Escrito por Fernando Pessoa
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Promontório de Sagres |
«Vem
tudo a propósito de chegar a dizer qual é a tragédia de Portugal. É a de que,
tendo vários eruditos, e muita gente inteligente, pouquíssima gente temos que
seja culta. Vejam quanta criatura, quando lhe apresentam qualquer coisa de novo,
procura compreender. Um homem culto procura sentir. Perceber envolve esforço.
Sentir envolve uma passividade deliciosa. O feitio enérgico, violento, pouco
indolente do português leva-o para a acção precipitadamente. A ciência da
inacção, a mais civilizada das ciências, pouco está desenvolvida entre nós. A
nossa tendência para agir ficou-nos, como uma maldição, da aventura das descobertas. Expiamos a glória dos nossos maiores na doentia preocupação do útil».
Fernando Pessoa (in António Quadros, «Fernando Pessoa, a Obra e o Homem», II Volume).
«Depois
de longa viagem que é a vida humana, especialmente para o estudioso que a todo
o momento se interroga sobre a adequação do pensar ao agir, até o céptico se
detém perante o termo da quietação e de segurança que costuma ser
universalmente denominado pela palavra Deus. Escritores há que excluem tal
palavra, por motivos vários entre os quais avulta o medo de uma ou outra
pressão social, e transferem para nova palavra a designação do absoluto,
infinito ou eterno, isto é, do envolvente que necessariamente há-de ser
solicitado por todo o pensamento relativo, finito ou efémero. A bem dizer não
há ateísmo. É concedida aos filósofos livre escolha de vocabulário pela simples
razão de ser uma arte a filosofia. O artífice que não souber forjar a
ferramenta própria do seu artesanato jamais produzirá uma obra-prima, de
assinatura pessoal, porque se resignará a ser um operário anónimo de qualquer
fábrica metropolitana ou um mero empregado de qualquer faculdade universitária.
Dado, porém, que para José Marinho a filosofia é muito mais um jogo do que uma
arte, melhor diríamos que o mesmo pode ser alterado para a magia de efeitos
lúdicos. As palavras preferidas e escolhidas vão sendo escritas com inicial
maiúscula, vão adquirindo personalidade teatral, para aceitarem as responsabilidades
dos muitos e das culpas, para figurarem como agentes do drama filosófico, já
que nenhum escritor se liberta totalmente da nostalgia de qualquer fabulação
mais ou menos mitológica. Assim as cartas de jogar, que comercialmente
transitam de país para país, designam e significam diferentemente a sorte dos
vários povos. O que nós, Portugueses, denominamos por copas, espadas, ouros, paus é por outros denominado coeurs, piques, carreaux, trèfles, ou hearts, spades, diamonds, clubs, ensinamento notável para quem souber ver a subtil distinção
entre o designar e o significar. Atribuindo palavras portuguesas, plenas de
significação étnica, aos mesmos conceitos que atravessam fronteiras, procede-se
ao contrário do universalismo das escolas que têm a pretensão estulta de
nacionalizar também a ortofonia e a ortografia de vocábulos estrangeiros.»
Álvaro Ribeiro («Decisão e Indecisão na Casa de Portugal»).
«De
Álvaro Ribeiro dizia José Marinho que “pensava como o coração pulsa: sem
cessar”. Almada Negreiros chamou-lhe “santo científico”. Pinharanda Gomes
mantém-se firme em dizê-lo “um santo”, com todo o significado e todas as
virtudes que a Igreja dá à palavra. Nenhum dos que com ele conviveram ou sabem
ler com proveito seus livros, receia reconhecer que de homem algum ou pensador
mais do que dele se pode dizer “um sábio”. E seus discípulos, desde António Telmo e António Quadros, desde Afonso Botelho e Braz Teixeira ao autor destas
linhas, têm-no como “o mestre por excelência”.
Socialmente,
quer dizer, nas consequências sociais da opinião que a ignorância contente de
si formou dele, Álvaro Ribeiro foi, ainda é, um homem antipático e um filósofo
odiado, daqueles que são para serem assassinados. Quem o quiser comprovar
documentalmente, pode ler o que sobre ele infantilmente escreveram e publicaram
um crítico versejador como Casais Monteiro e um crítico que não verseja como
Eduardo Lourenço.
À
medida que o homem vivo vai esquecendo, a antipatia e o ódio vão sendo
substituídos por um cerrado silêncio hostil que faz o regozijo da estupidez
universitária posta perante os livros admiráveis e únicos que ele nos deixou.
São
esses livros escritos com estilo,
palavra que, na acepção dada pelo próprio Álvaro Ribeiro, significa a
singularidade inimitável do escritor. Seu estilo desenvolve-se numa sucessão de
afirmações, isto é, de teses, ideias,
conceitos, logismos, rigorosamente firmes, ou firmados, ou com firmamento, palavra que o filósofo
contrapunha à de fundamento, corrente
na linguagem filosófica germânica, como o céu estrelado e luminoso se contrapõe
às funduras tenebrosas. As afirmações sucedem-se, não por extrínsecas
justaposições, mas por deduções, silogismos e inferências que o escritor não
perde tempo a descrever, antes entregando ao leitor a tarefa de a si mesmo
provar capacidade de inteligência e entendimento filosóficos. Assim nos dão os
livros de Álvaro Ribeiro o exemplo de como a filosofia se deve defender,
nenhuma facilidade concedendo à mediocridade e à incultura. Não há filosofia de
leitura fácil porque leitura fácil é a de imediato entendimento e o
entendimento filosófico conduz-se por demoradas meditações. Álvaro Ribeiro
gostava de lembrar o que Dante disse do filósofo: “mestre dos que sabem”. A
sabedoria é mediadora.»
Orlando Vitorino («A Filosofia de Álvaro Ribeiro como Doutrina do Espírito»).
«Um conceito vale mais pela virtualidade animada do nosso conceber do que pelo seu desempenho lógico-formal no domínio explícito do nosso entendimento. O conceito tem pois uma importância fundante quanto ao domínio lógico do conceber, já que é por essa virtualidade que este se transforma e rejuvenesce, possibilitando assim variantes constituintes que progredidamente se alteram, nesse universo concebente. (...) A relação entre o conceber e o conceito não pode nunca ser dissociada, porque representa por si a transferência de compromisso com durações potenciais latentes na nossa consciência».
Luís Furtado («Teoria da Luz e da Palavra»).
A
crença em Deus assenta em o que podemos chamar um acto de fé racional.
Consciente ou inconscientemente, o movimento do espírito é este: (1) Tudo
quanto existe é efeito de uma causa. (2) O efeito não pode conter mais que o
que está contido na causa, (pois então seria efeito de mais causas que uma); o
universo, no mais alto ponto em que nós o conhecemos, que é o homem, contém a
consciência; portanto a causa do universo deve conter a consciência, isto é,
deve ser uma Causa consciente. (3) O efeito não pode conter tudo quanto se
contém na causa, pois então seria idêntico à causa, e não haveria causa nem
efeito; o universo é múltiplo, extenso (no tempo e no espaço, ou no
espaço-tempo) e diverso (isto é, composto de coisas não só muitas mas
diferentes entre si); portanto a causa do universo tem que conter mais que
multiplicidade, ou seja totalidade, mais que extensão, ou seja infinidade, mais
que diversidade, ou seja plenitude. Cumpre advertir que totalidade se
diferencia de plenitude em que o primeiro é um conceito quantitativo, o segundo
qualitativo: assim a totalidade do prazer,
seria a soma de todos os prazeres possíveis, a plenitude do prazer a concentração em um só prazer do que se acha contido
na diversidade de todos.
Por
qualquer especulação desta ordem, em geral subconsciente ou instintiva, chega o
homem à crença racional na existência de Deus. Que é racional, já o vimos, não
esqueçamos porém que é simples crença, pois parte de princípios naturais, instintivos,
mas dialecticamente contestáveis.
Organizado,
como é, o espírito do homem, não há demonstrações
senão a científica, isto é, a que se baseia ou na observação, ou na
experimentação, ou no cálculo, ou em qualquer combinação destas três coisas.
Ora, ainda admitindo que o conceito de causa e efeito seja induzível da observação (o que é contestável e, de facto, tem sido
contestado), o que é certo é que o que chamamos universo em seu «conjunto» não é susceptível de observação, de
experimentação ou de cálculo, pois não temos sentido algum com que o
abranjamos, nem sabemos, portanto, o que em esse «conjunto» (e já conjunto é
hipótese) o universo seja.
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A
existência de Deus é, pois, indemonstrável, mas é um acto de fé racional,
natural portanto – inevitável até – em qualquer homem no uso da sua plena
razão.
E
tanto assim é que o ateísmo anda sempre ligado a duas qualidades mentais
negativas – a incapacidade de pensamento abstracto e a deficiência de imaginação
racional. Por isso, nunca houve grande filósofo ou grande poeta que fosse ateu.
(In António Quadros, «Fernando Pessoa, a Obra e o Homem», II Volume, 1982, pp. 211-212).
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