domingo, 10 de agosto de 2025

Nunca houve grande filósofo ou grande poeta que fosse ateu

Escrito por Fernando Pessoa



Promontório de Sagres

«Vem tudo a propósito de chegar a dizer qual é a tragédia de Portugal. É a de que, tendo vários eruditos, e muita gente inteligente, pouquíssima gente temos que seja culta. Vejam quanta criatura, quando lhe apresentam qualquer coisa de novo, procura compreender. Um homem culto procura sentir. Perceber envolve esforço. Sentir envolve uma passividade deliciosa. O feitio enérgico, violento, pouco indolente do português leva-o para a acção precipitadamente. A ciência da inacção, a mais civilizada das ciências, pouco está desenvolvida entre nós. A nossa tendência para agir ficou-nos, como uma maldição, da aventura das descobertas. Expiamos a glória dos nossos maiores na doentia preocupação do útil».

Fernando Pessoa (in António Quadros, «Fernando Pessoa, a Obra e o Homem», II Volume).

 

«Depois de longa viagem que é a vida humana, especialmente para o estudioso que a todo o momento se interroga sobre a adequação do pensar ao agir, até o céptico se detém perante o termo da quietação e de segurança que costuma ser universalmente denominado pela palavra Deus. Escritores há que excluem tal palavra, por motivos vários entre os quais avulta o medo de uma ou outra pressão social, e transferem para nova palavra a designação do absoluto, infinito ou eterno, isto é, do envolvente que necessariamente há-de ser solicitado por todo o pensamento relativo, finito ou efémero. A bem dizer não há ateísmo. É concedida aos filósofos livre escolha de vocabulário pela simples razão de ser uma arte a filosofia. O artífice que não souber forjar a ferramenta própria do seu artesanato jamais produzirá uma obra-prima, de assinatura pessoal, porque se resignará a ser um operário anónimo de qualquer fábrica metropolitana ou um mero empregado de qualquer faculdade universitária. Dado, porém, que para José Marinho a filosofia é muito mais um jogo do que uma arte, melhor diríamos que o mesmo pode ser alterado para a magia de efeitos lúdicos. As palavras preferidas e escolhidas vão sendo escritas com inicial maiúscula, vão adquirindo personalidade teatral, para aceitarem as responsabilidades dos muitos e das culpas, para figurarem como agentes do drama filosófico, já que nenhum escritor se liberta totalmente da nostalgia de qualquer fabulação mais ou menos mitológica. Assim as cartas de jogar, que comercialmente transitam de país para país, designam e significam diferentemente a sorte dos vários povos. O que nós, Portugueses, denominamos por copas, espadas, ouros, paus é por outros denominado coeurs, piques, carreaux, trèfles, ou hearts, spades, diamonds, clubs, ensinamento notável para quem souber ver a subtil distinção entre o designar e o significar. Atribuindo palavras portuguesas, plenas de significação étnica, aos mesmos conceitos que atravessam fronteiras, procede-se ao contrário do universalismo das escolas que têm a pretensão estulta de nacionalizar também a ortofonia e a ortografia de vocábulos estrangeiros.»

Álvaro Ribeiro («Decisão e Indecisão na Casa de Portugal»).

 






«De Álvaro Ribeiro dizia José Marinho que “pensava como o coração pulsa: sem cessar”. Almada Negreiros chamou-lhe “santo científico”. Pinharanda Gomes mantém-se firme em dizê-lo “um santo”, com todo o significado e todas as virtudes que a Igreja dá à palavra. Nenhum dos que com ele conviveram ou sabem ler com proveito seus livros, receia reconhecer que de homem algum ou pensador mais do que dele se pode dizer “um sábio”. E seus discípulos, desde António Telmo e António Quadros, desde Afonso Botelho e Braz Teixeira ao autor destas linhas, têm-no como “o mestre por excelência”.

Socialmente, quer dizer, nas consequências sociais da opinião que a ignorância contente de si formou dele, Álvaro Ribeiro foi, ainda é, um homem antipático e um filósofo odiado, daqueles que são para serem assassinados. Quem o quiser comprovar documentalmente, pode ler o que sobre ele infantilmente escreveram e publicaram um crítico versejador como Casais Monteiro e um crítico que não verseja como Eduardo Lourenço.

À medida que o homem vivo vai esquecendo, a antipatia e o ódio vão sendo substituídos por um cerrado silêncio hostil que faz o regozijo da estupidez universitária posta perante os livros admiráveis e únicos que ele nos deixou.

São esses livros escritos com estilo, palavra que, na acepção dada pelo próprio Álvaro Ribeiro, significa a singularidade inimitável do escritor. Seu estilo desenvolve-se numa sucessão de afirmações, isto é, de teses, ideias, conceitos, logismos, rigorosamente firmes, ou firmados, ou com firmamento, palavra que o filósofo contrapunha à de fundamento, corrente na linguagem filosófica germânica, como o céu estrelado e luminoso se contrapõe às funduras tenebrosas. As afirmações sucedem-se, não por extrínsecas justaposições, mas por deduções, silogismos e inferências que o escritor não perde tempo a descrever, antes entregando ao leitor a tarefa de a si mesmo provar capacidade de inteligência e entendimento filosóficos. Assim nos dão os livros de Álvaro Ribeiro o exemplo de como a filosofia se deve defender, nenhuma facilidade concedendo à mediocridade e à incultura. Não há filosofia de leitura fácil porque leitura fácil é a de imediato entendimento e o entendimento filosófico conduz-se por demoradas meditações. Álvaro Ribeiro gostava de lembrar o que Dante disse do filósofo: “mestre dos que sabem”. A sabedoria é mediadora.»

Orlando Vitorino («A Filosofia de Álvaro Ribeiro como Doutrina do Espírito»).





«Um conceito vale mais pela virtualidade animada do nosso conceber do que pelo seu desempenho lógico-formal no domínio explícito do nosso entendimento. O conceito tem pois uma importância fundante quanto ao domínio lógico do conceber, já que é por essa virtualidade que este se transforma e rejuvenesce, possibilitando assim variantes constituintes que progredidamente se alteram, nesse universo concebente. (...) A relação entre o conceber e o conceito não pode nunca ser dissociada, porque representa por si a transferência de compromisso com durações potenciais latentes na nossa consciência».

Luís Furtado («Teoria da Luz e da Palavra»).

 


Nunca houve grande filósofo ou grande poeta que fosse ateu


A crença em Deus assenta em o que podemos chamar um acto de fé racional. Consciente ou inconscientemente, o movimento do espírito é este: (1) Tudo quanto existe é efeito de uma causa. (2) O efeito não pode conter mais que o que está contido na causa, (pois então seria efeito de mais causas que uma); o universo, no mais alto ponto em que nós o conhecemos, que é o homem, contém a consciência; portanto a causa do universo deve conter a consciência, isto é, deve ser uma Causa consciente. (3) O efeito não pode conter tudo quanto se contém na causa, pois então seria idêntico à causa, e não haveria causa nem efeito; o universo é múltiplo, extenso (no tempo e no espaço, ou no espaço-tempo) e diverso (isto é, composto de coisas não só muitas mas diferentes entre si); portanto a causa do universo tem que conter mais que multiplicidade, ou seja totalidade, mais que extensão, ou seja infinidade, mais que diversidade, ou seja plenitude. Cumpre advertir que totalidade se diferencia de plenitude em que o primeiro é um conceito quantitativo, o segundo qualitativo: assim a totalidade do prazer, seria a soma de todos os prazeres possíveis, a plenitude do prazer a concentração em um só prazer do que se acha contido na diversidade de todos.

Por qualquer especulação desta ordem, em geral subconsciente ou instintiva, chega o homem à crença racional na existência de Deus. Que é racional, já o vimos, não esqueçamos porém que é simples crença, pois parte de princípios naturais, instintivos, mas dialecticamente contestáveis.

Organizado, como é, o espírito do homem, não há demonstrações senão a científica, isto é, a que se baseia ou na observação, ou na experimentação, ou no cálculo, ou em qualquer combinação destas três coisas. Ora, ainda admitindo que o conceito de causa e efeito seja induzível da observação (o que é contestável e, de facto, tem sido contestado), o que é certo é que o que chamamos universo em seu «conjunto» não é susceptível de observação, de experimentação ou de cálculo, pois não temos sentido algum com que o abranjamos, nem sabemos, portanto, o que em esse «conjunto» (e já conjunto é hipótese) o universo seja.



A existência de Deus é, pois, indemonstrável, mas é um acto de fé racional, natural portanto – inevitável até – em qualquer homem no uso da sua plena razão.

E tanto assim é que o ateísmo anda sempre ligado a duas qualidades mentais negativas – a incapacidade de pensamento abstracto e a deficiência de imaginação racional. Por isso, nunca houve grande filósofo ou grande poeta que fosse ateu.

(In António Quadros, «Fernando Pessoa, a Obra e o Homem», II Volume, 1982, pp. 211-212).

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