Escrito por Pinharanda Gomes
«O
pensamento medieval foi fortemente aristotelizado, muito antes de se realizar a
oposição entre Platão e Aristóteles, ou entre agostinianos e dominicanos.
Durante muitos anos os estudos teológicos foram confiados a estas duas ordens
religiosas, visto que só em 1400, no reinado de D. João I, há notícia de ter sido
estabelecida a cadeira de Teologia na Universidade de Coimbra.
É
de admitir, portanto, que a preparação arábica do aristotelismo português
explique a facilidade com que, depois da Reforma e da Contra-Reforma, fosse
adoptada a síntese albertino-tomista no ensinamento da Companhia de Jesus. As
teses fundamentais desta doutrina, como a de o conhecimento humano ser fundado
sobre a experiência sensível, as provas da existência de Deus extraídas da
contemplação do mundo exterior, a indemonstrabilidade da criação do mundo no
tempo, e a impossibilidade da prova ontológica, parecem conciliar-se com as
tendências de um povo, cuja fé assentava no preceito de ver para crer, como S.
Tomé.
Está,
aliás, explicada também a natural, ou nacional, animadversão pelo protestantismo,
nas tendências próprias da religiosidade portuguesa, a qual tem por
características, entre outras, o culto de Santa Maria, sempre figurada em
companhia de Jesus, menino, adolescente, ou adulto, e assim a iconografia nos
aparece como modo de ver, para um modo de crer num cristianismo evolutivo, de
criança e de criação, que progride para o advento do Espírito Santo, enfim, de
uma razão que ainda está em progresso para a fé.»
Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).
«Este
arabismo [falsafa] não obteve na
língua portuguesa os direitos de fixação do hebraísmo cabala. Todavia, assim como o nome cabala exprime em síntese toda a sapiência hebraica, já esotérica, já
hagádica (embora, por cabalismo, se
prefira entender o esoterismo nas formas que assumiu a Ocidente a partir do
século XIII) o nome falsafa sintetiza
a sapiência islâmica, embora, na origem literal, falsafa seja a arabização do helenismo filosofia, tal como faylasuf
arabiza o substantivo grego filósofo.
Em todo o caso, falsafa, em acepção
ampliada, inclui tanto a filosofia propriamente dita, ao modo helénico, como os
árabes a receberam através dos sírios nos tempos da ascensão do povo do Profeta,
como a filosofia relativa à mensagem alcorânica (com todas as variadas
disciplinas) que se designa pelo substantivo Kalam, a teologia escolástica, e isso em virtude da aliança que a
escolástica islâmica antepõe e pospõe a toda a filosofia, que será inútil para o
projecto universal da nação profética, caso interrompa essa aliança com a
teologia. Kalam é a coroa da falsafa,
o ovo de oiro faylasuf. A tradição
trilateral portuguesa inclui a herança espiritual dos três povos do livro, ahl al-kitab (judeus, cristãos,
muçulmanos) e a sabedoria islâmica, embora se considere detentora do único livro
verdadeiro, escrito no céu e entregue já escrito por cálamo ao profeta, não deixa de contemplar as fundamentais relações
da própria sunna, com as outras duas
tradições. Se é exacto que a filosofia cristã se desenvolve em vista da teologia,
se é exacto que o último fim da sapiência hebraica reside na ascensão ao
Inefável, é por igual exacto que o coração da filosofia islâmica bate ao ritmo
da iluminação de Allah, que, Deus, é Ahad, uno, único, solitário. O elemento
de analogia entre as três tradições consiste num axioma fundamental, num
paradigma desocultado e professado – nem todo o saber do homem se adquire por
razão, algum saber do homem é dom revelado. A plenitude do saber, sapiência ou
gnosofia, ma’rifa, identifica-se com
o último fim das três tradições, que, no mais, seguiram cada uma seus caminhos,
ou métodos de hermenêutica espiritual. A filosofia portuguesa resulta incompreensível
quando se omite a presença interactiva da philosophia,
da kabbalah e da falsafa, mesmo quando se considere que a tradição dominante, por
ignorância atempada das línguas, vivesse perante a sinagoga e a mesquita em
filosófica separação. Esta separação tem menor efeito quando o estudo dos
documentos positivos nos deixa vislumbrar as múltiplas formas de diálogo na
transacção das ideias e na transferência de acervos científicos árabes para a
assunção histórica da pátria. Tem somenos importância o facto de os núcleos
culturais muçulmanos se situarem no levante hispânico, com excepção de Évora,
de Silves e de Lisboa. Portugal e Espanha não tiveram, durante séculos,
relevância para os povos que conheciam a «cabeça ali de Europa toda» (Os Lusíadas, III) como a Sefarad, e como o Al-Andaluz, cuja última ponta é o ocidente dos ocidentes, o
Algarve. Andaluz é o lugar geográfico
do Islão ocidental, e o movimento das taifas,
ou repúblicas, esteve longe de criar cisão nos fundamentos do saber islâmico.»
Pinharanda Gomes («Dicionário de Filosofia Portuguesa»).
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Castelo de Silves |
«Enquanto
outros povos menos fiéis a Roma, viviam já o pensamento moderno, o povo
português permanecia nos quadros do pensamento medieval. Se é difícil, mas
possível, estabelecer a distinção rigorosa entre a teologia e a filosofia, já
não é lícito separar radicalmente entre a fé e a razão. Todos os homens da
Idade Média eram religiosos: uns fortaleceram a sua alma com a sua fé judaica,
cristã ou islâmica; outros viviam numa religiosidade que poderemos dizer
panteísta, politeísta ou pagã; outros mantinham-se fiéis a práticas e doutrinas
que hoje consideramos supersticiosas; raro seria o homem que não pensasse a sua
relação com o mundo natural e sobrenatural, porque a atitude ateísta só surge
na Idade Moderna, precedendo e preparando a atitude antiteísta, que é o flagelo
da Idade Contemporânea.
Tardiamente se afirmou entre nós a nítida separação entre a razão e a fé, na transição do ensino franciscano para a adopção da síntese albertino-tomista. Os próprios dominicanos estão longe de admitir um racionalismo tal como se formulou na Companhia de Jesus. O racionalismo medieval, ensinado nas universidades europeias pelos compêndios dos escolásticos portugueses, aperfeiçoa-se no racionalismo moderno, principalmente depois da difusão da obra de Descartes.
Interpretamos
toda a filosofia moderna como a demonstração de que o racionalismo medieval é
insuficiente para elaborar um sistema filosófico. Kant, que estudou o ideal de
razão pura nas obras dos Conimbricenses, completou essa demonstração. A não ser
que se renuncie a filosofar, conforme propõe e impõe o positivismo, há que
admitir verdades enunciadas em proposições de origem tradicional, revelada e
sobrenatural, porque só elas tornam inteligível tudo o mais, só elas pacificam
a ansiedade humana.
A
reacção contra o racionalismo da Companhia de Jesus começou nos actos que
tornaram possível a infiltração do iluminismo na cultura portuguesa, por essas
associações secretas nomeadas academias ou arcádias, obra começada no reinado
de D. João V e facilitada pela reforma pombalina da Universidade de Coimbra.
São
de notar as três fases desta decadência. A expulsão da Companhia de Jesus foi
seguida da eliminação de Aristóteles, a eliminação de Aristóteles teve como
consequência a refutação da filosofia, e o ensino superior deixou de ser
universitário.
Do
ponto de vista português, a Escolástica está mais referida a Aristóteles do que
a S. Tomás de Aquino. A má interpretação da encíclica Aeterni Patris alterou esta perspectiva histórica, permitindo
substituir a filosofia helénica pelo positivismo francês, ou belga.»
Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).
«Assim
como a Razão é o instrumento criador da Filosofia, a Revelação e consequente Fé
são o suposto inicial da Teologia. S. Tomás não admite um dualismo de oposição
entre a razão e a fé, nem tão-pouco redução de uma a outra.
Cada uma delas actua legítima e autonomamente em sua esfera própria e com seus
próprios métodos: o da evidência humana para a razão, o da autoridade divina
para a fé. Deve acrescentar-se que esta autoridade supõe, para aceitar-se racionalmente,
a prévia visão da sua credibilidade. Fora deste ponto de vista formal, resta
determinar à razão e à fé os diversos tipos de verdades a cada uma reservados:
o das verdades naturais à razão, e o das sobrenaturais ou absolutamente
misteriosas à fé. Mas isto não quer dizer que a Revelação e, portanto, a Fé não
tratem de verdades naturais e de si acessíveis à razão. Isso não é só possível,
mas tem sido historicamente conveniente e até moralmente necessário para
libertar o género humano na sua totalidade do cúmulo de aberrações a que havia
chegado pelo uso desenfreado da razão e facilitar sobretudo aos incapazes e
incultos ou absorvidos pelas preocupações materiais o acesso pronto, fácil e
seguro às realidades espirituais em que se estriba o verdadeiro destino da Humanidade.
Ao receber este serviço da Revelação, não deixa a Razão de, em certo sentido, o
retribuir, clarificando e precisando o seu conteúdo, mostrando a sua
credibilidade, resolvendo as suas dificuldades e persuadindo da sua verdade com
argumentos de congruência, já que não podem ser de rigorosa demonstração.»
João Zaragüeta («S. Tomás de Aquino»).
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Santa Sé |
«A
distinção escolástica entre a Bíblia
e a Física, entre a revelação e a
cosmologia, veda aos teólogos abusiva intromissão no campo científico dos
estudos sobre a Natureza. Acto decisivo para a realização de uma obra que
muitos julgam de racionalização, mas que foi essencialmente de defesa da fé, a
introdução da obra de Aristóteles no sistema escolástico deve ser justamente
interpretada por quantos admiram o génio de Santo Alberto Magno. A Física de Aristóteles caracteriza-se
pela sua límpida doutrina do movimento, pela sua útil doutrina da acção e da
paixão, pela sua admirável doutrina da produção, numa sistematização científica
de todos os fenómenos visíveis que se completa pela relação dos lugares
naturais com o lugar comum. Sucessivamente comentada pelos escolásticos e
aproveitada pelos modernos, a Física
de Aristóteles resistiu gloriosamente até à época em que os conceitos
cosmológicos foram substituídos pelos conceitos tecnológicos, por mais próximos
da experiência humana. O descrédito da física aristotélica não favoreceu
contudo os pensadores que operam na legítima intenção de destrinçar na Bíblia o que é de razão e o que é de fé.
A exegese bíblica tem sofrido embates de diversa ordem, e com tristeza
verificamos ainda hoje que os teólogos autorizados se mostram pressurosos de
realizar obra perfeita, apesar dos expressos incitamentos das encíclicas Providentissimus Deus e Divino Afflante Spiritu.
A
formação medieval do racionalismo moderno nem sempre aparece claramente
descrita pelos historiadores da filosofia. Ela está, porém, patente na obra de
Étienne Gilson, que considera a libertação da razão humana e a consequente
laicização da sociedade concluídas no século XIII. No dizer do ilustre
escritor, seria S. Tomás de Aquino o primeiro dos filósofos modernos e Renato
Descartes o último dos filósofos escolásticos. Esta afirmação, que a uns
parecerá paradoxal e a outros surpreendente, merece ser meditada por quantos
julgam que a história do pensamento europeu deve ser estudada a partir da
história da filosofia grega. Depois da expulsão da Companhia de Jesus, um tipo
de escolástica não-aristotélica foi precariamente esboçado pelas ordens
religiosas de tradição medievalista ou moderna. Com o advento do liberalismo
tudo se modificou, a ponto de a Escolástica ser considerada anacrónica
sobrevivência de tenebrosa história política e eclesiástica.
(...)
Verificando, porém, que na ordem apostólica é indispensável conciliar a verdade
una com a expressão múltipla para que a doutrina flexível se adapte às
circunstâncias e às oportunidades, visto que também na ordem do Mundo não
deixam de ser o espaço e o tempo, factores de afastamento, diferenciação e
diversidade, foi pelo Magistério Eclesiástico sendo consentida melhor
interpretação da filosofia escolástica. Exigir a obediência de uma fidelidade
literal aos escritos de S. Tomás seria exigência contraditória, porque o
próprio Doutor Angélico nunca foi homem de um só livro (unius libri), antes procurava com erudição em vários autores,
comentadores, compiladores e escritores a solução preferida de cada problema
determinado, não deixando de invocar também a divina assistência do Espírito
Santo. Admitiu o Magistério Eclesiástico que normalmente se eliminasse o que na
obra de S. Tomás existe de doutrina contrária à que tenha sido definida pela
Igreja na posteridade dos séculos, mas além disso aconselhou a incorporação na
filosofia escolástica de todos os resultados de que a cultura vem beneficiando
desde o século XIII ao nosso tempo.
Consequentemente,
aquelas ordens religiosas que, durante séculos, seguiram tendências teológicas
e filosóficas que divergiam do método, da doutrina e dos princípios de S. Tomás
se viram obrigadas a solicitar do Magistério Eclesiástico uma margem de
liberdade indispensável à sua específica missão apologética e apostólica.
É
notável, neste caso, o exemplo da Ordem dos Frades Menores não só porque
durante muitos séculos preferiu o ensinamento de S. Boaventura ao de S. Tomás de Aquino, mas também porque foi dentro dela que surgiu a obra de Duns Escoto,
o qual remodelou profundamente a filosofia escolástica. As constituições gerais
da Ordem dos Frades Menores prescreviam, com maior ou menor força, a obrigação
de seguir no ensino filosófico e teológico a doutrina do Doutor Subtil. Estes
documentos eram submetidos à aprovação do Papa, sendo de notar o breve Ad Eximius de 31 de Outubro de 1634,
pelo qual Urbano VIII aprovou até ordenações mais rigorosas do Capítulo de
Toledo.
Formaram-se
também dentro da escolástica albertino-tomista escolas que se designam ou
tendem a designar-se pelos respectivos centros universitários; entre nós
tornaram-se célebres os conimbricenses, os eborenses e os bracarenses. Na
escolástica do século vinte também se distinguem os centros de Lovaina, de
Milão e de Genebra, ao lado de outros menos importantes como o Instituto
Católico de Paris. A aceitação do tomismo há-de ser imediatamente seguida de
pensamento que o interprete, mas de muitas interpretações surgem
necessariamente as divergências e as deturpações.»
Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).
"O averroísmo é um fenómeno do aristotelismo, um aspecto parcelar das Escolásticas, necessariamente matriciado a uma leitura da doutrina aristotélica"
Apesar
do significado e do valor de Averróis, o ideário averroísta não se torna
compreensível sem uma referência de fundo: o averroísmo é um fenómeno do
aristotelismo, um aspecto parcelar das Escolásticas, necessariamente matriciado
a uma leitura da doutrina aristotélica. Aliás, Averróis é cognominado o Comentador (de Aristóteles). Esse
cognome, que o distingue e singulariza é, ao mesmo tempo, o elo que o vincula a
uma determinante dependência da herança aristotélica. Averróis (1126-1198)
elogiado por Dante (Divina Comédia,
IV, 144) por ter sido um notável comentador de Aristóteles, não fundou para si
mesmo um averroísmo; este é algo que o discipulato e o epigonismo extraem do
seu ensino, por isso que o averroísmo é posterior a Averróis.
(...)
O início do averroísmo latino pode situar-se em 1250 (tese de Mandonnet) como
antes (tese de Renan), mas o curto prazo que medeia entre a data proposta por
Renan e a data sugerida por Mandonnet não afecta a realidade de um processo que
tem uma clara origem peninsular, e que é sensível, embora lento, a partir da
morte de Averróis. O clima escolástico favorecia a entrada de novas correntes e
Alberto Magno, por exemplo, olhava com muita simpatia a filosofia arábica, da
qual, nem todos os documentos recebidos eram genuínos, sabendo-se que alguns apócrifos averroizantes foram aceites como se de Averróis fossem.
Tomás de Aquino inicia-se na filosofia arábica que aprofunda, trazendo para a
filosofia cristã o caudal da ciência islâmica, por isso que, na opinião de
Asín Palácios, Tomás de Aquino converteu a falsafa
árabe à escolástica latina, sendo vários os pontos de convergência dos
pensamentos do Aquinate e do Comentador.
Ora, no justo momento em que a Escolástica europeia atingia o acme, mediante o
aristotelismo tomista, que integrara algo de Averróis, mas o sujeitara a uma
catárse, Sigério de Brabante (fal. 1282) postula o estudo de Aristóteles
integral, sem nenhuma censura e sem nenhuma catarse conversória, para o que, a
seu ver, era necessário dar a primazia ao estudo dos comentaristas arábicos,
sobretudo de Averróis; por isso, este movimento de escola designa-se por
averroísmo latino, cujo radicalismo sofre a crítica de Alberto Magno, no
tratado De Unitate Intellectus
(1256). Sigério não desanimou, prosseguiu, tornou o seu magistério influente,
move contra ele a vontade dos opositores, gera uma profunda controvérsia que
oficialmente se arrastou até 1277, com maior incidência polémica a partir de
1270, ano em que Tomás de Aquino publicou uma refutação do tratado sobre a
unidade do intelecto de Sigério, cujas teses abundam na sua pessoal leitura do
texto de Averróis: o intelecto humano é numericamente uno e idêntico; o mundo é
eterno; a alma, forma humana enquanto forma, corrompe-se com o corpo; o livre
arbítrio é uma faculdade passiva; a vontade elege por necessidade. A questão do
entendimento agente agravou-se, apesar de andar agravada desde que os
pós-aristotélicos se confrontaram com obscuro passo de Aristóteles (De Anima, 3, pág. 20) que Averróis
interpretou como teoria da unidade do intelecto. As controvérsias na Faculdade
de Artes de Paris obrigaram o bispo Estevão Tempier a condenar asperamente os
averroístas, que se retiraram da Faculdade. Sigério de Brabante, Boécio de
Dácia e Berneo de Nivelles viram-se sujeitos a complexo jogo de influências,
que não à pura discussão filosófica. Por fim, o Papa João XXI ( = Pedro
Hispano, que recebeu influência de Averróis) lançou a proibição do ensino das
teses sigeristas e, portanto, do averroísmo latino, pela bula Flumen Aquae Vivae, dirigida ao bispo
Tempier, com a data de 28 de Abril de 1277. O juízo do Aquinate, de que Sigério
corrompia a filosofia de Aristóteles venceu, e o caminho abria-se à
universalização do aristotelismo segundo a mente tomista, sem que tal impedisse
João Duns Escoto (fal. 1308) de recriar o que se designa por «aristotelismo
escotista», isto é, o Aristóteles interpretado por Escoto segundo o cânone da espiritualidade
franscicana, aberta à consideração sobrenatural da natureza e à visão
aristotélico-platonizante. Em todo o caso, João Duns Escoto, para resguardar
Aristóteles, teve de atribuir a Averróis as opiniões que, por ortodoxamente
inaceitáveis, levaram alguns a condenar Aristóteles. Segundo Escoto, as opiniões
inaceitáveis derivam do Comentador, o
maledicus Averroes. Os Carmelitas
Observantes (na época ainda não havia outros, pois os Descalços surgem no
século XVI) procuravam, desde 1250, suscitar nas fileiras um doutor para as
suas escolas. Veio ele na pessoa de João Baconthorpe, inglês (fal. 1348) que
mereceu o título de «Princeps Averroistarum». O título não lhe foi muito
benéfico, pois lhe criou condições negativas para se implantar nas escolas carmelitas
que, alfim, também optaram pelo aristotelismo tomista.
Contemporâneo
de Sigério de Brabante, Pedro Hispano (fal. 1277) não é um averroísta por
filiação doutrinal, mas a sua obra reflecte, para as escolas europeias, onde os
seus escritos se liam, um largo aproveitamento das ciências naturais, das
ciências psicológicas e da epistemologia de Averróis. Nos tratados zoológicos,
e no De Anima, Averróis surge como
ponto de referência várias vezes repetido, o que induziu Manuel Alonso a
considerar Pedro Hispano um averroísta. Se assim fosse, Pedro Hispano teria
condenado os seus próprios correligionários parisienses, e o enigma da morte do
Papa João XXI, na casa de Viterbo, tão sobre os acontecimentos de 1277,
continuaria por esclarecer; em todo o caso, o averroísmo de Pedro Hispano
apresenta conotações neoplatonizantes e uma envergadura avicenizante (conforme
se acha demonstrado nos estudos de João Ferreira, O. F. M.) que o desligam de
ideologia averroísta, tal como esta se apresentou na versão latina. Pedro
Hispano situa-se melhor no quadro dos opositores ao radicalismo averroísta
latino, a par de S. Boaventura (fal. 1274) e do mais tardio Raimundo Lullo
(fal. 1316), cuja doutrina de transcensão do averroísmo e de afirmação de
espiritualidade platónico-aristotélica tão fundas incidências viria a ter no
pensamento medieval, mormente durante o século XV.
(...)
O aristotelismo exaustivo, ordenado a uma teologia tomista, que é predicado
modal dos Conimbricenses, rejeita as teses do averroísmo latino, mas não deixa
de considerar as aportações de Averróis trazidas ao esclarecimento da lógica,
da dialéctica e da cosmologia. O aristotelismo conimbricense, sem professar o
antiaverroísmo, não é averroísta, diversamente do que sucede no pensamento de
Luís de Camões, que se apresenta ostensivamente anti-islâmico e antiaverroísta:
«Não do confuso caos, como cuidou/ a falsa teologia e o povo escuro/ que nesta
só verdade tanto errou» (Camões, Elegia V).
A recusa da teoria eternomundista é, aqui, por demais evidente, e a emissão
afirmativo-judicativa a que Camões procede dispensa toda a espécie de
aditamento.
O
cepticismo metódico de Francisco Sanches é devedor ao averroísmo, mas a
oposição Cristandade/Islamidade tende a tornar Averróis obsoleto. O século XVI
elevou Averróis na elevação de Aristóteles (e poderia ter elevado Maimónides,
cujo pensamento se aproxima muito mais dos fins que a Escolástica latina se
propunha) mas daí em diante a vertigem da queda acelera. O antiaristotelismo
envolve os averroístas e, a partir de Luís António Verney, aristotélicos e
averroístas são por igual tidos, havidos e julgados, porque a destruição de Aristóteles
importa a destruição dos aristotélicos, e, pois, do quadro autoral a que os
Conimbricenses, Pedro da Fonseca incluído, recorriam. A progressão antiaristotélica
e antiaverroísta, logo desenhada em Verney, amplia-se no magistério de Manuel
de Azevedo Fortes, cartesiano, e de Fr. Manuel do Cenáculo, que retoma o
antiaverroísmo e o lulismo franciscanos medievais. O movimento vem a fechar-se
nas teorias de José Seabra da Silva que, no manifesto Dedução Cronológica e Analítica (1767) introduz a reforma
universitária e, pois, o combate aos «procuradores de Mafamede», os jesuístas,
considerados preceptores do averroísmo latino. A postergação de Aristóteles
implicou a postergação de Averróis, cuja influência se desvanece nos fins do
século XVIII, embora possamos identificar reflexos da sua filosofia no
racionalismo do século XIX e nos materialistas do século XX (Raul Proença,
Lapas de Gusmão...) mas sem a presença de uma adesão hermenêutica e erística,
adequada à exigência epistemológica.
Atrasados,
mais uma vez, relativamente ao movimento escolástico, os Carmelitas
Observantes, que tentavam salvar Aristóteles da tempestade pombalina, também se
envolveram na restauração do averroísmo de João Baconthorpe. O padre Manuel
Inácio Coutinho ainda edita o Compendium
Philosophico-Theologicum (1734) segundo a mente do «Doutor Resoluto» João
Bacon, e Miguel de Azevedo também tenta um Opusculum
Philosophicum Bakonicum (1765) o qual serviu de guia às lições no Colégio
da Conceição de Coimbra, mas sem notório resultado. Para o século XVIII todo o
aristotelismo e todo o averroísmo eram filosofia do tempo passado. Não se
entendera que a filosofia é o que nunca envelhece, porque a todo o instante se
retoma, como ponto de partida.
(Pinharanda Gomes, «Averroísmo», in Dicionário de Filosofia Portuguesa, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, pp. 43-44 e 46-47).
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