É inegável que têm havido algumas tentativas de aperfeiçoamento dos estudos clássicos em Portugal.
O Decreto-Lei n.º 36 507, de 17 de Setembro de 1947, introduziu no 3.º ciclo liceal o ensino do grego, obrigatório para os candidatos à licenciatura em Filologia Clássica, e o Decreto n.º 37 112, de 22 de Outubro de 1948, fixou o respectivo programa; de modo que, a par e passo do estudo da língua e da literatura latinas, alguns estudantes portugueses beneficiam hoje de uma disciplina, cujo propósito é a «interpretação dos autores gregos» e a «crítica da lição que a sua experiência documenta».
Se, ao cabo dos dois últimos anos do liceu, soletrar um verso de Homero, de Eurípides ou de Aristófanes, uma frase de Platão ou de Demóstenes; se souber classificar os vocábulos nas categorias morfológicas; se puder usar o dicionário de maneira a obter, quando mais não seja, uma versão literal do verso ou da frase de mediana dificuldade sintáctica – o aluno está apto a frequentar com aproveitamento a cadeira de Grego Elementar professada nas Faculdades de Letras. Louvemos, portanto, o intuito do legislador: é óbvio que a reforma facilita singularmente a tarefa do professor universitário. Perante alunos que no liceu adquiriram as primeiras noções de grego, o mestre há-de lembrar os anos em que a necessidade de coordenar os mais elementares conhecimentos práticos de uma língua, com o estudo de difíceis problemas de gramática histórica e comparativa, o forçara a arrostar com o desinteresse consequente da inaptidão.
Menos louvável se nos afigura a sanção legal que a reforma não deixa de conceder às seculares directrizes positivistas do ensino superior da Filosofia nas nossas Faculdades de Letras.
Banida de Psicologia sem alma e da Lógica sem espírito, a Filosofia teve que procurar assento nas cadeiras de História, donde o professor consciente da sua missão, ainda poderia reger a leitura meditada e comentada das obras mais significativas dos grandes pensadores. Por isso avaliamos a mágoa do regente da cadeira de História da Filosofia Antiga, que é predominantemente História da Filosofia Grega, ao verificar que, não prescrevendo a obrigatoriedade do grego aos candidatos à licenciatura em ciências filosóficas, a reforma do ensino secundário lhe não deixava esperança de exercer magistério mais proficiente, no sentido de uma exegese esclarecida dos documentos que nos legou a tradição escolar. Chegamos a compreender o sentimento, e a desculpar ressentimentos, quando pensamos que no mesmo instituto funciona um curso de História de Filosofia Medieval, frequentado por alunos que aprenderam latim.
São Tomás de Aquino |
Enquanto o mestre de Filosofia Medieval pode comentar nas suas aulas as lições exemplares dos grandes filósofos da Cristandade, de Scoto, Santo Tomás ou S. Boaventura – o professor de Filosofia Antiga, por lapso do legislador, permanece irremediavelmente sujeito à mera repetição de «resumos» e «manuais», à leitura de colectâneas de textos, traduzidos, para maior inglória da Universidade portuguesa, em idiomas estrangeiros.
Por paradoxal que pareça devemos dizê-lo: o ensino superior, além ou aquém de tudo quanto se possa supor que seja, é também o ensino do aprender, numa Faculdade de Letras, do aprender a ler e a escrever.
A boa leitura é uma arte difícil; exige demorada iniciação. Iniciar o leitor, consiste em aproximá-lo, tanto quanto possível, do escritor: a contemporaneidade seria a perfeição. No limiar da História da Filosofia, o estudante tem que se desvestir dos prejuízos culturais do seu tempo, se quiser compreender a lição autêntica dos grandes pensadores de todos os tempos. A não ser que só pretenda julgar os sistemas antigos e advogar a causa dos modernos... Mas, nem a Filosofia é a advocacia do presente, nem a História o tribunal do passado.
No ensino universitário, o recurso à «fontes» é, pois, mister urgente, e os textos originais são insubstituíveis.
Eis por que não deve o professor limitar o ensino da Filosofia antiga pelas linhas esquemáticas da vulgarização, traçadas à mercê de uma história destinada a ilustrar a opinião dos compendiadores; eis por que o uso de traduções, que bem ou mal desempenham o papel que se lhes distribui em qualquer plano de divulgação de uma cultura medíocre – vulgarmente denominada de cultura geral –, não pode manter-se na Universidade, senão com o propósito de auxiliar a mais rigorosa interpretação dos originais.
A óptima mediação dessa contemporaneidade no mundo das representações e dos sentimentos, que condiciona a mais perfeita compreensão do sistema, dá-se através do próprio idioma do filósofo. Não esqueçamos que a filosofia de Aristóteles ou de Platão nasce da convivência com a poesia, a religião, a política, a retórica, do seu tempo.
Sejamos contemporâneos de Aristóteles, pelo menos nos claustros da Universidade, e compreenderemos a sua mensagem para todos os tempos (in Origem da Poesia e da Mitologia, INCM, 2000, pp. 101-103).
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