado positivo, denominado com a palavra República, contrária todos os mistérios divinos, a todos os segredos metafísicos e a todos os problemas pessoais.

O êxito inegável que o positivismo obteve, a ponto de passar de doutrina de escol para corrente de opinião, explica-se pela acção inteligente e astuciosa de Teófilo Braga, que, no Curso Superior de Letras, propagou aos professores uma filosofia de dedução cronológica mais acessível aos povos latinos do que as suas congéneres de Hegel e de Spencer.

Destituída da indispensável referência a Aristóteles, a cultura filosófica do século XIX não defendeu convenientemente o iluminismo e não garantiu, portanto, os fundamentos intelectuais do liberalismo económico, político e religioso. Em vez da doutrina aristotélica dominava a dialéctica jornalística, e, por insubordinação da política à filosofia, necessariamente haveria de surgir o descrédito ideológico do regime da «Carta Constitucional». Cerca de 1870 começam a gozar os favores da opinião pública todos quantos escrevem na intenção de defender teses contrárias à nossa autonomia cultural e à nossa independência política. Recai o descrédito sobre a intenção patriótica dos artistas do romantismo e dos políticos do liberalismo. Cobrem-se de ridículo os ideais culturais da Idade Média, na intenção de revogar as tradições que caracterizam o espírito nacional. Oliveira Martins no Portugal Contemporâneo completa a acção destruidora das Farpas escritas por Eça de Queirós e Ramalho Ortigão. Facilita-se, assim, o caminho dos positivistas que, já devidamente agrupados, se dedicam à missão especial de anunciar o advento do Estado positivo, e, mais ainda, de «preparar o povo para a República». O positivismo trazia consigo o antídoto do liberalismo: a promessa de libertar os homens da obrigação de pensar, isto é, da difícil escolha entre as várias opiniões. Em vez da opinião livre, dominaria a ciência necessária (ob. cit., pp. 244-252).




Notas:

(11) João de Castro Osório, Ínclita Geração, Lisboa, 1945.

(12) Teófilo Braga, História da Literatura Portuguesa, Idade Média, Porto, 1909.

(13) Estudos de Alberto Pimentel, Agostinho da Silva e Jaime Cortesão.

(14) José Sebastião da Silva Dias, Portugal e a Cultura Europeia, Coimbra, 1953.

(15) S. Paulo, Epístola aos Hebreus, XI, 1, «A fé é o fundamento das coisas que se esperam, e uma demonstração das coisas que se não vêem».

(16) Mgr. Bernard Bartmann, Précis de Theologie Dogmatique, traduction de l'allemand par l«abbé Marcel Gautier, Moulhouse, 1947-51, tome I, parág. 12, «Le Progrès Dogmatique», p. 78.

(17) Luís Arnaldich, A Origem do Mundo e do Homem, tradução de José Ervedosa, Lisboa, 1958.

(18) Edgar Hocedez, S. J., Histoire de la Théologie au XIXème Siècle, Paris, 1947-1952.

(19) Luís Cabral de Moncada, Estudos Filosóficos e Históricos, Coimbra, 1958.

Continua


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