A etimologia, que outrora significou o estudo do falar étimo, do bom uso das palavras, é hoje considerada pela linguística positivista como investigação própria para determinar a história, a genealogia e a origem de cada vocábulo. Ao longo deste estudo, deveras interessante, vai o empirista classificando os vários processos de enriquecimento do vocabulário, e tornando mais conhecidas a derivação, mediante prefixos e sufixos, a composição, assinalada ou não pelo hífen, a enálage, ou mudança de categoria gramatical, e, por fim, a adopção de palavras estrangeiras. Observando, também, que muitas palavras mudam de som, de grafia e de significado em períodos determinados por documentos paleográficos, e que tais alterações nem sempre obedecem ao que se poderia chamar «leis da gramática clássica», o etimologista reconhecerá ser-lhe indispensável estudar psicologia e etnologia se escrever a história da língua.
A tendência dos etimologistas para recorrerem às explicações de tipo sociológico - as quais, aliás, despertam e avivam a imaginação dos estudantes -, bem como o preceito de não investigar para além do que está escrito, visto que sem documentos não se faz história, conferem àquela disciplina linguística um carácter de positividade que a torna incompatível com a tradição. Quando, porém, a diferença entre duas formas do mesmo vocábulo não pode ser documentada, os etimologistas aventam hipóteses e conjunturas para restabelecer a continuidade evolutiva da língua humana. Nuns casos recorrem às leis fonéticas, que foram estabelecidas empiricamente por indução, à custa de muitos exemplos, mas que consideram necessárias e infalíveis, como se houvessem sido estabelecidas por dedução, para postularem o terceiro termo do raciocínio numa forma intermediária que, por ser hipotética, assinalam com um asterisco; noutros casos explicam a anomalia pelo fenómeno social da analogia, dando a esta palavra não um conceito rigoroso mas o de semelhança com o vocábulo que mais convier à fantasia do historiador.
Queremos, assim, esclarecer que nem os positivistas se contentam com os documentos escritos ou gravados, visto que também eles, nas horas difíceis, solicitam um terceiro termo para o raciocínio - uma hipótese - e ficam por ela obrigados a conceder aos que não são positivistas o direito de admitir a tradição. Na linguística, como em outras disciplinas, a exigência de hipóteses obriga a transitar da técnica para a ciência, e da ciência para a metafísica, se o estudioso quiser atingir as portas da verdade. A própria doutrina positiva, ao trasformar-se de positivismo fáctico em positivismo lógico, proclama que o combate decisivo à liberdade de pensamento há-de ser travado no campo da semântica.
A semântica é geralmente estudada como capítulo da linguística, ou como ciência auxiliar da linguística. A semântica analisa a significação das palavras, mas discute também as terminologias, as nomenclaturas, as cifras. Na medida em que for qualificado o movimento ascendente ou descendente da palavra através destas três classes, poderá a semântica fundir-se com a taxonomia para adquirir mais verdadeiro aspecto científico.
Tomando por modelo a nomenclatura das ciências, e das ciências aquela que está mais afastada do homem, a ciência que pode ser esculpida, gravada, desenhada ou escrita em sinais inequívocos, pretenderam muitos escritores engenhosos inventar uma linguagem capaz de ser aplicada a todas as disciplinas que obedeçam a um rigoroso determinismo. Na ambição de estenderem este método à psicologia, e portanto à manifestação da liberdade na consciência humana, os positivistas lógicos nem sequer consideram quanto escapam ao determinismo e à terminologia da razão os fenómenos volitivos e os fenómenos emotivos. O pensador atento resiste a essa coacção externa, atribuindo a cada palavra, e realizando, um significado livre de condicionalismo científico.
Entende-se, perfeitamente, qual foi o intento dos positivistas quando procederam à separação matemática entre os estudos filológicos e os estudos filosóficos nos cursos universitários. Verificamos efectivamente que só os filósofos sem preparação filológica podem aceitar de bom grado os absurdos das utopias positivistas, absurdos que a linguística, na medida em que exprime as tendências da alma humana, reprova, desmente e contradiz. Visto, porém, que a projecção das utopias positivistas se dá nos três planos da razão, quer dizer, afecta tanto a razão teórica, como a razão estética e como a razão prática, poderemos calcular sem erro as nefastas consequências que a didáctica positivista projecta nas actividades sociais.
Sucessivamente discutidas as várias doutrinas da língua universal, da gramática e da lógica universal, que pretendiam subordinar todos os povos a uma sociologia abstracta, foi pelo pensamento nacionalista redescoberta, verificada e confirmada a associação da filologia com a filosofia, o que fora aliás lucidamente previsto por quem instituiu em Lisboa o Curso Superior de Letras. A filologia consiste na investigação dos factos, das leis e dos princípios de um certo idioma, ou de um grupo de idiomas, enquanto que o estudo do filósofo incide directamente sobre os problemas humanos, os segredos naturais e os mistérios divinos. A arte de filosofar desenvolve-se na mediação idiomática, exerce-se pelas categorias gramaticais e pelas categorias lógicas que o pensador aprendeu entre a infância e a adolescência, não se aperfeiçoa pelo colóquio em língua estrangeira, perde originalidade e a liberdade ao substituir a tradição pela tradução.
Cada homem exprime o seu pensamento através das significações e das estruturas de um idioma determinado, mas antes de exprimir teve de entender, interpretar e compreender a fluência discursiva do falar alheio. Se a fenomenologia da expressão interessa muito mais ao filólogo, dado a estudos de linguística, estilística e literatura, a gnosiologia da compreensão, por assim dizer, interessa muito mais ao filósofo, dado a estudos de semântica, hermenêutica e lógica. A alma humana, que está sempre em actividade, e que por isso mesmo padece no estado passivo de substância, reage significativamente, segundo as suas condições peculiares, a cada fonema directa ou indirectamente percebido.
Escola de Atenas, de Rafael |
Consta já dos escritos aristotélicos o preceito benéfico de estudar a semântica para evitar equívocos, paralogismos e sofismas. Estava reconhecido no Organon o princípio da subjectividade, ainda que Aristóteles pretendesse limitá-lo ou corrigi-lo em proveito da objectividade linguística e da razão social. Nada há que altere a verdade de que a palavra corresponde muito mais a um conceito do que a um sentido ou a uma ideia.
Quando a palavra designa um objecto sensível, isto é, quando a palavra tem um sentido, pode estabelecer-se-lhe rigorosamente o significado, e anular o equívoco que talvez resulte do seu uso fictício ou metafísico. Se não houver o recurso de colocar o objecto ao alcance das mãos, ou ao alcance dos olhos, haverá pelo menos a possibilidade de representá-lo figurativamente. Para além do que os gramáticos chamam substantivo concreto cessa o domínio da verificação sensível, e levanta-se o problema de instaurar, para as outras partes do discurso, categorias lexicais, ou classes de palavras, novos critérios de estabelecer e verificar os respectivos significados (2).
Grande parte da obscuridade notável nos livros técnicos, científicos e metafísicos é proveniente da inexacta situação dos termos relativos, recíprocos e concomitantes. São relativos os contrários, os polares e os opostos. Os contrários afastam-se do eixo de simetria, como os números positivos e negativos; os polares tendem a encontrar-se no equador; os opostos estão separados por um diâmetro significativo do obstáculo que os equilibra.
Convirá que o escritor não substitua inconscientemente os contrários pelos polares, ou os polares pelos opostos. Reflectindo sobre o que significam a contrariedade, a polaridade e a oposição claramente designará os adequados nexos dos termos. Relacionar é, como a palavra diz, estabelecer novo laço entre termos conexos.
Entre dois pontos de referência pensamos o movimento, e a cada uma das espécies de movimento classificadas por Aristóteles corresponde uma ciência. Erram os que confundem a contrariedade com a contradição, mais ainda se enganam aqueles que chamam contraditórias às proposições complementares. A lei mental da enantodromia, formulada por Heraclito, afirma a complementaridade do real.
Manuel Kant |
No estudo do substantivo, ou da substância, dá-se a colisão entre a gramática e a semântica. Há a tendência para considerar substância a parte do discurso que na oração serve de sujeito, pois só assim se entende o haver classes de substantivos que, por não designarem objectos permanentes no espaço, estão muito longe das noções de estância e de substância. Esta categoria, que na lógica aristotélica era inferior, atingiu na ciência «moderna» um primado explicável pela subordinação do movimento ao espaço e ao tempo, seus abstractos, pela mensuração das distâncias, pelo progresso das matemáticas.
O estudo do ser imóvel, que é a máquina, foi anteposto ao estudo do movimento e do motor. A física aristotélica foi expulsa das escolas por verbalista e animista, enquanto a mecânica pretendia apoiar-se numa metafísica materialista. As doutrinas científicas do século XIX, repudiando gradualmente os esquemas atomistas, mecanistas e materialistas, tornavam possível o rejuvenescimento da física de Aristóteles.
Todo o conhecimento do mundo sensível, por muito importante que seja para a técnica, para a ciência e até para a metafísica, representa apenas uma parte, a menor parte, do que verdadeiramente interessa ao homem. O homem transcende esses limites, está muito mais atento às actividades insensíveis do que às substâncias sensíveis, porque pretende inserir a sua liberdade na realização de um destino.
Será, no entanto, conveniente notar, de passagem para outro assunto, o curioso problema dos géneros dos substantivos, isto é, da classificação em sexos diferentes de objectos que estão fora da biologia, fora da fenomenologia do nascer e do morrer. Se o positivismo fosse lógico, como pretende ser, não atribuiria desinência sexual às palavras que designam seres inanimados. A gramática usual persevera, porém, a exigir sem lógica a concordância em género (sexo) e em número.
Curiosa é a transferência de géneros, ou sexos, da biologia para a cosmologia, e a tão difícil problema dedicou Grimm, que além de filólogo era etnólogo e mitólogo, um estudo de merecida celebridade. O problema continua, porém, insoluto, pois não sabemos qual a razão de atribuir género gramatical a entes sem características anímicas, a entes que nem sequer por alegoria podem merecer atributos de masculinidade ou de feminilidade. Se soubermos ler, com a devida atenção, os poemas célebres de Dante, Camões e Goethe, conseguiremos talvez discernir as razões pelas quais são femininas quase todas as palavras abstractas que designam ideias, ou actividades mentais, como a filosofia (in A Razão Animada, INCM, pp. 99-105).
Notas:
(1) Sobre as vicissitudes do positivismo lógico na Alemanha e na Inglaterra poderá ler-se com proveito o livro de Delfim Santos, Situação Valorativa do Positivismo, Berlim, 1935. Este livro muito contribuiu para a refutação e a ilustração de todos os ensaios de positivismo lógico em Portugal. Pode hoje sem receio dizer-se que o positivismo lógico passou à história.
(2) Alfred Korzybski, Science and Sanity: An Introduction to Non-Aristotelian Systems and General Semantics, 1933.
(3) Léon Brunschvicg, La Modalité du Jugement, Paris, 1897.
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