segunda-feira, 18 de agosto de 2025

O mais importante manancial da cultura grega – aristotélica e neoplatónica – na Europa medieva dos séculos XII e XIII

Escrito por João Zaragüeta


Averróis

«Embora iniciada na Síria, a cultura do mundo muçulmano floresceu principalmente nas extremidades leste e oeste, Pérsia e Espanha. Os sírios ao tempo da conquista eram admiradores de Aristóteles, e os nestorianos preferiam Platão, filósofo favorito dos católicos. Os árabes receberam dos sírios o conhecimento da filosofia grega, e assim, desde o começo, consideraram Aristóteles mais importante do que Platão. No entanto o seu Aristóteles vestia-se de neoplatónico. Kindi (m. 873 ap.) foi o primeiro que escreveu filosofia em árabe e o único que era árabe; traduziu parte das Enneades de Plotino e publicou-a com o título de Teologia de Aristóteles. Daí grande confusão nas ideias arábicas sobre Aristóteles, que levaram séculos a corrigir.

(...) Os nestorianos, de quem o mundo muçulmano recebeu as primeiras influências gregas, não eram de modo algum puramente gregos na sua aparência. A sua escola de Edessa fora encerrada pelo imperador Zenão, em 481; os homens cultos emigraram para a Pérsia, onde continuaram a sua obra, não sem sofrerem influência persa. Os nestorianos avaliaram Aristóteles só pela sua lógica; e por ela também os filósofos árabes julgaram o princípio pela sua importância. Mais tarde estudaram também a Metafísica e o De Anima.

(...) Averróis foi tido como melhorador da interpretação árabe de Aristóteles, que fora indevidamente influenciada pelo neoplatonismo. Muito mais do que Avicena, deu a Aristóteles a espécie de reverência devida a um fundador de religião. Afirmou que a existência de Deus podia provar-se pela razão, independentemente da revelação, que é a ideia de S. Tomás de Aquino. Quanto à imortalidade, parece aderir a Aristóteles, mantendo que não a alma, mas só o intelecto (nous) é imortal, o que não assegura a imortalidade pessoal. Naturalmente os filósofos cristãos combateram esta ideia.»

Beltrão Russell («História da Filosofia Ocidental»).

 

«O perigo verdadeiro, imediato à vitória que [Tomás de Aquino] alcançara em favor de Aristóteles, apresentou-se com toda a vivacidade no caso curioso de Siger de Brabante, que vale a pena ser estudado por quem quiser começar a compreender a história estranha da Cristandade. Caracteriza-se por aquele fenómeno um tanto estranho, que tem sempre acompanhado a fé, apesar de não ser notado pelos seus modernos inimigos, e raramente mesmo pelos seus modernos amigos. É o facto simbolizado na figura do Anti-Cristo, espécie de Cristo duplicado, ou no profundo provérbio de que o demónio é o macaco imitador de Deus. É o facto de que a falsidade nunca é tão falsa como quando está próxima da verdade. Quando o golpe chega mais perto do nervo da verdade é que a consciência cristã grita de dor.


São Tomás triunfando sobre Averróis


(...) Siger de Brabante disse isto: teologicamente a Igreja tem certamente razão, mas pode não a ter cientificamente. Há duas verdades: a do mundo sobrenatural e a do mundo natural, que contradiz o primeiro. Quando falamos como naturalistas, podemos supor que o Cristianismo é asneira, mas depois, quando nos lembramos de que somos cristãos, temos de admitir que o Cristianismo é verdadeiro, mesmo que pareça loucura. Por outras palavras, Siger de Brabante rachou a cabeça humana em duas, como o golpe de que nos fala a velha lenda guerreira, e declarou que o homem tem dois entendimentos, com um dos quais deve crer totalmente, e com o outro pode totalmente descrer. Para muitos isto pareceria, pelo menos, uma paródia ao tomismo. De facto, era o assassínio do tomismo. Não eram dois modos de alcançar a mesma verdade; era um modo erróneo de pretender que há duas verdades. E torna-se muitíssimo interessante notar que foi esta a ocasião única em que o boi mudo saltou realmente como um touro bravo. Quando se ergueu para responder a Siger de Brabante, estava transfigurado por completo, e o próprio estilo das suas frases, que é como o tom da voz de um homem, alterou-se subitamente. Nunca se zangara com nenhum dos seus inimigos que discordavam dele; mas estes tinham tentado a pior das traições: tinham-no levado a concordar com eles.

Os que se queixam de os teólogos estabelecerem distinções subtis, com dificuldade poderiam encontrar melhor exemplo da sua própria sem razão. De facto, entre dois cambiantes subtis pode haver contradição pura e simples. E assim era neste caso. S. Tomás queria que a única verdade fosse atingida por dois caminhos, precisamente porque tinha a certeza de haver uma só verdade. Porque a fé era a única verdade, nada realmente dela deduzido podia vir a contradizer os factos.»

G. K. Chesterton («S. Tomás de Aquino»).

 

«Vindos da África do Norte, os Árabes invadiram a Península em 711, com um exército de doze mil homens, comandado por Tárique. A invasão procedeu de sul para o norte da Península Ibérica, mas foi detida nas Astúrias, pelos últimos representantes do reino visigótico. Entre o Islão e a Cristandade manteve-se, durante séculos, um intercâmbio linguístico, cultural e moral que a história política, quando reduzida ao simbolismo militar, não deixa perceber. Certo é, porém, que proveniente das cidades do Oriente, como do Cairo e de Bagdade, a cultura islâmica se tornou notabilíssima pela divulgação de textos gregos. Escreve Renan: “Os árabes aceitaram a cultura grega, tal como lhes fora transmitida. Os livros que mais exactamente exprimem esta transmissão foram a Teologia de Aristóteles, um apócrifo que é de crer que haja sido composto por um Árabe, e esse livro De Causis cujo carácter indeciso manteve em suspenso toda a escolástica. A filosofia árabe conservou para sempre esta marca de origem: a influência dos Alexandrinos ressurge a cada passo”. Os Árabes utilizavam principalmente os textos de Porfírio e de Alexandre de Afrodísia.

Al Hakam II, antes de ser califa em 961, reuniu em Córdova 400 000 volumes de manuscritos, recolhidos de várias partes do Oriente. Esta biblioteca serviu de exemplo a muitos aristocratas que quiseram imitar o soberano. No império dos Almóadas brilha a doutrinação de Averróis, morto em 1198.

A reconquista cristã da Península Ibérica, operada de norte a sul, significa não só a submissão dos Árabes mas também a dos Judeus; não podemos, portanto, dá-la por concluída antes de 1498. Para alguns autores espanhóis, esta reconquista religiosa deveria ser completada pela unificação política dos cinco reinos cristãos, o que se operou só no século seguinte, em 1580. Convém comparar a data em que os Árabes foram expulsos do Algarve, 1260, com a de 1492, referente à conquista de Granada pelos Reis Católicos. A poesia dos trovadores, que se aclimou entre nós durante o reinado de D. Afonso III, tem origens imprecisas que tanto podem ser atribuídas à poesia popular árabe como à poesia provençal.

Catedral de Toledo




No reino de Castela, entre 1130 e 1150, os tradutores de Toledo, João de Luna, Domingos Gonçalves e Gerardo de Cremona, traduzem Aristóteles, por indicação do arcebispo D. Raimundo e do grande chanceler de Castela.


Afonso X,  O Sábio, ditando as Cantigas de Santa Maria

Tratado de Medicina de Al-Razi traduzido por Gerardo de Cremona



Abubecre Maomé Zacaria Razi. Em persa: 

ابوبكر محمّد زکرياى رازى


Afonso X, o Sábio, promoveu a tradução e adaptação à língua castelhana de muitos textos de cultura árabe, no que foi auxiliado pelos Judeus, antes de o centro de cultura hebraica se deslocar para a Catalunha e para a Provença. Durante esta época foi criado, pelo mesmo príncipe, um colégio de estudos latinos e árabes. Fundado em 1254, foi-lhe assegurada a protecção papal por um breve firmado por Alexandre IV em 1260. A equipa de tradutores trabalhou sobretudo em Toledo, cidade que já era cristã havia dois séculos»

Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).

 

«A escolástica árabe, anterior à escolástica latina, contribuiu para o corpo metodológico e institucional desta, assim como contribuiu para a definição da escolástica hebraica.»

Pinharanda Gomes («Dicionário de Filosofia Portuguesa»).


 

O mais importante manancial da cultura grega – aristotélica e neoplatónica – na Europa medieva dos séculos XII e XIII

 

Desperta o século XIII carregado de um ar de tormenta naqueles lugares da Europa que sempre deviam ser tranquila palestra de justas intelectuais: as Universidades.

Nascidas as primeiras, logo à natural turbulência derivada da heterogeneidade pessoal, tanto discente como docente, que as formara e frequentara, se agrega a profunda inquietação nascida de um choque, já então violento, de rivalidades doutrinárias. De Espanha, patrocinada pelo Arcebispo RAIMUNDO DE TOLEDO, irrompera plenamente na Europa durante o século anterior o mais importante manancial da cultura grega – aristotélica e neoplatónica – traduzido do árabe e do hebreu pelo grupo de letrados que aquele ilustre prelado reunira à sua volta. Assim se tornaram conhecidos, de entre os árabes – AVICENA, o oriental, e o cordovês AVERRÓIS – e dos judeus – os espanhóis AVICEBRÃO e MAIMÓNIDES; e com eles se aclimataram nas Universidades as principais obras de ARISTÓTELES, se bem que através das suas versões siríacas e egípcias mais ou menos fidedignas.

Ibn Sina (Avicena)

Foi deslumbrador o resultado, mas também perturbador para a cultura escolástica ainda balbuciante: tais monumentos doutrinários, que pareciam saciar todo o afã de saber, não deixavam de oferecer perigos para o que, ao tempo, se considerava acima de toda a aspiração de humana sabedoria: a integridade da fé cristã; por isso as obras de ARISTÓTELES foram repetidas vezes censuradas pela autoridade eclesiástica. Para compreender bem isto, há que ter em conta que o ARISTÓTELES servido nessa altura com seu tempero arábico padecia daqueles graves erros teológicos a respeito de Deus e da imortalidade da alma, que logo se infiltraram na Europa sob o nome de averroísmo latino.

Enquanto se davam estas infiltrações, mantinha-se na tradição cultural da época a corrente da filosofia neoplatónica, por vezes glosada de forma heterodoxa – como a panteísta, cultivada por JOÃO ESCOTO ERÍGENA – mas também protegida pelo favor de muitos Padres da Igreja, especialmente pela máxima autoridade de SANTO AGOSTINHO, além da do prestigioso DIONÍSIO, que adoptara o pensamento do grande Platão e ainda as suas derivantes de PLOTINO como o instrumento da cultura humana mais apto a revestir a divina espiritualidade do Cristianismo. Esta tradição havia, naturalmente, de opôr-se ao assalto da fortaleza universitária por parte do intruso ARISTÓTELES e, mais ainda, dos seus comentadores não-cristãos.

Finalmente, não deixava também de ter a sua força uma corrente fomentada sobretudo pelos chamados VITORINOS – HUGO e RICARDO DE S. VÍTOR – e ainda por S. BERNARDO, corrente nitidamente hostil a toda a pretensa racionalização do dogma cristão, que só ao amparo da fé e do fervor místico da caridade parecia destinado a manter-se e a prosperar. Também a esta posição dava calor a tese anselmiana e augustiniana do crede ut intelligas, que reduz ao acto de fé a condição prévia do compreender racional.

(In João Zaragüeta, S. Tomás de Aquino no seu Tempo e Agora, Tradução de Miranda Barbosa, Casa do Castelo, Coimbra, 1945, pp. 5-8).

Nenhum comentário:

Postar um comentário