Aperitivo didáctico
Escusado será, pois, dizer que a «cultura oficial» recusa admitir a existência da filosofia portuguesa. Quando muito só poderá haver «Filosofia em Portugal» na acepção de mais uma «cadeira universitária» entre as demais. Nada, portanto, de filosofia portuguesa radicada no génio da Pátria e na língua de Camões.
Ora, disso já Álvaro Ribeiro revelara perfeita consciência quando, em 1943, dera a lume O Problema da Filosofia Portuguesa, também ele oriundo de questões levantadas por Eudoro de Sousa e Sant’Anna Dionísio no âmbito do pensamento especulativo português. Ou seja: Álvaro Ribeiro, perante a alegada carência de uma tradição de pensamento especulativo, quando não perante a dúvida sobre a capacidade especulativa dos Portugueses, sabia e compreendia que um povo, sem autonomia cultural, não pode ser politicamente independente.
Porém, transcorridos vinte anos sobre a publicação d'O Problema da Filosofia Portuguesa, Álvaro Ribeiro resolvera, por fim, anotar o que se segue no Diário Ilustrado de 20 de Dezembro de 1962: «Enunciado em 1940, a modo de posição crítica perante as Comemorações oficiais do duplo Centenário da Fundação e da Restauração da Nacionalidade, o seu nacionalismo não obteve a concordância, nem sequer a aceitação, dos intelectuais responsáveis pela doutrinação patriótica. Desde a extrema-direita, constituída pelos abencerragens do Integralismo Lusitano, até à extrema-esquerda, vagamente desenhada por um ou outro escritor neo-realista ou neo-positivista, todas as correntes de opinião se manifestaram adversas à tese elementar de que sem autonomia cultural não pode haver independência política».
Por outras palavras, Álvaro Ribeiro, profundamente consciente de que certos publicistas «não querem que haja filosofia portuguesa», enquanto, outros ainda, «querem que não haja filosofia portuguesa», dera por intempestivo um problema geralmente repudiado e incompreendido.
Aliás - diria ainda Álvaro Ribeiro -, nem sequer entre os que se diziam «discípulos de Leonardo Coimbra obteve a causa da filosofia portuguesa, do seu discernimento, do seu esclarecimento e da sua exposição, a mínima cooperação leal capaz de servir de fundamento à aventura de uma geração». Contudo, uma tal filosofia, para surpresa de uns e clara irritação de outros, continuaria viva e actuante não já como problema a debater, mas como pensamento capaz de influir nas nações da América do Norte e do Sul, assim como em todos os povos irmãos que ainda não puderam ou quiseram transitar do ministério da mais recente colonização para o magistério da educação obrada em fraterno, universal e recíproco entendimento.
Desse modo, podemos e devemos dar por adquirida a fecunda vitalidade da filosofia portuguesa na actualização da filosofia clássica, ou, se quisermos, do aristotelismo enquanto sistema ou filosofia natural do género humano. E nisto, Álvaro Ribeiro como Orlando Vitorino importam sobremodo.
Além disso, é enquanto sistema aberto de pensamento que melhor responderemos à questão eudorina sobre se podem ou não os Portugueses articular, num movimento verdadeiramente lógico, as virtualidades especulativas do Génio nacional. E daí, consequentemente, o carácter irrelevante de tudo o que constitua linha esquemática de fatal vulgarização na cultura universitária.
Miguel Bruno Duarte
O Problema da Filosofia Portuguesa
A Nova Poesia Portuguesa é a reunião, prefaciada por Álvaro Ribeiro, de alguns artigos de Fernando Pessoa, escritos outrora, em momentos de entusiástica admiração pela obra da Renascença Portuguesa e de profundo sentido para o valor autêntico da grande alma daquele movimento: Teixeira de Pascoaes. Afirma generosamente, contra toda a obstante incompreensão dos contemporâneos, a fé e a esperança no destino sublime e glorioso de uma poesia que acede à consciência das específicas qualidades do povo português. A outros, mais autorizados, competirá a grata missão de revelar toda a verdade irradiante de tão belas páginas.
O Problema da Filosofia Portuguesa é original de Álvaro Ribeiro. O leitor atento e advertido verificará, sem custo, que também esta obra é fruto amadurecido ao calor da admiração entusiástica: a qualidade do ensino ministrado pela extinta Faculdade de Letras da Universidade do Porto e a influência altamente pedagógica de Leonardo Coimbra, percorrem todas as páginas deste opúsculo. E também verificará nele a expressão de não menos generoso testemunho de esperança e fé na viabilidade de uma filosofia portuguesa, de uma filosofia que, especulativamente, exprima as qualidades próprias, intranhas, ao povo português.
Quando se defende a capacidade especulativa dos portugueses, é costume fazê-lo, defendendo a capacidade especulativa individual, a capacidade especulativa deste ou daquele empírico homem, que em Portugal nasceu, por pouco mais que mero acidente. Mas, tal defesa não resiste a razoada ofensiva. Contra a pretensão de fundamentar a capacidade de filosofar, em catálogos, por muito copiosos e minuciosos que sejam, erguer-se-á sempre o objectante argumento de quem não se satisfaça com a indefinida repetição da mesma contingência. Neste caso, a defesa exige um passo ao encontro do eventual adversário.
Álvaro Ribeiro dá esse passo:
«A fase nacional da lógica universal, que nos dê imagem directa e viva do autêntico pensamento filosófico, ainda não apareceu aos olhos nossos ansiosos» (O Problema da Filosofia Portuguesa, pág. 37).
A filosofia só atinge a universalidade, própria do conhecimento especulativo do Absoluto, passado o «momento» da nacionalidade. Mas há que passá-lo. A Universalidade conquista-se, por assim dizer, através da particularidade nacional: «Vencer a opacidade do idioma português, dar a expressão dialéctica ao tipo de imaginação e de ideação que nas obras de arte se revela em beleza exuberante, dar transparência à subjectividade, é – exactamente por virtude da imagem verbal como pela força do raciocínio – desvendar a existência de uma autêntica filosofia nacional» (ibid, págs. 73-74).
Álvaro Ribeiro |
Mas, o «desvendar a existência de uma autêntica filosofia nacional», não é tarefa que possa ser cumprida pelo pensador solitário. É mister de Escola. À Faculdade de Filosofia competirá «a missão altíssima da elaboração do sistema filosófico que, hodiernamente, corresponda às aptidões especulativas do povo português» (ibid. pág. 74).
A necessidade do «momento» nacional no universal processo do pensamento filosófico, e a exclusiva competência de uma Faculdade de Filosofia, para desenvolver ou desocultar a universalidade envolvida ou oculta na particularidade da expressão nacional, constituem as ideias focais do valioso opúsculo de Álvaro Ribeiro. Os vinte parágrafos que contém, articulam-se organicamente, obedecendo sempre à atracção harmoniosa destes focos. Os dois primeiros esboçam um conceito de filosofia, definida como esforço para o conhecimento especulativo ou «sófico», e indicam o lugar próprio de respectivo estudo e ensino: o ambiente escolar. Os dois últimos investigam o solo onde mergulham as raízes da filosofia portuguesa, onde os estudantes da Faculdade de Filosofia devem ir procurar, pela «leitura nova» dos «mais significativos documentos culturais», o ponto de inserção da nacionalidade filosófica. Quatro parágrafos (III, IV, V e VI) apresentam e criticam as anteriores posições, perante o mesmo problema, e algumas soluções propostas. Da maior parte do livro (12 parágrafos) constam as condições a que deve obedecer a organização de uma Faculdade de Filosofia para atingir a finalidade a que se destina.
A leitura de tão bem razoadas páginas, só uma dúvida pode deixar no espírito de quem espere «o advento da filosofia portuguesa». É difícil discordar de que o «desenvolvimento da lógica» se efectua «diversamente adentro de cada idioma»; é a diversidade de tal desenvolvimento o que confere individualidade às filosofias nacionais. Quando se fala de um intelectualismo francês, de um empirismo inglês, de um racionalismo alemão... afirma-se, pelo menos de direito, a existência de fases nacionais da lógica universal. Também é certo que «a palavra concreta está na origem da palavra abstracta»; que «a ideia também foi imagem». Um idioma já contém, em potência, a expressão dialéctica e a ideação. Apenas se pode duvidar de que não pertença essencialmente ao carácter do povo português o não passar da palavra concreta à palavra abstracta, da imagem à ideia. Em Portugal, pelo menos até hoje, os escritos de natureza filosófica, têm reflectido sempre a cultura estranha; isto é, a passagem a que se refere o autor de O Problema da Filosofia Portuguesa, – a passagem da fase nacional à fase universal, tem reflectido apenas um trânsito já efectuado por outros.
No entanto, a nossa dúvida não pode nem deve paralisar as virtualidades, porventura latentes. A aventura é das tais que valem a pena dos esforços que se dispendam. O descobrimento de uma filosofia portuguesa equivaleria ao descobrimento de ignotas terras (in Eudoro de Sousa, Origem da Poesia e da Mitologia e outros ensaios dispersos, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2000, pp. 281-283).
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