Monumento a Mouzinho de Albuquerque, na praça com o mesmo nome, em Lourenço Marques (anos 1940). |
«Foram-se mais de três partes do Império de Além-Mar e Deus sabe que dolorosas surpresas nos reserva o futuro...».
Mouzinho de Albuquerque (in carta ao Príncipe D. Luís Filipe de Bragança).
«A guerra é de facto uma coisa má. Mas existe algo ainda pior do que a guerra: é perdê-la».
João José Brandão Ferreira
«[...] Roubo a Vossa Excelência alguns momentos para um caso que tem moralmente muita importância. Vejo nos jornais de hoje que, no meio da confusão suscitada na República da Guiné, conseguiram escapar alguns militares portugueses que ali estavam em cativeiro. Entre eles, vejo o nome do sargento António Sousa Lobato. Ignoro se Vossa Excelência conhece a história deste homem. Foi aprisionado em nosso território por terroristas vindos da República da Guiné, há cerca de sete ou oito anos. Esteve preso naquele país às ordens de Amílcar Cabral. Vossa Excelência avaliará as condições de uma prisão na República da Guiné: promiscuidade, criminosos de direito comum, falta de alimentação e medicamentos, etc. Durante todo o tempo, ou parte dele, conseguiu-se que a Cruz Vermelha Internacional lhe fizesse chegar alguns remédios, conservas e algum dinheiro, embora parte de tudo isso fosse roubado pelo caminho. Mas o mais mportante é a atitude moral do sargento Lobato. O Governo da Guiné e Amílcar Cabral quiseram-no forçar a assinar um papel em que se declarasse desertor e condenasse as "atrocidades" do Exército português. Recusou. Depois pretenderam obrigá-lo a assinar outro papel em que se comprometesse, quando liberto, a não se alistar mais nas Forças Armadas portuguesas. O Lobato respondeu que, quando fosse liberto, a primeira coisa que faria seria a de se apresentar às suas autoridades militares. Passado tempo, novamente voltaram a insistir: se assinasse um papel comprometendo-se a não combater mais na Guiné, seria solto. Lobato respondeu que, logo que estivesse livre, pediria às suas autoridades militares para tornar a combater precisamente na Província da Guiné. Foi sempre da maior firmeza, decisão e patriotismo; e isso em condições morais e de saúde que não podiam ser mais precárias e difíceis. Raros terão tido um tão alto sentido de dever e uma constante e sólida coragem. Penso que o sargento Lobato merece uma alta distinção militar, e que o seu exemplo deveria ser publicamente conhecido e reconhecido. E por isso, tendo acompanhado durante anos o calvário daquele nosso militar, eu não ficaria de bem com a minha consciência se não escrevesse a Vossa Excelência estas linhas. Estou certo de que Vossa Excelência perdoará haver-lhe feito perder alguns minutos, 30 de Novembro de 1970. Franco Nogueira».
Franco Nogueira a Marcello Caetano (30 de Novembro de 1970. APMC).
«(...) a resignação, em 1961, do Prof. Oliveira Salazar das funções de Presidente do Conselho de Ministros, teria como consequência fatal que a carnificina em Angola, que já vitimara 7.000 brancos e negros, tomaria muito maiores proporções, com dezenas de milhares de mortes.
E aqueles que sustaram aquela resignação, abortando o golpe Botelho Moniz-Costa Gomes, têm hoje a paz de consciência e a satisfação espiritual de terem evitado o que bem poderia chamar-se um holocausto.
Mas o golpe, falhado de inteligência e misto de ingenuidade ou erro e de crime, do "25 de Abril" de 1974, inverteu o sentido das lutas em Angola, Moçambique e Guiné - lutas que, mantendo-se a Metrópole, nunca poderiam perder-se e que, pelo menos em relação aos dois primeiros territórios, estavam a ganhar-se. Provocou a guerra em Timor - onde havia plena paz. E deu lugar à descolonização. Em consequência, produziram-se centenas de milhares de mortes e instalaram-se e generalizaram-se a ruína e a miséria, o sofrimento e a desgraça.
E aqueles que de tal são responsáveis suportam e suportarão para sempre, se possuírem um mínimo de consciência, o remorso de tamanho holocausto e serão, cedo ou mais tarde, chamados a juízo pelos homens ou por Deus.
Assim, os que, em 1961, puderam, com acerto em todos os domínios, evitar a grande ampliação de um drama, não tiveram, em 1974 e tempos seguintes, posição, que lhes havia sido negada ou retirada, para impedirem que outros, em completo desvario ou com premeditadas intenções, provocassem uma enorme catástrofe».
Kaúlza de Arriaga («Guerra e Política. Em Nome da Verdade. Os Anos Decisivos»).
«Antecedendo a situação que rapidamente se descreveu, dia após dia, depois de 1961, os nossos estadistas e os nossos estrategas proclamaram o valor do Ultramar português para o Mundo ocidental e o perigo que representava o seu controlo por poderes hostis ao Ocidente. A nossa experiência histórica de nação e país espalhado pelos continentes, e o conhecimento pormenorizado do potencial geo-estratégico de que na realidade dispúnhamos, dava aos mais esclarecidos dos nossos responsáveis a percepção nítida daquele perigo. Dia após dia apontámos, sem erro, as forças que haviam erguido e estavam sustentando os movimentos inimigos. Em anos sérios da nossa guerra tentámos despertar o Ocidente, gritando que nos considerávamos sós, num combate que a todos interessava, embora orgulhosamente, como portugueses inteiros, que então praticamente todos ainda éramos. Está à vista do Ocidente a razão que nos assistia, agora bem concretizada nessa trágica viragem estratégica sofrida pelo Mundo, após o 25 de Abril».
General Silvino Silvério Marques (in «África: A Vitória Traída»).
«A situação vivida na Guiné, nos princípios de 1974, pode ser caracterizada pelos seguintes pontos:
1. O mais importante acontecimento político-social, nos três primeiros meses de 1974, foi o V Congresso do Povo, realizado de 21 de Fevereiro a 10 de Abril.
Manifestação de diálogo entre o Povo e o Governo, através do qual se conferia às populações a possibilidade de uma participação mais efectiva na vida da comunidade, o V Congresso do Povo desenvolveu-se nas suas fases regional e provincial, mobilizando alguns milhares de representantes das populações e dando lugar a 24 sessões de 4 reuniões cada, em 19 localidades da Guiné, além de Bissau.
Se a realização do Congresso, pelo quinto ano consecutivo, traduziu adesão das populações e, pelo lado da Administração, continuidade de acção e capacidade de execução, de salientar é também que trabalhos preparatórios, deslocamentos de autoridades e participantes e reuniões se processaram sem interferência do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), embora essa actividade se estendesse a todo o território da Província.
2. Ainda sem interferência do PAIGC se realizou a visita do Ministro do Ultramar, de 15 a 20 de Janeiro. O Ministro deslocou-se a Teixeira Pinto, Cacheu, Pelundo e Farim, no norte, a Nova Lamego e Bafatá (viajando de automóvel entre estas duas localidades), no leste, e a Catió e Caboxanque, no sul.
3. No princípio do ano iniciou-se a execução do Orçamento da Província, no montante de cerca de 380 000 contos, um aumento de 63 mil contos (quase 20%) sobre o orçamento do ano anterior.
Também se deu início à execução do Plano de Empreendimentos (IV Plano de Fomento), dotado com 155 000 contos e especialmente orientado para os sectores da Educação, Saúde, Vias de Comunicação, Agricultura e Melhoramentos urbanos e rurais.
4. No sector da Educação, existia uma população escolar de cerca de 61 000 alunos, com 2 200 professores.
Desta população pertenciam ao ensino primário cerca de 56 00 alunos, que se repartiam por 550 salas de estudo, onde ensinavam 1 050 professores (830 agentes de ensino e 220 militares). No ciclo preparatório estavam matriculados 3 800 alunos e 1 700, no ensino secundário.
5. A Guiné dispunha de 1 Hospital Central, 3 Hospitais Regionais, 6 Hospitais Rurais, 50 Postos Sanitários (24 com médico e enfermeiro) e 12 Maternidades.
Os Serviços de Saúde contavam com 82 médicos (dos quais 4 civis), 2 farmacêuticos e 1 farmacêutico-analista, 360 enfermeiros e auxiliares de enfermeiro, 2 assistentes sociais e 1 auxiliar social, e 76 parteiras e auxiliares de parteira.
Em 1972 foram dadas 676 000 consultas a doentes civis, sendo 174 000 nos Serviços Provinciais de Saúde e 502 000 pelas Forças Armadas.
6. Mantinham-se em construção as estradas Jugudul-Bambadinca, Piche-Buruntuma, Catió-Cufar e Aldeia Formosa-Buba.
7. No sector privado assinala-se a entrada em laboração duma fábrica de cerveja e refrigerantes e dum parque de armazenagem e envazilhamento de gases de petróleo liquefeito, e a construção duma nova unidade hoteleira em Bissau, já em fase adiantada.
8. Problema que afectava toda a população da Guiné era o do abastecimento de arroz, base primeira da sua alimentação.
Reduzida a produção local a cerca de 50% das necessidades, por aumento do consumo e diminuição da produção, como consequência da guerra e dum certo afastamento do trabalho na terra por parte da população, em especial da mais jovem, desde fins de 71, princípios de 72, a importação passou a encontrar dificuldades crescentes, por força da escassez de cereais nos mercados mundiais e da elevação de preços, quer do produto, quer dos transportes. Assim, em fins de 1973 houve necessidade de contingentar a distribuição e de elevar o preço, tabelado, de 5$50 para 7$00, suportando embora o Governo um encargo não inferior a 2$50/kg.
Estas medidas não foram naturalmente recebidas com agrado pela população, apesar de o arroz ser vendido nos territórios vizinhos a preços muito superiores ao praticado na Guiné (Senegal 14$00 e República da Guiné 22 a 26$00) e de ter havido um aumento do preço de aquisição ao produtor local de cerca de 25%.
Para atenuar uma situação de abastecimento com tendência para se agravar, dada a progressiva retracção do mercado mundial, independentemente de custos, várias acções foram empreendidas, com a diversificação da dieta alimentar tradicional, para o que se recorreu à importação de milho e feijão, a recuperação de bolanhas e uma intensificação do esforço para o aumento da produção, pelo apoio à cooperativização dos agricultores, distribuição de sementes de arroz seleccionadas e de adubos e apoio técnico dos Serviços Provinciais de Agricultura, além do aumento dos preços de aquisição ao produtor.
9. Por último assinala-se a contribuição das Forças Armadas para a vida da Guiné, em tarefas de promoção social, de desenvolvimento económico e de assistência, e na ocupação de posições nos quadros dos Serviços Provinciais, por falta de elementos civis que os guarnecessem.
Em Março de 1974 estavam desviados para funções exclusivamente civis 37 oficiais, 50 sargentos e 182 praças, num total de 270 militares. Em regime de acumulação de funções militares com funções civis havia 137 militares (110 oficiais, 21 sargentos e 6 praças).
- Dos 82 médicos em serviço na Guiné, 76 pertenciam às Forças Armadas e 2 eram seus familiares.
- Cerca de 75% dos professores eram militares ou seus familiares.
- As verbas dispendidas em 1973 pelas Forças Armadas no desenvolvimento sócio-económico ascenderam a cerca de 160 mil contos, assim distribuídos:
Comparticipação directa:
Saúde: 18 000 contos
Educação: 3 000
Desenvolv. rural: 20 000
Comparticipação indirecta:
Vencim. a civis: 61 000 contos
Transportes: 61 000
- No Plano de Empreendimentos para 1974 foi atribuída às Forças Armadas a construção de 1 500 casas em 44 reordenamentos, 11 postos sanitários e 30 edifícios escolares, bem como a continuação da construção da estrada Aldeia Formosa-Buba, já em fase adiantada.
- Até fins de 1973 as Forças Armadas haviam construído, no sector do Desenvolvimento Rural, 15 700 casas, 167 escolas, 40 postos sanitários, 56 fontenários e 3 mesquitas, e aberto 144 furos para abastecimento de água».
General Bethencourt Rodrigues (in «África: A Vitória Traída»).
«A partir de Janeiro de 74, (...) houve um recrudescimento da actividade do PAIGC com abundantes bombardeamentos de artilharia (donde se detectavam os terríveis foguetões de 12 mm mas, felizmente para nós, com muito pouca pontaria.
A zona mais causticada foi Canquelifá, até que o Batalhão de Comandos atacou, com sucesso, as bases de fogos do PAIGC, entre 21 e 31/3, e a coisa terminou (operação "Neve Gelada" - raio de nome!)».
João José Brandão Ferreira (in «Guerra d'África 1961-1974. Estava a Guerra Perdida?»).
«1. Em paralelo com a guerra, e naturalmente sofrendo condicionamentos por ela postos, desenvolvia-se a vida política, económica e social da Guiné.
Embora sob a influência daqueles condicionamentos, que em maior ou menor grau, punham questões de segurança de pessoas e bens, ampliavam margens de incerteza nas previsões, criavam distorções nos mecanismos de gestão, afectavam relações sociais:
- funcionavam os orgãos de governo próprio;
- a rede administrativa cobria todo o território;
- os orgãos de administração local exerciam as suas funções de gestão;
- os serviços de saúde e de educação cumpriam as missões próprias;
- as comunicações de transporte e de relação asseguravam os contactos entre localidades, permitiam os deslocamentos de pessoas e garantiam os circuitos de comercialização, no interior e para o exterior;
- estavam em curso obras de fomento nos sectores da educação, saúde, vias de comunicação, agricultura e melhoramentos rurais e urbanos;
- a produção agrícola satisfazia parte das necessidades da população;
- cobravam-se impostos;
- cumpria-se um orçamento.
(...) 2. A contribuição das Forças Armadas era vultosa e decisiva, incidindo praticamente sobre todos os sectores da vida da Província.
Militares em regime de ocupação exclusiva ou em acumulação, ocupavam posições nos Serviços Provinciais, responsabilizavam-se pela assistência sanitária, exerciam funções docentes, empenhavam-se na execução de melhoramentos rurais e urbanos, auxiliavam a gestão das comunidades, executavam trabalhos de mão-de-obra especializada, criavam postos de trabalho, dinamizavam iniciativas nos mais diversos campos.
Tinham parte destacada e relevante na comunidade civil e eram elemento essencial da sua promoção e desenvolvimento.
3. O Teatro de Operações da Guiné tinha as seguintes características principais, algumas das quais se não podiam encontrar nos Teatros de Operações de Angola ou de Moçambique:
- Envolvimento por Estados, declarada e nitidamente, hostis, onde as forças inimigas dispunham de todo o apoio e de total liberdade de acção;
A BA 12 (Guiné, 1966). |
- Reduzida superfície, que assim não punha ao inimigo, por isso e pelo apoio recebido nos países vizinhos, problemas de alongamento das suas linhas de comunicações, de dispersão de efectivos e de complexidades logísticas;
- Dos pontos de vista de comando, de manobra e de apoio logístico, com centralização em Bissau, compartimentação, por obstáculos naturais, em 3 zonas:
- a norte do rio Geba
- entre os Rios Geba e Corubal
- a sul destes dois Rios
Esta compartimentação do Teatro de Operações por rios de envergadura, nenhum deles com pontes entre as suas margens e com a navegabilidade condicionada, em absoluto, pelo regime de marés, implicava fortes limitações à acção de comando, ao deslocamento de forças e ao apoio logístico, e lançava um pesado ónus sobre os meios navais e aéreos;
- Clima e terreno não favoráveis às operações, em particular na metade ocidental do território, com as suas quase impenetráveis zonas de mangal e densas florestas tropicais, e com as marés a penetrarem diariamente pela terra dentro, alagando as terras e causando nos rios desníveis de metros;
- Um mosaico de etnias, mais de trinta, diferenciadas entre si, com características e organizações específicas, seus problemas, seus anseios próprios e suas rivalidades.
Por outro lado, o empenhamento das unidades militares na manobra sócio-económica conduzira a uma inconveniente mistura da tropa com a população, que manifestava toda a sua acuidade quando de acções por parte do inimigo.
4. O inimigo evoluíra progressiva e significativamente no seu conceito geral de manobra (concentração de forças sobre objectivos seleccionados ao longo da fronteira, procurando conjugar concentrações maciças de fogos com acções de isolamento dos objectivos atacados) e no seu potencial militar, tanto humano como material, neste dispondo até de superioridade em algumas armas.
O inimigo punha, portanto, uma ameaça séria sobre as guarnições de fronteira, em particular daquelas com mais difícil acesso pelas Forças Nacionais, para reforço e reabastecimento.
5. As características naturais do Teatro de Operações, a evolução do inimigo e a sua liberdade de acção do outro lado da fronteira aliadas a, por parte das Forças Nacionais, reduzidas forças de intervenção e dificuldades de manobra de meios, limitavam em grau considerável a capacidade de iniciativa do Comando das Forças Armadas Portuguesas.
A necessidade de manter forças disponíveis para o eventual reforço, em tempo oportuno, dum objectivo seleccionado pelo inimigo constituía uma preocupação permanente do Comando, aliás traduzida em progressivo aumento das forças em reserva, e um condicionamento pesado da sua liberdade de manobra. Por outro lado, porém, o empenhamento de forças de intervenção nos sectores em que o inimigo decidira fazer o esforço, aumentava a probabilidade de actuação contra as forças que, como norma, se esvaíam e contribuía assim para a desarticulação do sistema adverso.
6. A listagem das características principais do Teatro de Operações da Guiné, feita no n.º 3, só por si conduz naturalmente à noção da grande dificuldade duma acção militar em tal teatro de operações.
Se a essa dificuldade se adicionarem as que resultavam de se defrontar um inimigo com as características que foram referidas, facilmente se deduz a gravidade da situação militar que se vivia na Guiné no 1.º trimestre de 1974.
Era uma situação extremamente exigente para os Comandos e também extremamente exigente e muito dura para as tropas, a requerer em curto prazo a adopção de medidas de âmbito local e no plano da Defesa Nacional, umas em planeamento ou já planeadas e outras em vias de execução.
7. No campo rigoroso do concreto, nega-se frontalmente a veracidade de algumas afirmações que sobre a Guiné têm sido produzidas.
Nomeadamente, aponta-se como rotundamente falso que, no 1.º trimestre de 74, dois terços do território estivessem sob o domínio do PAIGC; que as tropas portuguesas estivessem entrincheiradas em algumas cidades e algumas bases; que as Forças Nacionais estivessem acantonadas na capital e em mais dois ou três pontos.
Pelo contrário, afirma-se sem receio de desmentido, que as tropas portuguesas tinham acesso a quase todos os pontos do território, com medidas de segurança de intensidade variável; que os comboios auto, de reabastecimento, circulavam pelas estradas; as tropas se movimentavam em campo aberto, com maiores ou menores dificuldades, efectivos mais ou menos numerosos, apoios tácticos mais ou menos desenvolvidos; que o dispositivo militar cobria todo o território; que as Forças Nacionais ocupavam, com guarnições militares ou de milícias, 225 localidades.
8. A guerra estava militarmente ganha? Evidentemente que não. Nunca ninguém o disse, nem pretendeu fazê-lo crer.
A guerra, na Guiné, "estava perdida no campo militar", como se tem afirmado com alguma frequência? Estávamos, na Guiné, "à beira dum desonroso colapso militar", como também se declarou?
A situação na Guiné, no 1.º trimestre de 1974, concedia base àquela primeira afirmação ou apontava irremediavelmente para a segunda?
Estas "notas", no rigor da sua objectividade, poderão ser, julga-se, elemento de informação útil para quem procure obter resposta a estas questões.
Certo é que as guerras sempre foram e continuarão a ser lutas de vontades... e não só das vontades dos combatentes».
General Bethencourt Rodrigues (in «África: A Vitória Traída»).
Chegada a Bissau de Bethencourt Rodrigues |
Tais modificações não foram antecipadas convenientemente pelas nossas autoridades.
- Para além da ofensiva, que conseguimos fazer gorar, restou alguma perda de moral nas Nossas Tropas (ter passado a haver mais constrangimentos à evacuação aérea dos feridos, não ajudou nada), e o facto, que poderia tornar-se preocupante, do PAIGC ter conseguido, pela primeira vez, efectuar atentados dentro de Bissau.
- Foi referido, por várias vezes, a existência de viaturas blindadas (seriam as BRDM-2), mas não se especificando, tal pode criar confusões. Viaturas blindadas de transporte, não é a mesma coisa que blindados ou carros de combate. Viaturas blindadas também as Nossas Tropas passaram a ter, as "chaimites". Havia muitos boatos a correr...
- Sem dúvida era urgente substituir o material gasto e adquirir outro mais moderno e as autoridades nacionais atrasaram-se muito a fazer isto, independentemente das dificuldades existentes. No entanto tal não tinha a ver com não haver dinheiro, como aduzido por Matos Gomes/Aniceto Afonso (pág. 31: "Os factos sustentam a tese de que as Forças Armadas nos três Teatros caminhavam para esse choque fatal [a derrota - referido no parágrafo anterior], caso não fossem alterados radicalmente os seus meios e atitudes, o que não era possível fazer, adquirir e operar os meios necessários, custava dinheiro que não existia, exigia vendedores disponíveis, que não eram fáceis de encontrar, demoravam tempo, pois havia que preparar os operadores, e esse factor também era escasso"), que por ser um erro grosseiro, não carece de rebatimento.
Mas não quer dizer que não se tivesse iniciado a procura de aviões de combate (de que chegaram a ser adquiridos os Aviocar e o FTB 337), helicópteros de ataque e mísseis anti-aéreos (crê-se que os "Crotale" já estavam em fase avançada de adjudicação). E estavam para entrar ao serviço 10 corvetas especialmente desenhadas para África. Muito mais haveria a fazer mas, para tal, era necessário acabar com as dúvidas, indecisões e tergiversações existentes em Lisboa.
- O Inimigo, apesar do aumento e melhoria do seu material também tinha dificuldades. De facto o seu nível de instrução, treino e capacidade de operar equipamentos mais sofisticados era limitada; as potências fornecedoras tinham receio em entregar material moderno, pois receavam que caísse nas nossas mãos e armazenar e manter material sofisticado nas condições marginais em que a guerrilha operava, era uma dor de cabeça muito grande. De tudo isto resultava uma necessidade e visibilidade maior de instrutores estrangeiros o que punha em causa a teoria da luta pela "autodeterminação dos povos".
- Da análise do relatório da reunião realizada no Comando-Chefe em Bissau, em 15 de Maio de 1973 - um documento de análise muito importante (mas que deve ser lido com "olhos de ver") - retira-se um quadro cru da situação, em que se equacionam as ameaças existentes e possíveis. Não se considera ser um relatório optimista, nem pessimista. Porém, dele não ressalta um colapso das Nossas Tropas a curto prazo - apesar de a reunião ocorrer no pico da ofensiva em curso (e Guilege ainda não tinha sido atacada). Lista-se uma necessidade de meios (creio que realista e económica relativamente à FAP e algo "optimizada" em relação ao Exército e Marinha). Fala-se em unidades com elementos brancos não identificados e, até hoje, ainda não se conseguiu encontrar alguém que os identifficasse; topa-se com uma frase do General Spínola "as implicações da carência de meios para enfrentar a ofensiva do PAIGC conduziam a opções que ultrapassavam a sua esfera de responsabilidades" (pág. 22) Que seria que ele queria dizer com isto?
- Por último uma dúvida: na sua intervenção final na citada reunião, Spínola é peremptório em dizer que não se devia reduzir o dispositivo, a fim de não desproteger a população e deitar por terra a sua política (aliás correcta) de desenvolvimento político-social-económico.
Mas depois, aquando da reunião de comandos em Bissau, a 8 de Junho, em que participou o CEMGFA, General Costa Gomes, foi decidido remodelar o dispositivo de modo a "trocar espaço por tempo" (pág. 23: "Junho 08 - Reunião de Comandos em Bissau com a presença de Costa Gomes, para análise da situação na Guiné, do que resultou a orientação de remodelar o dispositivo, trocar espaço por tempo. Foram analisados os factores que caracterizavam a situação e as claras perspectivas do seu contínuo agravamento e definidos os parâmetros orientadores da manobra face à conjuntura e a sua evolução"), que previa retirar as guarnições militares da faixa fronteiriça de modo a pô-los a coberto dos ataques de artilharia do outro lado da fronteira e permitir uma maior concentração e complementaridade de esforço, com definição de pontos-chave a defender "a todo o custo" (não teria sido este o conceito de manobra previsto em Goa, e tão condenado?).
Mas, afinal o que fez balancear o General Spínola para este conceito, depois de o ter condenado liminarmente na reunião de 15 de Maio?
E porque nunca chegou a ser posto em prática? E porque se queria agora novamente reocupar o Boé, depois de o ter abandonado, será que queriam emendar um erro?
E que terá levado também, o novo Comandante-Chefe, General Bettencourt Rodrigues a reavaliar toda a situação, não tendo sido abandonada nenhuma povoação?
E porque não forçou o CEMGFA a implementação de uma ideia de que ele teria sido, possivelmente, o principal defensor?
- Sem embargo das dificuldades reais e sentidas na situação militar, um facto existiu que se estima muito mais grave do que aquela: o conflito crescente entre Marcello Caetano e Spínola. Este conflito culminou com a proibição, por parte de Lisboa, de negociações com o PAIGC, na sequência da sugestão de Senghor durante o encontro com Spínola, em Cap Skiring (Senegal), em 18/5/72.
- E, ainda, por causa de uma conversa que correu mal entre o Presidente do Conselho de Ministros e o Governador da Guiné, em que este ficou escandalizado por ter inferido que o governo não se importava que ocorresse uma derrota militar na Guiné, o que fez ressuscitar os fantasmas da Índia.
- O estado de espírito do general não seria dos melhores e tal estado de espírito veio a contaminar, naturalmente, o seu Quartel-General. Até que ponto esta situação desmoralizou o Comando na Província é passível de especulação. Bom não foi certamente e seguramente que veio a influenciar o Movimento das Forças Armadas (MFA) local (1.ª reunião de 50 oficiais a 21 de Agosto de 1973, em Bissau).
- Ao contrário do conflito com Kaúlza de Arriaga, em Moçambique, este outro parece ter tido consequências na cadeia de comando e no moral das tropas.
- Hoje podemos ter uma visão mais clara sobre o que se passou - embora as verdadeiras intenções dos protagonistas sejam difíceis de perscrutar - o Governo não quis deixar "cair" a Guiné, pois nomeou um dos melhores generais no activo, para substituir Spínola e a defender, e quanto à proibição dos contactos com Amílcar Cabral, nas condições propostas, os argumentos aduzidos eram lógicos e pertinentes.
- O General Spínola abandonou a Guiné (a seu pedido) para ir escrever o "Portugal e o Futuro" (ou alguém por ele); arrajaram-lhe um cargo que não existia, o de Vice-CEMGFA e mandaram-no visitar Angola e Moçambique, para ele não ter uma visão do mundo apenas "pela fresta de Bissau".
- E ainda está por apurar se alguém em sua representação, esteve presente ou não, entre as cúpulas do recém-formado PS e o PCP, em 1973, em Paris, onde estes, aparentemente, combinaram a estratégia final de assalto ao poder em Portugal.
Coisa que talvez Matos Gomes e Aniceto Afonso nos possam vir a elucidar no futuro...».
João José Brandão Ferreira (in «Guerra d'África 1961-1974. Estava a Guerra Perdida?»).
«Na minha opinião, a guerra do Ultramar não estava militarmente perdida. A situação não era idêntica em todo o Ultramar, mas mesmo no caso mais complicado não se pode honestamente falar de início de ruptura, ou de ineficácia das forças portuguesas, em termos militares. A capacidade de defesa contra as acções inimigas, continuava sustentável, e o apoio às populações estava em crescendo no final da guerra. As operações militares que em alguns dos casos mais complexos enfrentaram uma guerrilha forte e bem organizada, tiveram graus de sucesso que não poderiam legitimamente indiciar uma derrota. Poderiam prever-se dificuldades de sustentação, assim como seria legítimo admitir, à data, a sua superação. Os problemas mais complicados eram de retaguarda. Os militares portugueses cumpriam a sua missão, com sucesso, face às adversidades que lhes eram colocadas; houve raros casos pontuais negativos, como acontece em qualquer guerra em qualquer parte do Mundo, que não afectaram minimamente o prestígio das forças, no seu conjunto. O espírito de missão nunca esteve em causa.
O isolamento político a nível internacional, as correntes internacionais sobre conceitos de colonização, marxistas e não marxistas, que não davam ouvidos à argumentação sobre a especificidade do caso português, a acção psicológica interna movida por algumas forças radicais de oposição ao regime com influência na universidade e no mundo laboral, alguma ambiguidade na mensagem política interna, as dificuldades políticas colocadas na aquisição de armamento, o enorme esforço de preparação das forças, para a manutenção de cerca de mil homens em operações, tudo isto eram dificuldades, próprias de uma Nação em guerra em três teatros longíquos. Não é lícito dizer que o prazo para o fim do sacrifício estava em vias de ser esgotado, assim como não se poderá dizer que não existiria qualquer prazo. Certamente que o inimigo também teria as suas dificuldades no campo militar, algumas das quais eram conhecidas, outras não; o desgaste da guerra longa não afectava só um dos lados, apesar da onda política internacional pender muito mais para um dos lados; muitas vezes desvaloriza-se este facto na análise, em especial quando se incluem factores de avaliação tendencialmente ponderados de forma desigual.
Estando perante uma guerra subversiva e de guerrilha, o sentido de vitória ou de derrota não tem a mesma expressão usada na guerra convencional; basta que exista um guerrilheiro com arma municiada agindo por conta própria para que não se possa falar de fim decisivo da guerra. Diz-se com frequência que a guerra de guerrilha é uma guerra de desgaste, raramente frontal, de iniciativa unilateral e aleatória, e por essa razão a guerrilha é sempre muito mais resistente, com o correr do tempo a seu favor; na verdade, este princípio não tem uma aplicação universal, também existe fadiga, frustração, abandono por parte da guerrilha. O factor de tolerância às baixas, sendo mais elevado do lado da guerrilha, no início, também é muito afectado com o decorrer do tempo. O mesmo se passa com a motivação tendo em conta que a grande massa dos combatentes é recrutada por conscrição. Em todo o caso, a análise histórica, objectiva, continua muito difícil de alcançar, em virtude de praticamente só existirem fontes de uma das partes e, muitas vezes, a opinião prevalecer sobre os factos.
Não estando a guerra militarmente perdida, é preciso acrescentar que não estava fácil, em primeiro lugar na Guiné e depois em Moçambique. O caso particular da Guiné, por razão da condição geográfica, da qualidade dos quadros da guerrilha, da sua organização e do forte apoio político internacional, e de fornecimento de um grande volume de armamento, assim como da intervenção de mercenários, é muitas vezes apresentado para sublinhar as dificuldades. A abertura entusiasta dos canais de comunicação internacional à guerrilha permitia a esta um exercício de guerra psicológica que desenvolveu com muita mestria, com acções de propaganda dirigidas ao exterior e ao interior.
São fundamentalmente três os factos ou condições que muitas vezes são invocadas por aqueles que propalaram que a guerra estava perdida, no seu ponto mais crítico que era a Guiné: o aparecimento do míssil superfície/ar Strella, as operações em Guidage e Guileje em Maio de 1973 e as notícias do serviço de informações militares quanto à previsão de ordem de batalha inimiga para o curto prazo.
Não existe qualquer dúvida que o aparecimento do míssil Strela provocou um impacto muito forte, pelo efeito de surpresa e pelos resultados imediatos que produziu no espaço de cerca de uma semana. Criou-se um ambiente psicológico negativo em alguns sectores das forças terrestres, pelo sentimento de que não poderiam mais contar com o apoio aéreo que consideravam fundamental para o cumprimento das suas missões. Ainda hoje existem ideias erradas quanto a este problema, que de facto foi importante, mas não determinante. Ora, o que é um facto é que a Força Aérea continuou a executar as suas missões, ao mesmo ritmo do anterior, perfazendo um total de horas de voo sensivelmente igual ao esforço dos anos anteriores. A Base Aérea da Guiné continuou a ser a base do conjunto da Força Aérea com mais acções aéreas executadas nesse ano. O que mudou foi o perfil do voo, a táctica aérea, por razões evidentes, o que obrigou a uma alteração nos procedimentos de apoio aéreo. A operação a baixa altitude, em zonas de possível existência de míssil, só era possível desde que garantida a segurança ao meio aéreo na área correspondente ao alcance do míssil. Depois da semana fatídica, em que foram abatidos cinco aviões, só houve mais um abate de um avião mais de seis meses depois. Em Moçambique, onde o míssil apareceu depois, a atrição praticamente não existiu, porque a doutrina aérea foi antecipadamente adoptada. Segundo as notícias da época, o arsenal inimigo inicial na Guiné era de mil mísseis, com uma densidade comparável ao arsenal em cenários muito mais complexos. Não sabemos quantos mísseis foram disparados. Nem sabemos quantos atiradores foram atingidos pelo fogo aéreo, em reacção e em função da táctica aérea aplicada. Na história do combate antiaéreo na Guiné que vai desde o calibre 7.65, até ao míssil transportado ao ombro, passando pelas metralhadoras 12.7, 14.5 e 37 mm, o avião sofreu naturalmente danos, mas o resultado final foi-lhe sempre favorável em termos tácticos, relativamente às expectativas artilheiras, e ao contrário dos relatórios propagandísticos perfeitamente fantasiosos. Naturalmente que o impacte do míssil foi o mais forte, mas isso iria corresponder a um novo desafio no quadro da operação conjunta, como aconteceu no passado e como se começou de imediato a desenhar.
Carregando um míssil Strela, a arma que influiu decisivamente na frente da Guiné. |
Quanto às operações em Guidaje, em 1973, que se assemelharam mais a um quadro de operação clássica do que de guerrilha, com efectivos muito elevados do lado inimigo, incluindo mercenários e com armamento sofisticado, é certo que provocaram baixas nas nossas forças, mas não se pode atribuir um desfecho vitorioso para o lado inimigo. O apoio aéreo próximo, pelo fogo, em especial às forças comando na sua progressão para o objectivo, como na sua retirada, foi muito importante para o sucesso da operação, como é sabido; não só nesta situação mas também no apoio às forças que acorreram à defesa do quartel, incluindo foras páraquedistas. No final, as tropas africanas que anteriormente guarneciam o quartel, aí se mantiveram depois do confronto, com a respectiva população. No ataque de artilharia a Guileje, a partir de bases muito próximas da fronteira, que se seguiu à operação de Guidaje, o comandante da força portuguesa decidiu retirar para Gadamael levando consigo toda a população, passando a ser este quartel o alvo dos ataques à distância. Os meios aéreos de apoio de fogo intervieram, sempre que foram solicitados, contra as bases de fogo inimigas. Guileje, que não foi reocupado pelas nossas forças, por opção estratégica, também o não foi pelas forças inimigas.
Quanto ao rearmamento do inimigo, cuja notícia criou alguma preocupação, havia um pendor mais para o lado convencional. A aplicação de algum tipo deste armamento pela guerrilha poderia trazer-lhe uma nova vulnerabilidade, pela exposição, em especial ao ataque aéreo. O inimigo estabeleceu uma malha de "santuários" muito próximo da fronteira portuguesa, que estavam perfeitamente identificados, e que, salvo enquandramentos muito específicos, não foram atacados pelas forças portuguesas. Se o conflito escalasse seria de admitir uma alteração de estratégia. Por outro lado, seria lógico de admitir um aumento de capacidade operacional portuguesa, que já estava a ser planeada. Entretanto, todas as operações militares foram coroadas com sucesso. A ocupação de uma área crítica no Cantanhez, em finais de 1972, com recuperação de parte da população, é talvez um exemplo da capacidade militar portuguesa.
Neste quadro de guerra, tão complexo e difícil, há um indicador que muitas vezes se esquece: a apresentação da população nos quartéis portugueses e o volume do conjunto da população que se acolhia à protecção das forças militares portuguesas.
Estes foram alguns factos e ideias que estão na base da opinião que me foi pedida. A decisão final foi política, como é sabido, e não foi certamente determinada por um potencial fracasso militar».
Tenente-General Antonio de Jesus Bispo (in «Guerra d'África 1961-1974. Estava a Guerra Perdida?»).
«Logo a seguir ao bem sucedido golpe militar de 25 de Abril tornara-se evidente que o Partido Comunista Português, organização muito bem estruturada e com larga experiência de movimentação na clandestinidade, se encontrava empenhado no iminente assalto ao poder, quer na Metrópole, quer junto dos movimentos independentistas africanos.
Na Guiné, à data do 25 de Abril, são cerca de 17.000 os naturais daquela província que integram as Forças Armadas portuguesas ou constituem as milícias e, lado a lado com as tropas metropolitanas, combatem os movimentos subversivos. O destino destes homens preocupa os seus antigos chefes, pelo que estes, como é natural, procuram acautelar que nada de mal lhes suceda.
Assim, de Maio a Junho de 1974 este assunto é objecto de discussão entre delegações de Portugal e do PAIGC. Num dos encontros preliminares participam, pela delegação portuguesa, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Mário Soares, e o ministro da Coordenação Interterritorial, António de Almeida Santos, o subsecretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, Jorge Campinos, e o tenente-coronel Almeida Bruno, sendo o PAIGC representado por Pedro Pires e José Araújo. E as indicações que o general Spínola dera a Almeida Bruno eram bem precisas, no sentido de proteger não só os oficiais e sargentos do Batalhão de Comandos como também os comandantes das milícias, que tinham cerca de 20 mil homens com insígnias e uniformes próprios.
No entanto, quando Portugal reconhece o estado da Guiné-Bissau através dos acordos de Argel, a recomendação de Spínola é ignorada. Nem nos textos da acta, nem nos anexos do documento que sela os referidos acordos a salvaguarda dos militares africanos é tratada com as necessárias cautelas, de modo a precaver ameaças futuras à segurança de leais portugueses, cuja diferença para os seus camaradas metropolitanos residia unicamente na melanina que lhes dava cor à pele.
(...) Como o tempo demonstraria, a incúria dos negociadores permite que centenas de militares e cidadãos portugueses africanos sejam vilmente chacinados, fuzilados na solidão das matas ou em espaços públicos, acabando por jazer em valas comuns.
Vala comum dos antigos combatentes africanos das Forças Armadas Portuguesas assassinados às ordens de Luís Cabral (1980). |
Na Guiné vão, entretanto, ocorrendo confraternizações não autorizadas de alguns militares portugueses com guerrilheiros do PAIGC, enquanto se procede à transferência dos aquartelamentos para as mãos daqueles que há pouco tempo ainda eram os inimigos e que a revolução em Lisboa tornara vencedores de uma guerra que não tinham sido capazes de ganhar pela força das armas.
(...) Em Moçambique, a bandeira de Portugal é arrastada de rojo pelas ruas de Lourenço Marques. Em Angola, o major Pezarat Correia desarmara os brancos para que estes não se intrometessem ou sequer viessem a ter qualquer peso nos pratos da balança com que se havia acertado os acordos, tendo como resultado a instalação do terror e a vergonha de ver unidades do Exército serem obrigadas a abandonar os quartéis em cuecas.
Na Guiné, ainda antes da independência e à medida que as Forças Armadas portuguesas retiram, explode o sentimento de vingança do PAIGC contra os seus concidadãos que estiveram ao lado de Portugal, e começam os assassinatos. A primeira vítima é o tenente Abdulai Queta Jamanca, que pertencera à 1.ª Companhia de Comandos africanos e participara na operação "Mar Verde", um herói condecorado pelo general Spínola. Jamanca era um mito entre os africanos, um príncipe local que, servindo então na Companhia de Caçadores 21, em Babadinca, foi fuzilado naquela localidade após ter sido preso numa horta próximo de sua casa.
Os meses passam mas a situação em nada melhora. Logo a seguir ao golpe de 11 de Março de 1975, em Lisboa, o PAIGC lança uma enorme operação de limpeza entre os ex-soldados, os ex-marinheiros e os ex-milícias, portugueses e guineenses, com o argumento falacioso de que pretendiam desferir um golpe de estado na Guiné.
Largas centenas de antigos militares são presos, torturados e fuzilados (500 segundo as autoridades locais informaram posteriormente, 1.000 de acordo com os seus companheiros sobreviventes). Muitos dos prisioneiros são pendurados pelos pés e chicoteados até à exaustão; outros, obrigados a carregar às costas gigantescos pneus de Berliet, e as respectivas jantes.
Joaquim Baticã Ferreira, rei manjaco e antigo deputado da Assembleia Nacional Popular, muito querido do seu povo, credor de grande consideração por parte das autoridades portuguesas, e Didi, um sargento dos comandos africanos natural de Cadgindjaça - povoação um pouco a norte de Bissau -, ambos são fuzilados depois de um julgamento fantoche sumário. Para os humilhar, amarram-lhes as mãos atrás das costas e, de joelhos no chão, nem lhes dão o direito a defender-se. Aquilo a que chamam julgamento durou apenas um minuto.
Os fuzilamentos não páram. Nas matas, em aeroportos, nos campos de futebol, na presença das populações, centenas de guineenses cujo único "crime" foi terem sido leais à sua Pátria, acabam por ser sumariamente executados. E os linchamentos continuam até aos anos 80, sob as ordens de Luís Cabral, durante este período presidente da Guiné.
Os corpos são atirados de qualquer maneira para valas comuns nas matas de Jugudul, Cumeré, Portogole, Mansabá e Mansoa e, pretendendo que tudo tivesse um ar de natural legalidade, era então passada uma ingénua certidão de óbito - muitas vezes em papel timbrado e selado com as armas de Portugal -, na qual se atestava que "...faleceu por fuzilamento um indivíduo do sexo masculino..."».
Rui Hortelão, Luís Sanches de Baêna e Abel Melo e Sousa («Alpoim Calvão, Honra e Dever. Uma quase Biografia»).
«No dia nove de Janeiro de 1976 podia ler-se no semanário "O Jornal" uma reportagem destinada a criar sensação no grande público. Três páginas compactas ajudavam a manter o complexo de culpa no povo português desencadeado pela estratégica do PCP. As grandes linhas mestras de todo o processo post-25 de Abril pareciam assentar na psicanálise. Não bastava culpar toda uma população pela guerra colonial: era necessário emocioná-la com pormenores chocantes para a alma cristã dos portugueses. Noticiar um desastre de comboio no qual morreram 50 pessoas, é uma coisa que impressiona, que torna as pessoas pensativas e, quiçá, revoltadas contra uns vagos técnicos responsáveis pela segurança dos caminhos-de-ferro. Mas se essa mesma notícia vier acompanhada de uma fotografia mostrando uma criança contorcida nos ferros quebrados, esmagada debaixo da sucata e a mãe chorando diante do espectáculo macabro, então as pessoas perdem a serenidade e o melhor que os técnicos responsáveis têm a fazer é não aparecer em público durante algum tempo.
Da guerra colonial faltava o pormenor chocante, revoltante, que fazia transbordar a cólera dos portugueses: o assassinato de um líder respeitado. Foi assim que, naquele dia nove, o "Jornal" anunciava em grandes títulos: "Como Lisboa planeou a morte de Amílcar Cabral!..."
A reportagem abria da seguinte forma: "Completam-se, no dia 20 de Janeiro, três anos sobre a data em que Amílcar Cabral, o grande dirigente africano que fundou o PAIGC, morreu assassinado, no decurso de um golpe levado a cabo por alguns traidores desse partido, sob a direcção dos governantes fascistas portugueses".
Mais adiante o semanário transcreve do Livro Branco que o PAIGC preparou sobre o crime, a seguinte passagem: "No dia 20 de Janeiro do corrente (1973) os criminosos colonialistas portugueses conseguiram levar a cabo o mais crapuloso crime contra o nosso povo. O assassinato do nosso secretário-geral Amílcar Cabral é, sem dúvida alguma, o maior golpe que o inimigo desfechou desde a fundação do nosso partido.
Como se sabe, nesse dia, agentes inimigos, infiltrados de colaboração com certos elementos do nosso partido, corrompidos e frustrados nas suas ambições, perpetraram esse odioso crime que veio a juntar-se à enorme lista de barbaridades e massacres que o desacreditado exército colonial e fascista português pratica quotidiamente contra as nossas populações indefesas.
Com efeito, cerca das 22 e 30 desse dia, um grupo de traidores africanos devia pôr em execução o criminoso plano longamente preparado pelas autoridades de Lisboa para eliminação fisica do nosso secretário-geral e a destruição do nosso glorioso partido.
Cabral acabava de regressar de um jantar na Embaixada da Polónia. A maioria dos militantes, dirigentes e responsáveis presentes em Conacry encontrava-se na nossa escola-piloto de Ratoma, onde o camarada Chissano, membro da Comité Executivo da Frelimo, de passagem em Conacry, fazia uma conferência aos nossos quadros sobre o desenvolvimento da luta em Moçambique.
No secretariado, encontrava-se apenas o secretário-geral adjunto, camarada Aristides Pereira, em companhia de três camaradas, todos mobilizados pelos traidores, assim como os restantes guardas do secretariado.
Logo à chegada do secretário-geral, os traidores, encobertos pela noite, puderam assim dirigir-se, sem serem incomodados para o carro, em vias de estacionamento à porta da garagem. A bordo encontravam-se apenas Cabral e a sua esposa, ambos desarmados. Após uma tentativa infrutífera de rapto, o criminoso Inocêncio Kani disparou cobardemente um tiro de pistola que devia arrebatar à vida a esperança de todos aqueles que na África e no Mundo lutam contra a opressão colonial e para uma vida melhor de paz e de progresso.
Não satisfeito com o monstruoso acto que acabara de praticar, o renegado Kani ordenou aos seus cúmplices que concluíssem a obra destrutiva que ele próprio havia iniciado. Imediatamente, uma rajada de AK disparada por um dos guardas pôs termo à vida do nosso secretário-geral".
Estranhamente o Livro Branco não fala mais na mulher de Amílcar Cabral... Os assassinos não a mataram. Deixaram uma testemunha? Os executantes de operações deste género não costumam cometer erros tão elementares. Recordemos o assassinato do general Humberto Delgado: a sua secretária brasileira, Arajarir, foi igualmente morta para que, obviamente, não pudesse testemunhar. Porque teriam, então, poupado a mulher de Amílcar? Pela simples razão de que não foi assim que as coisas se passaram. A versão oficial do PAIGC e do governo da Guiné-Conacry não corresponde à realidade. Simplesmente não é verdadeira e, mais uma vez, o povo foi burlado pela estratégia do PCP em todo o processo revolucionário português.
Embora extremamente difícil de provar por forma irrefutável - como difícil se torna documentar a implicação dos comunistas na morte de Delgado -, a verdade é que não havia a mínima lógica para que as autoridades portuguesas desejassem, em 1973, o assassinato de Amílcar Cabral. E nas andanças de guerra os planeamentos à distância obedecem sempre a um critério lógico.
Para o governo de Sékou Touré essa eliminação era vital. E Sékou Touré mandou matá-lo. Tanto quanto foi possível apurar, Amílcar teria sido degolado e não morto a tiro. Mas vejamos as razões do interesse do ditador de Conacry.
Sékou Touré |
Amílcar Cabral |
Igreja Nossa Senhora do Rosário, construída em 1495, a mais antiga igreja colonial do mundo, na Cidade Velha, na Ilha de Santiago (a maior ilha do arquipélago de Cabo Verde). |
Elementos do PAIGC hasteiam a bandeira da Guiné-Bissau em 1974, depois da "declaração de independência". |
Amílcar Cabral estava em contacto com o general Spínola para pôr fim à guerra de uma forma honrosa, e obter a independência de uma forma prudente. Sékou Touré soube disso e mandou matá-lo. Simplesmente isto.
Este livro revela documentos altamente secretos que provam os contactos havidos com Amílcar Cabral e o irmão Luís Cabral. Estes contactos eram realizados através de uma gente nossa colocada em Londres. Pelas datas dos telegramas aqui reproduzidos verifica-se que esses contactos se processaram cerca de dois meses antes da morte de Amílcar Cabral... Porque é que nós, portugueses, mandaríamos matar um homem com quem queríamos negociar e que nos havia respondido estar disposto a isso? Saberá por acaso o povo português que a mãe de Amílcar Cabral vivia tranquilamente em Bissau? E que o sonho de Sékou Touré era anexar pura e simplesmente a Guiné-Bissau?».
Alpoim Calvão («De Conacry ao MDLP»).
«No dia 20 de Janeiro de 1973, o líder do PAIGC, Amílcar Cabral, um mestiço politicamente moderado (vagamente marxista), de cultura lusíada, foi assassinado em Conacry, por três elementos do mesmo partido.
Na sequência foram eliminados numerosos guerrilheiros e até hoje, nunca se soube oficialmente os verdadeiros contornos da trama, tendo-se atirado para cima da PIDE/DGS a hipótese inverosímil, de estar por detrás desta morte. [O que, a ser verdade - convenhamos - seria mais do que legítima]».
João José Brandão Ferreira (in «Guerra d'África 1961-1974. Estava a Guerra Perdida?»).
«A figura carismática de Amílcar Cabral surgira muito antes do início da luta armada, afirmando-se rapidamente como um dos grandes e mais populares líderes africanos. Nascido em Bafatá, Guiné, a 12 de Setembro de 1924, era filho de Juvenal Lopes Cabral, cabo-verdiano de ascendência e funcionário público de profissão (empregado da alfândega e professor na região de Cacine), e de Iva Pinhel Évora, costureira guineense. O pai estudara no Seminário de Viseu e fora colega de Oliveira Salazar, por quem sentia enorme admiração. Era um acérrimo defensor da colonização portuguesa na Guiné e considerava o Presidente do Conselho "um dos maiores estadistas da actualidade, astro de primeira grandeza entre a formosa constelação de patriotas que dirigem os destinos da Nação".
No entanto, admirava ainda mais o cartaginês Hamílcar Barca e é em homenagem a ele que regista o filho como Hamílcar Lopes Cabral. A consoante muda do primeiro nome perde-se no tempo e é já como Amílcar Cabral que o filho vai estudar para a Metrópole com uma bolsa do Estado Português e se forma engenheiro agrónomo, pelo Instituto Superior de Agronomia de Lisboa.
A primeira experiência profissional após terminar o curso, em 1950, é na Estação Agronómica Nacional, em Santarém, mas já antes dava aulas de alfabetização e explicações de Matemática a operários da zona de Alcântara. Participa nas actividades culturais da Casa dos Estudantes do Império a partir de 1947, onde chega a desempenhar as funções de secretário-geral e presidente do comité de cultura. Regressa à terra natal, em 1952, para trabalhar nos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné, que o fazem percorrer o país de lés-a-lés, permitindo-lhe adquirir um profundo conhecimento geográfico e social que viria a revelar-se de extrema utilidade para o exercício do comando da guerrilha.
Em 1954, pede licença para criar em Bissau o Clube Desportivo e Cultural, destinado a africanos, mas a autorização é-lhe negada. Entra então na contestação aberta a portugal e passa a ser vigiado pela PIDE. Não se conforma e, no ano seguinte, cria o Movimento para Independência Nacional da Guiné (MING). No dia 19 de Setembro de 1956, Amílcar Cabral funda, em Bissau, o Partido Africano para a Independência (PAI), juntamente com seu irmão, Luís Cabral - encarregado da contabilidade da Casa Gouveia, uma filial da CUF -, Aristides Pereira, Fernando Fortes, Abílio Duarte, e Elisée Turpin - gerente na Casa Gouveia.
Dois anos depois, a Guiné-Conacry vê reconhecida a sua independência, cortando definitivamente os laços que a ligavam à França. Uma notícia que estimula Cabral, que em 1959 cria a Frente de Libertação da Guiné e Cabo Verde (FLGCV), com Rafael Barbosa, em Bissau, e o Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde (MLGCV), em Dakar. A FLGCV acabará por fundir diversos movimentos de emancipação, adoptando a linha política do PAI e, em Outubro de 1960, passa a designar-se por Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC).
Antes, a 14 de Julho, ainda como secretário-geral do PAI, Amílcar Cabral dirige uma mensagem aos povos da Guiné e Cabo Verde, em nome deste partido e da FLGCV, na qual lança um forte apelo: "Mobilizemos todas as forças anti-colonialistas, organizemo-nos o melhor possível, unamo-nos fortemente no nosso Partido e na nossa Frente de Libertação - e preparemo-nos activa e cuidadosamente para acabar em breve com a odiosa dominação portuguesa nas nossas terras! CRIEMOS URGENTEMENTE ORGANIZAÇÕES DO NOSSO PARTIDO DA INDEPENDÊNCIA EM TODOS OS LOCAIS DE TRABALHO E RESIDÊNCIA".
Edifício do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa |
Monumento a Teixeira Pinto (Guiné Portuguesa). |
Monumento a Diogo Gomes (Guiné Portuguesa). |
Desfile na Praça do Império (Guiné Portuguesa). |
(...) A doutrina com que, entretanto, Amílcar Cabral incentivava os quadros do PAIGC assentava em apregoar os malefícios do colonialismo e as virtudes da luta de libertação, bem expressas nas "Palavras de Ordem Gerais", um opúsculo que o Secretariado-Geral do PAIGC editara e difundira em Novembro de 1965.
O pensamento de Cabral aí exposto, com a apregoada concepção humanista do seu autor a ser desmentida a cada parágrafo, fazia a apologia da violência e do ódio, incitando à destruição de tudo aquilo que os portugueses haviam construído, mesmo que fosse os frutos de uma acção benéfica para o povo guineense...».
Rui Hortelão, Luís Sanches de Baêna e Abel Melo e Sousa («Alpoim Calvão, Honra e Dever. Uma quase Biografia»).
«Não senhor, tudo isto foi feito pelos portugueses; nós não fizemos nada, nós só estragámos».
Coronel Celestino de Carvalho (CEMFA da República da Guiné-Bissau - 1996).
A Guerra do Ultramar não estava militarmente perdida
Nuno Gonçalo Vieira Matias ingressou em 1957 na Escola Naval. Terminada a licenciatura em Marinha, foi voluntário para embarcar na fragata Vasco da Gama, onde fez comissão em Angola de 1961 a 1963.
Especializou-se em Artilharia e, mais tarde, em Fuzileiro Especial. Combateu na Guiné, como Comandante do Destacamento N.º 13 de Fuzileiros Especiais de 1968 a 1970. Desempenhou depois, sucessivamente, as funções de professor da Escola Naval e de Director do Laboratório de Explosivos, Comandante da Força de Fuzileiros do Continente, Capitão dos portos de Portimão e de Lagos, Comandante do N.R.P, João Belo, Chefe de Divisão do Estado-Maior da Armada e professor do Instituto Superior Naval de Guerra.
Além da formação em escolas nacionais, frequentou, ao longo da carreira, em países da NATO, uma dezena de cursos, entre os quais o Naval Command College, nos EUA, no ano lectivo de 1988/89.
Como Oficial General, foi Subchefe do Estado-Maior da Armada, Superintendente dos Serviços do Material, Comandante Naval e Commander-in-Chief Iberian Atlantic Area.
Entre 1997 e 2002, desempenhou o cargo de Chefe do Estado-Maior da Armada.
Ao longo da sua carreira, foi agraciado com 16 condecorações nacionais, incluindo a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo e, 10 estrangeiras, do Brasil, Espanha, Estados Unidos da América, França e Itália.
Foi membro da Comissão Estratégica dos Oceanos e do European Security Advisory Board, é autor de diversos trabalhos e artigos sobre estratégia marítima, segurança nacional e economia do mar. Dedica-se à actividade de docência e participa, regularmente, em painéis e debates sobre esses temas. É professor convidado da Universidade Católica Portuguesa, membro da Academia das Ciências de Lisboa, da Academia Portuguesa de História, do Conselho Nacional de Educação, Vice-Presidente da Direcção da Sociedade de Geografia de Lisboa e Presidente do Conselho Supremo da Liga dos Combatentes. Integra o conselho editorial das revistas de Marinha, Segurança e Defesa e Nova Cidadania.
AS CAMPANHAS EM ÁFRICA DE 1961 A 1974
Domínio Militar, Desastre Político
Na sua perspectiva, considera que as operações anti-subversivas e de contra-guerrilha desenvolvidas em Angola, Guiné e Moçambique, em defesa da soberania portuguesa sobre aqueles territórios e populações que viviam há séculos debaixo da bandeira das Quinas, estava militarmente perdida?
O Conhecimento que obtive das nossas acções de contraguerrilha, durante uma comissão de serviço em Angola, de 1961 a 1963, a bordo de uma fragata, e outra na Guiné, de 1968 a 1970, no comando do Destacamento de Fuzileiros Especiais N.º 13, acrescido do acompanhamento que fui fazendo do desenrolar das campanhas nos três teatros, assim como a ponderação que a distância no tempo me permitiu, levam-me a responder negativamente à pergunta base que me foi colocada. Isto é, a guerra de contra-subversão, sustentada durante treze anos em três frentes, não estava militarmente perdida em 1974 e nem nunca tinha estado antes.
Para justificar esta resposta, comecemos por recordar alguns factos apenas e, depois, analisemos os quadros de situação adequados, sobretudo estratégicos e operacionais.
Quibocolo |
O meu início de carreira naval permitiu-me o primeiro contacto com Angola, uma vez que, terminada a parte escolar do curso da Escola Naval, na primavera de 1961, fui, em viagem de instrução, na fragata "Pero Escobar" para Angola, onde permaneci uns meses. Os contactos estabelecidos com as populações, ao longo de toda a costa, os "briefings" recebidos, incluindo um feito pelo Comandante Militar, General Silva Freire, e a informação recolhida de muitas fontes traduziam uma realidade de uma violência indescritível, apesar de esta ter sido contida numa região próxima da fronteira norte, ainda longe de chegar a Luanda.
Foi com acções muito duras que a loucura invasora foi parada pelas forças militares portuguesas, que só a partir do princípio de Maio de 1961 começaram a dispor de meios significativos na área em convulsão. Em 13 de Junho, foi finalmente recuperado o pequeno posto administrativo da Lucunga, ocupado pelos invasores logo nos primeiros dias de acção.
Como testemunho pessoal, tenho gostado de transmitir a extraordinária impressão que recolhi no contacto com as populações visitadas na linha de costa, de Cabinda à Baía dos Tigres. A "Pero Escobar", na sua dupla missão de patrulha costeira e de instrução dos aspirantes do meu curso, permitiu-nos uma grande aproximação às gentes de Angola, que nos recebeu com tocante simpatia. Aparentavam natural preocupação com o que se estava a passar no Norte, mas demonstravam também uma firme determinação de não hesitar na "defesa da nossa terra".
No decurso dessa actividade formativa, acompanhei uma pequena força de desembarque da fragata "Diogo Gomes" em patrulha do Rio Chiloango, o principal de Cabinda, na pequena, lenta e ruidosa lancha de boca aberta "Lué Grande". Não tinha havido qualquer incidente com a força e as populações ribeirinhas, concentradas em aldeias muito dispersas, que mantinham com os marinheiros a melhor das relações. Contudo, a memória da tragédia e o aviso do perigo existiam na margem esquerda do Rio, materializados nos escombros de uma serração que usava madeiras provenientes da Floresta de Maiombe, onde os invasores congoleses haviam assassinado os proprietários, dois irmãos brancos, cortando-os em pedaços nas serras de processar madeira!
Perante este quadro de situação, os jovens aspirantes, como quaisquer cidadãos normais, reforçaram a convicção de que Angola e as suas gentes, de origem africana, europeia, ou outra tinham de ser protegidas da selvajaria que transbordava do Congo.
Hoje, passadas mais de cinco décadas, custa-me a entender que apareçam alguns indivíduos que se expressam em português, mas que não devem ser portugueses, que advogaram, e que ainda o repetem, que os militares deviam ter baixado as armas e desertar. Isto é, deveriam ter deixado matar toda a população de Angola.
Foi, muito impressionado pelo que vi e senti que fui mandado regressar a Lisboa de avião, enquanto a "Pero Escobar" continuava a sua missão de patrulha nos mares de Angola. Aqui chegado, ofereci-me para voltar para aquele território ultramarino, como membro da guarnição da fragata "Vasco da Gama", recentemente adquirida a Inglaterra e que se preparava para comissão. Em 20 de Dezembro de 1961, chegava, de novo, a Luanda, iniciando uma longa comissão de serviço embarcado, até finais de 1963.
Os factos depois vividos nessa intensa comissão confirmaram os que já haviam marcado a minha alma de jovem militar português, ainda na fase de formação. Entendo que os chamados "ventos da história" não eram mais do que "ventos da cobiça", habilidosa, mas fortemente soprados do exterior para afastarem de tão importante terra os "pequenos portugueses", os quais, pelo seu reduzido poder nacional, não tinham o direito de viver em África, para mais em perfeita comunhão com os povos locais.
Abordados estes factos com a concisão que a emotividade memorizada permite, tentarei agora elaborar sobre o quadro de situação relativo às, até 1974, três províncias ultramarinas portuguesas, começando pelos aspectos estratégicos, seguidos dos operacionais, para, no fim, numa sequência não muito ortodoxa, aflorar apenas alguns aspectos do quadro político.
Numa breve avaliação, podemos, pois, concluir que o País mantinha, em termos estratégicos, total independência de telecomunicações entre todos os seus territórios europeus, africanos e asiáticos, assim como no seu interior. Foi um patamar alcançado ainda antes de 1961 e que, sucessivamente, se reforçou.
Ainda no âmbito das comunicações, mas agora das marítimas e aéreas, essa autonomia foi conseguida e usada, sem limitações impeditivas, durante os 13 anos de empenhamento militar em África. De facto, a existência de uma enorme frota de navios mercantes de significativo porte, da ordem da centena e meia, incluindo duas dezenas de paquetes, permitiu total autonomia nos movimentos de pessoas (civis e militares) entre todos os territórios insulares e continentais portugueses. Conseguia-se o controlo do mar nos locais e nos tempos necessários e, quando esse domínio começou a ser problemático, pela existência na Guiné Conacri de 7 lanchas rápidas, lança-torpedos e mísseis, de origem soviética (classes Komar e P6), a ameaça foi eliminada com o afundamento da totalidade dos navios, conseguido heroicamente pelos Fuzileiros, durante a operação "Mar Verde" (1970).
Também as ligações aéreas foram aumentando de capacidades, complementando, nalguns casos, as ligações marítimas.
Em suma, as telecomunicações e as ligações marítimas e aéreas, eram feitas com total independência nacional, ligando portos e aeroportos, que mantínhamos intocados e percorrendo espaços marítimos e aéreos transcontinentais com liberdade de acção.
Outro aspecto estratégico foi o da obtenção do material de guerra necessário às operações, armas, munições, viaturas, aeronaves e navios, conseguido com surpreendente fluidez, por aquisição no estrangeiro e por produção no País. A boa situação das contas do Estado e crescimento da economia, apesar do conflito em três frentes, constituíram factores decisivos para essa satisfação estratégica das necessidades logísticas.
Ainda apenas mais uma questão estratégica que vale a pena aflorar mesmo que ligeiramente - é a do apoio moral dos Portugueses contra a invasão insurreccional dos três territórios - Angola, Moçambique e Guiné.
Na verdade, a barbárie terrorista de 1961, levada a cabo pela UPA de Holden Roberto em Angola, impressionou de tal forma os Portugueses que a mobilização de vontades para defender o que era nosso - pessoas e territórios - surgiu por todo o lado. Quantos exemplos houve de jovens, a viver no estrangeiro, que regressaram a Portugal só para cumprir o serviço militar? Eu conheço vários, mas, normalmente, só se publicita os que desertaram.
Isto é, a força moral da Nação era grande, muito grande mesmo, constituindo um valioso factor de poder nacional, determinante para a prossecução de um conflito em três frentes distantes, por um país de recursos humanos e materiais muito limitados. É um caso tão admirável que alguns estudiosos estrangeiros ainda o continuam a analisar.
Passando ao quadro operacional, considero que a situação em Angola e Moçambique, no princípio dos anos 70 tinha evoluído muito positivamente para as nossas forças, empenhadas principalmente na contenção das infiltrações de homens e de material militar, a partir de territórios vizinhos e também no controlo das populações. A utilização, de forma bem entrosada, dos meios terrestres, aéreos e navais, estes no mar, nos rios e nos lagos, tinha vindo a dar bons resultados na contenção dos locais onde se verificava actuação dos insurrectos, reduzindo alguns e eliminando outros. Não havia nenhuma parte desses territórios dominada por qualquer dos movimentos de guerrilha e a liberdade das nossas forças só era condicionada nalguns locais por acções esporádicas de guerrilheiros. Isto é, estes não dominavam espaços. Em todos era possível a acção das nossas forças e o nosso esforço desenvolvia-se no sentido de encontrar os guerrilheiros, que se furtavam ao contacto sempre que não podiam usar os golpes de surpresa.
Guiné (Região de Quínara). Povoação (à esquerda) e aquartelamento (à direita) vistos de helicóptero. |
Estrada Buba-Mampatá-Quebo |
Na Guiné, que conheci bem, por lá ter combatido entre 1968 e 1970, a situação era mais dura, devido às condições ambientais, ao apoio à guerrilha proveniente dos dois países lindeiros e também da União Soviética e seus satélites, que eram os seus grandes fornecedores de armamento e de treino, já com algum apoio da China. Eram factores que, aliados à pequena dimensão do território e à sua configuração plana, penetrado por rios e braços de mar, sujeitos a marés de enorme amplitude, causavam mais dificuldades às nossas forças.
Mesmo assim, recordo que o conceito operacional desenvolvido pelo Comandante-Chefe, General Spínola, em 1968/69, focado num grande esforço de contra-penetração sobre os principais corredores de infiltração para abastecimento da guerrilha, deu excelentes resultados.
Participei, com o meu destacamento de fuzileiros especiais, tal como outras unidades de fuzileiros e navais, no esforço de contenção do corredor norte, com origem no Senegal, em acções de longa permanência no Rio Cacheu, seus afluentes e margens. Também, e dentro do mesmo conceito, unidades de comandos e de páraquedistas actuaram em corredores, no sul, provenientes da Guiné Conacri.
Este conceito operacional reduziu muito a acção da guerrilha, levando-a a diminuir drasticamente o número de flagelações às unidades aquarteladas no Território e limitando as suas movimentações. Por outro lado, a boa utilização do meio aquático, como via de comunicação múltipla e de controlo do terreno adjacente, assim como o adequado emprego dos meios aéreos, permitiam o necessário apoio às forças terrestres, garantiam a liberdade de manobra necessária e negavam o uso controlado dos espaços ao inimigo. Isto é, não existia nenhuma parte do Território onde a guerrilha impedisse a nossa acção, com maior ou menor facilidade. Sempre que tentou a possibilidade de controlar, em permanência, algum espaço, o preço que pagou foi muito alto, com derrotas pesadas, como na Ilha do Como, na Península do Sambuiá, etc.
Diz-se que, perto do final da nossa presença na Guiné, o uso de mísseis antiaéreos pela guerrilha levaria à nossa derrota, mas isso não é verdade, já que havia tácticas e procedimentos que poderiam limitar a eficácia de tais meios, tal como se ultrapassou a ameaça das metralhadoras antiaéreas.
Em suma, no início de 1974, as comunicações interterritoriais, de enorme importância estratégica, mantinham a sua inviolabilidade. Também, em cada território, estava garantido o total domínio dos espaços marítimos, fluviais e lacustres, ocorrendo apenas nalguns rios da Guiné, esporadicamente, flagelações aos meios navais, com carácter mais ou menos pontual, os quais, contudo, não resistiam à resposta das unidades atacadas.
Em terra, a situação em Angola e Moçambique, tinha vindo a evoluir positivamente para o nosso controlo, até com desistência da actividade da guerrilha por alguns grupos e nalgumas zonas. Na Guiné, as condições ambientais, o apoio externo e a proximidade das bases nos dois países limítrofes, continuavam a propiciar acções de surpresa da guerrilha, sem contudo lhe garantirem o domínio de qualquer área.
O nosso controlo do espaço aéreo era total. Na Guiné, o uso de armas antiéreas com guiamento, por parte da guerrilha, não lhe permitiu, de forma alguma, o domínio do ar, nem sequer impediu a acção da Força Aérea Portuguesa, que continuou a manter a sua excelente acção, embora com riscos acrescidos.
Assim, Portugal continuava a ter, ainda no primeiro trimestre de 1974, liberdade estratégica de ligação por mar, ar e por telecomunicações de todos os territórios sem qualquer impedimento. Por outro lado, nos três teatros de operações o controlo do espaço impedia a ocupação permanente de qualquer área pela guerrilha. Isto é, a liberdade de acção das nossas forças mantinha-se e nenhum espaço era dominado pela guerrilha. Ou seja, continuavam assegurados todos os pressupostos que negavam a nossa derrota militar. Militarmente, continuávamos com supremacia total.
Então, se abandonámos os 3 territórios, com toda a torrente de consequências desastrosas, incluindo as guerras civis que se seguiram, com milhares de mortos, foi por decisão política tomada em Lisboa, mas não por desaire militar.
Na verdade, e sem pretender analisar com um mínimo de profundidade a questão política, é evidente que essa constituiu a vertente que, com o tempo, se tornou muito frágil. De facto, enquanto que, durante bastantes anos, a orientação política e estratégica foi forte e adequada, era evidente que o desgastante e exigente conflito que mantivemos, por tanto tempo, em terras tão distantes, sendo duas delas de enorme dimensão geográfica, tinha de atingir o seu limite. Em termos históricos, os Portugueses sempre foram capazes de esforços de forte intensidade, mas sem grande extensão temporal. O factor demográfico constituiu, normalmente, uma limitação séria do nosso poder. Mesmo assim, a forma brilhante como nos batemos em África é um verdadeiro "case study" que, também no estrangeiro, causa admiração a muitos especialistas. Veja-se, por exemplo, a obra do professor americano John P. Cann que conta já com vários livros publicados nos Estados Unidos da América, em Inglaterra e também em Portugal. De facto, batemo-nos galhardamente durante treze anos, poderíamos ainda ter suportado a superioridade durante mais tempo, mas isso exigiria outtra condução política do País e dos conflitos.
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A incapacidade para encontrar a política adequada à evolução da situação, enquanto mantínhamos supremacia militar em África, contribuiu para o desastroso abandono de Angola, Moçambique e Guiné. E foi desastroso para Portugal, mas sobretudo para os habitantes desses territórios, independentemente da cor da pele. Se dúvidas houver, pense-se no drama das multidões de retornados e nos milhares de mortos das guerras civis entre facções dos povos abandonados. Fomos os últimos a abandonar África e tínhamos sido os primeiros a chegar. (in Humberto Nuno de Oliveira e João José Brandão Ferreira, Guerra d'África 1961-1974. Estava a Guerra Perdida?», Fronteira do Caos Editores, 2015, pp. 325-333. O título é de nossa autoria).
Olá. Mouzinho nunca foi Governador de Moçambique. Foi Comissário Régio. Não sei como a Câmara do Porto foi capaz de se enganar na sua toponímia. Cumprimentos, ABM
ResponderExcluirA 13 de Março de 1896, Mouzinho de Albuquerque foi promovido a major e nomeado governador-geral de Moçambique. No mesmo dia, Gungunhana é exibido em Lisboa.
ExcluirA 21 de Março de 1896, Mouzinho toma posse do cargo de governador-geral de Moçambique.
A 25 de Novembro de 1896, é nomeado comissário régio para Moçambique.
A 9 de Julho de 1898, apresenta a demissão do cargo de comissário régio de Moçambique.
A 19 de Julho de 1898, o chefe do Governo aceita a sua exoneração.
Cumprimentos liceais