sexta-feira, 31 de maio de 2019

Regras ignoradas da Arte de Bem Representar aqui publicadas para que nela se louvem os actores que representarem Tongatabu

Escrito por Orlando Vitorino






«(…) Nas chamadas "línguas latinas" - os actuais dialectos em que o latim ainda se fala - dá-se o nome de personagem ao que, em teatro, o comediante representa ou que no comediante se representa.

A palavra personagem é a derivação dialectal do original latino persona. Persona designa "aquilo através do qual soa". Sobre o rosto, ao representarem, os comediantes gregos, e depois os romanos, colocavam a persona através da qual soava, e se destinava a isso mesmo de através dela soar, isso que soa. Que é isso que soa? Encontramos desde logo uma resposta: o que soa é o som e, humano o comediante, o que soa é a voz que diz a palavra.

Há quem atribua a esta palavra persona o sentido que está no objecto, instrumento ou utensílio que, na ausência dele, a palavra substitui para o designar: um utensílio destinado a aumentar a intensidade e a amplitude da voz dos comediantes de modo a fazê-la audível aos espectadores mais longínquos, embora se saiba que a acústica dos teatros gregos e romanos era tão apurada que das mais afastadas bancadas se ouvia claramente o mais leve roçagar do podium. Do que, porém, se trata é de saber, não o sentido que um objecto dá à palavra que o designa, mas sim, em primeiro lugar, o que dela recebe o objecto e, depois, o que ela contém na ausência ou após o desaparecimento do, sempre efémero, objecto inicialmente designado. Um objecto, como uma acção e um acto, não carecem da palavra para serem o que são; mas sem a palavra, são muito pouco, apenas o que há na sua breve duração, na sua fugaz utilidade e uso. Todas as línguas são feitas de palavras que perduraram para lá da duração daquilo - objectos, utensílios, coisas e até sentimentos, conceitos e ideias - que parece ter-lhes dado origem. Tal perduração só é possível graças a um sentido ou íntima vida que as palavra possuem, trazem consigo ou adquirem, e é necessariamente autónomo daquilo que elas designaram na sua própria origem. Este entendimento da palavra é o que distingue, do linguista limitado, o que possui o amor do verbo e do logos, o filólogo.

Com secretos, ocultos ou inconscientes intuitos de degradar o que no teatro mais importa, repete-se muitas vezes que "o teatro é espetáculo". Assim se vai por um lado repetindo o que não passa de uma banalidade pois na raiz das duas diferentes línguas a que pertencem, teatro e espectáculo são o mesmo, quer dizer, o que é visto, o que se vê. Esquece-se, por outro lado, o parentesco entre espectáculo e espelho e não se chega, portanto, a alcançar a relação entre espelho e especulação. Quando Calderón de La Barca dá, a duas muito diferentes peças suas - a acção de uma decorre entre os homens, a da outra entre os deuses - o mesmo título de O Grande Teatro do Mundo, o que terá tido em mente foi essa relação: a de que dizer "teatro do mundo" é dizer "espelho do mundo". Uma subtil distinção persiste todavia nesta identidade: enquanto teatro é o que a nós se mostra, espelho é o que a nós nos mostra. Teatro será a peça de Calderón sobre os deuses, espelho a sobre os homens. Por isso as tragédias gregas, mais divinas do que humanas, serão mais teatro do que espelho ou espectáculo.

Os Romanos acentuaram a espectacularidade do teatro que receberam dos Gregos. A palavra persona logo passou a ser entendida como o que nos mostra o que somos. O sentido do teatro como espectáculo ou espelho do mundo exorbitou dos limites do espectáculo como tal, como acção que num tempo fixado decorre representada por actores sobre um palco. A exorbitação consistiu em estabelecer uma analogia entre o maquinismo teatral com as suas diferentes peças - o podium, o comediante, as "falas", etc. - e o processo como é feito o convívio entre os homens. O espelho do mundo passou, assim, a ser a máquina teatral, e o próprio mundo acabou por ser imaginado como uma máquina, ao dizer-se, por exemplo, Deus ex maquina. Já a persona, então, não é apenas isso que o comediante põe sobre o rosto para nos mostrar o que somos, é também o que nós mesmos mostramos que somos. Todos nós, na vida e no mundo, somos, como no maquinismo teatral, actores e personagens. "Eu não sou" - diz Cícero - «o actor de outra persona [da persona de outrem] mas o actor só da minha." "Non actor sum alienae personnae, sed actor meae."

Assim se esquecia, porventura se perdia, o sentido da persona como aquilo através do qual soa isso que soa e o enigma ou mistério que há nela. Passa a ser apenas o utensílio pela palavra designado mas ele mesmo desprendido da utilidade que se lhe dava e que serve só para mostrar ou fazer ver, que é o mesmo que esconder e ocultar. A partir do século XVI, também através do teatro, os dialectos latinos adoptaram a palavra de um deles para substituir a persona: máscara. Máscara era o que os actores italianos da commedia dell'arte utilizavam para cobrir o rosto, só com o fim de o esconder. Exactamente o contrário da antiga persona que se destinava, não a esconder, mas a revelar. A máscara é apenas visual, é o que se mostra para não deixar ver; a persona está ligada à audição, à voz que soa, à palavra que se diz e ouve.






Psyche



Consideremos agora o teatro - ou o mundo e a vida - como coisa real sobreposta a toda a distinção entre ver e ouvir, entre imagem e voz. Todos nós ligamos à palavra espelho (ou espectáculo) muito mais do que a reflexão da imagem dos corpos. Por isso reflectir transitou do sentido imagético original para a designação do pensamento que mergulha em si próprio e especulação passou a significar um modo filosófico de pensar. Também a visão está na raiz da palavra teatro, mas o que sabemos da persona já nos livra de ficarmos presos ao que de unilateral e minorativo reside na raiz da palavra. Sabemos que, através das imagens que o teatro nos faz ver, algo se ouve, uma voz nos fala. Sabemos que para isso as imagens ali estão: para que através delas ouçamos as palavras. As imagens, como os corpos, são apenas mediadoras. Mediadoras entre nós, a quem prendem como seus espectadores para através delas ouvirmos o que soa, e isso que, através delas, nos fala. A persona como imagem, como o que se vê e se nos mostra, terá, então, um significado ou um sentido muito menores do que aquilo que por ela se manifesta ou soa.

A analogia entre teatro e mundo abriu à palavra persona um estranho destino que a levou a dividir-se, paradoxalmente, entre significar o que de mais oculto e secreto há no homem e o que de mais patente e manifesto há na divindade. No primeiro caso, apresenta-se com a singularidade que supõe um conceito universal e diz-se "a pessoa humana"; no segundo caso, apresenta-se com a pluralidade própria do que se patenteia e diz-se "as pessoas divinas".

As pessoas divinas dizem-se ser o Padre, o Filho e o Espírito Santo. Não são elas o mesmo Deus; não são também as efémeras ou instantes figuras aparenciais de que a divindade era susceptível no polimorfismo grego e romano. São os modos entitativos da aparência ou da manifestação divinas, os modos por que se diz o ser, não o ser que é por participação mas o único ser do qual se não pode discutir que seja o que é, o único que de si mesmo pode dizer: "Ego sum qui sum". As pessoas divinas aparecem-nos, pois, tal a persona no teatro, como mediadoras entre o ser que é e o ser ou seres que carecem que ele se diga. O ser que é diz-se através das "pessoas" - não avatares, aparições, fantasmas, máscaras, imagens - porque às pessoas é atribuído algo de entitativo, porque elas participam do ser que através delas se diz. Tal como no teatro? Lembremos que no teatro nos interrogávamos sobre o que é isso que através da persona soa ou se diz. Os dialectos latinos que falamos retiraram do teatro a palavra para a entregarem à teologia. Pode agora o teatro receber da teologia o que lhe deu, mas recebê-lo como resposta à sua mesma interrogação?

Ditas as pessoas divinas, pôde dizer-se "a pessoa humana". Nos dialectos latinos, pessoa passou até a designar todo o ser humano e num deles, o francês, a total ausência de ser. Diz-se, do homem, que é pessoa para significar o quê? A intenção é, sem dúvida, a de valorizar o humano e o humanismo, mas qualquer resposta a tal pergunta tem de contar com isto que a persona - da sua, embora já remotíssima, origem - não deixa que se não tenha presente: que o homem, como pessoa, será aquele que se não tenha presente: que o homem, como pessoa, será aquele ente através do qual outrem, não ele próprio, soa, fala ou se diz. A expressão "pessoa humana" resulta, portanto, anti-humanista.

«Todos os vivos sonham", diz uma personagem de Calderón. E acrescenta: "Que é a vida? Aparência, fantasma, ilusão. O maior bem é coisa nenhuma. Porque toda a vida é sonho, e os sonhos são por sua vez sonhados."»

Orlando Vitorino («Notas Contra a Degradação do Espírito»).




Regras ignoradas da Arte de Bem Representar aqui publicadas para que nela se louvem os actores que representarem Tongatabu 


Conta Plutarco em A Vida de Pelópidas:

«Houve na Grécia um tirano que tinha por divertimentos "mandar enterrar homens vivos, cobrir outros com peles de javalis e lançar sobre eles os cães que os devoravam, reunir a população das cidades aliadas e amigas e mandar decapitar todos os jovens. Assistindo um dia a uma representação das Troianas, de Eurípedes, saiu bruscamente do teatro mas mandou dizer aos actores que continuassem a representar os seus papéis. Não saía porque estivesse descontente com a representação mas porque se envergonhava de que o vissem chorar as desventuras de Hécuba e Andrómaca, a ele que fazia degolar sem piedade tantos cidadãos"».

Conta-se num manual de literatura francesa:

«Mallarmé tinha um gato. Numa noite de luar, ouviu-o nos telhados a dizer aos outros gatos que andava na vida a fingir que era o gato de Mallarmé».

Diz uma personagem de Shakespeare: «As cabriolas dos actores que durante uma hora se agitam no palco, nada significam».












Macbeth Consulting the Vision of the Armed Head. By Henry Fuseli, 1793-1794. Folger Shakespeare Library, Washington.




Diz o dramaturgo Christopher Fry:

«Sem as palavras que as personagens falam, uma tragédia de Shakespeare não se distingue de uma reportagem policial».

Diz o jornalista Ernesto Palma:

«O teatro é o que o actor faz».

Diz o encenador de Nem Amantes nem Amigos:

«…acabei sempre por concordar com os actores que, por muito que saibamos, há sempre no teatro um segredo que só eles conhecem. Foi para isso que deram a alma».

Diz o autor de Tongatabu:

Quando esta peça foi representada, um crítico inteligente considerou que «o encenador deve ter indicado aos actores o tom enfático da declamação que, ao contrário de valorizar poeticamente o texto, o desvaloriza…»; e acrescentava: «Gostaríamos de ver Tongatabu representada em estilo naturalista. Então teríamos em primeiro plano a sua densidade poética, que o artifício poético da declamação de Augusto de Figueiredo e Ivone de Moura despoetizou».

Todavia, no final de um dos espectáculos, foi o encenador abordado por um espectador entusiasta, naturalmente jovem, que o invectivou por ele ter consentido que os actores dessem à declamação um estilo naturalista que desvalorizava a «densidade poética» da peça.

A ter de pronunciar-se sobre tal disparidade de juízos – manifestação, aliás, de uma eterna discussão sobre os modos de fazer teatro – o autor dirá que se encontra mais próximo do crítico sábio do que do jovem entusiasta, embora esteja longe de entender que a representação teatral deva ser «naturalista». Pensa, na verdade, que a linguagem teatral é a da prosa, mas a da prosa que está para além da poesia, como a poesia, por sua vez, está para além do prosaísmo utilitário, comunicativo e quotidiano, «língua que o povo faz». Se aquilo que se entende por «estilo naturalista» é o prosaísmo quotidiano, o autor imediatamente o repudia, pois a prosa utilitária e comunicativa não possui nem conteúdo, nem virtualidade, nem expressão artística. Importa, porém, considerar que a poesia é de tal modo que, consoante diz um dramaturgo inglês contemporâneo, o espectador pode sair do teatro dizendo para consigo que também ele é capaz de, na linguagem de todos os dias, falar em verso. O que pelo menos significa, de acordo com a verdade de uma antiquíssima tradição, que são os poetas quem faz a língua.

Que quem faz o teatro é o actor, ou que o teatro é o que o actor faz, será o que toda esta velha discussão sempre acaba por concluir. E sem querermos saber de estilos naturalistas ou declamatórios, maneiras superficiais de considerar o assunto, diremos que o que o actor não pode dispensar é o exagero ou a hipérbole. Não se trata, evidentemente, da hipérbole que os maus actores, muitas vezes com agrado público, façam de si próprios, da sua pessoa e, até, da sua arte. Trata-se da hipérbole que manifesta a ficção, o fingimento ou a ironia, isto é, a substância do teatro. Se ninguém põe em dúvida que o teatro seja ficção ou fingimento, pois isso se afigura a mesma evidência, já suscita muitas objecções dizer que o teatro é, substancialmente, ironia.

Deve o autor informar que tem da ironia o entendimento que Platão lhe transmitiu: consiste em dizer a sério o que é a brincar e dizer a brincar o que é a sério. Claro que para Platão, filósofo, são outros os termos da ironia. São dizer como verdade o que é mentira e dizer como mentira o que é verdade. Assim o faz na «República», para só citarmos o exemplo mais citado, quando diz que é preciso expulsar os poetas da cidade. Mas outros ainda são, para o actor, os termos da ironia: deverá ele falar (não dizer) a sério o que é a brincar e falar a brincar o que é a sério.


Ao identificarmos ironia com fingimento, logo decerto suscitamos no leitor a evocação do famoso poema em que Fernando Pessoa dá o poeta por fingidor até do que é real – «chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente» –, o que no mundo do teatro só é verdadeiro para o dramaturgo pois o actor jamais poderá fingir o que sente embora possa sentir o que finge.

Melhor seria, porém, evocar José Marinho, último filósofo platonista, que dizia que «tudo é verdade ou símbolo». O Teatro será, então, como a religião, símbolo, e a ironia consistirá em confundir as duas partes de que é feito o símbolo, a que é patente e a que é oculta, em as trocar e baralhar para, destruído o símbolo, desafiar o espectador a reconstruí-lo. Sendo como a religião, o teatro será, deste modo, o contrário da religião a qual, desprovida de ironia, sempre patenteia o que é patente e oculta o que é oculto. E por isso se alia à ironia, em especial a do teatro, um sorriso luciferino ou erótico – portador da luz ou ocultador da luz – que irrita as inteligências graves e naturalmente ofende os estúpidos. O autor reconhece, por fim, que nunca os actores conseguirão, sem a ironia, fazer teatro com a sua peça, que consiste, toda ela, em dar por fantasiado o que é vivido e por vivido o que é fantasiado.

A «naturalidade» e a «poesia», o «estilo naturalista» e o «artifício poético», serão, em partes iguais, os dois componentes da representação dos actores. Utilizarão eles a «naturalidade» própria do vivido quando a situação e as palavras forem mais evidentemente fantasiadas; utilizarão a «poesia», mais própria da fantasia, quando a situação e as palavras forem mais patentemente vividas. Seu dever artístico e sua obrigação profissional é mergulhar o espectador na perturbação e na confusão como Plutarco conta que aconteceu àquele tirano grego que saiu em lágrimas do teatro por não suportar assistir à representação dramática de crimes semelhantes aos que ele, prosaicamente, todos os dias executava. Para o conseguirem, ajudá-los-ia o exemplo daquele gato de Mallarmé que fingia ser o gato de Mallarmé. Outros exemplos a recorrer encontrarão na «Gatomaquia», de Lope de Vega, autor também de uma «Arte de Fazer Comédias». E ainda, para não recomendarmos apenas clássicos, na peça com gatos que é «O Verão» de Roman Weingarten. Os gatos, porém, não falam.

Citemos agora Shakespeare: não é nas «cabriolas dos actores que durante uma hora se agitam em cena mas nada significam» que reside a acção teatral; é, sim, no que leva as personagens a serem, no final da peça, o contrário do que eram no início dela. Todavia, as personagens não são «estados de alma» nem uma peça é o itinerário da alma por vários estados. As personagens são, antes, «estados de espírito», ou do espírito, nos quais o actor é apenas a figura daquilo em que o espírito se manifesta ou está. Não levemos, porém, o teatro para tais lonjuras, pois por agora só queremos assinalar a distinção entre estados de alma e estados de espírito, e falemos das palavras.

Congratula-se o autor por o destino o haver dado a esta tão deslumbrante língua portuguesa. Foi ela uma língua singular na história da civilização que ainda predomina no mundo. Porque só aprendem a significação de seus termos e combinações os que têm o saber imediato de os referir aos étimos e paradigmas latinos, o português é, mais do que uma língua românica ou derivada, um dialecto do latim, como o castelhano, o italiano e o francês. Contém, todavia, expressões sintácticas, morfológicas e fonéticas que permitem ligá-lo directamente ao grego, ao hebreu e ao árabe, e até, numa concepção que faça derivar as línguas umas das outras, defender a tese de que sua origem não está no latim. Foi, entre todas as línguas europeias modernas, a que primeiro alcançou uma perfeita capacidade descritiva (Fernão Lopes é anterior a Froissart) e a mais difícil capacidade conceptiva (D. Duarte é o primeiro filósofo que escreve em vernáculo); só na expressão poética foi precedida pelo italiano, com Dante e Petrarca antes de Camões. Contém, ao mesmo tempo, a maior riqueza de vocábulos entre todas as línguas, e os fonologistas observam que só o inglês se lhe pode comparar na variedade de sons e articulações. Primeira língua, portanto, a atingir na Europa moderna a plenitude da expressão, vai também ser a primeira a extinguir-se. Ao aproximar-se agora o seu fim, reúne nestes últimos breves decénios – como aconteceu na Grécia e porque «a ave de Minerva levanta voo ao anoitecer» - os seus mais poderosos filósofos e poetas: Bruno, Leonardo e José Marinho, Pascoaes, Pessoa e Régio. Com a recente morte do último filósofo e do último poeta, os portugueses perdem também a última guerra que travaram, vêem as suas possibilidades de sobrevivência desfeitas às mãos dos movimentos colectivistas internos e internacionais, e a demência social e política é a consequência imediata da perversão da linguagem. As palavras, adulterado o sentido que tinham, já apenas servem para designar objectos materiais, coisas, sentimentos negativos e apelos ao ódio. Deixam, dia após dia, de ser palavras, para serem apenas sinais e estandartes. E acabando por ficar impotente para exprimir estados de espírito e estados de alma, pensamentos e sentimentos, o português já é, de facto, uma língua morta. Como o latim e como o grego. O que dela ainda irá perdurando durante algum tempo será apenas o vozear babélico de uma multidão que, tendo perdido a variedade que mantém vivos os povos, ainda vai precisando de recorrer aos vocábulos utilitários e comunicativos enquanto se não dissolve de todo na uniformidade e na informidade a que irreversivelmente se dirige.

Túmulo de Luís Vaz de Camões (Mosteiro dos Jerónimos).









Escrever e falar uma língua que, ainda usada como viva já é de facto uma língua morta, constitui, para o dramaturgo e para o actor, a oportunidade, jamais tida por outros homens com a consciência de a terem, de escreverem e falarem como clássicos. O que significa e vale isso de falar a língua morta dos clássicos, souberam-no durante mais de mil anos os sacerdotes que acreditaram na revelação de Deus em palavras sagradas que todos os dias repetiam celebrando o culto em latim; e sabia-o também o autor do «Leviathan» que abolia das escolas o ensino dos clássicos por instilarem eles nos homens o espírito de liberdade.

É certo, que, em tais condições, o teatro vê diminuída, talvez anulada, a audiência que precisa de ter. Perdido o sentido que as palavras recebem das almas e dos espíritos, a multidão já só entenderá – como está acontecendo – «as cabriolas dos actores que durante uma hora se agiram em cena e nada significam». Esperemos, todavia, que aqueles reduzidos milhares de pessoas que, entre a multidão informe, ainda conseguem manter-se como pessoas, sejam suficientes para acompanhar as exéquias da língua que morreu.

Para além disso, que é efémero e transitório, as palavras soarão na voz dos actores como palavras a traduzir, uma vez que perderam o seu imediato sentido. E imediatamente os actores assumirão o grau supremo da arte de representar, aquele em que, nas palavras, aparece distinto o que é voz e o que é sentido. Ao ouvir-se ou ao falar-se uma língua estrangeira, conhecendo-a embora o melhor possível, algum intervalo sempre se põe entre o som e o sentido; ao evocar-se uma frase alheia, seja o verso de algum poema seja o juízo de algum filosofema, sempre se põe entre as palavras e o que elas dizem essa mesma evocação, mais talvez em substância de tempo do que em demora de tempo; assim também, mas mais do que alheias ou estranhas, as palavras de uma língua morta são faladas como vindas de um outro de quem as fala ou de um lugar alheio àquele onde soam, de um outro mundo. Uma espécie de eco, mas sem a origem da voz repetida, uma espécie de ressonância mas no sentido. O ofício do actor fica todo aí: as palavras são da personagem, o outro do actor, e ao emprestar-lhe, com o corpo visível que ela não possui, a voz que ela também não tem, da personagem recebe o actor as palavras que não são suas.

Os tratados da arte de representar enunciam todos aquela condição sem a qual não há teatro, e mandam separar o gesto e a voz: quando o actor diz, por exemplo, «este ceptro que ergo nas mãos», deverá erguer primeiro o ceptro nas mãos e só depois o dizer. Nesta separação, e no intervalo, pausa ou tempo que a acompanham, porá o actor a sua arte. Acontece, porém, que o ceptro que no palco o actor sempre ergue em suas mãos, é o próprio corpo. Entre os gestos que dão presença ao corpo e a voz que dá presença às palavras, aí é o lugar onde o actor porá verdadeiramente a sua arte. Uma prevenção queremos, neste ponto, fazer-lhe.

Têm os actores a tendência para, dentre todas as partes do corpo, gesticularem sobretudo com o rosto. Ora todo o gesto do actor envolve sempre o corpo inteiro, abrange igualmente todas as partes dele; por isso os comediantes só devem deixar que os autores os sentem ou os deitem nos momentos em que as personagens que representam ficam fora da acção, o que equivale a dizer que os actores em cena estão sempre de pé.

O rosto, face da cabeça, é inseparável da unidade composta por todas as partes do corpo. A gesticulação dos olhos e dos lábios só se deve fazer quando chega o momento, visivelmente preparado, de completar, o movimento ou o gesto do corpo inteiro. As mesmas palavras têm de se ver «subir à boca» antes de fazerem mover os lábios.

Porque é que a que menos fala – ou, o que é o mesmo, porque extrai a sua comicidade do contraste entre falar muito e dizer pouco – a personagem cómica aproxima-se da personagem muda, e o actor que a representa deve exercitar-se a completar a gesticulação, não com o rosto, mas com algumas das outras partes do corpo, como fazem os palhaços com os pés. O exercício poderá consistir em ensaiar a representação como se não houvesse fala ou como se a fala nada trouxesse à representação. Há actores cómicos que têm levado este exercício até ao extremo de, para lá do ensaio, fazerem mudas as suas personagens, o que é naturalmente um erro pois sem palavras não há teatro. Outros julgam poder fazer com o rosto o que podem fazer com as mãos ou os pés e fabricam uma representação aviltante do ser humano. É que o rosto, até na mais baixa farsa, só deve exprimir estados de alma e estados de espírito, sentimentos e pensamentos profundos.

1.ª representação em Portugal de Jacob e o Anjo, concretizada pela Companhia do Teatro Popular de Lisboa, a 22 de Maio de 1968, no Teatro da Estufa Fria, numa encenação de Orlando Vitorino, com cenários e figurinos de Pinto de Campos. Alguns intérpretes foram: Augusto de Figueiredo, Andrade e Silva, Ricardo Alberty, Madalena Sotto, Henrique Viana, Alves da Costa, Assis Pacheco…

Em todos os casos, o gesto destinado a dar presença ao rosto deverá evitar toda a distorção da forma natural que ele possui. Porque o rosto é a mais admirável e misteriosa forma da natureza, lugar de encontro do interior com o exterior, lugar onde a alma e o espírito entregam a sua essencial interioridade ao que lhes é exterior e, simultaneamente, dele se embebem. A beleza e a verdade desta forma manifestam-se sobretudo na tranquilidade do rosto, e se é certo que os principais elementos que o compõem, os olhos e os lábios, são moventes, o movimento a dar-lhes não deve alterar a imagem que eles oferecem em sua tranquilidade. O actor deve portanto evitar toda a gesticulação de olhos, de sobrancelhas e de lábios que exceda os limites dessa imagem. Convirá que os olhos sigam levando atrás de si o corpo, que as sobrancelhas abandonem o menos possível a sua posição tranquila – recta sobre os olhos – que mais convém acentuar do que desfazer, que os lábios se abram e fechem só para a voz emergir ou cessar mas procurando marcar visivelmente as posições próprias dos diversos sons o que, aliás, enriquecerá a sonoridade.

Tudo isto contêm os tratados da arte de representar. O que eles não contêm é a regra de ouro do teatro, a que manda separar, nas palavras que se falam, a voz e o sentido. É o que imediatamente fazem os actores que falam uma língua morta, os que falam como clássicos.

Conta a «Bíblia» do maná que caiu do céu e saciou a fome dos judeus perdidos no deserto. O verdadeiro maná que caiu do céu e saciou a fome dos homens perdidos no mundo, foram as palavras. É com elas que «vem a nós o que está no céu». O que vem do céu é sempre para devorar: «comei, que é do meu corpo; bebei, que é do meu sangue».

A um ensaiador ouviu um dia, o autor desta peça, aconselhar assim os actores: «As palavras são para se amarem com desejo carnal. São para saborear com os lábios, com os dentes, com a língua, como um esfaimado saboreia um pedaço de carne». Análoga sugestão encontrou nos versos de um poeta lírico: «As palavras, ao saírem de mim, acariciam-me os lábios».

Exercitar-se-á o actor a amar as palavras com desejo carnal e com carícia erótica. O exercício consistirá em representar sem deixar de ouvir as palavras a que dá voz e sem deixar de subtilmente mostrar que as está ouvindo. Mas não o deverá mostrar nem demais nem de menos. Se o mostrar demais, o espectador é tentado a pensar que ele não sabe o «papel» e está a cumprir o «ponto»; se o mostrar de menos, o espectador é levado a pensar que ele representa a personagem como se a estivesse vivendo. E tanto uma coisa como outra são a ruína do teatro.

Para não mostrar de menos que está ouvindo o que fala, para não cair no abominável realismo e na abominável naturalidade, convém que o actor nunca esqueça aquilo que distingue o modo de falar dos actores e os modos de dizer das pessoas reais. Têm estes quatro modos genéricos de dizer; ou dizem o que sabem, ou dizem o que não sabem, ou sabem o que dizem, ou não sabem o que dizem. Pode estabelecer-se uma correspondência entre tais modos de dizer e os diversos tipos caracterológicos, psicológicos e morais; referindo o primeiro, por exemplo, à prudência, o segundo à insensatez, o terceiro à sabedoria, o último à estultícia. Poderão eles ser utilizados como eficazes instrumentos pedagógicos e didácticos, no ensino da ética, da política e da retórica. Mas o que nos importa aqui é utilizá-los para o exercício da arte do actor. Ora não é o actor, mas a personagem, quem diz; e não é a personagem, mas o actor, quem fala. E falar é mais do que dizer, pois contém o que no dizer reside mais o saber desse dizer. Na verdade, o actor fala sabendo que não sabe o que diz. Cada um destes diferentes modos de falar, em sua forma pura, ou unívoca, pertence à tragédia; em suas formas impuras, ou equívocas, pertence à comédia. Por exemplo: a personagem que não sabe o que diz tanto pode ser a de um pobre tolo, e é cómica, como a de um mensageiro dos deuses, e é trágica. A tragédia e a comédia não residem nas personagens, pois as personagens são o que forem as palavras que dizem e ambas, as cómicas e as trágicas, podem dizer as mesmas palavras. Nem residem nas situações e acções dramáticas pois o que lhes dá sentido são também as palavras sem as quais «uma tragédia de Shakespeare se não distingue de uma reportagem policial». Residem no actor que fala ou sabe, no exemplo considerado, que a personagem não sabe o que diz. A sobreposição ou duplicação do actor à personagem é a sobreposição do falar ao dizer, e é aí que está o originário segredo do teatro como bem se revela nos termos da «gíria» teatral: «falas», «deixas», «ponto», «representação», etc. Seja, por exemplo, «representação»: o actor «re-presenta», o actor sobrepõe a presença, o actor põe duplamente presente a personagem.














Os mestres ou ensaiadores dos espectáculos teatrais procuram obter este resultado insistindo com os actores para que «gozem» ou «saboreiem» o que falam enquanto o estão falando. Será, no entanto, mais eficaz, sempre que se trate de actores com sensibilidade erudita ou civilizada, aconselhá-los a falar como se estivessem citando frases célebres, conceitos extraídos de livros clássicos, versos de poemas antigos. Como o «estilo» próprio da citação concita a cumplicidade do espectador – pois citar uma frase célebre é citar uma frase que todos conhecem – a sobreposição do actor à personagem contém também a comunicação entre o actor e o espectador. O exercício que aconselhamos para obter tais resultados é o de o actor tacitamente preencher a pausa – que faz a já descrita separação entre falar e ouvir – com a formação mental, que ao longo dos ensaios acabará por dispensar, de expressões como esta: «como diz Shakespeare na Tempestade…», «…como diz Shakespeare…», «…Shakespeare…».

Originariamente residindo nas palavras, o segredo do teatro contagia todos os outros componentes da arte dramática: primeiro os gestos de cada actor, depois as expressões fisionómicas, e, sucessivamente, a movimentação das figuras, os figurinos, os cenários e a iluminação. Em todos eles deverá estar manifesta a mesma sobreposição, ou duplicação, que está manifesta nas palavras. A arte do dramaturgo consistirá, por sua vez, em inserir a duplicação em toda a acção dramática na qual não haverá situação, acto e drama que não esteja sobreposto a uma outra oculta situação, outro oculto acto e outro oculto drama.

Para evitar a segunda ruína a que pode sujeitar o teatro – a de levar o espectador a pensar que ele não sabe o «papel» e está a ouvir o «ponto» – deverá o actor prestar uma atenção formal às pausas. Não para fazer delas, como os tribunos políticos fazem, uma exibição de si próprios, da sua pessoa e da sua arte. Porque em si mesmas as pausas nada significam, essa exibição também não significa nada. E o que cumpre ao actor é fazer que as pausas signifiquem, que signifiquem o nada, que representem o silêncio.

Na música, as pausas sucedem-se ao som para mostrar como, abandonado da música, o mundo é um temeroso mundo do silêncio. No teatro, pelo contrário, as pausas precedem as palavras para mostrar que as palavras são, não o outro ou o contraste do silêncio, mas sim o silêncio feito palavra. A pausa não deve, portanto, ser representada pelo actor que deixa de falar, como fazem os cómicos que se exibem, mas sim pelo actor que vai falar.

Revela a música que o silêncio, tal como a matéria, é contínuo e infinito; e revela-o fazendo-se a si própria, ela que é o outro do silêncio, imitação do outro da matéria, o espírito, que «sopra onde quer» e onde está imediatamente deixa de estar. Imitação do espírito, a música é um sopro súbito, uma percussão fugaz, uma harmonia de instantes.

Feito de palavras, o teatro procede ao contrário da música: mergulha até às profundidades do silêncio e delas arranca pedaços a que dá forma e fazem viver o mundo. As palavras são formas dadas ao contínuo e infinito silêncio como os corpos são formas dadas à matéria contínua e infinita. E como os corpos, também as palavras com desejo carnal e eróticas carícias, representando nas pausas o silêncio que precede a criação do mundo.

Obrigado a fazer sozinho uma viagem de automóvel durante uma tarde inteira, através de campos amarelos, terras secas e céu pesado, o autor condoeu-se de si próprio e pôs-se a desejar outras viagens através de paisagens feitas de céu cristalino, mar azul e ilhas verdes. Pouco a pouco, os desejos foram-se vertendo em imagens, o imaginado veio-se sobrepondo ao vivido, as visíveis paisagens terrestres duplicando-se de invisíveis paisagens aquosas, e seres ideais emergiam dos seres reais que o viajante cada vez mais intermitentemente conseguia evocar. Deste modo se desenhou um conflito que, para povoar a solidão da viagem, o viajante ia alimentando de episódios e peripécias, de reflexões ora melancólicas ora efusivas, de formas inutilmente destinadas há muito a sempre insatisfeitos desejos e ambições. E tudo ia decorrendo tão suavemente como a aprazível paisagem da ilha onde a imaginação mais se demorou, com seu estreito e fundo porto de águas transparentes, com suas montanhas redondas pousadas como seios cortados de mulheres, com suas árvores de folhas carnudas e tão largas que podiam envolver corpos nus que o viajante se surpreendia a tentar descobrir. Assim entrou ele por uma espécie de delírio sem ondas, e as figuras dos emersos seres ideais puseram-se a tecer entre si um jogo ou intriga feita de mentira e de verdade mas de tal modo que cada uma delas dizia como verdade à outra o que ela já previamente sabia que lhe ia ser dito e era mentira. O viajante descobriu deste modo, sem surpresa embora com grande contentamento, que tais seres, agora já não são apenas imaginados, eram sem mal e sem erro, e a ilha seria um lugar do paraíso. Decidiu então deixá-los falar por si próprios, o que eles fizeram demoradamente, e tanto gosto punha em ouvi-los que, ao aproximar-se o termo da viagem, a retardou quanto podia para mais demorar o regresso à sempre desesperante realidade vivida. O que tais seres disseram, a intriga que teceram, a plena gratuitidade em que existiram, a partir do momento em que o viajante decidiu deixá-los entregues a si próprios, foi o que depois o autor escreveu rapidamente, sem outra intenção que não fosse a de tentar reviver o que tanto lhe agradou de algum modo viver, ou movido, porventura, de uma íntima gratidão para com dois seres sem mal e sem erro que, com o seu jogo de verdade e mentira, quiseram povoar a solidão do viajante abandonado.






Assim se compôs esta peça, e o maior espanto do autor veio-lhe, como um susto, quando a viu representada: os seres de quem ouvira tudo o que escreveu, apareceram-lhe em corpo visível. Concluiu que nunca coisa alguma lhe pertencera tão pouco e antes fora ele que para toda a vida ficara possesso dos seres que uma tarde tanto gostou que o acompanhassem. (Orlando Vitorino, Tongatabu e Nem Amantes Nem Amigos, Teoremas, 2.ª edição, 1977, pp. I-XVI).


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