sábado, 30 de setembro de 2023

A beligerância de Portugal na I Grande Guerra

Escrito por Franco Nogueira



«Perdida a independência, foi sofrido o domínio espanhol. De harmonia com a obsessão ancestral, aquele tornou-se mais e mais opressivo e absorvente. Camões sentira o contentamento amargo e doloroso de morrer com a pátria. Constrói-se mais um símbolo a diversificar as raízes portuguesas. E afirma-se a saudade da independência, desponta o sebastianismo, ergue-se o encoberto. Símbolos? Mas os símbolos de uma nação correspondem, quando emergem de um sentir colectivo, a necessidades espirituais, e traduzem em termos simples e populistas os terrores de um povo ou a sua fé numa providência salvadora. O Sebastianismo, o Encoberto, o Rei Artur e a sua Távola Redonda, Perceval e o seu Graal, Joana de Arc e a sua fogueira, os Niebelungos e as Walkirias, o Destino Manifesto, mil outros – fizeram e fazem parte do sistema de segredos, do conjunto de cumplicidades, do acervo de certezas interiores, das realidades morais inerentes a uma nacionalidade; e na sua ausência, um povo não encontra a sua alma, nem possui marcos de referência a que se arrimar nas crises. Sempre foi esse o papel que aqueles símbolos desempenharam e desempenham numa França, ou numa Inglaterra, ou numa Germânia. E assim sucedia também em Portugal nos princípios do século XVII. Reacordada a consciência nacional, revigorados os grandes símbolos, despertado o escol por virtude da mão férrea de Castela, sentem-se desiludidos aqueles mesmos que haviam traído o interesse português. É reencontrada uma elite que passou a sentir e pensar em termos nacionais e reconstitui-se a consciência de que eram fundamentais o Atlântico e o Ultramar, e estes estavam sendo sacrificados à política continental da Espanha. Foi assim viável aproveitar o declínio castelhano. Uma viragem política internacional favoreceu os propósitos portugueses: e em 1 de Dezembro de 1640 Portugal é de novo independente. Mas que independência?

Foi o regresso a uma doutrina nacional e a uma dialéctica portuguesa, decerto, e que mergulhava as suas raízes na estrutura nacional defendida por João das Regras nas cortes de Coimbra. Mas em pouco, depois de Vestefália, começaram os responsáveis portugueses a enredar os interesses puramente nacionais no vespeiro das quezílias, das intrigas, das querelas do continente europeu. Políticas de casamentos reais mal conduzidas, políticas de alianças improvisadas, e de oportunismo irresponsável, lançaram Portugal no abismo de novo. Sobre o corpo exangue dos portugueses digladiaram-se as forças económicas e políticas das potências continentais e das potências marítimas. Há períodos de saudável recuperação: a política externa de João V, o consulado de Pombal. Mas nos fins do século XVIII e na primeira metade do século XX, Portugal soçobra mais uma vez perante os interesses e jogos alheios. E todo o primeiro liberalismo português sofreu do embate constante, em solo nacional, dos dissídios entre os potentados europeus. Foi a fraqueza e a hesitação internas; foi a confiança imprudente num equilíbrio europeu que se presumia favorável à existência de um Portugal independente e soberano; e foi o valor atribuído a atitudes aparentemente amigas por parte de países continentais. E assim se chegou, com os responsáveis portugueses atónitos, ao passo violento do ultimato britânico. Teve clara consciência do desastre o rei D. Carlos; e por breves anos a sua política externa recuperou muito terreno para Portugal. Mas a I República, com intenções tão altas quanto inábeis e ingénuas, enleou mais uma vez a nação nas querelas europeias. Nenhuma justificação houve para a entrada na I Grande Guerra, salvo talvez o desejo republicano de diferenciar a geopolítica de Portugal da de Espanha, de modo a que o “mau vizinho” que esta era renunciasse de vez às suas intrigas contra Portugal (João Chagas, Diário, IV). Neste contexto, Aquilino Ribeiro, que fora vivamente contrário à ida de Portugal à guerra, formulou no entanto as três perguntas relevantes: “Que posição seria amanhã a de Portugal perante a Espanha a quem os aliados estavam gratos por toda a sorte de auxílio encapotado? E se, inesperadamente, D. Quixote empunhasse o escudo e a lança ao lado da Entente? Não lhe ficariam veleidades de dar um passeio, o sonhado passeio até Lisboa?” (Aquilino Ribeiro, Alemanha Ensanguentada, 307). Da nossa participação, todavia, regressámos a casa sem glória, nem benefício material ou político, e sem a gratidão dos aliados, e nem ao menos o seu apreço. Foram para a Espanha as homenagens dos aliados, e àquela foi atribuído um lugar no Conselho Executivo da Sociedade das Nações, o que foi negado a Portugal, beligerante que havia sido; e o facto motivou vivo protesto de Afonso Costa. Mayer Garção, em A Manhã, escrevia que “Portugal perdeu a guerra” (José Medeiros Ferreira, Um Século de Problemas, 39)».

Franco Nogueira («Juízo Final»).




Embarque de tropas para Angola


A beligerância de Portugal na I Grande Guerra


Iniciadas as hostilidades, o chefe do Governo português leu em 7 de Agosto de 1914, perante o Parlamento, uma declamação: «Logo após a proclamação da República, todas as nações se apressaram a declarar-nos a sua amizade, e uma delas, a Inglaterra, a sua aliança. Por nossa parte temos feito, incessantemente, tudo para corresponder à sua amizade que deveras prezamos, sem nenhum esquecimento, porém, dos deveres da aliança que livremente contraímos e a que em circunstância alguma faltaríamos. Tal é a política internacional de concórdia e de dignidade que este governo timbra em continuar, certo de que assim solidariza indiscutivelmente os votos do venerando Chefe do Estado com o consentimento colectivo do Congresso e do Povo Português.» Havia nesta linha de conduta a reafirmação incondicional da aliança inglesa, sem que aliás a Inglaterra o tivesse solicitado publicamente; a formulação de uma política internacional de concórdia, no momento em que rompiam as hostilidades generalizadas, não tinha sentido nem conteúdo; e como essa política não equivalia à de neutralidade, que não era declarada, nem muito menos à de beligerância, que também se não sugeria, foi por muitos considerada equívoca a situação criada. Mais vigorosamente do que outros protestava João Chagas em Paris contra a atitude assumida pelo governo de Lisboa. Impressionado por pequenos factos, considerava vexatório que Portugal não marcasse de começo uma posição clara quando todos, até o Haiti [1], já o haviam feito; pensava que sofríamos uma humilhação nacional porque ouvia na rua um comentário desagradável [2], ou porque um jornal publicava um artigo crítico; desenvolvia uma actividade frenética, por cartas e telegramas para Lisboa, procurando convencer o governo e os seus amigos políticos de que o interesse do país era constituir-se beligerante ao lado da França; e na falta dessa beligerância pretendia que ao menos houvesse uma declaração firme e nítida de neutralidade. Era de desespero o espírito de João Chagas: e pensava em vir a Lisboa «insurreccionar» o país para o salvar de um «tremendo desastre moral» [3]. De Madrid, por outro lado, Vasconcelos aconselhava prudência, e recomendava que nos abstivéssemos de «excessivos entusiasmos anglófilos»; e sublinhava que decerto os ingleses estranhariam que, à sua custa, tivéssemos gestos provocadores. Chagas classificava de abjecta esta atitude, desprezava Vasconcelos como um pobre cirurgião; e entendia que Bernardino Machado e Freire de Andrade eram agentes da Inglaterra [4]. Mas Bernardino Machado, por sua vez, confidenciava que Andrade era um agente da Alemanha, e que o estava atraiçoando vilmente. Entretanto, de Londres expunha Teixeira Gomes um ponto de vista inteiramente diverso. Entendia que a beligerância de Portugal só poderia embaraçar a Inglaterra, e que esta, em caso de aperto, não nos defenderia se houvéssemos entrado em guerra sem seu consentimento; e esperava que no país os «doidos» deixassem seguir o governo no caminho iniciado [5]. Era esta, aliás, a posição que resultava das conversas com Sir Edward Grey; e o Governo inglês, oficialmente mas em confidência, solicitava-nos que, de momento, nos abstivéssemos de qualquer declaração de neutralidade ou de beligerância. Em Lisboa, Freire de Andrade procurava, em princípio, manter na prática a neutralidade portuguesa, sem prejuízo do entendimento com a Inglaterra e de alguns pequenos serviços discretamente prestados a esta. Era o objectivo que decerto mais convinha aos interesses nacionais. Mas a paixão prejudicava esse desígnio. Desencadeia-se uma campanha em favor da nossa intervenção na guerra: forma-se, como no passado, o partido inglês, o partido francês, e o partido dos aliados. E alegava-se: se não entrasse na guerra, Portugal não garantia a sua admissão na Conferência da Paz e no futuro organismo internacional que desta resultasse; e a beligerância portuguesa era indispensável se queríamos manter a integridade do ultramar. Esta era, com efeito, uma preocupação sincera. Quando na chefia do governo de guerra, António José de Almeida haveria de declarar no Parlamento: «É necessário que ao chegarmos ao fim da guerra possamos manter intacto, se não aumentado, o nosso domínio colonial em África, e por toda a parte bem assinalado o nosso prestígio de nação autónoma, de nação livre». No subconsciente do chefe do governo, estava ligada a independência à integridade do ultramar. Barbosa de Magalhães, em nome da maioria democrática, deu o seu apoio àquelas palavras; idêntica foi a atitude de Vasco de Vasconcelos, pelos evolucionistas; e Brito Camacho, dissociando-se no mais, seguia o governo na defesa do ultramar [6]. Mas aqueles que estavam na oposição ao governo, por disciplina partidária, não aceitavam tais razões, e era banidos como constituindo o partido germanófilo. No meio do tumulto agitado e emocional, ergue-se uma voz serena e fria: a de Brito Camacho. Em sucessivos artigos na Luta, Camacho sustenta repetidamente uma tese nacional: reafirme-se a aliança inglesa; cumpra-se o que a Inglaterra nos solicitar, desde que o faça oficialmente em nome da aliança, e invocando-a; enquanto nada nos for pedido, mantenhamos e defendamos uma estrita neutralidade. Escrevendo como homem de Estado que possui a visão histórica das forças externas que actuam em torno do país, Brito Camacho repisava que não devíamos ir «para a guerra sem expressa solicitação da nossa aliada, porque nem seria patriótico impormo-nos tão grande sacrifício por mero diletantismo militar, nem seria correcto que pretendêssemos impor à Inglaterra serviços que ela tivesse por dispensáveis» [7]. E aos argumentos dos intervencionistas Camacho respondia: a Holanda estava neutral, possuía domínios ultramarinos, e não ia decerto perder estes por se haver mantido neutral; a Espanha também proclamava a neutralidade, e sem dúvida não deixaria por esse facto de pertencer ao futuro organismo da paz; e além disso haveria tanto interesse em que nos tornássemos membros daquele? Esta posição de neutralidade portuguesa era aquela que já Pombal e D. João VI, perante as querelas europeias, haviam procurado defender; mas a exaustão do tesouro e a falta de forças militares não o haviam permitido. Repetia-se agora o mesmo desastre: não possuíamos forças armadas que pudessem defender e impor a nossa neutralidade. Assim o declarava o ministro da Guerra na tribuna do Parlamento. E para que não houvesse qualquer dúvida, referindo-se ao exército, afirmava: «não digo que tem pouco, digo que não tem nada» [8]. Um aspecto, todavia, importava considerar: a vizinhança que tínhamos em África com territórios alemães. Recomendava Brito Camacho que se organizassem e enviassem expedições militares ao ultramar: combatendo aí os alemães, defenderíamos o que era nosso e do mesmo passo prestávamos preciso auxílio à nossa aliada, dispensando-a de distrair tropas da Europa para África. E Camacho dizia «mal de nós se precisássemos amanhã de prover à defesa do nosso território, no continente ou no ultramar, e não pudéssemos fazê-lo porque os nossos soldados andavam combatendo noutra parte!» [9]. Por virtude desta posição nacional e independente sofreu Camacho os mais acerbos ataques dos partidos; e estes não hesitaram mesmo perante a injúria pessoal. Era de grande violência a campanha intervencionista na imprensa que obedecia a Bernardino Machado ou Afonso Costa; João Chagas ameaçava demitir-se e vinha a Lisboa, e com frenesi falava a todos os principais vultos da política na necessidade da entrada de Portugal na guerra. Em fins de 1914 caía o governo, e Freire de Andrade abandonava os Estrangeiros. Em Londres, Teixeira Gomes, muito mais ponderado que Chagas, sentia-se inquieto. Desabafava: «a nacionalidade portuguesa poderá sair desta crise mais forte; mas também pode sair moribunda; e também pode desaparecer. O que há de profundamente doloroso nesta perspectiva é a convicção de que seria fácil alcançar o primeiro dos três resultados e tudo parece encaminhar-se para os dois últimos, só porque meia dúzia de homens não querem entender-se em um assunto que lhes não afecta os interesses partidários nem particulares: a política internacional» [10]. Encarando o problema no plano nacional e não partidário, Teixeira Gomes dizia a Brito Camacho: «a minha correspondência para o ministério, quando for conhecida, provará que fiz tudo para evitar que entrássemos em guerra, provará mais que tornada a nossa cooperação inevitável não consenti que ela se realizasse sem que a Inglaterra formalmente invocasse a aliança, única forma de podermos auferir daí, no futuro, algumas vantagens» [11]. Sir Edward Grey, apavorado com a precipitação portuguesa, continuava a recomendar prudência, e a manifestar o desejo de que não entrássemos na guerra; às levianas ofertas portuguesas respondia que guardássemos o nosso exército e a nossa marinha para nos defendermos, no continente e no ultramar, visto que, em apertos na Europa, não poderia a Inglaterra fazê-lo; e esta, de Portugal, apenas requeria alguns pequenos serviços, discretos e não incompatíveis com a neutralidade [12]. Esta posição da Grã-Bretanha era perfeitamente correcta; e correspondia à conduta defendida por Brito Camacho. Mas nas esferas políticas ganhavam terreno os intervencionistas a todo o preço: e queriam impor à Inglaterra a ida de uma missão militar portuguesa a Londres. E quando a França e a Grã-Bretanha nos solicitaram a cedência de alguma artilharia, respondemos que apenas satisfaríamos o pedido se o armamento fosse acompanhado de uma divisão de infantaria. Ficaram contrariados os embaixadores de França e da Inglaterra; e o adido militar francês, sugeria cortesmente que as nossas tropas não estavam treinadas, nem organizadas, insinuando assim a sua perfeita inutilidade. Mas a campanha intensificava-se; e ganhava terreno na imprensa partidária, depois de um artigo do major Sá Cardoso, a ideia do envio de tropas para França. Com a nova administração, ficavam senhores do governo os intervencionistas.

Infantaria portuguesa em França.

Já havíamos sido atacados em África pelos alemães, e com estes travado duros combates. Mas não fora declarada a guerra. Apesar de tudo, a opinião pública não lhe era favorável. Em Janeiro de 1915, o governo é derrubado pela ditadura do general Pimenta de Castro. Este continua na aparência a política anterior: abastece navios ingleses em portos nossos, permite o trânsito de tropas britânicas, presta outras pequenas ajudas: mas não agrava a política intervencionista. Mas em Maio de 1915 há novo movimento revolucionário. Constitui-se um governo de guerra: chama-se João Chagas à presidência: mas um atentado inibe-o de assumir funções. Para os Estrangeiros entra Augusto Soares; a Guerra é confiada a Norton de Matos. A todo o custo, queremos declarar a beligerância: era uma obsessão. Mas Sir Edward Grey é peremptório: se quisermos declará-la, «façamo-lo por motivos exclusivamente nossos e jamais invocando a aliança» [13]. Em resposta, Augusto Soares alega as reclamações alemãs contra actos nossos, os ataques das tropas germânicas da Damarlândia, o fornecimento de armas à África do Sul, o combate de Naulila, e tudo o ministro atribui ao facto de sermos aliados da Inglaterra [14]. Esta argumentação, obviamente especiosa, não impressiona Grey; a verdade é que, sem embargo de todos aqueles factos, a Alemanha não declarara guerra a Portugal: e assim apenas por motivos exclusivamente portugueses poderemos nós declará-la. Era necessário um pretexto, portanto; e esse encontrámo-lo na apreensão dos navios mercantes alemães surtos no Tejo. No mês de Fevereiro de 1916 requisitámos os barcos; e em Março a Alemanha afirmava-se em estado de guerra com Portugal. Era a vitória dos intervencionistas. Alexandre Braga propõe um governo nacional: era a união sagrada. Na verdade, porém, o ministério era composto apenas de democráticos e evolucionistas: presidia António José de Almeida;  Augusto Soares e Norton de Matos continuavam nos Estrangeiros e na Guerra; Afonso Costa entrava para as Finanças. Por vontade própria, e coerentes com a atitude anterior, excluíam-se os unionistas de Camacho, e os socialistas e monárquicos. O partido da guerra celebrou o triunfo; e em Paris Chagas exclamava: «aleluia» [15]. E do facto tiravam os intervencionistas conclusões de tocante candura: os aliados eram convidados a almoço no Quai d’Orsay, e «assim Portugal entra pela primeira vez no consórcio da Entente»; Portugal era tratado amigavelmente no Figaro e isso considerava-se uma das «surpresas da guerra»; quando Chagas subia numa manhã as escadas do Quai d’Orsay, era «Portugal que subia a uma das eminências da sua história»; e perante um telegrama de cortesia do Chefe do Estado francês, em que se faziam votos pela glória de Portugal, comentava-se que «era a primeira vez, há alguns séculos, que a glória de Portugal é uma palavra em documentos internacionais» [16]. Não o entendia assim, porém, a massa popular, e nesta não tem eco o triunfo dos intervencionistas.

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Segue-se a nossa participação activa. Afonso Costa e Augusto Soares deslocam-se a Londres e Paris para concertar pormenores; organiza-se e envia-se para França o Corpo Expedicionário Português; e até ao fim das hostilidades não cessam os nossos sacrifícios. Era o «anseio de evidência mundial que tinha impulsionado o desejo de intervir na luta»; e não foi viável conduzir o nosso esforço em termos devidos porque o escol era alheio à vida colectiva da nação, ou não traduzia aquele mínimo de convergência indispensável perante os mais altos interesses nacionais [17]. A incapacidade do governo e a resistência passiva da opinião pública provocaram novo golpe de Estado: em Dezembro de 1917, Sidónio Pais assumia o poder: e Bernardino Machado, Afonso Costa, Augusto Soares, Norton de Matos, João Chagas, outros mais, eram exilados ou afastados. Foi modificada a política de guerra: não nos retirámos das hostilidades: mas o C.E.P. deixou de ser reforçado e arrastou desde então uma existência apagada e inútil. Um instante de prestígio fugaz: em 9 de Abril de 1918 as forças portuguesas foram severamente batidas no Lis: mas o comportamento dos soldados foi galhardo. Entretanto, continuámos a reforçar as nossas posições em África; e para as defender não oferecia o sentimento nacional qualquer resistência.

Feita a paz, procedeu-se ao saldo dos sacrifícios de Portugal. Escreve um professor eminente: expedições para a África de 34 600 brancos, a que foram associados 19 500 soldados pretos; fornecimento aos aliados de 30 000 espingardas, 15 milhões de cartuchos, 56 bocas de fogo, 14 400 granadas; cedência de 157 233 toneladas de navegação à Inglaterra e permissão para serem utilizados os nossos portos; manutenção de matérias-primas e géneros alimentícios; entre mortos, feridos e inutilizados, perdemos em França 14 623 soldados, e em África 21 000; perda de cerca de 100 000 homens por invasão ou subversão dos territórios [18]. Em compensação, a Portugal foi reconhecido o direito de pertencer à comissão que organizaria a Sociedade das Nações, à de Portos e Vias, à de Reparações – e recebemos a minúscula povoação de Kionga, ao norte de Moçambique, que os alemães nos haviam tomado. Foi tudo: e era nada. E enquanto negociávamos em Paris, assassinava-se em Lisboa o presidente Sidónio Pais, surdia uma revolução em Santarém, proclamava-se a monarquia do norte. Como no Congresso de Viena, também em Paris éramos tratados de sub-aliados [19].

A Assinatura da Paz na Sala dos Espelhos (pormenor do quadro de William Orpen). Afonso Costa surge retratado de pé, o segundo à esquerda).


Galeria dos Espelhos no Palácio de Versalhes.

Como nas guerras europeias anteriores – dos sete anos, de sucessão de Espanha, campanha do Rossilhão, guerras napoleónicas – também no conflito europeu de 1914-1918 fez Portugal sacrifícios pesados. E contudo não tínhamos nenhum interesse vital afectado na Europa, e que portanto devêssemos defender. Mas não soubemos proclamar uma neutralidade, que por outro lado não poderíamos fazer respeitar, dada a nossa extrema fraqueza económica e militar; apenas para satisfação de lutas partidárias internas e em obediência cândida e cega a ideologias que não eram nossas, envolvemo-nos no conflito contra a vontade dos seus principais condutores; e apresentámos continuamente, perante terceiros, o espectáculo da divisão política, da desagregação administrativa, da ingenuidade na acção internacional. Chagas, o grande paladino da intervenção, e que considerava esta uma aleluia, viu desfeitas as suas ilusões. E em 1918 escrevia: «ontem, o parlamento francês celebrou já a apoteose dos aliados da França. Falou-se em todos: não se falou em nós. De resto é de toda a evidência que existe o propósito de ocultar o caso de Portugal, como um caso triste que é discordante no conjunto da vitória» [20]. E, com efeito, no fecho da luta beneficiámos rigorosamente de coisa nenhuma.

(In Franco Nogueira, As Crises e os Homens, Livraria Civilização Editora, 2.ª edição, 2000, pp. 238-244).






[1] João Chagas, Diário, I, 147.

[2] João Chagas, Diário, I, 159.

[3] João Chagas, Diário, I, 157.

[4] João Chagas, Diário, I, 255.

[5] Teixeira Gomes, Correspondência, I, 195.

[6] Diário das Sessões, 8 de Novembro de 1916.

[7] Brito Camacho, Portugal na Guerra, 110-111.

[8] Brito Camacho, ob. cit., 156.

[9] Brito Camacho, ob. cit., 124.

[10] Teixeira Gomes, Correspondência, I, 212.

[11] Teixeira Gomes, ob. cit., 216-217.

[12] Freire de Andrade, carta de 11-12-1914.

[13] História de Portugal, ed. de Barcelos, VII, 501.

[14] Livro Branco, doc. 300. Também carta de Teixeira Gomes a Augusto Soares, Correspondência, II, 54.

[15] João Chagas, Diário, II, 217. Comentando a intervenção, escrevia Agostinho de Campos: «A verdade é que alguns dos nossos mais fogosos intervencionistas estavam convencidos de que a beligerância portuguesa era vantajosa, primeiro e com certeza, para o seu partido; depois e talvez, para a sua pátria». Agostinho de Campos, Portugal em Campanha, 240.

[16] João Chagas, Diário, II, passim.

[17] História de Portugal, ed. de Barcelos, VII, 505. Em Rescaldo da Guerra, Brito Camacho faz uma lúcida análise dos erros e leviandades cometidas.

[18] Professor Hernâni Cidade, em História de Portugal, ed. de Barcelos, VII, 521-522.

[19] Saliente-se que, também como em Viena, o representante inglês na conferência de Paris, Balfour, envidou todos os esforços para que fossem satisfeitas as reclamações portuguesas. A Europa continental, porém, julgou de outro modo.

[20] João Chagas, Diários, IV, 343-344.


terça-feira, 26 de setembro de 2023

Antissemitismo, socialismo e supranacionalismo

Escrito por Hannah Arendt







«Na Alemanha, antes de Hitler ter chegado ao poder, o movimento em direcção ao planeamento tinha já avançado muito. Importa recordar que, algum tempo antes de 1933, a Alemanha chegara a um estado tal que tinha de ser governada ditatorialmente. Ninguém punha em dúvida que a democracia havia ruído e que os democratas sinceros como Bruning, já não poderiam governar melhor do que Schneider ou Von Papen. Hitler não precisou de destruir a democracia; bastou-lhe instalar-se nas suas ruínas para, no momento mais crítico, receber o apoio de muitos que, embora o detestassem, acreditavam ser ele o único homem com força suficiente para fazer alguma coisa.»

Frederico Hayek («O Caminho para a Servidão»).


«Relativamente à atitude de Heidegger face à perseguição dos seus colegas judeus, é preciso na verdade estabelecer matizes. Em particular no que concerne aos professores de Freiburg, von Hevesy e Fränkel, especialistas de reputação mundial respectivamente em Química (Prémio Nobel 1943) e Filologia Clássica. Nos arquivos gerais de Karlsruhe, encontra-se uma carta de Martin Heidegger ao conselheiro ministerial Fehrle, de 12 de Julho de 1933, na qual ele toma a defesa dos dois cientistas a fim de não serem expulsos do serviço público. Heidegger sublinha, por um lado, o grande prestígio dos dois professores nas suas disciplinas respectivas na opinião do mundo científico, incluindo no estrangeiro e, por outro lado, afirma que "seriam judeus ilustres de carácter exemplar (Sie sein edle Juden von vorbildlichem Charakter)". Os seus argumentos perante as autoridades ministeriais consistem em dizer que a exclusão definitiva poderia causar um forte prejuízo para a boa reputação da ciência alemã no estrangeiro, particularmente nos meios intelectuais dominantes e politicamente influentes. A defesa destes dois casos particulares, sublinha Heidegger, não deve ser considerada como uma recusa das disposições gerais para com os docentes judeus. Ao contrário, ele assume a sua atitude mesmo estando “plenamente consciente da necessidade de aplicar incondicionalmente a lei relativa à reorganização do serviço público”; ele toma somente em consideração os prejuízos que a exclusão poderia causar “ao necessário reforço, a nível mundial, do prestígio da ciência alemã, ao novo Reich e à sua missão”».

Victor Farías («Heidegger e o Nazismo»).

 

«Na vida do judeu, incorporado como parasita no meio de outras nações e de outros Estados, existe um traço característico, no qual Schopenhauer se inspirou para declarar, como já mencionámos: “O judeu é o grande mestre da mentira”. A vida impele o judeu para a mentira, para a mentira incessante, da mesma maneira que obriga o homem do Norte a vestir roupas quentes.

A sua vida, no seio de povos estranhos, só pode perdurar se ele conseguir despertar a crença de ser o representante, não de um povo, mas de uma “comunhão religiosa”, muito embora singular.

Mas isto é a primeira das suas grandes mentiras.

(...) Numa sequência lógica, amontoam-se sempre novas mentiras sobre a grande mentira inicial, a saber: que o judaísmo não é uma raça, mas uma religião. A mentira estende-se igualmente à questão da língua dos judeus; esta não lhes serve de veículo para a expressão, mas sim de máscara para os seus pensamentos. Quando fala francês, o seu modo de pensar é judeu; ao recitar versos em alemão ele exprime somente o carácter da sua nacionalidade.

Enquanto o judeu não se torna senhor dos outros povos é forçado, quer queira quer não, a falar a língua deles.

Porém, assim que eles ficassem seus vassalos, teriam de aprender todos um idioma universal (por exemplo, o esperanto!) a fim de assim poderem ser dominados mais facilmente pelo judaísmo.

Os Protocolos dos Sábios de Sião, tão detestados pelos judeus, mostram, de maneira incomparável, a que ponto a existência desse povo é baseada numa mentira ininterrupta. “Tudo isto é falsificado”, geme sempre de novo o Frankfurter Zeitung, o que constitui mais uma prova de que tudo é verdade. Tudo o que muitos judeus talvez façam inconscientemente, acha-se aqui claramente desvendado. Mas o ponto essencial é que não importa de modo algum saber que do cérebro judeu provêm tais revelações. O ponto decisivo é a maneira pela qual essas revelações tornam patentes, com uma segurança impressionante, a natureza e a actividade do povo judeu nas suas relações íntimas, assim como nas suas finalidades. A melhor crítica desses escritos é fornecida, todavia, pela realidade. Quem examinar a evolução histórica do último século sob o prisma deste livro, logo compreenderá também o clamor da imprensa judaica, pois no próprio dia em que o mesmo for conhecido de todo o povo, estará evitado o perigo do judaísmo.»

Adolf Hitler («Meín Kampf»).











«Os juízos da aristocracia fundam-se numa boa musculatura, numa saúde florescente e no que para isto contribui: a guerra, as aventuras, a caça, a dança, os jogos e exercícios físicos e em geral tudo o que implica uma actividade robusta, livre e alegre. Muito pelo contrário na classe sacerdotal; tanto pior para ela. Os sacerdotes são os inimigos mais malignos; porquê? Porque são os mais impotentes. A impotência faz crescer neles um ódio monstruoso, sinistro, intelectual e venenoso. Os grandes vingativos, na história, foram sempre sacerdotes, e nada se pode comparar com o engenho que o sacerdote desenvolve na sua vingança. A história da humanidade seria uma coisa insípida sem o engenho com que o ameaçaram os impotentes. Ponhamos o exemplo mais notável. Tudo o que na Terra se fez contra os "nobres", os "poderosos", os "senhores", os "governantes" não se pode comparar com o que fizeram os judeus. Os judeus vingaram-se dos seus dominadores por uma radical mudança dos valores morais, isto é, com uma vingança essencialmente espiritual. Só o povo de sacerdotes podia obrar assim. Os judeus, com uma lógica formidável, atiraram por terra a aristocrática equação dos valores "bom", "nobre", "poderoso", "formoso", "feliz", "amado de Deus". E, com o encarniçamento do ódio afirmaram: "Só os desgraçados são bons; os pobres, os impotentes, os pequenos, são os bons; os que sofrem, os necessitados, os enfermos, são os piedosos, são os benditos de Deus; só a eles pertencerá a bem-aventurança; pelo contrário, vós, que sois nobres e poderosos, sereis por toda a eternidade os maus, os cruéis, os cobiçosos, os insaciáveis, os ímpios, os réprobos, os malditos, os condenados..." Todos sabem quem foi que recolheu a herança destas apreciações judaicas... E recordo aqui o que noutro lugar (Para além do bem e do mal, a fl. 195) disse: Que com os judeus começou a emancipação dos escravos na moral, esta emancipação que tem já vinte séculos de história e que já hoje perdemos de vista por ter triunfado completamente.»

Frederico Nietzsche («A Genealogia da Moral»).




«(...) o judeu começa de repente a ser liberal, começando a sonhar com a necessidade do progresso humano. Pouco a pouco transforma-se no arauto de uma nova época. Porém, ele está é a destruir cada vez mais os fundamentos de uma economia verdadeiramente útil ao povo. Pelo processo das sociedades de acções, vai penetrando nos círculos da produção nacional, faz desta um objecto mais susceptível de compra e traficância, roubando assim às empresas a base da propriedade pessoal. Por isso, surge entre o patrão e o empregado aquele distanciamento que origina a ulterior luta política de classes.

Cresce assim a influência dos judeus em matéria económica, além da bolsa, e isso com assombrosa rapidez. Torna-se proprietário ou controlador das forças de trabalho do país.

Para consolidar a sua posição política, tenta destruir as barreiras raciais e de cidadania, que mais do que tudo o embaraçam a cada passo. Para atingir tal fim, luta com a sua resistência típica pela tolerância religiosa, encontrando na franco-maçonaria, que caiu inteiramente em seu poder, um excelente instrumento para combater o que não lhe convém e realizar as suas aspirações. Os círculos governamentais, assim como as camadas superiores da burguesia política e económica caem nas suas armadilhas, guiados por fios maçónicos, porém mal se apercebem disso.

Só o verdadeiro povo, ou melhor, a classe que, despertando, luta pelos seus próprios direitos e pela sua liberdade, não pode ser conquistado por esse meio, principalmente nas suas camadas mais profundas. Essa, porém, é a conquista mais indispensável. O judeu sente que a sua ascensão a uma posição dominadora só se tornará possível quando existir à sua frente um “precursor”, e este pensa ele descobrir não entre a burguesia mas nas camadas populares. Não se pode, entretanto, conquistar fabricantes de luvas e tecelões com os frágeis processos da franco-maçonaria, tornando-se obrigatório introduzir, nesse caso, meios mais rudes e grosseiros, porém não menos enérgicos. Como segunda arma ao serviço do judaísmo, existe, além da franco-maçonaria, a imprensa. Com muito afinco e muita habilidade, ele apodera-se deste orgão de propaganda e começa lentamente a enlaçar toda a vida oficial, a dirigi-la, a empurrá-la, tendo a facilidade de criar e superintender aquela potência que, sob a denominação de “opinião pública”, é hoje mais bem conhecida do que há algumas décadas. Com isso tudo, apresenta-se sempre como animado por uma infinita sede de saber, elogia todo o progresso, sobretudo aquele que acarreta a ruína dos outros, pois só julga todo o saber e toda a evolução na medida em que lhe facilitam a propaganda da sua raça. Quando falta esse objectivo, torna-se inimigo encarniçado de toda a luz e de toda a verdadeira civilização. Desse modo, utiliza todo o saber adquirido nas escolas alheias, única e simplesmente ao serviço da sua raça.»

Adolf Hitler («Meín Kampf»).


«As transformações administrativas adoptadas por Heidegger foram completadas por uma série de medidas tendentes a mudar a vida dos estudantes cujos hábitos, até 1933, consistiam em levar uma vida fácil sem outro fim que não fosse o sucesso profissional e material – preocupação considerada decadente e individualista. O encarniçamento com que o reitor Heidegger vai assumir esta tarefa, numa Universidade cujos estudantes eram, na sua esmagadora maioria, procedentes das classes médias e da burguesia, é um sinal da sua decisão de impor o programa nacionalista na sua variante populista mais radical. Wolfgang Kreutzberger pôs a claro o que, na origem social dos estudantes de Freiburg, conspirava contra a decisão do reitor. Com efeito, a participação real dos estudantes nos trabalhos voluntários foi fraca. A maior parte dos que aderiram a esta iniciativa pertencia às classes mais desfavorecidas, e punha frequentemente como condição da sua participação que os trabalhos que lhes fossem confiados tivessem alguma relação com a sua formação profissional; ao mesmo tempo, recusava toda a espécie de “trabalho sujo”. Os que “se empenhavam” estavam, na maior parte dos casos, muito menos inclinados a identificar-se com a classe operária, do que estavam influenciados por ideias anti-internacionalistas e antipacifistas que não coincidiam necessariamente com as convicções nacionais-socialistas.








Heidegger via nesta transformação do mundo estudantil – que se realizaria graças aos seus laços concretos com o mundo dos trabalhadores – o cumprimento de um dos pontos do programa do grupo SA. Isso transparecia claramente no seu discurso de 26 de Novembro de 1933. O Estudante Alemão como Trabalhador, pronunciado por ocasião da festa da matrícula. A cerimónia e o discurso do reitor Heidegger foram comentados e retransmitidos por uma vasta cadeia de emissores de Frankfurt, Freiburg, Trier, Colónia, Estugarda e Mühlacker. O novo estudante não tira, afirma ele, a sua especificidade somente da sua entrada na Universidade ou dos laços estabelecidos, através dela, com o Estado, mas da sua integração “no serviço do trabalho, nas SA”. “O novo estudante alemão passa hoje pelo serviço do trabalho, ele está nas SA”. O verdadeiro sentido do serviço do saber é integrar o estudante na “frente dos trabalhadores”. E é somente sendo ele próprio um “trabalhador” que o estudante se pode ligar autenticamente com o Estado, “porque o Estado nacional-socialista é o Estado do trabalho”. Este discurso que tem mais o carácter de uma declaração de princípio, encontra o seu complemento explicativo no artigo “O apelo ao serviço do trabalho”, publicado pelo jornal dos estudantes em 23 de Janeiro de 1934. De passagem, anotemos que este artigo se encontra associado a um outro que defende o auto-de-fé dos livros organizado pelos superiores políticos imediatos dos que editavam esta Deutsche Studentenzeitung. Os fogos ateados para queimar os livros “escritos por judeus são fogos contra delinquentes intelectuais, não se extinguirão antes do último dos seus escritos ser transformado em cinzas, do último dos parasitas que os escreveu ser internado num campo de trabalho e desses animais terem sido tosquiados e lavados”».

Victor Farías («Heidegger e o Nazismo»).


«A ausência de regras formais absolutas na moral colectivista não significa decerto que não haja hábitos individuais que uma comunidade colectivista encorajará e outros que desencorajará. E mostrará até muito maior interesse do que uma sociedade individualista pelos hábitos de vida dos indivíduos. Para se ser membro útil de uma sociedade colectivista é necessário possuir qualidades bem definidas que devem fortalecer-se por uma prática constante. Se lhes chamamos “hábitos úteis” e não as podemos definir como “virtudes morais” é porque o indivíduo nunca os poderá tomar como regras que coloca acima das ordens estritas que recebe nem deixar que eles se tornem um obstáculo à realização de qualquer objectivo que a sua comunidade se proponha. Apenas servem, portanto, para preencher os intervalos entre o cumprimento das ordens recebidas ou entre os esforços para alcançar as finalidades determinadas e nunca podem justificar um conflito com a vontade da autoridade superior.

A diferença entre as virtudes que num sistema colectivista continuarão a ser bem vistas e aquelas que terão de desaparecer fica bem ilustrada com a comparação entre as virtudes que até os seus piores inimigos reconhecem aos alemães, ou, antes, aos “prussianos típicos”, e aquelas que geralmente se lhes negam e são as que os ingleses justificadamente se orgulham de possuir. Poucas pessoas poderão negar que os alemães são, de um modo geral, trabalhadores disciplinados, íntegros até ao fanatismo e enérgicos até à crueldade, conscienciosos e responsáveis em todas as tarefas que empreendem, possuidores de um forte sentido da ordem, do dever e da obediência à autoridade e se mostram muitas vezes dispostos a fazer sacrifícios pessoais e correrem sérios perigos físicos. Tais predicados fizeram dos alemães um instrumento eficaz para o desempenho das tarefas que lhes eram destinadas e assim foram cuidadosamente educados no velho estado prussiano e no novo Reich dominado pelos prussianos. O que geralmente se nega ao alemão típico são as virtudes individualistas da tolerância e do respeito pelos outros e suas opiniões, a independência de espírito, a rectidão de carácter e a coragem de defender as suas convicções pessoais diante de um superior, virtude que os alemães, conscientes de as não possuírem, designam por Zivilcourage; e ainda a consideração pelos fracos e enfermos e aquele saudável desdém pelo poder que só uma velha tradição sabe criar. Faltam-lhes também aquelas pequenas qualidades, mas bem importantes, que facilitam as relações entre os homens numa sociedade livre: a amabilidade, o sentido do humor, a modéstia pessoal, o respeito pela intimidade dos outros e a confiança nas boas intenções dos que lhes são próximos.

Tais virtudes, ao mesmo tempo que individualistas, são também eminentemente sociais, virtudes que amenizam o convívio social e tornam menos necessário, e mais difícil de impor, o controlo vindo de cima. Virtudes que só florescem onde predomina o tipo da sociedade individualista ou comercial, não existem onde prevalece o tipo da sociedade colectivista ou militarista, diferença que é, ou era, tão visível entre as diversas regiões da Alemanha como a existente agora entre as concepções que governam toda a Alemanha e aquelas que são características do mundo ocidental. Até há pouco tempo, pelos menos nas regiões alemãs que mais influenciadas foram pelas forças civilizadoras do comércio – as velhas cidades comerciais do sul e oeste e as da Liga Hanseática –, as concepções morais eram muito mais semelhantes às dos povos ocidentais do que aquelas que hoje predominam em toda a Alemanha.

Seria todavia profundamente injusto considerar as massas desse povo dominado pelo totalitarismo como desprovidas de sentido ético só porque dão o seu apoio incondicional a um sistema que nos aparece como a negação da maior parte dos valores morais. Para a maioria dos alemães, o contrário é que, provavelmente, será verdadeiro: a intensidade das emoções morais que estão por detrás de um movimento como o nazismo ou o comunismo só pode talvez ser comparável às dos grandes movimentos religiosos da história. Uma vez que se aceite que o indivíduo é apenas um instrumento destinado a servir as finalidades determinadas por uma entidade superior que se apresenta com o nome de sociedade ou nação, grande parte daquelas características dos regimes totalitários que nos horrorizam, aparecem como um corolário inevitável. Do ponto de vista colectivista, a intolerância e supressão brutal dos dissidentes, o total desprezo pela vida e pela felicidade dos indivíduos são consequências fundamentais e iniludíveis daquela premissa. O colectivista é capaz de reconhecer o que acabamos de mostrar mas não deixará de, ao mesmo tempo, afirmar que o seu sistema é superior àquele em que os interesses, a que chama “egoístas”, dos indivíduos podem impedir a completa realização dos fins que a comunidade se propôs. Quando os filósofos alemães repetidamente nos apresentam como sendo em si mesma imoral a luta pela felicidade individual e como digno de todos os louvores o cumprimento de um dever que nos é imposto, fazem-no com total sinceridade embora isso seja incompreensível para quem formou a sua personalidade segundo diferentes concepções.

Sempre que há um fim comum que ultrapassa tudo e tudo domina, deixa de haver lugar para quaisquer valores éticos ou quaisquer regras de carácter geral. Até certo ponto, todos nós temos a experiência disso quando, como agora acontece, nos encontramos em guerra. Mas até quando assim nos encontramos em guerra, e correndo aqui, em Inglaterra, os maiores perigos, a experiência é apenas uma aproximação ainda distante do totalitarismo pois apenas uma reduzida parte dos nossos valores foram sacrificados ao serviço da finalidade única. Sempre que umas tantas finalidades específicas dominem a totalidade da sociedade, é inevitável que a crueldade se torne em certos casos um dever, que se considerem meras questões de expediente coisas que revoltam todos os nossos sentimentos como fuzilarem-se reféns e abaterem-se velhos e doentes, que desalojar e desterrar pessoas constitua um recurso da política que toda a gente, à excepção das vítimas, aprova, que se tomem a sério sugestões como a do “serviço militar obrigatório com fins educativos para as mulheres”. Aos olhos do colectivista, actos como estes servem sempre uma finalidade que, só por si, os justifica pois não há quaisquer direitos ou valores do indivíduo que possam constituir obstáculos à realização do objectivo comum da sociedade.

Se para as “massas” de cidadãos dos Estados totalitários é a dedicação desinteressada por um ideal, seja-nos ele embora repugnante, que as leva a aprovar e até a executar actos como esses, o mesmo se não poderá dizer dos homens que orientam tal política. Para ser um colaborador útil de um governo totalitarista, não basta que um homem esteja preparado para aceitar as justificações mais artificiosas das acções mais vis; é preciso que também esteja activisticamente disposto para quebrar todas as regras morais a que sempre obedeceu caso isso seja necessário ao fim que é imposto. E como é o chefe supremo quem determina sozinho todos os fins, os seus instrumentos, os homens que são seus instrumentos, não podem ter convicções morais próprias. Acima de tudo, devem eles entregar-se sem reservas à pessoa do chefe; e para isso, é essencial que sejam totalmente destituídos de princípios e literalmente capazes de tudo. Não podem ter ideais que visem realizar, nem ideias sobre o que é certo ou errado que possam interferir nas determinações do chefe. Assim se vê como, nos lugares de poder, pouco há que possa atrair aqueles que tenham ainda as convicções morais que noutros tempos guiaram os povos europeus, poucas são as compensações para os aspectos desagradáveis das tarefas que é preciso cumprir, poucas oportunidades existem para a realização das ambições mais idealistas, poucas recompensas se oferecem pelos riscos que, sem dúvida, se correm e pelo sacrifício da maior parte dos prazeres da vida privada e da independência pessoal que os cargos de responsabilidade sempre implicam. Os únicos gostos satisfeitos são o gosto pelo poder em si, o prazer de ser obedecido e o orgulho de fazer parte de uma máquina eficaz e imensamente poderosa que assegura sempre um lugar na primeira fila.

Para os homens bons – segundo os nossos padrões – pouca sedução podem pois exercer os lugares de chefia na máquina totalitária. Mas aos homens cruéis e sem escrúpulos oferece ela óptimas oportunidades. Haverá sempre tarefas, em si mesmas repugnantemente vis, mas cuja execução é posta ao serviço de um fim mais elevado e que exigem a mesma perícia e eficácia de quaisquer outras. E como quem estiver ainda ligado à moral tradicional terá repugnância em as aceitar, quem se prontificar a fazê-lo tem assegurado o caminho da promoção e do poder. São inúmeras as situações oferecidas por uma sociedade totalitária que exigem a prática da crueldade e da intimidação, da mentira propositada e da espionagem ou vigilância denunciadora. Nem a Gestapo, nem a administração de um campo de concentração, nem o Ministério da Propaganda, nem os S. A. e os S. S ou seus equivalentes italianos e russos, são lugares adequados à expressão de sentimentos humanitários. São essas, todavia, as instituições que se encontram na estrada que conduz aos lugares mais elevados nos Estados totalitários.»

Frederico Hayek («O Caminho para a Servidão»).


«Com o abandono do padrão-ouro perdeu-se aquela simplicidade que fazia do dinheiro um instrumento da justiça; com o abandono da correspondência entre a quantidade da moeda e a quantidade das mercadorias, perdeu-se o que fazia do dinheiro um instrumento da liberdade; com a paridade flexível, perde-se agora a projecção na economia da existência das pátrias.

Perde-se a projecção na economia da existência das pátrias, dizemos, e perde-se a imediata evidência que a economia dá a cada um da necessidade dessa existência. Trata-se de uma realidade essencial mas a que os teorizadores da ciência económica, estranhamente, nunca atenderam, antes vendo na existência de diferentes repúblicas um obstáculo ao perfeito funcionamento do sistema da economia. O próprio von Mises é um exemplo desta estranha atitude. Muitas vezes utiliza ele, para fazer valer os seus argumentos ou apenas os explicitar, a hipótese de uma república mundial que acompanha de declarações atribuindo à existência das nações, à divisão do mundo em diferentes entidades nacionais e ao nacionalismo, a causa dos clamorosos erros que denuncia na economia contemporânea, como seja o ódio – a expressão é dele – ao padrão-ouro. É possível explicar esta atitude do grande teorizador pelas perturbações da época em que viveu e o sujeitaram a muitas espécies de atribulações e sofrimentos não apenas vividos – o exílio e a pobreza, por exemplo – mas também intelectuais. Era em nome do nacionalismo alemão ou aurindo suas forças no nacionalismo russo, que via instaurar-se o intervencionismo socialista.

De certo modo, esta posição de von Mises corresponde à imagem também mundialista que Adam Smith formava do dinheiro e do comércio, ele que via a economia como um sistema que sucedera ao da agricultura. Diz, por exemplo, que o “ouro circula entre os países comerciantes como a moeda circula dentro de cada país: pode considerar-se a moeda da grande república mundial do comércio”.

Tais posições têm, por sua vez, equivalência na banalizada convicção popular de que “o dinheiro não tem pátria”.

Ora a verdade é que de nada, como do dinheiro, se pode com mais razões afirmar que tem pátria. Sem a variedade das moedas nacionais, não haveria troca e mercado do dinheiro, e desapareceria o último e mais resistente instrumento, que é o câmbio, para, abandonados os outros padrões, conhecer ou apreciar o poder aquisitivo da moeda e defender as populações das arbitrariedades, então definitivamente instaladas no intervencionismo, dos sucessivos e sempre ocasionais governantes.

Dissemos também que se perdeu, com o abandono do padrão-ouro, a simplicidade que fazia do dinheiro um instrumento da justiça. Com efeito, ligada ao ouro e identificada com a mercadoria que o ouro é, a apreciação ou o preço da moeda torna-se patente e imediatamente acessível a todos os homens, desde os que se encontram no mais recôndito rincão do globo até aos mais envolvidos no turbilhão das grandes metrópoles, desde os mais incultos até aos mais doutos. Todos eles igualmente sabem estabelecer a relação das mercadorias que cada um possui com a mercadoria universal presente no dinheiro e, através dela, com todas as mercadorias existentes. Cada um sabe, pois, o que possui ou lhe pertence, e a justiça consiste, como já vimos e conforme Platão estabeleceu, em reconhecer o que pertence a cada um. Ao mesmo tempo, dando a cada coisa privada uma dimensão universal, estabelecendo a correspondência entre a propriedade, o trabalho e a produção de todos os indivíduos, o dinheiro é, conforme disse já Hegel, a real e concreta expressão da solidariedade universal dos homens.

Sem o padrão-ouro, uma complexidade inextricável veio substituir a simplicidade que ele representava e tornar possível multiplicar até ao infinito das abstracções intelectuais, as propostas, as combinações e os cálculos que transformaram a ciência económica num areal estéril onde os contabilistas encontram o seu paraíso vazio e se entretêm a traçar fugazes caminhos que levam a nenhures. A justiça fica separada da vida real das populações e da existência quotidiana dos indivíduos e a economia torna-se um labirinto de crises permanentes que ninguém consegue decifrar.









Dissemos, finalmente, que, com o abandono da correspondência entre a quantidade da moeda e a quantidade das mercadorias, se perde o que, depois de abandonado o padrão-ouro, fazia do dinheiro um instrumento da liberdade. Com efeito, abandonada aquela correspondência, o dinheiro deixa de oferecer à escolha dos homens, consoante as suas carências, seus interesses e seus desejos, a totalidade das mercadorias existentes. Trata-se, aqui, da liberdade de escolher que é, decerto, uma forma inferior da liberdade, embora seja aquela que, indispensável a todos os homens, a maioria deles unicamente conhece. Mas outra forma de liberdade o dinheiro oferece: a de tornar possível o ócio, quer dizer, o estado propício ao pensamento que é onde reside a insofismável liberdade.

Na categoria do dinheiro se torna, pois, presente o fim da economia. Não é esse fim, como pretenderam os que fizeram merecer à ciência económica a designação de “melancólica ciência”, administrar a escassez das coisas, contabilizar o que sempre será escasso para satisfazer as carências dos homens quando por carências se entenderem as veleidades sem desígnio, os desejos sem conteúdo e as ambições sem limite. O fim da economia é alcançar, no dinheiro, o instrumento da liberdade. E porque este fim só se alcança no termo de cada ciclo de articulação das categorias, porque cada ciclo é composto de trânsito e de retorno, da categoria do dinheiro reverte a liberdade para todos os momentos, fases e categorias dos sucessivos ciclos que, sem cessar, a actividade económica transcorre e recorre.»

Orlando Vitorino («Exaltação da Filosofia Derrotada»).




«Não é difícil privar a grande maioria das pessoas de um pensamento independente. Mas a minoria que se mantém atenta e crítica, não pode deixar de ser silenciada. Vimos já porque é que a coacção se não pode limitar a fazer aceitar o código moral que alicerça o plano segundo o qual é comandada toda a actividade social. Uma vez que grande parte desse código moral nunca será explicitada, uma vez que grande parte da escala de valores que o condicionou só existirá implicitada na planificação, a mesma planificação em cada um dos seus pormenores, o mesmo governo em cada um dos seus actos, terão de ser sacrossantos e estar ao abrigo de qualquer crítica. Se é preciso que o povo apoie sem hesitações o esforço comum, deve para isso estar convicto de que não só o fim desejado mas também os meios escolhidos são os mais correctos. A doutrina oficial, a que se forçam todos a aderir, deverá conter todos os pontos de vista sobre os factos em que a planificação se baseia. Deverá suprimir-se toda a possibilidade de refutação, desde a crítica aberta até às fugazes expressões de dúvida susceptíveis de abalar a confiança pública. Tal como se expõe no relatório dos Webbs sobre o ambiente existente em todas as empresas russas: “No meio do trabalho, qualquer expressão de dúvida ou sequer de receio quanto às possibilidades de êxito da planificação, é considerado um acto de deslealdade e até de traição por causa dos efeitos que poderá ter na boa vontade e dos esforços do restante pessoal”. E caso tais expressões de dúvida ou simples receio se refiram, não ao êxito da empresa, mas a toda a planificação social, deverão ser tratadas como sabotagem.

Tanto como as ideias acerca dos valores, os factos e as teorias constituem matéria da doutrina oficial. E todo o aparelho de comunicação e ensino, as escolas e a imprensa, a rádio e o cinema, serão exclusivamente destinados à difusão das opiniões que, verdadeiras ou falsas, fortificam a confiança nas decisões do Estado; e toda a informação que possa suscitar dúvidas será escondida. O único critério para decidir se uma informação deve ser publicada ou escondida, é o do efeito que ela possa ter na fidelidade do povo ao regime. A situação em que se vive num estado totalitário é, permanentemente e em todos os sectores, idêntica àquela em que, nos Estados não totalitários, só se vive, durante os períodos de guerra, em alguns sectores. Tudo o que possa suscitar dúvidas sobre a competência do governo ou criar descontentamento, será escondido do povo. Serão suprimidas todas as informações que forneçam meios de comparação com a situação noutros países, que dêem indicações sobre possíveis alternativas para o caminho agora empreendido, que sugiram falhas por parte do governo, não ter ele cumprido as promessas que fez, não ter sabido aproveitar as oportunidades para melhorar a situação. Com este condicionalismo, não haverá nenhum sector que não esteja sujeito ao controlo sistemático da informação e onde não seja obrigatória a uniformidade de opiniões.

Tudo isto se aplica a tudo, até a campos aparentemente muito afastados dos interesses políticos, designadamente a todas as ciências, mesmo as mais abstractas. Compreende-se com facilidade, e a experiência só o tem confirmado, que, num sistema totalitário, não seja permitida a busca desinteressada da verdade nas disciplinas que, mais directamente ligadas aos problemas humanos, mais directamente podem afectar as opiniões políticas: a história, o direito, a economia. Nestas disciplinas, a defesa das doutrinas oficiais terá de constituir o objectivo único. E na realidade, tornaram-se elas, nos países sujeitos ao totalitarismo, as fábricas mais produtivas de mitos oficiais que os chefes utilizam para guiarem os espíritos e as vontades de seus súbditos. Nada admira que se chegue a pôr de lado, até como pretexto, a busca da verdade e sejam as autoridades que decidem quais as doutrinas a ser ensinadas e publicadas.

O controle autoritário da opinião estende-se também a domínios que, à primeira vista, parece não terem significado político. É muitas vezes difícil explicar porque é que certas doutrinas são oficialmente proscritas e outras incentivadas, e é curioso observar como estas preferências são semelhantes nos vários regimes totalitários. A todos eles parece comum uma forte aversão pelas formas mais abstractas do pensamento, aversão de que também participam, significativamente, muitos dos colectivistas que há entre os nossos cientistas. Seja, por exemplo, a teoria da relatividade apresentada como “um ataque semita à física cristã e nórdica” ou seja ela atacada por estar “em conflito com o materialismo dialéctico e o dogma marxista”, o resultado é o mesmo. Também não faz grande diferença que certos teoremas de estatística matemática sejam repudiados porque “fazem parte da luta de classes na frente ideológica e são um produto do papel histórico da matemática como lacaia da burguesia” ou porque “não dão garantias de servirem os interesses do povo”. Parece que nem as matemáticas puras escapam, e até a defesa de determinadas opiniões sobre a natureza da continuidade pode ser considerada “um preconceito burguês”. Segundo os Webbs, o Journal for Marxist-Leninist Natural Sciences contém os seguintes slogans: “Pelo Partido na Matemática”, “Pela pureza da teoria marxista-leninista na cirurgia”. A situação é semelhante na Alemanha. O Journal of the National-Socialist Association of Mathematicians está cheio de expressões como “o Partido na matemática”, e um dos físicos alemães mais conhecidos, o Prémio Nobel Lennard, resumiu o trabalho de toda a sua vida no título A Física Alemã em Quatro Volumes!

Está inteiramente de acordo com todo o espírito do totalitarismo a condenação de qualquer actividade humana que tenha um carácter gratuito, que não seja determinada por um propósito. A ciência pela ciência, a arte pela arte são tão abomináveis para os nazis como para os nossos intelectuais socialistas ou comunistas. Não há para eles actividade que não tenha de se justificar por uma finalidade social deliberada. Não há para eles actividade espontânea, liberta de orientação prévia. Porque esse género de actividade por dar resultados que não estão previstos e para os quais o “plano” não tem soluções; pode dar origem a coisas novas e não sonhadas na filosofia do planificador. E a mesma abominação abrange os jogos e os divertimentos. Deixa ao leitor a possibilidade de adivinhar se foi na Alemanha nazi ou na Rússia soviética que oficialmente se exortaram os jogadores de xadrez nos seguintes termos: “Temos de acabar de uma vez para sempre com a neutralidade do xadrez. Temos de condenar de uma vez para sempre a fórmula o xadrez pelo xadrez tal como condenámos a fórmula a arte pela arte.”




Por muito incríveis que nos pareçam algumas destas aberrações, é necessário precavermo-nos contra elas e não as desdenharmos como meros subprodutos acidentais que nada têm a ver com o carácter essencial de um sistema planificador ou totalitário. Porque o não são. Porque são resultado directo daquela mesma vontade de que tudo seja dirigido por uma "concepção unitária do todo", daquela necessidade de defender, custe o que custar, as ideias em nome das quais se exigem constantes sacrifícios ao povo, e daquele princípio segundo o qual a sabedoria e as convicções populares apenas são um instrumento a usar para um único fim. Uma vez que a ciência deixa de depender da verdade para estar ao serviço dos interesses de uma classe, de uma comunidade ou de um Estado, só se exprimem e discutem os argumentos destinados a justificar e difundir as ideias que são impostas a toda a existência da comunidade. Neste sentido explicou o ministro da Justiça nazi que toda a inovação científica deve começar por se interrogar: “Sirvo o nacional-socialismo para maior benefício de todos?”

A mesma palavra verdade perde o antigo significado. Já não significa aquilo que é necessário procurar e tem na consciência individual o único árbitro para decidir, em cada caso singular, se a evidência (ou a posição daqueles que a proclamam) garante que nela se acredite. Torna-se, antes, a designação daquilo que a autoridade estabelece, daquilo em que é forçoso acreditar no interesse da unidade da acção organizada e que é susceptível de alteração sempre que as exigências de tal acção organizada a isso obrigaram.

O ambiente intelectual que deste modo se origina, o espírito de total cinismo perante tudo o que se relaciona com a verdade, a perda do sentido e até do significado que a palavra verdade contém, o desaparecimento do espírito da investigação independente e da possibilidade de acreditar no poder das convicções racionais, a maneira como as diferenças de opinião se tornam, em todos os ramos do saber, questões sobre as quais só as autoridades superiores devem decidir, tudo isso são desgraças que só a experiência pessoal pode fazer conhecer pois não há descrição capaz de as exprimir em toda a sua extensão. O mais alarmante será, talvez, o facto de o desprezo pela liberdade intelectual não surgir só quando o sistema totalitário está já estabelecido, mas se encontrar onde quer que os intelectuais tenham feito uma profissão de fé colectivista e sejam aclamados como chefes, trate-se embora de países nos quais ainda perdure o regime liberal. Até a pior das opressões é desculpada caso se exerça em nome do socialismo, e a criação de um sistema totalitário vê-se amplamente defendida por pessoas que pretendem falar em representação dos cientistas dos países liberais; e também a intolerância vemos ser elogiada abertamente. Pois não assistimos recentemente à defesa que um escritor britânico fez da Inquisição dizendo que “ela constituiu um benefício para a ciência porque protegeu uma classe em ascensão”. Opiniões como esta em nada se distinguem, efectivamente, das convicções que levaram os nazis a perseguir homens de ciência, a queimar livros científicos e a marginalizar sistematicamente a intelligentzia do povo subjugado.»

Frederico Hayek («O Caminho para a Servidão»).


«A noção que Disraeli tinha do papel dos judeus na política data da época em que era ainda simples escritor e não havia iniciado a carreira política. As suas ideias a este respeito não eram, portanto, resultado da experiência própria, mas ateve-se a elas com notável tenacidade durante toda a sua vida.

No seu primeiro romance, Alrov (1833), Disraeli elaborou o plano de um império judeu no qual os judeus reinariam como uma classe estritamente delimitada e separada. O romance mostra a influência das ilusões reinantes na época a respeito das possibilidades de poder dos judeus, bem como a ignorância do jovem autor quanto às verdadeiras condições de poder no seu tempo. 11 anos mais tarde, a experiência política no Parlamento e as relações com homens eminentes haviam ensinado a Disraeli que “os objectivos dos judeus, quaisquer que tenham sido antes e depois, estavam, na sua época, muito longe da afirmação de nacionalidade política sob qualquer forma”. Noutro romance, Coningsby, ele já abandonou o sonho de um império judeu e revelou um plano fantástico, segundo o qual o dinheiro judeu domina a ascensão e a queda de cortes e de impérios e reina de modo supremo na diplomacia. Nunca na vida ele abandonou essa segunda noção de uma secreta e misteriosa influência dos homens escolhidos da raça escolhida, que substituiu o seu sonho anterior de misteriosa casta dominante, abertamente constituída. Esta ideia tornou-se o eixo da sua filosofia política. Em contraste com os seus mui admirados banqueiros judeus que concediam empréstimos aos governos e recebiam comissões, Disraeli, com a incompreensão de leigo, não entendia como tais possibilidades de poder fossem manuseadas por pessoas desprovidas da ambição do poder e não compreendia que um banqueiro judeu estivesse ainda menos interessado em política do que os seus colegas não judeus; pelo menos para Disraeli, era natural que a riqueza judaica servisse de instrumento para a sua política. Quanto mais vinha a saber da eficaz organização dos banqueiros judeus em questões de negócios e da sua permuta internacional de notícias e informações, mais se convencia de que se tratava de algo como uma sociedade secreta que, sem que ninguém o soubesse, tinha nas mãos os destinos do mundo.





A crença numa conspiração alimentada por uma sociedade secreta alcançou a maior força propagandística na publicidade anti-semita, ultrapassando em importância as tradicionais superstições a respeito de assassínios rituais e envenenamentos de poços, supostamente cometidos por judeus. É altamente significativo que Disraeli, para fins exactamente opostos e numa época em que ninguém pensava seriamente em sociedades secretas, houvesse chegado a conclusões idênticas, pois mostra claramente quanto essas invenções foram devidas a motivos e ressentimentos sociais e até que ponto explicavam, mais facilmente do que a verdade, as actividades económicas e políticas. Aos olhos de Disraeli, como aos olhos de muitos outros charlatães menos conhecidos e famosos depois dele, todo o jogo político era travado entre sociedades secretas. Não apenas os judeus, mas qualquer outro grupo cuja influência não fosse politicamente organizada, ou que estivesse em oposição ao sistema social e político, eram para ele forças ocultas que agiam nos bastidores. Em 1863, julgou assistir a “uma luta entre as sociedades secretas e os milionários europeus; até agora quem ganhou foi Rothschild”. Mas dizia também que “a igualdade natural dos homens e a supressão da propriedade são proclamadas pelas sociedades secretas”: ainda em 1870 falava com seriedade das forças “subterrâneas” e acreditava sinceramente que “sociedades secretas com as suas ligações internacionais, e a Igreja de Roma usando das suas pretensões e métodos bem como o eterno conflito entre a ciência e a fé”, determinavam o curso da história humana.

A inacreditável ingenuidade de Disraeli fazia-o ligar todas essas forças “secretas” aos judeus. “Os primeiros jesuítas foram judeus; aquela misteriosa diplomacia russa que tanto alarma a Europa ocidental é organizada e principalmente executada por judeus; essa poderosa revolução que se prepara neste instante na Alemanha e que será, de facto, uma segunda e maior Reforma [...] está a ser elaborada inteiramente sob os auspícios dos judeus”, “homens de raça judia estão à frente de cada um dos grupos comunistas e socialistas. O povo de Deus coopera com ateus: os mais hábeis acumuladores de propriedade aliam-se aos comunistas, a raça singular e escolhida dá mãos à escória e às castas inferiores da Europa! E tudo porque desejam destruir esse Cristianismo ingrato que lhes deve até o nome, e cuja tirania não podem suportar”. Na imaginação de Disraeli, o mundo havia-se sub-repticiamente tornado judeu.

Nessa singular fantasia acabou por ser traçado o mais engenhoso dos truques publicitários de Hitler: a aliança secreta entre o judeu capitalista e o judeu socialista. Por mais imaginária que fosse essa ideia, não se pode negar que ela tinha lógica. Ao partir da premissa, como Disraeli, de que milionários judeus eram arquitectos da política judaica; ao levar em conta os insultos que os judeus haviam recebido durante séculos (que, por mais reais que fossem, não deixaram de ser exagerados pela propaganda de apologia dos judeus); ao observar os casos, não muito raros, da ascensão de filhos de milionários judeus à chefia de movimentos dos trabalhadores; ao verificar a forte interligação existente entre famílias judaicas, não parecia tão inviável que fosse rejeitada a imagem oferecida por Disraeli – retomada por vários  anti-semitas no futuro – de calculada vingança dos judeus contra os povos cristãos. Na verdade, os filhos dos milionários judeus inclinavam-se para os movimentos de esquerda precisamente porque – além dos motivos óbvios: conflito de gerações, repulsa e concessões pouco dignificantes dos pais, etc. – lhes faltava aquela consciência de classe (peculiar do filho de um burguês comum), exactamente como, pelas mesmas razões, os trabalhadores não alimentavam aqueles sentimentos anti-semitas, declarados ou não, que sentiam as outras classes. Assim, os movimentos de esquerda passaram a oferecer aos judeus as únicas possibilidades reais de assimilação genuína. A persistente propensão de Disraeli para explicar a política em termos de sociedades secretas baseava-se em experiências que, mais tarde, convenceram muitos outros intelectuais europeus de menor importância. Conforme a sua experiência era muito mais difícil penetrar na sociedade inglesa do que obter um lugar no parlamento. A sociedade inglesa do seu tempo reunia-se em clubes elegantes à margem de diferenças partidárias. Os clubes, embora fossem extremamente importantes na formação do escol político, não eram do domínio público. Para quem estivesse de fora, deviam ter parecido realmente muito misteriosos. Eram secretos no sentido de que poucos tinham acesso a eles. Tornavam-se misteriosos na medida em que membros de outras classes, que pediam admissão, eram recusados após uma pletora de dificuldades incalculáveis, imprevisíveis e aparentemente irracionais. Nenhuma honraria política se podia igualar aos triunfos decorrentes daquela associação íntima com os privilegiados.»

Hannah Arendt («As Origens do Totalitarismo»).


Hannah Arendt e Martinho Heidegger

«Parece-me sugestivo assinalar que aquilo que o internacionalismo é para as pátrias, as nações e os povos, é-o o colectivismo (ou o socialismo) para os homens, as pessoas e os indivíduos. Quando um e outro dominam, é fácil vaticinar a dissolução das pátrias ou, para empregar a baixa retórica dos actuais políticos e seus jornalistas, é fácil vaticinar o abandono progressivo da “identidade nacional” bem como o crepúsculo inevitável da autonomia política. O patriotismo passa então a ser um grosseiro economismo como acontece agora, quando os políticos interrogam se Portugal “é economicamente viável”».

Luís Furtado («Segundo Diálogo sobre a Pátria», in «Escola Formal», quinto número, Dez. 1977/Fev. 1978, p. 11).

 

«O que parece incomodamente claro, desde já, é a força de certos processos, aparentemente incontroláveis, que tendem a destruir todas as esperanças de evolução constitucional nos novos países e a minar as instituições republicanas dos países mais velhos. Os exemplos são numerosos demais para permitirem uma enumeração mesmo sucinta, mas a intromissão do “governo invisível” de serviços secretos nos assuntos domésticos, nos sectores culturais, educacionais e económicos da vida, é um sinal por demais ominoso para passar desapercebido. Não há por que duvidar da declaração de Allan W. Dulles de que o serviço de espionagem dos Estados Unidos vem desfrutando desde 1947 de “uma posição mais influente no nosso governo do que a espionagem desfruta em qualquer outro governo do mundo” [Foi o que disse Allan Dulles num discurso na Universidade de Yale em 1957, segundo David Wise e Thomas B. Ross, The Invisible Government, Nova Iorque, 1964, p. 2.], nem há motivo para acreditar que essa influência tenha diminuído desde que ele fez essa declaração, em 1958. O perigo mortal do “governo invisível” para as instituições do “governo visível” já foi apontado muitas vezes; o que talvez seja menos conhecido é a íntima ligação que tradicionalmente existiu entre a política imperialista e o domínio por meio do “governo invisível” e dos agentes secretos. É um erro pensar que a criação de uma rede de serviços secretos nos Estados Unidos após a II Guerra Mundial tenha sido a resposta a uma ameaça directa à sua sobrevivência nacional pela rede de espionagem da União Soviética; a guerra havia guindado os Estados Unidos à posição de maior potência mundial, e esse poder mundial, e não a existência nacional, é que era desafiado pelo poder revolucionário do comunismo dirigido por Moscovo. [Dizia Allan Dulles que o governo tinha de combater “fogo com fogo” e, com a desconcertante franqueza que distinguia o ex-chefe da CIA dos seus colegas de outros países, passava a explicar o que queria dizer. Pelos vistos, a CIA tinha de seguir o modelo do serviço de segurança do Estado soviético, que “é mais que uma organização de polícia secreta, mais que uma organização de espionagem e contra-espionagem. É um instrumento para a subversão, manipulação e violência, para a intervenção secreta nos assuntos de outros países” (O itálico é da autora). V. Allan W. Dulles, The Craft of Intelligence, Nova Iorque, 1963, p. 155]».

Hannah Arendt («As Origens do Totalitarismo»).








Antissemitismo, socialismo e supranacionalismo


A estrutura política do Estado-nação foi instituída quando nenhum grupo em particular estava em posição de exercer o poder político exclusivo, de modo que o governo assumia o verdadeiro domínio político, que nem sempre dependia de factores apenas sociais e económicos. Os movimentos revolucionários de esquerda, que lutavam por uma mudança radical das condições sociais, de início jamais visavam directamente a essa suprema autoridade política. Haviam desafiado o poder da burguesia e a sua influência sobre o Estado, mas, ao mesmo tempo, dispunham-se sempre a aceitar a orientação do governo em assuntos estrangeiros, onde estavam em jogo os interesses de uma nação supostamente unificada. Em contraste com essa atitude, os grupos anti-semitas preocupam-se, também desde o início, com assuntos estrangeiros; o seu ímpeto revolucionário era dirigido contra o governo em geral e não contra uma classe social e o que realmente almejavam era destruir o padrão político do Estado-nação por meio de uma organização partidária.

O facto de um partido pretender colocar-se acima de todos os partidos tinha outras implicações, mais significativas do que o anti-semitismo. Se a questão consistisse apenas em desfazer-se dos judeus, a proposta feita por Fritsch num dos primeiros congressos anti-semitas – de não criar um novo partido, mas disseminar o anti-semitismo até que finalmente todos os partidos existentes fossem hostis aos judeus – teria chegado ao resultado almejado muito mais rapidamente [1]. Acontece que a proposta de Fritsch não encontrou eco, porque o anti-semitismo já se transformara, na época, num instrumento para a liquidação não apenas dos judeus, mas também da estrutura política do Estado-nação.

Não foi por acaso que este alvo dos partidos anti-semitas coincidiu com os primeiros estádios do imperialismo e encontrou tendências parecidas tanto na Grã-Bretanha, embora não contagiadas pelo anti-semitismo como nos movimentos vivamente anti-semitas que pretendiam unificar o continente. Na Alemanha, essas tendências não incorporaram o anti-semitismo para se reforçar popularmente, mas originaram-se directamente nele e os partidos anti-semitas precederam (e sobreviveram) à formação de grupos puramente imperialistas, como a Liga Pangermânica, todos proclamando transcenderem os agrupamentos partidários.

Os movimentos análogos que, porém, se afastavam da demagogia dos partidos anti-semitas com o fito de, por apresentarem mais seriedade, alcançaram maiores oportunidades de vitória, foram aniquilados ou submersos pelo movimento anti-semita, o que bem indica a importância política da questão. Os anti-semitas estavam convencidos de que a sua pretensão de tomar o poder absoluto não era outra coisa senão aquilo que os judeus já haviam conseguido e que o seu anti-semitismo era justificado pela necessidade de eliminar os reais ocupantes dos postos de mando: os judeus. Assim, era necessário ingressar na área da luta contra os judeus exactamente como os trabalhadores lutavam contra a burguesia, e, atacando os judeus, que apresentavam – de acordo com a ideia geral – como detentores do poder por detrás dos governos, agrediam abertamente o próprio Estado, catalisando assim todos os descontentes e frustrados.




A segunda característica altamente significativa dos novos partidos anti-semitas está na organização supranacional de todos os grupos europeus ligados à mesma corrente, em flagrante contraste com as palavras de ordem nacionalista. A sua preocupação supranacional indicava claramente que não visavam apenas a conquista do poder político da nação, mas também almejavam – e já haviam planeado – um governo intereuropeu, «acima de todas as nações» [2]. Este segundo elemento revolucionário que significava o rompimento fundamental com o status quo, tem sido frequentemente esquecido, porque os próprios anti-semitas usavam, apesar da sua característica revolucionária, a linguagem dos partidos reaccionários, em parte devido a hábitos tradicionais, em parte por que mentiam conscientemente.

Uma íntima relação liga as condições peculiares da existência judaica e a ideologia de grupos anti-semitas. Os judeus constituíam o único elemento intereuropeu numa Europa organizada numa base nacional. Era lógico que os seus inimigos se organizassem de acordo com o mesmo princípio e, na sua luta contra o grupo que supera as nações, criassem um partido que supera os partidos, já que pretendiam eliminar esses pretensos manipuladores do destino político de todas as nações, apoderando-se dos seus segredos e das suas armas.

O sucesso do anti-semitismo supranacional dependia ainda de outras considerações. Mesmo no fim do século XIX, e especialmente desde a Guerra Franco-Prussiana em 1870, um número crescente de pessoas considerava antiquada a organização nacional da Europa, pois ela já não podia enfrentar a convicção de que interesses idênticos envolviam toda a Europa. Este sentimento fornecia forte argumento a favor da organização internacional do socialismo. Mas enquanto as organizações socialistas internacionais permaneciam passivas e desinteressadas no sector da política externa (isto é, precisamente nas questões em que o seu internacionalismo poderia ter sido posto à prova), os anti-semitas começavam pelos problemas de política externa e chegavam a prometer a solução de problemas internos numa base supranacional. Se estudarmos as ideologias, não pela aparência, mas analisando profundamente os verdadeiros programas dos respectivos partidos, verificaremos que os socialistas, muito mais interessados pelos assuntos internos, enquadravam-se melhor na estrutura do Estado-nação do que os anti-semitas.

Isto não significa, naturalmente, que as convicções internacionalistas dos socialistas não fossem sinceras. Ao contrário, eram mais fortes e até anteriores aos interesses supranacionais de classes, que ultrapassaram as fronteiras de Estados nacionais. Mas a consciência da importância transcendente da luta de classes dentro de cada Estado, levou-os a desprezar a herança que a Revolução Francesa havia legado aos partidos operários e que, se realizada, poderia tê-los guiado à teoria política articulada no sentido internacionalista. Os socialistas mantiveram implicitamente intacta a validade do conceito «nação entre nações», todas pertencentes à família da Humanidade; mas não foram capazes de transformar esta ideia em facto aceite pelo mundo dos Estados soberanos. Por conseguinte, o seu internacionalismo permaneceu na convicção pessoal, compartilhada por todos e o seu saudável interesse pela soberania nacional tornou-se uma insalubre e irrealista indiferença pela política externa. Aliás, os partidos de esquerda não tinham, em princípio, objecções a Estados-nações, mas tão só ao aspecto hegemónico das soberanias nacionais, a ponto de preconizarem como solução política a formação de estruturas federalistas, com eventual integração de todas as nações em termos iguais, o que pressupunha, de certa forma, liberdade e independência nacional de todos os povos oprimidos. Por isso, os partidos socialistas podiam operar, dentro dos limites do Estado-nação, pensando emergir, quando decaíssem as estruturas sociais e políticas do Estado, como o único partido hostil a fantasias expansionistas e que não sonhava com a destruição de outros povos.


O supranacionalismo dos anti-semitas abordava a questão da organização internacional do ponto de vista exactamente oposto. O seu objectivo era uma superestrutura estatal que destruísse as estruturas nacionais. O seu ultranacionalismo, que preparava a destruição do corpo político da sua própria nação, baseava-se no nacionalismo tribal, com um desmedido desejo de conquista, que constituiria uma das forças principais com que se poderiam aniquilar as fronteiras do Estado-nação e da sua soberania. Quanto mais eficiente se tornavam os meios de propaganda chauvinista, mais fácil era persuadir a opinião pública da necessidade de uma estrutura supranacional que – partindo da hegemonia do próprio grupo nacional – reinasse de cima e sem distinções nacionais através de um monopólio universal da força e dos instrumentos de violência.

Restam poucas dúvidas de que a condição especial do povo judeu – o facto de serem intereuropeus – poderia ter servido aos fins do federalismo socialista pelo menos tão bem quanto iria servir às sinistras conspirações dos supranacionalistas. Mas os socialistas mostravam-se tão preocupados com a luta de classes e tão despreocupados das consequências políticas dos conceitos que haviam herdado, que somente perceberam a existência dos judeus como factor político quando deram de frente com um sério concorrente no plano interno: o anti-semitismo desenfreado. Nessa ocorrência, estavam não só mal preparados para integrar a questão judaica nas suas teorias, mas também receosos de tocar no assunto. Neste ponto, como em outras questões internacionais, deixaram a iniciativa aos supranacionalistas que, na época, se faziam passar pelos únicos que conheciam as soluções dos problemas mundiais.

No dobrar do século XIX, os logros da década de 79 desvaneceram-se e uma era de prosperidade e de bem-estar, especialmente na Alemanha, acabou com a prematura agitação da década de 80. Ninguém poderia prever que esse período representava apenas uma trégua temporária e que todas as questões políticas não resolvidas, juntamente com todos os ódios não aplacados, redobrariam em força e violência após a I Guerra Mundial. Os partidos anti-semitas na Alemanha, depois de um sucesso inicial, reduziram-se à sua insignificância e os seus dirigentes, após breve agitação da opinião pública, saíram pela porta traseira da história.

(In Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo, Publicações Dom Quixote, 8.ª edição, 2018, pp. 48-52).



[1] Essa proposta foi feita em 1886 em Cassel, onde foi fundada a Deutsch Anti-semitische Vereinigung [Associação Alemã Anti-Semita].

[2] O primeiro congresso internacional antijudaico realizou-se em 1882 em Dresden, com cerca de 3000 delegados da Alemanha, Austro-Hungria e Rússia; durante as discussões, Stoecker foi derrotado pelos elementos radicais, que se reuniram um ano mais tarde em Chemnitz (actual Karl-Marx-Stadt, na Alemanha Oriental), e fundaram a Alliance Antijuive Universelle. Um bom relato dessas reuniões e congressos, seus programas e discussões, pode ser encontrado em Wawrzinek, op. cit.