quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

A separação de Portugal

Escrito por Oliveira Martins







«Não há acordo sobre os elementos de que irrompeu a nacionalidade portuguesa. Não nos apontam os cronistas uma directriz. Nos textos não tem sido viável basear conclusões indiscutíveis. Nem a historiografia moderna, independente de critérios políticos e firmada na crítica das fontes, tem conseguido elucidar as origens. Herculano defendeu a tese românica ou municipalista. No âmbito das autarquias locais, decalcadas na lei romana, teria florescido a liberdade pública. Alargada aos vizinhos com interesses afins, haveria criado o ânimo de independência. Mas Herculano deixa pairar uma dúvida. Insatisfeito com a sua verdade, acrescenta algures, como explicação última, que somos independentes porque o quisemos ser. No meio das divisões, soubemos logo de início manter unidade moral; fosse qual fosse o seu partido, os barões portugueses mostravam-se conformes, ao menos passivamente, com o sistema que já então se podia classificar de política externa do país; e os actos dos príncipes eram mais o reflexo de um espírito colectivo do que a expressão de desígnios próprios. Mas é outro o caminho sugerido por Oliveira Martins. Este fundamenta a independência na vontade enérgica e na capacidade dos príncipes e barões. É a ambição individual destes que conduz à separação de Portugal da monarquia leonesa: os condes defendiam o que julgavam sua propriedade. Todavia, a esta tese simplista opõe Jaime Cortezão a tese geopolítica ou marítima. Nem a príncipes estrangeiros ou a impulsos individuais deve Portugal a sua nacionalidade. É a diferenciação geográfica, aliada à tipicidade do litoral, que dá uma feição de povo ao agregado ali estabelecido. Clima diverso do do resto da Península; abundância de largos estuários; funda penetração do oceano; existência de portos fluviais muito no interior do território; apoio marítimo estimulando o comércio transoceânico – constituem alguns dos factores fundamentais.

(...) Mas aquelas três teses não esgotam o problema das origens. Dois outros ângulos de visão têm sido encarados. Temos, antes de mais, a tese internacionalista. A independência portuguesa seria produto de uma equação internacional, de uma necessidade de equilíbrio europeu, que já então se começava a sentir; e a ligação entre o Conde D. Henrique e algumas ordens religiosas teria actuado naquele sentido, como um elemento impulsionador. E temos por último a tese lusitana. Funda-se sobretudo na tradição. Desde tempos remotos, mas sobretudo a partir do século XVI, foram os lusitanos havidos como os mais próximos ascendentes dos portugueses. Segundo Estrabão, eram “amigos da liberdade”. Ocupando a região entre Douro e Tejo, descendentes de celtas ou autóctones, foram romanizados; mas não teriam perdido pelo facto a individualidade de grande tribo, nem a autonomia como agregado social. Embora se afigure que permanece nebulosa, estudos modernos vieram dar alguma consistência para vincar a nossa diferenciação do resto da Península. Mas todas as investigações comprovam sem dúvida um facto: a existência, desde o século XII, de uma comunidade delimitada, com autonomia e unidade moral, e apresentando tipicidade perante os demais povos da Península. Poderá dizer-se, todavia, que o desenrolar da vida dessa comunidade empresta, talvez mais do que a outras, algum fundamento à tese exposta e documentada por Cortezão.»

Franco Nogueira («As Crises e os Homens»).






 


«...Galiza, Catalunha, Navarra, Andaluzia, Bascos, Levantinos, ao correr da história, pouco mais do que escravos de escravos: porque escravidão, no fim de contas, pelo que respeita a degradação humana, age para os dois lados, para o lado do opressor e para o lado do oprimido. Com uma grande vantagem a favor das regiões periféricas: é que, vencidas, jamais se submeteram; e, no momento oportuno, se poderão comportar como nações livres que jamais renegaram a sua liberdade e jamais, abandonando seus mortos, desistiram da luta.

E aqui, ao que me parece, se insere a grande façanha de Portugal. O que Portugal fez de maior no mundo não foi nem o descobrimento, nem a conquista, nem a formação de nações ultramarinas: foi o ter resistido a Castela. O ter mantido, através de sangue e fogo, o princípio da independência dos territórios periféricos. E o ter mostrado, naquilo que cabia em suas forças, e mais do que isso, porque verdadeira história só se faz assim, naquilo que estava muito para além das suas forças, de que modo uma Espanha livre e convivente poderia ter transformado a face do mundo. Aceita-se hoje em história de Roma que o assassínio de César, impedindo-o de levar por diante o seu projecto de romanização do mundo europeu, do Báltico aos Urais, veio pôr depois todos os problemas que resultaram da existência de bárbaros não romanizados; veio pôr o problema da Prússia e veio pôr o problema da Rússia. Uma Península livre e una, com regiões culturalmente autónomas e com descentralização administrativa; uma Península a que se tivesse estendido o sistema de governo peculiar da Idade Média portuguesa, isto é, o de, numa prefiguração da Commonwealth, haver uma companhia de repúblicas unificadas por uma coroa; uma Península que tivesse conservado aquele gosto de conversação, de "vida conversável", como diria mais tarde um navegador, para cristãos, judeus e árabes, essa Península, para lá de todas as contingências económicas, teria dado modelo ao mundo. Teria, como numa renda de bilros, dado o “pique” ao mundo. E o dito mundo, Europa inclusive, se podiam depois ter dado à tarefa de ir plantando alfinete e lançando ponto. Que foi decerto modo, o que fizeram, mesmo só com o trabalho de Portugal

Agostinho da Silva («Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa»).

 


«Espanha ocupou tão grande lugar no mundo, impressionou tão fortemente o mundo pelo que fez, pelo modo por que actuou, pela coragem com que volveu em acção a sua concepção ética e política de tom arcaizante que na apreciação desse labor histórico para sempre se dividiram os juízos. A sua personalidade era tão caracterizada e tão forte que não se apagou mais a chocante impressão dela sobre a Europa, espectadora e vítima. E a Europa de além Pirenéus, aberta a todas as influências e, depois do apogeu espanhol, criadora de originalidades opostas à ideologia castelhana, divorciou-se do mundo hispânico. E essas diferenças e esses contrastes de matizes religiosos, políticos, morais e artísticos logo se patentearam bem flagrantes e logo foram interpretados, umas vezes pejorativamente – e surgiu a lenda anti-espanhola, a Espanha negra – outras, intelectualmente – e surgiu toda essa longa filosofia da decadência espanhola, os arbitristas e o ensaio crítico, que é uma peculiaridade da moderna literatura de Espanha e traduz a sua inquietação espiritual como o lirismo português expressa o mais típico da nossa sensibilidade. Uns espanhóis acolheram a lenda anti-espanhola ou a silhueta negra da Espanha quinhentista e nela colaboraram; outros repudiaram-na e procederam à revisão da história; uns e outros extraíram conclusões pragmáticas, pensamento e acção política desses dois hemisférios da alma espanhola, – dos seus escóis, porque o povo permanece indiferente a essas pugnas de gente cultivada, embora muitas vezes tenha sido o mar proceloso que recolhe e dilui em proporções de tragédia o que parecia simples conflito de teorias. A sua insurreição contra os franceses e a sua cooperação nas lutas doutrinárias do carlismo com o liberalismo mostram bem como ele pode ser, pelas energias profundas que armazena, o dado essencial da equação política de Espanha. Mesmo apartados do marulhar subterrâneo dessa letargizada massa, no simples plano da crítica e acção social, na vida quotidiana, esses dois hemisférios espirituais deram à sua doutrina coerência e demasias sistemáticas, carregaram-na de paixão, de força de carácter, a grande virtude e o grande risco da alma peninsular.

E a história de Espanha passou a ser, desde que Espanha recebeu mais do que criou, um contínuo choque desses dois extremismos inconciliáveis, mas indispensáveis um ao outro, como as valvas duma castanhola, opostas e inseparáveis para produzir os típicos estalidos.

Desde que se quebrou a sua unidade moral, Espanha viveu aos bordos, às guinadas sobre a esquerda e sobre a direita, como barco puxado à sirga por forças desiguais ou desencontradas, aos tombos de margem a margem. O choque dos dois hemisférios ou das duas cotilédones da célula cerebral espanhola é o que há de mais típico na consciência espanhola, tecido de contrastes violentos, operando por mútua reacção e agora anunciando-nos um relâmpago novo, que chispe do presente caos criador.

E quem foi que lançou esse perpétuo pomo da discórdia, quem realizou a definitiva divisão da consciência espanhola? O homem que, fiel a uma tradição multissecular e mandatário representativo duma asfixiante maioria, quis realizar a unidade política e religiosa da Espanha, conculcando nacionalismos e regionalismos, supeditando privilégios e regalias de classes, extirpando heterodoxias, asfixiando a liberdade individual, mas erguendo à maior altura o poder e o ascendente da Espanha na Europa.

Desde então os espanhóis discutem o que vale mais: a glória ou a liberdade? O paraíso ou o inferno? E, um a um, se vão colocando à direita ou à esquerda daquele túnel de braços do jogo infantil...

 

Passará, não passará,

Qual deles ficará?

 

Fidelino de Figueiredo («As Duas Espanhas»).

 

«Há (...) a observar que algumas das mais gradas figuras nacionais, das nascidas em Lisboa e no Sul, ou de naturalidade incerta, pelas suas genealogias ou caracteres psicológicos denunciam em proporções variáveis a mescla lusitano galaica. Assim acontece por exemplo com Nuno Álvares Pereira, Gil Vicente, Camões, D. João de Castro, e Camilo Castelo Branco, figuras em que o fundo sentimental do Noroeste, anda aliado a elementos lusitanos.

Outras grandes figuras nacionais acusam participação de sangues exóticos: quer das raças de cor quer das nórdicas; às vezes é evidente a marca semita. Nem por isso estes contingentes deixaram de produzir homens dos mais integrados e representativos; como o Padre António Vieira, Almada Negreiros, o Infante D. Henrique e Fernando Pessoa, respectivamente.

O português é uma combinação feliz. Isolado, o elemento galaico, tanto pela base geográfica não determinativa como por temperamento, arriscar-se-ia a perder-se nas nuvens ou num trabalho de obscuro formigueiro; isolados, os lusitanos, careceriam de uma subconsciência autonómica bastante para os tornar irredutíveis à absorção castelhana, antes e além dos campos de batalha.

A Grécia não perdurou politicamente porque Atenas e Esparta, incapazes de uma fusão, jamais ultrapassaram o entendimento efémero.

Em Portugal, os elementos humanos primários, fundindo-se a caminho do Sul, na capital e a partir dela criaram uma resultante dinâmico-sentimental que se derramou no Mundo com uma força integradora extraordinária.»

Francisco da Cunha Leão («O Enigma Português»).

 


«Para um futuro paraíso, não só seu próprio, mas de toda a Espanha, pois de que serve a paz que é só nossa, ou que ilusória paz é essa, precisavam talvez Galiza e Portugal de ser separados logo de início e de penarem suas duras penas de acção e de saudade.»

Agostinho da Silva («Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa»).





A SEPARAÇÃO DE PORTUGAL

 

O condado portucalense, criado nos últimos anos do XI século a favor do conde borguinhão D. Henrique, genro de Afonso VI, pouco tempo existiu sob o regime de uma vassalagem indiscutivelmente reconhecida. Era essa a época em que a Espanha tendia a constituir-se num sistema de Estados independentes, à medida que sucessivas regiões iam saindo de sob o domínio muçulmano para o dos descendentes dos godos asturianos, ou dos seus actuais aliados[1]; e o condado portucalense obedecia a esta tendência geral, no empenho que o seu conde não mais encobriu desde a morte do sogro.

É com efeito da data do óbito de Afonso VI [1109] que deve contar-se a era da independência de Portugal; embora por largos anos ela seja mais uma ambição do que um facto; embora essa ambição traduza um pensamento que os acontecimentos posteriores da história impediram se realizasse. Qualquer que fosse o valor dado no XI século à expressão geográfica de Portucale, é facto provado, por todas as memórias e documentos desses tempos, que para ninguém deixava de considerar-se o território de entre Minho e Mondego como parte da Galiza. O facto da constituição do condado de nada vale contra esta opinião; porque demasiado se sabe que a formação dos Estados medievais, na Península e fora dela, jamais obedecia às prescrições geográficas ou etnológicas. Não se atribua pois a causas desta ordem, nem à consciência de uma solidariedade nacional, o facto da desmembração da Galiza dos fins do XI século. A cisão que o Minho demarcou obedeceu apenas a motivos de ordem política.

Isto mesmo, porém, deu causa a uma ambição, na qual devemos reconhecer o princípio da vitalidade da nação portuguesa, durante estas primeiras e ainda indecisas épocas da sua existência. A solidariedade nacional espontânea existia de facto para os galegos; e desde que a Galiza fora dividida pela política em duas, aquém e além Minho, restava saber qual dessas metades tomaria sobre si o papel de representar um sentimento de independência, comum a todos os membros ainda então desconexos do corpo peninsular.









"Brasão de Armas" do Conde D. Henrique


Várias causas concorriam para atribuir este papel à metade portuguesa da Galiza; e porventura acima de todas o facto do merecimento pessoal do conde português. Circunstâncias desta ordem eram decisivas numa época em que a anarquia sistemática da constituição da sociedade fazia principalmente depender os destinos imediatos dela da perspicácia ou da bravura dos seus chefes. Nada há de comum entre a vida destes tempos e a dos posteriores; e num certo sentido pode até dizer-se que os factos de ordem política são independentes dos de ordem social, porque a sociedade é como um elemento passivo que por este lado (mas por ele apenas) obedece às consequências do desordenado capricho dos actos e caracteres dos chefes militares que a governam, sem propriamente a representarem.

Nos primeiros três séculos, isto é, na primeira época da história portuguesa, a independência é um facto originado no merecimento pessoal dos chefes militares dos barões de aquém Minho. Nacionalidade propriamente dita, não a há; ou pelo menos não no-la revelam os monumentos históricos, unânimes, também, em revelar uma ambição colectiva ou social que se estende a toda a Galiza. Ao merecimento pessoal reúne-se, nos primeiros monarcas portugueses, a circunstância de serem os intérpretes deste sentimento. Por isso a tendência permanente e o princípio claramente definido da política portuguesa, nos primeiros séculos, é unificar a Galiza, constituindo a noroeste da Península um Estado tão homogéneo como o Aragão ou a Navarra a nordeste.

Neste propósito se filiam todas as guerras civis – se este nome convém ainda aos conflitos entre Portugal e Leão – e as repetidas alianças dos barões galegos das duas zonas divididas pelo Minho. A facilidade com que os reis portugueses transpõem armados as águas desse rio, e se apossam por várias vezes dos territórios da Galiza leonesa, são provas evidentes da opinião exposta.

Não quis a sorte que chegasse a realizar-se este primeiro pensamento político, a que chamaremos hegemonia de Portugal na Galiza, para usarmos de expressões modernas; antes ordenou que os limites convencionais do condado portucalense apenas inscrevessem o ponto de partida da formação de uma nação, cujo carácter, ulteriormente definido, proveio principalmente da fisionomia geográfica da região; de uma nação, repetimos, que veio a perder a tradição dessa primitiva origem, desde que o génio das populações de entre Mondego e Tejo sobrepujou o das do Norte, na direcção e impulso dados à vida colectiva portuguesa.

Se nesta primeira época da nossa história o pensamento oculto que dirige com maior ou menor consciência a política, é incontestavelmente o da hegemonia de Portugal na Galiza, seria absurdo supor que, ao lado deste princípio, decadente desde certa época, se não fossem também manifestando de um modo correlativo, e cada vez mais pronunciado, os sintomas da deslocação do centro vital da nação.

Inscrição rupestre em «língua lusitana» de Lamas de Moledo, Castro Daire.

A circunstância que mais decisivamente determina este carácter da nossa história primitiva é a conquista dos territórios sarracenos de aquém Mondego, levada a cabo pelos barões portugueses, sem os auxílios do suserano de Leão. É este movimento que, principiando por quebrar os laços de solidariedade entre os galegos leoneses e os portugueses, vai gradualmente adicionando a estes últimos os lusitanos (seja-nos lícito dizer assim, para mais claramente definir o nosso pensamento), até o ponto de os últimos predominarem na fisionomia posterior da nação, transferindo de Guimarães e de Coimbra, para Lisboa, a capital do reino; fazendo substituir, à vida rural, primeiro quase exclusiva, a vida comercial e marítima depois predominante e quase absoluta.

A primeira época da história portuguesa oferece pois à observação do crítico dois movimentos[2], opostos num sentido, concordes em outro, que é o da afirmação positiva da independência. Mas, se essa afirmação, terminante nas guerras leonesas, e também nas sarracenas, exprime de um lado a política de hegemonia na Galiza, do outro exprime, de um modo todavia inteiramente inconsciente e espontâneo, uma tendência contrária. É a formação de uma nação lusitana, de que a Galiza portuguesa desce à condição de província ao norte, como o Algarve, mais propriamente turdetano, vem a sê-lo ao sul. O Entre-Douro e Guadiana, isto é, a espinha dorsal da Estrela, ladeada pelas Beiras ao norte, pelo Alentejo a sul, pela Estremadura a poente: eis aí o que, logo desde o XIV século, começa a representar o corpo homogéneo da nação portuguesa.

(In Oliveira Martins, História de Portugal, Guimarães Editores, Lisboa, 22.ª edição, 2007, pp. 63-65).


[1] V. História da Civilização Ibérica, O. C., L.º III, p. 1.

[2] Resumimos à política o campo das nossas observações, por termos deixado na História da Civilização Ibérica desenhados os traços gerais dos movimentos propriamente sociais. V. livro III.