quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Da índole amorosa do português

Escrito por Francisco da Cunha Leão


Serra do Marão

«(...) À voz do sangue responde a voz da terra; e este diálogo misterioso mostra os caracteres da nossa íntima fisionomia portuguesa.

A Ibéria foi primitivamente povoada por diversos Povos de que descendem os actuais castelhanos, vascos, andaluzes, galegos, catalães, portugueses, etc.

Aqueles Povos pertenciam a dois ramos étnicos distintos, diferenciados por estigmas de natureza física e moral.

Um dos ramos é o ariano (gregos, romanos, godos, celtas, etc.); e o outro, é o semita (fenícios, judeus e árabes).

O Ária criou a civilização greco-romana, o culto plástico da Forma, a beleza concebida dentro da Realidade próxima e tangível, o Paganismo; o Semita criou a civilização judaica, a Bíblia, o culto do Espírito, a unidade divina, a beleza concebida para além da Matéria.

O Ária cantou, nos cumes do Parnaso, a verde alegria terrestre, a infância, a superfície angélica da Vida; o Semita glorificou, nos cerros do Calvário, a dor salvadora que nos eleva para o céu, o céu da Redenção, pelo sacrifício do individual ao espiritual.

Vénus é a suprema flor do Naturalismo grego; a Virgem Dolorosa, a suprema flor do Espiritualismo judaico. A primeira simboliza o amor carnal que continua a vida, esta, o amor ideal que a purifica e diviniza.

O Ária (celtas, gregos e romanos) trouxe, portanto, à Ibéria o Naturalismo, e o Semita, (árabes e judeus) o Espiritualismo.

Povos destes dois ramos étnicos tão diferentes, misturam-se na Península, originando as antigas Nacionalidades que Castela submeteu à sua hegemonia, com excepção de Portugal. Todavia, conservam uma certa independência moral revelada pelos idiomas ainda hoje falados na Espanha.

Portugal resiste, há oito séculos, ao poder absorvente de Castela. Demonstra este facto que, de todas as velhas Nacionalidades peninsulares, foi Portugal a dotada com mais força de carácter ou de raça.»

Teixeira de Pascoaes («Arte de Ser Português»).

 

«Se o corpo de Vénus é feito de espuma do mar, a Virgem Maria é a mais alta e translúcida espuma da Alma.»

Leonardo Coimbra («Camões e a Fisionomia da Pátria»).


O Nascimento de Vénus, do pintor William-Adolphe Bouquereau.

«A arte de amar, ensinada por vários tratadistas que se limitam a explicar o que é explicável, não preceitua mais do que exercício incessante da imaginação. Quem pela primeira vez declara o amor, por palavras bem ou mal inspiradas, assume o compromisso de repetir diariamente essa declaração, mas obriga-se também a inventar processos sempre diferentes de manifestar a fidelidade e a lealdade ao ente amado. Fazer voto de amor, por qualquer fórmula de juramento, é devoção que logo se transforma em obrigação.

Toda a arte do homem amante está em fazer louvar a mulher amada, em evitar a repetição que mecaniza, banaliza e adormece a vida sentimental, em reconhecer a gradação subtil dos diferentes vínculos de amor. A graciosidade da linguagem do adolescente que perpassa na dialéctica dos amantes, o ideal de fidelidade electiva que enobrece e sublima os mútuos juramentos, o encanto sentimental que se corporiza no apogeu da volúpia, constituem graus de uma fenomenalidade que só o escritor de génio pode exprimir sem banalidade, estultícia ou profanação. Torna-se patente a inépcia do romancista que se demora no descritivo e no narrativo, por preconceitos naturalistas ou realistas, quando seria o momento literário de vencer o empirismo pelo raciocínio e o realismo pela imaginação.

Na penumbra propícia a um ritual sagrado existem segredos naturais que o literato vulgar não sabe descrever. Quem não os respeita, reverencia e venera, quem sobre eles se propõe projectar a cruenta luz meridiana, confessa por isso não compreender a analogia profunda da morte com o amor, patenteia ignorar a significação da palavra metamorfose. Confessa assim, e também, que ainda não soube atribuir significado religioso aos actos habituais da vida quotidiana.

Conhece talvez o literato a antiquíssima comparação do sono com a morte, mas não aproveita, antes despreza, essa comparação que a literatura tornou banal. Nunca meditou, porém, na analogia do cerrar dos olhos com a cerração da noite, do leito com o túmulo, dos brancos lençóis com os alvos mármores. Ao despir-se, ao deitar-se, o homem desenvolve-se das roupas que o aquecem, protegem ou mascaram; goza um prazer que não é mais do que alívio do sofrimento inconsciente que lhe deu a canseira do trabalho quotidiano; não repara, porém, que no acto prefigura o despir das faculdades vigilantes que a alma há-de perder para atingir a nudez esotérica.

O artista que não respeita o ritual da desnudação, é artista que não compreende o nascimento, o amor e a morte; não sabe distinguir a verdade nua da verdade revelada; tenderá sempre a descrever o encontro dos amantes em termos de pornografia ou, seja, de profanação. Não compreenderá a beleza secreta da palavra sacrifício, nem, portanto, o encanto eloquente da renascença ou, que o mesmo é dizer, da ressurreição.»

Álvaro Ribeiro («A Razão Animada»).


Marte sendo desarmado por Vénus, por Jacques-Louis David.


Da índole amorosa do português


«De amor escrevo, de amor trato e vivo.»

Luís de Camões


O carácter do amor foi por nós observado, a traços largos, numa rubrica de «O Enigma Português, onde vincámos neste aspecto e sobre o fundo comum peninsular, a diferença entre portugueses e castelhanos, tão denunciada na literatura e na história.

Aliás esse carácter é dos mais versados pelos estudiosos das nossas letras. Na definição das linhas míticas em que se dispuseram determinadas tendências nacionais fixámos uma que respeita à sublimação da mulher e outra à supervivência do amor [1].

Interessa-nos agora focar as contradições estranhas que a sensibilidade e o comportamento dos portugueses neste capítulo retratam.

Embora menos estremados que nos castelhanos o amor e a sexualidade, esta distorsão não deixa de nos aparecer, às vezes, em termos chocantes.

Logo na poesia trovadoresca se bifurcam duas linhas com atitudes diametralmente opostas em relação à mulher – o que foi observado por numerosos críticos. Uma de idealidade, em que a mulher querida é como que entronizada, posta em adoração, e objecto de culto cujo teor se apresenta devotado e casto; boa parte dessas cantigas – as «de amigo» – coloca o troveiro na boca da namorada, protagonista de um sentimento que então já se revela inquieto, magoado – o amor saudoso. «Quem tem amores não dorme» viria a traduzir a sabedoria do povo, num conceito que os poetas esgotadamente glosariam – eles e os novelistas.

O gosto de sofrer aliado ao gosto de amar em termos de «amar é sofrer» vem salientado por José Régio e Alberto de Serpa na antologia que organizaram da nossa poesia de amor [2]. Nas palavras introdutórias a esse trabalho, também se fala do «dom de sublimação do instinto primário», da «transfiguração do desejo em admiração e saudade» como traços característicos. «Min tormenta», lá diz João Lobeira nos lais de Leonoreta. «Morte, morte de amor melhor que a vida!» (Bocage) exprime o pathos erótico de um povo a que não falta certo masoquismo e saboreada renúncia [3]. O «morrer de amor» é uma das características da literatura portuguesa, segundo Carolina Michaëlis.

A extrema vivência amorosa ressalta da «pequena história» às vezes decisiva, tornada grande, ilustra a poesia e a novelística, dos Cancioneiros e do Amadis, à lírica de Camões, às églogas, a Gonzaga e Bocage, às Cartas de Soror Mariana, às novelas de Camilo, a João de Deus, Nobre, Florbela, etc...


Não minguam testemunhos de vária procedência acerca disso, a começar pelos Espanhóis, que personalizavam a obsessão amorosa, galanteadora, a um tempo intrépida e torturada, em portugueses. Esse renome passou os Pirenéus e a Mancha para exprimir um determinado tipo de amor «à portuguesa».

Anote-se a primazia, mesmo a realeza do amor na temática do género literário que mais nos distingue. Sem aquela especial compleição amorosa teríamos sido tão grandes em Poesia? Decerto que não, pois se eliminarmos do nosso florilégio a lírica de amor ele fica extraordinariamente empobrecido [4].

O facto de na contemporaneidade alguns dos melhores poetas terem fugido ao tema, ou iludido o tema, por influxo de moda universal, não invalida a afirmação. É avultada a legião dos que graças ao amor entram a versejar.

Muitos dos principais poetas continuaram a sacrificar-lhe poemas dos melhores como Teixeira de Pascoais (leia-se a genial «Elegia do Amor»), Afonso Duarte, José Régio, o próprio Torga, cuja «Ode a Vénus» é uma das mais belas sublimações do «génio da espécie»; e o tema subsiste de primeira plana com aspectos novos também, no sentido de evitar a monotonia que afectara a lírica amorosa, em David Mourão-Ferreira e Tereza Horta, por exemplo.

Apesar do grande esforço de renovação desta poesia, menos estremada do sexo, mais intelectualizada ou ironizada, o velho fundo absorvente e idealista mantém-se. Na sua própria degradação, o fado reflete-o, nostálgico de pureza.

A outra corrente, da sátira também de amor, tende ao obsceno, é com frequência grosseira e pornográfica. A mulher que não corresponde àquela idealidade, ou a trai, aparece desrespeitada em termos boçais e bem assim o marido enganado ou condescendente. Aí o trato é assoalhado ao vivo e com a mais desbocada linguagem. Os cancioneiros medievais e a obra de Bocage são exemplos flagrantes desta extremação [5] que tantas vezes co-habita em paredes meias.

Dificilmente se encontram a picante malícia, os subtis mal-entendidos das letras francesas. Dos satiristas do amor e da mulher, bem poucos, além de Augusto Gil, e nem sempre, conseguem aproximar-se desse espírito. O cosmopolita Feijó não deixa de ter a mão pesada.

Não que a sensualidade abandone a poesia sublimadora do amor. Ela entrelaça-se num tipo de lirismo de teor dominantemente casto, e a partir dos mesmos trovadores. Na sua forma espiritualista é o que o ensaísta galego Daniel Cortezón chama «amor-saudade», tem carácter avitalista, em contraposição ao amor biológico, subordinado ao «génio da espécie» [6]. Exemplifica o primeiro caso Macias, o Namorado, famoso poeta. No segundo, podemos incluir o mitológico D. João Tenório, em que a sexualidade totalmente se extrema, tomando ganas de força devastadora e subversiva das barreiras ético-sociais.



Quando estranha ao factor sentimental, a sensualidade dos portugueses mostra-se pouco selectiva, indiscriminada, o que os favoreceu no entendimento com os povos de cor e esteve na base da extensa mestiçagem que prestes franjou, consolidando-a, a fixação lusíada nos trópicos, onde surgiram numerosos grupos étnicos, de ligação com as sociedades aborígenas da Ásia, África e América, nas quais o elemento europeu comum garante um mínimo de unidade inter-continental com fulcro metropolitano.

Não são propriamente as ligações ilícitas que o escandalizam, e muitas foram admitidas sem chalaça. Não respeita, porém, a poliandria, nem mesmo casamentos, além do segundo.

Implacável na exigência do amor, desde que o reconheça vê nele um sinal de predestinação, admite-o como coisa séria, tocada de transcendência, que invalida os juízos dos mortais. Foi o caso dos amores de Dom Pedro e Dona Inez, feitos florir pelo tempo fora, em sequência condigna do louco enlevo e fidelidade cega desses amantes, cuja trágica desgraça respeitou e redimiu, transmudando-a em mito de amor eterno.

Neste país onde uma adoração amorosa abundante e obsessiva marcou a expressão literária, é de estranhar o prosaísmo, a reserva mental, o tom sardónico do seu adagiário a propósito da mulher. São de velha data usuais anexins como estes: «A mulher e o pedrado quer-se pisado», «Ainda não é nascida, já espirra», «O homem na praça, a mulher em casa», «Mula que faz him e mulher que fala latim, raramente tem bom fim», «A mulher e a galinha, com o sol recolhida», «A mulher e a cachorra, a que mais cala é a mais boa», «De má mulher te guarda e de boa não fies nada», etc...

Ditos deste jaez, classificáveis em marialvismo e machismo, se adoptássemos a acepção de Cardoso Pires [7] dariam longo rol. Machismo, sem dúvida, e estremado, que é de homem suspeitoso, ciente dos seus costumes abusadores e do semelhante, este que reduz a fêmea, cativa ou a trabalhar para ele, que lhe desdenha a ilustração e se teme da sua tagarelice [8].

Os hábitos já evoluíram mas sem alteração substancial da mentalidade, porquanto no sub-consciente de muitos portugueses, até dos que se ufanam de liberais e progressistas, chibantemente engravatados, em maior ou menor grau ainda perdura.

Em que medida os costumes sarracenos teriam influído nesse espírito restrito da liberdade feminina? É possível que no rastro de uma dominação mourisca demorada nos ficasse tal herança, a par das «mouras encantadas».


Ver aqui

Não obstante do Noroeste, e desde épocas imemoriais, veio-nos uma tradição de matriarcado, atestada por arqueólogos como Caro Baroja, e confirmada pela história. A preponderância das mulheres foi grande no priscialinismo e nunca deixou de exercer-se na faixa ocidental, especialmente na Galiza. A poesia dos Cancioneiros documenta-a, como vimos. Até o extraordinário culto de Nossa Senhora denuncia uma étnica tendência para a sublimação da mulher.

A nossa história, com mais ou menos fantasia, floresce de heroínas. Não lhe falta um longo friso de mulheres ilustres, do povo às mais altas estirpes. Nomeá-las seria fastidioso, mas o seu renome vai dos feitos da defensão militar e ultramarina, às práticas virtuosas, à iniciativa de obras sociais, às letras, às artes, aos actos de governo. Mostraram heroísmo tanto na guerra e no amor, quanto em santidade.

O maior poeta da Galiza foi mulher – Rosalia –, igualmente o maior romancista: Emilia Pardo Bazán, Entre as combatentes, Maria Pita, defensora da Corunha contra os ingleses. Unamuno, verificando essa importância da mulher, entende ser característica de raça velha, cansaço de civilização.

Oliveira Martins também chamou a atenção para a importância da mulher do Minho, a propósito de «Maria da Fonte», a Joana d’Arc do Setembrismo», no que foi chasqueado por Camilo, chamando à mulher do Minho «besta de carga» e à lendária cabecilha do movimento patuleia nada menos que «beberrona e malandra» [9]. D. António da Costa chega a dizer: «Nesta província... a mulher é que toma verdadeiramente o lugar do homem, e o homem não passa de acessório» [10].

Deste novelo de factos e comportamentos antagónicos, bastante poderá inferir-se numa tentativa de interpretação. O português é de índole amorosa, vive com intensidade os seus afectos, insofrido, sôfrego, absorvente na fase da efervescência do amor, cujo objecto poeticamente exalta, mesmo nos desvairos sensuais. Mas se a dona o desilude, facilmente descamba para a recriminação satírica, tanto mais que não admite no sexo feminino a volubilidade carnal que ao macho reserva, e de que tem mais ou menos consciência. Há nesta atitude, em transposição colectiva, o que os psico-analistas chamam processo de «projecção», de que atribui a outrem intenções que se nega a reconhecer em si mesmo, ou defeitos que pressente possuir.

O temperamento apaixonado, exclusivista dos portugueses faz deles grandes amorosos e porventura, na continuidade, incómodos amantes. De um ponto de vista libertino, do erotismo intelectual puramente hedonista, do prazer pelo prazer, são maus amantes, porque emotivos em demasia. Amor que «não sossega a coisa amada» servindo-nos de uma expressão de Vinícius de Morais.


D. Juan, no momento da luta.

Haverá no entanto amor digno desse nome, verdadeiro amor, sem busca desesperada e ardente do absoluto? Não estará nisso a mais bela transcensão do homem, o aniquilamento na realização plena? Tal procura, não tem entre nós o cunho elementar só de extremismo físico, a sanha de fornicação do galaroz D. Juan Tenório. A compleição afectiva interfere no sentido de uma posse mais total, em humana plenitude, cópula de corpos e almas; subtiliza, comove a crueza do sexo. Bem viu um actual ficcionista português no incontestável donjuanismo autóctone, feição de compromisso, com amolecimentos sentimentais e sociais, que lhe minoram a «crueldade testicular» e o apartam do genuíno donjuanismo, repelido e satirizado cá [11]. Porventura a aceitação, o êxito amoroso do português (o «portuguesismo valente») provenha de ser um sedutor incorrigível, atrevido, mas facilmente enamorável; de constituir uma presa possível como afinal o rei D. Fernando tão amador de mulheres e «achegador a elas», mas sua vítima, ainda que formoso e inconstante.

No amor consolidado pelo casamento ou ligação estável, acentua-se o preconceito do prestígio masculino que o meio aliás impõe ao homem, pelo que este se encosta aos ditames de uma sabedoria vulgar assente na autoridade do pater e na suspicácia dos defeitos da mulher («As verdades são dos homens, as mentiras das mulheres»).

Tal reserva em parte demonstra, pelo carácter de defesa, certo reconhecimento implícito do valor do outro sexo, cujo vantagem chega a ser temida, em alguns aspectos.

A despeito da fraseologia sentenciosa e mordaz, fruto de um realismo rural cônscio da sujeição biológica da fêmea e da sua fraqueza provocante em relação ao ímpeto e à mobilidade natural do macho, e apesar do brio varonil muito agudo em povo criado no prez das coisas másculas e pronto a captar o ridículo, aquela sisudez também se filia no ideal do lar com fulcro na virtude da mulher, cuja inspiração cristã é evidente. Vê na esposa, ou nela exige ver, depositária das virtudes tradicionais da gens – a mãe que prolonga outra mãe cujo exemplo é exalçado – e que mantém na ara doméstica um fogo paralelo ao dos altares.

As famílias assim robustas aglutinam-se como corais e proliferam. Nelas estão os viveiros do génio terrantês e os abrigos seguros dos filhos ainda que pródigos.

Houve quem denunciasse na mulher portuguesa um ressaibo oriental; a meiguice dos olhos, uma doçura de ser, a um tempo grave e submissa que é de quem nasceu para ser amada («para la caricia y el rendimiento», observou Unamuno).

Ao centro: Miguel de Unamuno.

Dos olhos vem por transparência muito da vida interior. Não é o brilho intenso e dominador das espanholas que «barren la calle com sus miradas», nem o picante frívolo e inteligente das francesas, nem aquele olhar que nas britânicas tem «um arcanjo e um demónio a iluminá-lo» misto de angélico devaneio e frieza, ou a bruma indecifrável das nórdicas e seus relâmpagos de iniciativa.

Abandono sonhador e uma ajuizada ternura denunciam a mulher portuguesa. Em novas são garotas, meninas ou raparigas, termos que impressionam Valéry-Larbaud [12]. Capaz de heróica devoção, resistente, sofrida, revela-se realista no casal e defende, pela pressão dos sentimentos, o seu domínio. Este aspecto celoso foi notado há muito pelos nossos vizinhos [13].

Em que medida tais caracteres determinam o comportamento do homem e as contradições discernidas? O citado grande pensador espanhol inclina-se a explicar pelo nosso tipo feminino o tom erótico-patético do lirismo.

Reflectindo um pouco, vê-se que o amoroso que exalta a namorada e a conduz à igreja para uma união definitiva, não tarda em apossar-se do comando, em reaver, cauteloso, uma situação de que só transitoriamente abdicara.

O prosaísmo suspeitoso que ressuma do adagiário e o comportamento vulgar do marido traiem assim, como observámos, intenção defensiva perante o ascendente inicial da donzela-dona. Este é susceptível de reforço para o que indirectamente concorrem a volubilidade do homem e um espírito de aventura que em vários aspectos, até no económico, o afecta enquanto viril.

Uma filosofia prudente, apoiada no consenso moral, ajuda-o a restringir o poder feminino além do círculo estreito do lar. Não falta quem pendure, logo à entrada da porta, um azulejo de mau gosto onde se lê: «Cá em casa manda ela, mas nela mando eu». Jactância, ao fim e ao cabo subvertida pela emoliente erosão das mulheres, mais persistentes no seu fito, mais concretas.

O homem vai «em contrapartida procurar no café ou em reuniões de homens a expressão da sua personalidade viril» diz um autor contemporâneo [14], no que afinal confirma a estranheza de muitos estrangeiros pela superabundância de homens nos lugares públicos.

Paul Descamps, em livro de 1935, apontou entre nós a radicação de costumes que insere em matriarcais, tais como o papel primacial da mulher na educação dos filhos e a frequente designação destes pelos nomes das mães (e até dos maridos pelos nomes das mulheres), muito usada nalgumas províncias. Não somos apesar de tudo, o país da Lei Sálica e do monsieur-dame.




A mulher espera, sabe esperar, eminentemente conservadora da etnia nacional, e a verdade é que pela confiança, nem sempre só com os anos [15] ou a viuvez, consegue uma situação de chefia, apoiada na maternidade, cujo prestígio é enorme em povo comovediço, radicalmente cristão. Ela prolonga a família, elemento estável que em regra sobrevive ao consorte, e refaz os patrimónios tantas vezes comprometidos pelo marido estroina.

(In Francisco da Cunha Leão, Ensaio de Psicologia Portuguesa, Guimarães Editores, Lisboa, 1971, pp. 105-117).



[1] Ver «Linhas míticas da História nacional», no volume «O que é o Ideal Português» – Edições Tempo, 1961.

[2] «Alma minha gentil...» – Portugália Editora.

[3] Alguns psicanalistas (Freud, Helene Deutsch) estabeleceram conexão entre masoquismo e feminilidade, o que foi confirmado em motivações mais culturais que sexuais por Karen Horney, revisionista da Psicanálise (Ver: «El nuevo Psicanálisis», da autoria de Karen Horney, tradução do inglês – Fondo de Cultura Economica – México – Buenos Aires). Tem sido observado no temperamento português algo de feminino, o que pode estar em secreta relação com o amor torturado que tanto o caracteriza.

[4] Denis de Rougement no livro «L’amour et l’Occident (Livraria Plon – Paris) observa: «Ce qui exalte le lyrisme occidental ce n’est pas le plaisir des sens, ni la paix féconde du couple. C’est moins l’amour comblé que la passion d’amour. Et passion signifie souffrance».

Isto é dito a propósito da sua profunda análise do mito de Tristão, em que há o acordo do Amor e da Morte. No entanto se é característica ocidental ela deve singular vivência entre nós, onde o velho mito céltico se repetiu com nova formosura na história de Dom Pedro e Dona Inez. Ressonância étnica profunda?

[5] Ver a notável edição crítica das «Cantigas de escárneo e mal dizer» de Rodrigues Lapa.

[6] «De la Saudade y sus formas».

[7] «Cartilha do Marialva».

[8] Francisco Xavier de Oliveira, apesar de homem do Século das Luzes, tem opiniões como esta: «Verdadeiramente a mulher é ligeyríssima por natureza, e emprega-se gostosamente nas cousas de pouca importância pela debilidade do seu juíso». «Cartas familiares, históricas e críticas».

[9] «Maria da Fonte» – Lello & Irmão – Porto.

[10] «No Minho».

[11] Urbano Tavares Rodrigues, «O mito de D. João e o donjuanismo em Portugal» – Livraria Ática.

[12] «Divertissement philologique».

[13] Ver «Portugal e os portugueses em Tirso de Molina» por Manuel de Sousa Pinto – 1914.

[14] Ruben A, «Autobiografia», vol. I, p. 34.

[15] Liberdade e iniciativa que «apenas ganham quando caducas», segundo o mesmo escritor, acima citado.





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