terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O "Xarajibe" de Silves (i)

Escrito por Garcia Domingues




Silves


O palácio do Xarajibe, de Silves, foi no Ocidente, uma autêntica visão das «Mil e uma noites».

Cantaram-no os poetas com o mais alto requinte, adornaram-no os artistas com obras de estranho lavor, celebraram-no os historiadores, como encantadora residência principesca.

Dessa harmonia chegam até nós os ecos apagados, num suave murmúrio… E o Xarajibe esplende, de novo, rebrilhando em vivos fulgores.

Ficaram célebres as suas noites de festa e música, de poesia e dança, de encantamento sem par; as suas tardes suaves e mornas, de doces afagos, de reflexos violetas e de branda penumbra; os seus dias claros e ardentes de tragédia e de luta em que os pátios e os mosaicos das salas se tingiram do sangue da vingança e do crime; as suas madrugadas de terrores, de suspeitas e de alucinações; as suas manhãs de iluminura aureoladas pela esperança de novas e felizes alianças; as suas horas de fogo e de guerra em que tudo se joga e tudo se ganha ou perde.

Evocar o Xarajibe é evocar uma época, um estilo de vida – a época e o estilo de vida dos luso-árabes.

Um dia, era ainda rapaz, encontrando-me com um sacerdote que, durante longos anos, havia vivido e estudado no Oriente, na Síria, ele me perguntou:

– Donde és?

– De Silves – respondi.

Brilharam-lhe nos olhos rápidos lampejos de surpresa, de emoção e de alegria.

– De Silves? – disse –. És da terra do Xarajibe!

E imediatamente, como se mola estranha o movesse, me chamou para junto de si e me comunicou:

«A tua terra tem uma linda história do tempo dos Árabes. Nela se passaram coisas extraordinárias; o palácio do Xarajibe que aí existiu, encerra misterioso sortilégio.

Procura-me porque te quero contar a história da tua terra».

Fiquei surpreendido e meio atónito, perante as palavras do venerando ancião. Nada ou pouco então sabia dessa história, mas compreendi que no seu espírito pairava uma estrela e que essa estrela se chamava Xarajibe.

Passaram-se os anos. O digno e culto sacerdote foi envelhecendo. Nunca tive ocasião de o ir ouvir. Um dia, chegou-me a notícia da sua morte. Além do pesar, foi como se um pano de ferro tivesse corrido sobre esse pequeno mundo.



Que enorme tesouro de cultura sobre Silves e o Xarajibe não teria recolhido esse notável sacerdote nos seus infatigáveis estudos de língua árabe, de literatura e de história, prosseguidos anos e anos, nos melhores centros culturais do Oriente, como Beirute, Damasco e Jerusalém?

Com a sua morte desapareceram, talvez, segredos, agora, na prática, indesvendáveis. Contentemo-nos, sobre o Xarajibe, com o pouco que sabemos. Esse pouco chega, no entanto, para nos dar uma imagem esplendorosa do magnífico palácio, mais ainda enaltecido pelo prestígio da poesia e da lenda.

A mais antiga referência que temos ao Xarajibe parece-nos ser a que se encontra na poesia de saudação a Silves, de Al-Mu’tamid, dirigida a Ibn Ammar.

Al-Mu’tamamid e Ibn Ammar tinham passado a sua juventude em Silves, numa existência que se distribuía entre os prazeres espirituais da poesia, da música e do estudo, os do harém e os da caça.

Subindo ao trono de Sevilha por morte de seu pai, Al-Mu’tadid, Al-Mu’tamid dá a escolher ao seu incomparável amigo, Ibn Ammar, o lugar do reino que pretende.

Ibn Ammar escolhe o valiato do Algarve, com a capital em Silves e parte para esta cidade onde faria entrada solene, com uma pompa que os historiadores árabes classificam de «verdadeiramente real».

É por essa altura que Al’Mutamid lhe dirige a poesia em que surge a mais antiga referência ao Xarajibe:



Eia! Saúda os meus lares, em Silves, ó Abu Becre
E pergunta-lhes se conservam memória de mim, como penso.
Saúda o Palácio do Xarajibe da parte dum donzel
Que perpetuamente suspira por esse palácio.
Morada de leões e de brancas gazelas
que ora parece um covil, ora um gineceu!
Quantas noites não passei, à sua sombra, divertindo-me
com mulheres de largas ancas e cintura delicada,
brancas e morenas que faziam na minha alma
o efeito de espadas refulgentes e de lanças escuras!
E a noite, deliciosamente passada, junto do açude do rio
Com a donzela cuja pulseira semelhava a curva da corrente…
Ela continuamente me embriagava, ora com o vinho dos seus olhares,
Ora com o da sua taça, ora com o dos seus lábios.
As cordas do seu alaúde, feridas pelo plectro, faziam-me estremecer
Como se ouvisse melodias de espadas nos tendões do colo inimigo.
Ao deixar cair o manto, descobria seu corpo, ramo de salgueiro
Brilhante, como quando do botão surge a flor!



Al-Mu'tamid



Esta poesia que ficou célebre na literatura hispano-árabe, não só pela forma, como pela delicadeza de inspiração e pela beleza de imagens, foi-nos conservada pelo historiador Ibn Cacane no seu «Calaíde Al-Iquiane» (Colares de Oiro), no capítulo dedicado a Al-Mu’tamid (1).

Existem dela numerosas traduções em latim, em francês e em espanhol e também, versões portuguesas dessas traduções (2).

Apresentamos aqui uma tradução portuguesa – supomos que a primeira – que tem apenas o mérito de se aproximar o mais possível do texto árabe.

Até há tempos, esta poesia era o único trecho poético em que se falava do Xarajibe. Foi a partir dela, sobretudo, que se começou a formar a concepção do que seria realmente esse palácio.

Tivemos a oportunidade de encontrar, lendo os «Scriptorum Arabum Loci de Abbadidis» de Dozy, uma verdadeira e completa descrição do Xarajibe que seria muito mais importante se fosse objectiva e não tão poética, mas que mesmo assim encerra incontestável valor.

Devemo-la igualmente ao historiador Ibn Cacane que relata o que lhe contou Al-Mu’tazz, no capítulo dedicado ao príncipe Arradi.

Mas, quem era este Al-Mu’tazz? Al-Mu’tazz era, como Arradi, um filho de Al-Mu’tamid. Em dado momento foi nomeado vali de Silves para onde partiu. Governou Silves a contento não só da classe elevada como da gente do povo. Finalmente regressou a Sevilha e o pai premiou com as maiores honras a excelência do seu governo

Desejando Ibn Cacane fazer a biografia de seu irmão Arradi que tanto brilhou pela cultura enciclopédica e pelo talento poético e cujos saraus literários de Sevilha ficaram célebres, procurou ouvi-lo.

E é a propósito da cena passada com Arradi na noite em que o homenagearam que Al-Mu’tazz evoca o Xarajibe de Silves.

Depois de narrar que partiu para governador de Silves, recorda a poesia de seu pai Al-Mu’tamid e, citando o verso em que se fala do Xarajibe, descreve o palácio da seguinte forma:

«Este palácio do Xarajibe chegara então ao mais alto cimo da magnificência e do esplendor

Era semelhante ao mais ínclito da cidade de Bagdade, no Iraque (3).


Bagdad


Corriam nele os nobres cavalos dos seus átrios e brilhavam nos seus terraços os relâmpagos das coisas que mais se poderia desejar e ele oferecia.

A fortuna, na verdade obediente, irradiava dele, desde aquele momento em que começava a viagem da manhã até ao fim da viagem da tarde, isto naqueles dias em que não eram afastados desse palácio os talismãs que constituíam a sua segurança.

E não faltavam, sequer, ao palácio, cálices com as flores da juventude.

Esta cidade (de Silves) tinha-o como o local onde alegremente vivia a sua múltipla esperança e como a mais alta das suas riquezas.

Ao que se acrescentava a beleza do panorama, a fragrância dos perfumes e das brisas e a disposição alegre e luxuriante dos jardins e dos tufos de arvoredo.

Além do mais, era esta cidade quase rodeada pelos seus dois rios como por um colar, do mesmo modo e no mesmo local em que o homem costuma usar o cinturão» (4).

Tem esta descrição, entre outros, o mérito de nos revelar que Silves era então quase rodeada por dois rios, o que presentemente não sucede, nem facilmente se poderia conceber.

Circunstâncias fortuitas permitiram-nos verificar que Al-Mu’tazz devia ter inteira razão. Existiu, certamente, ao norte de Silves, um braço de rio, oriundo do Enxerim, que vinha desaguar ao porto da Azóia, no actual jardim da Senhora dos Mártires. O autor diz «quase», porquanto o rio na sua parte central se encontrava quase sempre seco, oferecendo passagem por enormes bancos de pedra que ainda existiam no século passado, segundo testemunho de pessoas antigas, fidedignas.

A propósito da descrição de Al-Mu’tazz, Ibn Cacane cita igualmente uma ligeira composição de Ibn Alabana, dirigida ao prícipe abádida. Por ela se pode supor que Ibn Alabana esteve em Silves e que teve possivelmente conhecimento da descrição de Al-Mu’tazz.

Silves


Dizem assim os versos de Ibn Alabana:



Não sabes, Al-Mu’tazz Bilá,
Que encontrando-me no palácio real
Da cidade (de Silves)
Me vi num jardim
Por onde o rio passava?
Notei porém que não era um rio
Em torno do qual,
A relva criasse um verde tapete,
Mas sim uma espada cujo cinturão
Se fizera verde.


Mas esta ideia do Xarajibe não teria sido uma criação poética de Al-Mu’tamid, perpetuada e engrandecida por seu filho Al-Mu’tazz?

É bem evidente que se o enaltecimento do Xarajibe se pode atribuir, em parte, à mentalidade poética dos abádidas, a existência do palácio não merece dúvidas.

Al-Mu’tamid, dirigindo-se a Ibn Ammar, não diria «Saúda o Xarajibe», se este não tivesse existência real. Al-Mu’tazz, regressado de Silves, traz nos olhos a imagem do Xarajibe e não encontra outra coisa para falar senão dele. Seria demasiada imaginação supor-se que esse palácio não tivera existência e que um historiador como Ibn Cacane não se havia apercebido disso.

A atestar a existência do Xarajibe está Ibn Alabar que, referindo-se a um acontecimento completamente diverso e de outro século, a morte de Ibn Qasî, Mahdi dos Múridas, escreve: «assassinaram-no (a Ibn Qasî) no mês de «jumada I.ª» de 546, no Alcácer do Xarajibe onde vivia» (5).

Abulfeda, historiador árabe ocidental, do século XIV, afirma por seu lado: «é em Silves que existe o Palácio do Xarajibe».

Para nós, a contra-prova mais importante é a de Ibn Alabar. Ibn Alabar é quase contemporâneo dos acontecimentos que relata e serviu-se das melhores fontes, dando-nos pormenores sobre Ibn Qasî, Ibn Al-Múndir e Ibn Uázir. Mostrou-se sempre muito bem documentado sobre as coisas do ocidente da Península. Além disso, a citação do Xarajibe ocorre ocasionalmente no seu texto. Não teve aí a preocupação de enaltecer ou de diminuir, mas apenas a de relatar com exactidão o como, o quando e o onde.

Está formada e arreigada a tradição de se falar do «Palácio do Xarajibe».

Na verdade, porém, o que encontramos no árabe é «Alcácer Axarajibe» que se traduz por «Castelo das Varandas» (7).

Era o Xarajibe um palácio ou um castelo?

Em nosso entender, um misto de palácio e de castelo. Os castelos tinham no seu interior residências senhoriais e todo o palácio de valor era rodeado de obras de fortificação que permitiam a sua defesa. Para sermos exactos devíamos dizer o «Castelo do Xarajibe», mas, atendendo a que deu margem a autêntica vida palaciana e a que possuía ornamentos de vivenda, não nos parece descabida e até se nos afigura própria a designação de palácio.

E surge, naturalmente, a pergunta, – onde ficava em Silves, o Xarajibe?


Alhambra de Granada (Portal).


Houve quem o tentasse localizar nos mais diversos pontos. Imaginou-se que ficaria fora da cidade, como a Alhambra de Granada. Chegou-se a localizá-lo na montanha pedregosa, ao fim da Oliveira da Carrilha.

Presentemente inclinamo-nos para a sua localização no próprio castelo de Silves. A designação de «alcácer» ou «castelo» está a indicá-lo. Não cremos que a cidade de Silves tivesse, nesses tempos recuados, outro castelo superior ao actual.

Relatando a morte de Ibn Qasî, Ibn Alcátibe, o elegante historiador granadino, parece discordar de Ibn Alabar quando nos diz que Ibn Qasî foi morto no «forte», mas na realidade ele apresenta-nos mais um argumento em favor da tese de que o Xarajibe era precisamente no castelo. O castelo podia ser indiferentemente designado por «caçr» (Ibn Alabar), ou por «hiçn» (Ibn Alcátibe).

E a configuração presente do castelo de Silves, apesar de se tratar de um restauro da reconstrução portuguesa do século XIV, parece confirmar a designação de «das Varandas», pela multiplicidade de açoteias, terraços e varandins (in Atlântico, Revista Luso-Brasileira, 1947, Nova Série, n. 4, pp. 42-46).


Notas:

(1) O texto árabe do «Calcaíde Al-Iquiane de Ibn Cacane foi reproduzido por Dozy em «Historia Abbadidarum», p. 39. Na continuação esta obra tomou o título «Scritorum Arabum Loci Abadidis».

(2) A tradução latina de Dozy encontra-se em «Historia Abbadidarum», p. 83 e a tradução francesa do mesmo autor em «Histoire des Mussulmans d’Espagne», IV, 146, ed. de Leyde de 1861. García Gómez tem duas traduções para o espanhol, uma livre em «Casidas de Andalucia», pp. 79-81, outra mais à letra, em «Poemas Arábigo-andaluces», p. 74. Esta última tradução é a mais exacta que conhecemos. Oliveira Parreira apresentou duas versões portuguesas da tradução francesa de Dozy em «Os Luso-Árabes», uma em verso, vol. I, pp. 347-9, outra em prosa, vol. II, pp. 286-7. Com base na tradução mais à letra de García Gómez elaborou Mário Guerra Roque uma versão portuguesa, em verso, muito elegante, que foi incluída na nossa «História Luso-Árabe», pp. 147-8.






(3) Henri Pérès em «La Poésie Andalouse en Arabe classique, au XI.º siècle» afirma que o autor pretende referir-se ao palácio «Zaura», considerado o mais célebre de Bagdade.

(4) Dozy em «Historia Abbadidarum», texto árabe: I, 170; tradução latina: I, pp. 178-9.

(5) Esta passagem da «Al-Hullat Assiirra» de Ibn Alabar, foi transcrita por Dozy, em «Notices sur quelques manuscripts arabes», p. 200 e traduzida pelo Dr. David Lopes, em «Os Árabes nas obras de Alexandre Herculano», p. 333.

(6) Abulfeda em «Takwin Al-buldan», texto árabe apresentado por Reynaud e Slane, p. 197, tradução francesa de Reynaud e Guyard, p. 237.

(7) A palavra «xarajab» faz no plural «xarâjîb». Significa: balcão, terraço, varanda.

Continua


Um comentário:

  1. Um belo livro este de Oliveira Parreira de que só possuo o volume II.
    Tenho, em vão, procurado o I volume.
    A. Pracana Martins

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