quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Reencarnação (ii)

Fragmento de uma conferência proferida por Rudolf Steiner








«Nem conseguimos sequer imaginar as complexas forças que estão por detrás de todos os acontecimentos que ocorrem nas nossas vidas. Existe uma conspiração de coincidências, que tece a teia do carma ou destino e cria uma vida pessoal do indivíduo - minha ou sua. A única razão por que não experimentamos a sincronicidade nas nossas vidas quotidianas é por não abandonarmos o nível em que ela se desenrola. Normalmente, vemos apenas relações de causa-efeito. Isto causa aquilo, que causa isto, que causa aquilo - trajectórias lineares. Contudo, sob a superfície, algo mais acontece. Invisível aos olhos, está toda uma teia de conexões. À medida que se torna notória para nós, vemos o modo como as nossas intenções são urdidas nessa teia, que está muito mais ligada ao contexto, é muito mais relacional, muito mais holística, muito mais consistente do que a nossa experiência à superfície».

Deepak Chopra («Os Sete Princípios da Realização Espiritual»).


«Os seres humanos nunca teriam sucumbido à influência arimaniana se não tivessem começado por ser vítimas da de Lúcifer. Mas, uma vez que se abriram a ela, estabeleceu-se entre os quatro elementos constitutivos do homem, corpo físico, corpo etéreo, corpo astral e eu, um elo que não se teria formado se Lúcifer não tivesse actuado, e se só tivessem estado activas as forças das quais Lúcifer é o adversário. O homem teria então evoluído de maneira diferente. O princípio luciferino provocou pois uma perturbação no seu ser interior. Mas é do ser interior que depende a forma como o homem entra em contacto com o mundo exterior. É exactamente como se num dos vossos olhos alguma coisa tivesse sido inutilizada. Não veríeis o mundo exterior correctamente por causa dessa imperfeição interna, e devido à influência luciferina nunca mais veríeis o mundo exterior como ele é. E uma vez que o homem tinha um motivo para não ver o mundo exterior como ele é, a influência arimaniana pôde invadir a falsa imagem desse mundo exterior, por forma a que Ahriman só pudesse abordar o ser humano graças à acção da influência luciferina. Da influência arimaniana resultou não só que o homem pode sucumbir às paixões egoístas, às pulsões, aos desejos, à vaidade, ao orgulho, etc., mas também que num organismo humano em que o egoísmo pode actuar desse modo, formaram-se orgãos que deviam ter do mundo exterior uma visão falsa, inexacta. Foi assim que Ahriman pôde insinuar-se nas imagens inexactas do mundo exterior. Ele aproximou-se, e com isso o ser humano ficou exposto à outra influência, e pôde assim sucumbir às seduções interiores, mas também ao erro e - no julgamento que faz do mundo exterior e no que afirma sobre ele - à mentira. Ahriman actua sem dúvida do exterior, mas fomos nós que lhe demos a possibilidade de chegar até nós.

(...) Pensemos que os grandes acontecimentos que ocorreram ao longo da evolução da humanidade só tiveram lugar por terem sido realizados por certas pessoas. É preciso que num determinado momento certas pessoas se encarreguem dos desígnios da evolução. Pensem no curso que teria tido a evolução na Idade Média se Carlos Magno não tivesse intervindo numa determinada época, ou no curso que teria seguido a vida espiritual do passado se num momento específico Aristóteles não tivesse estado activo. Pensem que, se quiserem compreender o curso da evolução humana, tereis de, mentalmente, inserir Aristóteles na época que ele viveu; porque, sem ele, muitas coisas ter-se-iam mais tarde passado de outro modo. Vemos por aqui que personalidades como Carlos Magno, Aristóteles, Lutero, entre outros, deviam viver na época que foi a sua, não por eles próprios, mas pelo mundo...».

Rudolf Steiner («Reencarnação»).







«X: Não é Rudolf Steiner que atribui a Lúcifer a criação de uma esfera espiritual própria, rica e prodigiosa mas separada da criação divina? Esta ideia deixa de nos parecer fantasmagórica quando pensamos na televisão. Televisão é quase um sinónimo de Lúcifer, se decompusermos cada uma das duas palavras nos seus dois elementos e os fizermos compreender um a um. Só o automóvel disputa à televisão a supremacia do mundo. As aldeias, as vilas e as cidades perderam a naturalidade antiga, como direi?, aquela relação serena da terra com o céu que se exprimiu pela arte das chaminés, dos campanários e dos galos indicando a direcção das brisas e dos ventos. Hoje, por toda a parte, onde há casas, oferece-se-nos o espectáculo irritante de todos os telhados com antenas de televisão, lembrando esquisitos insectos.

Y: A relação que encontrou entre a palavra Lúcifer e a palavra televisão é impressionante.

X: A ideia de que a televisão corresponde à prostituta que está sentada sobre as águas anunciada no Apocalipse para o fim dos tempos também me tem ocupado ultimamente. É uma prostituta porque recebe todas as correntes, é uma misturadora de sémens. Assistimos a uma missa e, no intervalo, a um anúncio de camisas de Vénus. As águas são a humanidade onde se movem todas as correntes.

Y: E está sentada nas nossas casas e toda a família à volta, como se ela desempenhasse a função das antigas lareiras. As antenas usurparam, de facto, o lugar das chaminés.

X: Há qualquer coisa de tenebroso na manipulação da luz. Só lhe lembro o seguinte: João Villaret morreu e, depois disso, de tempos a tempos, aparece na televisão a declamar poemas. É a aparição de um morto. É um morto porque não tem iniciativa psíquica, mas sente, move-se e fala. Este, como outros, prodígios luciferinos são recebidos com toda a naturalidade pelos espectadores, mas, se a mesma imagem lhes aparecesse de noite, no quarto, haveria quem morresse de terror. Os fantasmas que a técnica manipuladora da luz conserva e projecta, quando bem quer, parecem inofensivos. São-no, de facto?».

António Telmo («Arte Poética»).


«...a esperança de um ulterior progresso nas ciências estará bem fundamentada quando se recolherem e reunirem na história natural muitos experimentos que em si não encerram qualquer utilidade, mas que são necessários na descoberta das causas e dos axiomas. A esses experimentos costumamos designar por lucíferos, para diferenciá-los dos que chamamos de frutíferos. Aqueles experimentos têm, com efeito, admirável virtude ou condição: a de nunca falhar ou frustrar, pois não se dirigem à realização de qualquer obra, mas à revelação de alguma causa natural».

Francisco Bacon («Novum Organum»).







Apliquemos agora a estas mesmas reflexões o que sabemos sobre as vidas sucessivas do homem na terra. A consciência da qual acabámos de falar, que, excepto no caso referido, se estende a toda a vida entre o nascimento e a morte, deve-se ao facto de o homem poder servir-se do instrumento que é o seu cérebro. Quando o homem transpõe o limiar da morte, surge um outro tipo de consciência, independente do cérebro e sujeita a condições essencialmente diferentes. Sabemos que, diante desta consciência que perdura até ao nascimento seguinte, surge uma espécie de retrospectiva de tudo o que o homem fez entre o nascimento e a morte. Ao longo da sua vida terrestre, primeiro, foi necessário que ele tomasse a resolução de buscar as faltas cometidas sobre si próprio, se quisesse dirigir de facto, em termos cármicos, os efeitos para a sua vida. Depois da morte, a visão retrospectiva da sua existência mostra-lhe as suas faltas, de uma maneira geral, as suas acções, e o que elas fizeram da sua alma ou sobre a sua alma.

Ele vê de que forma determinado acto diminuiu ou acrescentou o seu valor. Se, por exemplo, tivermos feito mal a outra pessoa, o nosso valor terá sido depreciado por causa disso; valemos menos, por assim dizer, por termos praticado esse mal, tornámo-nos mais imperfeitos. Ora, na visão retrospectiva depois da morte, somos confrontados com um grande número de casos perante os quais dizemos: «Esta acção tornou-nos mais imperfeitos». Mas esta constatação faz surgir na consciência do morto a força e a vontade de tudo fazer, desde que a ocasião volte a apresentar-se, para recuperarmos o valor perdido, por outras palavras, a vontade de compensar o mal praticado. Entre a morte e um novo nascimento, o homem toma portanto a resolução de reparar o mal que provocou, de fazer tudo para reconquistar o grau de perfeição que deve possuir enquanto homem e que viu ser-lhe retirado por esse tipo de actuação.

Em seguida, ele regressa à existência. A sua consciência volta a mudar; não se recorda do tempo que se escoou entre a sua morte e um novo nascimento, nem da resolução tomada para compensar certas coisas. Mas essa resolução está ancorada nele. Mesmo que desconheça que deve fazer uma ou outra coisa para reparar isto ou aquilo, será impelido para uma acção compensadora pela força que reside em si próprio. E agora podemos fazer a representação do que acontece quando, aos vinte anos, por exemplo, um homem é atingido por um grande sofrimento. A sua consciência terrestre sente apenas o peso do sofrimento. Mas se ele se recordasse das resoluções que tomou durante a existência entre a morte e o novo nascimento, descobriria também a força que o impeliu para o sítio onde essa dor podia atingi-lo, porque sentiu que afrontá-la era a única maneira de alcançar o grau de perfeição perdida. Deste modo, embora a consciência comum veja apenas o sofrimento que a oprime e considere unicamente o seu efeito, a consciência que também abrange o tempo compreendido entre a morte e um novo nascimento pode ter como finalidade última justamente a busca do sofrimento ou de uma qualquer dor.

E é isto, de facto, o que se nos apresenta quando consideramos a vida humana de um ponto de vista mais elevado. Vemos então que na vida humana existem acontecimentos da existência que não são efeitos de causas ocorridas apenas nesta vida, mas cujas causas emanam de uma outra consciência, daquela que reside para lá do nascimento e pela qual a nossa vida existe anteriormente àquilo que se desenrolou desde que nascemos.






Ao apreendermos com exactidão esta ideia, diremos que temos antes de mais uma consciência que perdura entre o nascimento e a morte e que designaremos consciência pessoal, sendo a personalidade aquilo que se manifesta entre o nascimento e a morte. Veremos em seguida, que uma consciência alheada do homem no estado habitual pode actuar para lá do nascimento e da morte exactamente do mesmo modo que a consciência comum. Por isso é que começaremos por descrever o modo como podemos encarregar-nos a nós próprios do nosso carma e começar, por exemplo, aos quarenta anos, e antes que esses efeitos nos atinjam, a compensar uma coisa cujas causas remontam aos doze anos. Num tal caso, tomamos o carma em si mesmo, na sua consciência pessoal. Se, pelo contrário, o homem chegou a um lugar onde pode passar por um sofrimento reparador da sua falta e que o torna um homem melhor, também aí terá sido ele a desejá-lo, mas desta vez o impulso não vem da consciência pessoal, mas de uma consciência mais vasta que abrange o tempo compreendido entre a morte e um novo nascimento. À entidade cuja consciência foi por nós apreendida, apelidamos individualidade do homem, e chamamos consciência individual a essa consciência que é constantemente sufocada pela consciência pessoal. Deste modo, a forma como o carma actua reporta-se à individualidade humana.

Todavia, não compreenderemos a vida humana se nos contentarmos em seguir a sucessão dos fenómenos, como fizemos até agora, se considerarmos no homem apenas as causas que existem nele e os efeitos que lhe dizem respeito. Basta-nos evocar interiormente um caso muito mais simples que nos leva ao essencial para vermos de imediato que não compreendemos a vida humana quando temos em conta apenas o que foi dito até agora.

Tomemos o caso de um inventor ou de um explorador, por exemplo, Cristovão Colombo, ou o inventor da máquina a vapor, ou qualquer outro. Em todas as descobertas existe um acto preciso. Se analisarmos o modo como esse homem praticou esse acto e se em seguida procurarmos a causa que o levou a praticá-lo, encontramos sempre aquelas de cujo género evocámos. Assim, por que motivo Colombo partiu para a América? Por que razão tomou ele justamente essa decisão num determinado momento? Encontramos as causas disso no seu carma individual e pessoal. Mas agora podemos questionar-nos se a causa deve ser procurada apenas no seu carma pessoal e individual. O acto, enquanto efeito, não deverá ser considerado apenas do ponto de vista da individualidade que se manifestou em Colombo? O facto de ter descoberto a América causou nele um certo efeito; ele elevou-se, tornou-se mais perfeito. O desenvolvimento da sua individualidade na sua vida seguinte testemunhá-lo-á. Mas que efeitos teve este acto para outros homens? Não se devia considerá-lo também como uma causa que influenciou um número incalculável de vidas humanas?

No entanto, também aqui se trata de fazer uma ideia bastante abstracta de algo que podemos ver numa perspectiva muito mais profunda ao examinarmos a vida humana na perspectiva de longos períodos. Consideremo-lo tal como se desenrolou na época caldaico-egípcia, a que antecedeu a época greco-latina. Se estudarmos este período do ponto de vista do que ele trouxe aos homens, das experiências que lhes permitiu viver, descobriremos algo de muito singular. Ao compararmos esta época com a nossa, verificamos que o que acontece nesta está associado ao que ocorreu na época caldaico-egípcia. A época greco-latina situa-se entre as duas. Há coisas que não teriam chegado à nossa época se determinados factos não tivessem ocorrido durante a civilização caldaico-egípcia. Se a ciência actual chegou a determinado resultado, de facto, ela deve-o também a forças que se desenvolveram e se expandiram a partir da alma humana. Mas as almas que se manifestam nos nossos dias também encarnaram na época caldaico-egípcia e passaram então por certas experiências sem as quais não teriam podido realizar o que hoje fazem. Se os pupilos dos sacerdotes do antigo Egipto não tivessem recebido as descrições do céu ensinadas pela astrologia, mais tarde não teriam conseguido penetrar, à sua maneira, nos mistérios do universo, e algumas almas do nosso tempo não teriam possuído as forças que orientaram a humanidade actual para os espaços celestes. De que modo Kepler, por exemplo, foi levado a fazer as suas descobertas? É que nele vivia uma alma que, na época caldaico-egípcia, recebera as forças necessárias para as descobertas, que lhe foi permitido fazer na quinta época. Sentimos uma certa satisfação interior ao vermos surgir em alguns espíritos como que a lembrança de terem recebido outrora o embrião das suas acções actuais. Kepler, esse espírito ao qual devemos muito do ponto de vista da investigação das leis celestes, diz ao falar de si próprio (1):

«Sim, fui eu que roubei os vasos de ouro dos Egípcios para com eles erigir um santuário ao meu Deus, bem longe das fronteiras do Egipto! Se mo desculpardes, regozijo-me com isso, mas se mo recriminardes, acatá-lo-ei; lanço aqui os dados e escrevo este livro. Que seja lido hoje ou mais tarde, não me importa! Ainda que seja preciso esperar cem anos para que seja lido, o próprio Deus teve que esperar seis mil por aquele que, pelos seus conhecimentos, concebesse a sua obra».







Recorda-se esporadicamente do que recebeu como embrião do que devia realizar ao longo da sua existência pessoal sob o nome de Kepler. Podíamos dar centenas de exemplos deste género. No entanto, vemos em Kepler mais do que a manifestação de efeitos, cuja causa remonta a uma vida anterior. Vemos manifestar-se o que aparece como o efeito necessário para toda a humanidade de qualquer coisa que tinha já a sua importância para todos nós em tempos recuados. Vemos de que forma o indivíduo é colocado ali onde pode actuar para toda a humanidade. Vemos que não só para toda a vida humana individual, mas para o conjunto da humanidade, existem portanto relações de causa e efeito que perduram por longos períodos. Podemos daqui deduzir que a Lei do Carma Individual irá interferir com as leis a que podemos chamar Leis Cármicas da Humanidade. Por vezes é bastante difícil desfazer essas interferências. Pensai no que se teria tornado a nossa astronomia se o telescópio nunca tivesse sido inventado. Recuem na história desta ciência e constatarão que uma infinidade de coisas se deveram a esta invenção. Ora, é um facto conhecido que a descoberta do telescópio se deve à brincadeira de duas crianças numa oficina de óptica. Enquanto brincavam com lentes ópticas, o «acaso», podemos dizer, quis que elas as combinassem de tal forma que ocorreu a ideia a alguém de transformar essa combinação num telescópio. Pensem até onde devem ir procurar o carma individual destas crianças e o carma da humanidade que provocou esta invenção numa época determinada! Tentem reunir estes factos no vosso pensamento e vereis de que forma notável o carma de individualidades isoladas e o de toda a humanidade intervêm e se entrecruzam. Concordareis que seria necessário delinear uma imagem completamente diferente da evolução da humanidade se, numa determinada época, um acontecimento qualquer não tivesse tido lugar.

Habitualmente, não tem qualquer utilidade questionar-nos sobre o que teria sucedido ao Império Romano se, num determinado momento, os Gregos não tivessem contido o assalto dos Persas durante as Guerras Médicas. Todavia, tem alguma utilidade colocarmos a seguinte questão: «O que é que fez com que as Guerras Médicas se tivessem desenrolado daquela forma?». Quem procurar a resposta verá que no Oriente certas conquistas se devem apenas à existência de déspotas que só cobiçavam domínios pessoais e com esse objectivo se aliavam aos sacerdotes sacrificiais, etc. Nessa época, todas as instituições do Estado eram necessárias aos desígnios do Oriente. Mas essas instituições também trouxeram todos os males que daí haviam de resultar. Isso liga-se ao facto de um povo constituído de outra forma, o grego, ter conseguido conter no momento desejado a investida oriental. Ao reflectirmos sobre estas coisas, questionamo-nos sobre o que dizer do carma das personalidades a quem a Grécia deve a contenção dos Persas. Encontraremos inúmeros factores pessoais no carma desses homens, mas perceberemos também que esse carma pessoal está ligado ao do povo e ao da humanidade. De modo que podemos dizer que foi justamente o carma de toda a humanidade que colocou essas personalidades particulares nesse local e nessa época! Verificamos aqui que o carma da humanidade interveio no indivíduo. E devemos continuar a interrogar-nos sobre a forma como tudo isto se coordena. Mas, para irmos ainda mais longe, consideremos um outro conjunto de factos.


Do ponto de vista da ciência do espírito, podemos remontar a uma época da evolução terrestre na qual o reino mineral ainda não existia na terra. A nossa evolução terrestre foi antecedida das fases de Saturno, do Sol e da Lua, quando não havia reino mineral no sentido que hoje habitualmente lhe atribuímos. Ele apareceu apenas na terra sob a forma dos actuais minérios. Foi por se ter diferenciado no decurso da evolução terrestre que passou a existir como reino autónomo em todos os tempos futuros. Até então, os homens, os animais e as plantas tinham-se desenvolvido sem se apoiarem num reino mineral. Para realizar uma evolução ulterior, os outros reinos foram obrigados a segregar o reino mineral. Na sequência disso, o único desenvolvimento possível tornou-se aquele que seguiram num planeta dotado de uma base sólida, mineral. E nunca as coisas surgirão de outro modo a não ser com base em condições introduzidas pela formação de um reino mineral Este existe, e todas as existências futuras dos outros reinos estão ligadas ao seu aparecimento, que se produziu num passado muito longínquo do nosso estado terrestre. Toda a evolução futura da terra está portanto dependente daquilo que aconteceu devido ao aparecimento do reino mineral. Em todos os outros seres cumprir-se-á aquilo que é a consequência do aparecimento do reino mineral. Também aqui vemos em tempos futuros a realização cármica de factos anteriores. É na Terra que se realiza o que foi preparado na Terra. Existe uma relação entre o antes e o depois, mas esta é de tal natureza que o efeito reage sobre o ser gerador da causa. Os homens, os animais e as plantas rejeitaram o reino mineral, e o reino mineral reagiu actuando sobre eles! Verificamos deste modo que é possível falar-se num carma da Terra.

Por fim, salientamos um outro facto. Sabemos que certas entidades permaneceram no patamar da evolução da antiga Lua, com a finalidade de atribuírem ao homem terrestre faculdades bem definidas. Ora, não só essas entidades, mas também certas substancialidades da época lunar da Terra ficaram para trás. Certos seres permaneceram no patamar lunar da evolução, actuando sobre as nossas condições terrestres enquanto entidades luciferinas. Devido a esta paragem num estádio da evolução, esta foi afectada por efeitos cujas causas foram desencadeadas aquando da evolução lunar. Do ponto de vista das substâncias, ocorre um facto semelhante. Se considerarmos o nosso sistema solar actual, vemos que é composto por corpos celestes cujos movimentos se repetem regularmente e exprimem uma certa coerência interna. Encontramos, no entanto, outros corpos cósmicos que também se movem segundo certos ritmos, mas que transgridem, por assim dizer, as leis normais do sistema solar; eles são os cometas. Ora, a substância dos cometas não obedece às mesmas leis que as que regem o nosso sistema solar regular, mas a leis semelhantes às que existiam quando da antiga lua. De facto, as leis da antiga Lua conservaram-se em tudo o que é fenómeno cometário. Já referi inúmeras vezes que a ciência do espírito demonstrou que essas leis existiam antes das ciências as confirmarem. Em 1906, em Paris, demonstrei que durante o antigo estado lunar, determinadas combinações de carbono e azoto tiveram um papel semelhante ao que é hoje representado na terra pelas combinações de oxigénio e carbono, como o gás carbónico, o dióxido de carbono, etc. Estes têm propriedades tóxicas. As combinações de cianogénio, os componentes do ácido prússico desempenharam um papel semelhante na antiga Lua. Do ponto de vista da ciência do espírito, estes factos foram já estabelecidos em 1906 (2). Outras conferências também demonstraram o modo como a natureza cometária introduz no nosso sistema solar as leis do antigo estado lunar; de modo que ficaram para trás não só os seres luciferinos, mas também as leis da antiga Lua, que intervêm irregularmente na ordenação do nosso sistema solar. Sempre dissemos que devia subsistir na atmosfera dos cometas qualquer coisa como combinações de cianogénio (3). Muito tempo depois da ciência do espírito ter anunciado isto, só em 1910, a análise espectral descobriu nos cometas o espectro do ácido prússico.


Vereis nisto uma prova a dar àqueles que vos dizem: «Demonstrai pois de uma vez por todas que a ciência do espírito pode verdadeiramente conduzir a uma descoberta!». Encontraríamos muitos outros factos deste género, se quiséssemos simplesmente observá-los. Qualquer coisa do nosso antigo estado lunar continua portanto a actuar sobre as condições terrestres actuais.

Questionemo-nos agora se podemos sustentar que os fenómenos sensíveis exteriores assentam numa base espiritual.

Aquele que reconhece o ensino da ciência do espírito não duvida que por detrás de toda a realidade sensível reside um elemento espiritual. Se, do ponto de vista da substância, houver uma acção das antigas condições lunares sobre o nosso estado terrestre, se o cometa irradiar sobre a nossa terra, é porque, em segundo plano, também actua qualquer coisa de espiritual. E poderemos mesmo especificar que ela é, por exemplo, a realidade espiritual que se manifesta através do cometa Halley. Sempre que entra na esfera da existência terrestre, este cometa torna-se a expressão exterior de um novo impulso em direcção ao materialismo. Para o mundo actual, isto pode parecer uma superstição, mas bastaria que as pessoas se lembrassem de como elas próprias atribuem certos efeitos espirituais às posições dos astros. Quem negaria, por exemplo, que o esquimó é feito de modo diferente do índio por na região polar os raios solares caírem de acordo com um ângulo diferente? Os próprios estudiosos atribuem em toda a parte às posições dos astros efeitos sobre o espírito humano. Um impulso supersensível para o materialismo acompanha o cometa Halley (4). Isto pode ser demonstrado. O aparecimento deste cometa em 1835 foi, de facto, seguido da corrente materialista da segunda metade do século XIX. O seu aparecimento anterior foi seguido da filosofia materialista das Luzes dos enciclopedistas franceses. Estas associações existem, de facto.

Determinadas coisas não puderam acontecer na terra senão porque as suas causas foram anteriormente situadas fora das condições terrestres actuais. E aqui temos mesmo de falar no carma do mundo. Por que razão alguns elementos espirituais e certas substâncias foram separadas da antiga Lua? Para que certos efeitos pudessem, por sua vez, reflectir-se nas entidades causadoras da separação. As entidades luciferinas foram separadas e tiveram que passar por uma outra evolução para que o livre-arbítrio e a possibilidade do mal pudessem ser atribuídos na terra aos seres que a habitam. Eis um facto que excede os efeitos cármicos encerrados nos limites do estado terrestre. Esta é uma perspectiva sobre o carma do universo.



Ahriman esculpido por Rudolf Steiner







Hoje podemos pois falar no conceito de carma, no seu significado para a personalidade, para a individualidade e para o conjunto da humanidade. Descrevemos os seus efeitos no nosso quadro terrestre, e para lá dele,chegámos àquilo a que podemos chamar o carma do mundo. Encontramos, deste modo, a Lei do Carma, à qual poderemos chamar Lei das Relações de Causa e Efeito, desde que o efeito recaia sobre a causa e que a identidade do ser se tenha conservado, que ele tenha permanecido o mesmo quando o efeito vier a tocá-lo de novo. Voltamos a encontrar essas leis cármicas por toda a parte no universo na medida em que o consideramos espiritual. Prevemos que o carma irá manifestar-se nos domínios mais variados e das formas mais diversas. Prevemos que as correntes cármicas, as do indivíduo, da humanidade, da terra, do universo, etc., irão cruzar-se e que isso nos fornecerá a chave que permite compreendermos a vida. Os diferentes pormenores da vida não poderão ser compreendidos a não ser que saibamos desvendar a acção simultânea das correntes cármicas mais diversas» (in ob cit., pp. 30-41).


Notas:

(1) Excerto da introdução do Livro V («Sobre a harmonia muito perfeita dos movimentos celestes, e sobre a origem das Excentricidades a partir dos mesmos, e dos Semi-diâmetros e dos Tempos periódicos») da obra de Kepler Harmonices mundi libri V, Lincci Austriae, sumpt. G. Tampachii, 1619, segundo a versão alemã Weltharmonik...

(2) Ver a conferência realizada em Paris, no dia 11 de Junho de 1906, em L'ésoterisme chrétien. Esquisse d'une cosmogonie psychologique d'áprés des conférences faites à Paris en 1906, in GA 94, T, 1957, p. 120.

(3) A propósito do papel das combinações de cianogénio e da sua presença na atmosfera cometária, vejam-se também as conferências do dia 10 de Outubro e sobretudo do dia 24 de Outubro de 1923 em Manifestations de l'esprit dans la nature, GA 351, É.A.R.

(4) O cometa Halley foi assim designado em referência ao nome do primeiro estudioso a calcular a sua trajectória, o astrónomo Halley (1656-1742). Enquanto realizava os seus cálculos, ficou surpreendido com o facto da trajectória de 1862 do grande cometa ser semelhante às trajectórias dos cometas de 1531 e 1607. Com isso concluiu que, naquelas três aparições, devia tratar-se do mesmo cometa. Halley previu o regresso desse cometa de forma exacta para 1759, depois de completado um ciclo de 75 a 76 anos. Foi deste modo que o primeiro cometa de regresso periódico foi descoberto. Esta descoberta foi da máxima importância na medida em que, por esse facto, «os cometas misteriosos foram despojados do seu nimbo e classificados no domínio da validade das leis gerais da natureza» (Max Gerstenberger, Kometen - Aussenseiter am Himelszelt, Estugarda, 1951). Por outro lado, pensávamos deste modo colocar pelo menos os cometas periódicos numa trajectória elíptica como a dos planetas. A propósito da missão do cometa Halley, veja-se também as conferências de Rudolf Steiner dos dias 25 de Outubro de 1909 e 9 de Março de 1910 em l'Impulsion du Christ et la conscience du moi, GA 116, T 1985, e de 5 de Março de 1910 e, l'Apparition du Christ dans le monde éthérique, GA 118, É.A.R.







domingo, 26 de agosto de 2012

Reencarnação (i)

Fragmento de uma conferência proferida por Rudolf Steiner








«Steiner, estudioso de Schiller e de Goethe, autor de uma Filosofia da Liberdade que tivera bom acolhimento também no meio académico, era um intelectual de prestígio quando em 1900 aceitou fazer uma série de conferências na Sociedade Teosófica de Berlim e continuou a colaborar com a sociedade nos anos seguintes. Não obstante a parcial diversidade de posições, ali adquiriu um notável prestígio, ao ponto de poder aspirar a dirigi-la e a fazer que o grupo guiado por Annie Besant não conseguisse impor o jovem hindu [Jiddu Krishnamurti]. Também, por este motivo, além da crescente divergência de posições, Steiner rompe com a sociedade em 1912.

Mas as suas ligações com a cultura ocultista continuaram. Em 1909 elaborara uma colectânea de uma série de conferências feitas em Budapeste (nascera na Hungria em 1861) com o título "O Esoterismo Rosacruciano". No livro Memória Cósmica retomava a história esotérica de origem blavatskiana. Já em 1909 se iniciara um conflito no âmbito da sociedade teosófica, porque Steiner insistia para que ela desse o seu apoio à representação das obras de Schuré (já reconhecido como admirador de Wagner e do seu círculo ocultista-racista). Dele era protagonista a actriz Maria von Sievers (que casou com o próprio Steiner). Em 1907 fora representada uma reconstituição dos mistérios eleusinos. Em 1909 uma segunda experiência teatral deveria ter lugar em Munique, durante o congresso que Steiner promovera segundo uma concepção que estava a elaborar e que definia como antroposofia em ligação com a teosofia da sociedade, cujos dirigentes não compartilharam a oportunidade da iniciativa. Vem daqui os desacordos até à ruptura de 1912.

(...) devemos a [Colin] Wilson um eficaz resumo da tese de Steiner. "O ser humano é formado por quatro 'corpos'. O físico que é animado pelo corpo etéreo, visível aos clarividentes que lhe chamam 'aura', Bergson em vez disso chama-lhe 'impulso vital', enquanto Shaw 'força vital'. Vem depois o 'corpo astral', o qual, segundo os ocultistas, pode sair do corpo físico nalgumas condições. Por cima de tudo isto há o ego, o princípio do indivíduo. O homem desenvolveu lentamente estes corpos, um a um, em longos períodos de tempo. É a única criatura na terra que possui o ego com o qual coordena os outros três corpos. Trabalhando sobre estes corpos inferiores pode criar três corpos superiores: uma consciência espiritual, um corpo espiritual, uma alma perfeita a que os hindus chamam 'atma', cuja natureza é idêntica à de Deus"».

Giorgio Galli («Hitler e o Nazismo Mágico - As Componentes Esotéricas do III Reich»).
«É também a época em que uma extraordinária personagem, Rudolf Steiner, desenvolve na Suiça uma sociedade de investigações que se baseia na ideia de que o Universo inteiro está contido no espírito humano e que esse espírito é capaz de uma actividade sem nada de comum com o que a esse respeito nos diz a psicologia oficial. De facto, certas descobertas steinerianas, na biologia (os adubos que não destroem o solo), na medicina (utilização dos metais que alteram o metabolismo) e sobretudo em pedagogia (funcionam hoje na Europa numerosas escolas steinerianas), enriqueceram consideravelmente a humanidade. Rudolf Steiner pensava que há uma forma negra e forma branca de investigação "mágica". Achava que o teosofismo e as diversas sociedades neopagãs provinham do grande mundo subterrâneo do Mal e anunciavam uma era demoníaca. Apressava-se a estabelecer, no âmago do seu próprio ensinamento, uma doutrina moral incitando os "iniciados" a só utilizarem forças benéficas. Ele pretendia criar uma sociedade de benevolentes.

Não vamos pôr a questão de saber se Steiner tinha ou não razão, se era ou não senhor da verdade. O que nos impressiona é que as primeiras equipas nazis parecem ter considerado Steiner o seu inimigo número um. Logo de início, os seus agentes dispersam por meio da violência as reuniões de steinerianos, ameaçam de morte os discípulos, obrigam-nos a fugir da Alemanha e, em 1924, na Suíça, Dornach, deitam fogo ao centro edificado por Steiner. Os arquivos ardem, Steiner já não está em condições de trabalhar e morre de desgosto um ano mais tarde».

Louis Pauwels e Jacques Bergier («O Despertar dos Mágicos»).


«O budismo toma como facto definitivo a existência do mundo material onde vivem seres conscientes; afirma que tudo está sujeito à lei de causas e efeitos e que não há nada que não esteja mudando constantemente, ainda que imperceptivelmente. Não há lugar nenhum que escape a esta lei e por conseguinte não há céu nem inferno no sentido vulgar. Há mundos onde vivem anjos cujas existências são mais ou menos materiais conforme as suas vidas prévias foram mais ou menos santas, mas estes anjos morrem e os mundos que eles habitam passam. Há lugares de torturas onde as más acções dos homens e dos anjos geram seres infelizes, mas quando estiver esgotado o poder activo do mal que os produziu, estes desaparecerão, como os mundos que habitam, como o Cosmos. A terra, o céu e o inferno tendem sempre à mudança, numa série de revoluções ou de ciclos cujo princípio é desconhecido e não se pode conhecer. Os homens e os deuses não fazem excepção a esta lei universal de composição e dissolução; a unidade de forças que constitui um ser consciente tem mais tarde ou mais cedo de se dissolver e só por ignorância ou ilusão é que um ser sonha uma existência independente e separável».

A. P. Sinnett («Budismo Esotérico»).







«Da possibilidade de aceitar plenamente a cisão, ou o que infinitamente separa o ser de si e da sua verdade, queda enfim dependente não só o pensamento do homem e o ser do homem para si mas, enquanto para ele são, todo o divino, todo o angélico ou demoníaco, tudo quanto apreendemos como imediação e imediato, ou na mediação cósmica da razão mais ampla e mais profunda».

José Marinho («Teoria do Ser e da Verdade»).




Primeira Conferência, Hamburgo, 16 de Maio de 1910 


(...) Para reconhecermos o carma no indivíduo, suponhamos que, aos vinte e cinco anos, uma pessoa é atingida por um golpe cruel do destino. Vive deste modo uma grande dor. Se as nossas observações forem conduzidas de tal maneira que nos contentamos em verificar que o destino cruel atingiu essa vida, encheu-a de dor e sofrimento, se não suplantarmos a simples observação, nunca chegaremos ao conhecimento da relação cármica. Contudo, se formos mais longe e observarmos a vida dessa pessoa aos cinquenta anos, e se tiver sido profundamente atingida aos vinte e cinco anos, talvez possamos retirar daí algo que poderia ser formulado do seguinte modo: o homem que é alvo da nossa observação tornou-se diligente e activo, dotado de todo o tipo de capacidades face à existência; analisemos agora o curso da sua vida. Descobriremos que, aos vinte anos, ele não valia nada, não queria fazer absolutamente nada; aos vinte e cinco anos, foi então atingido por esse rude golpe do destino. Sem essa infelicidade, podemos dizer, teria continuado um inútil. Assim, o cruel golpe do destino foi a causa daquilo com que nos deparamos na presença de um quinquagenário capaz e activo.

Um facto deste género prova que nos desviamos do caminho se virmos o rude golpe do destino sofrido aos vinte e cinco anos como um simples efeito. Porque se nos questionarmos sobre qual terá sido a sua causa, vemos que não podemos limitar-nos à simples observação. Mas não consideremos uma infelicidade deste género como um efeito; não vejamos nela o resultado de fenómenos que a antecederam; coloquemo-la, pelo contrário, na origem dos acontecimentos que se seguiram e encaremo-la como uma causa. Teremos, pois, de reconhecer que podemos modificar por completo o juízo que advém do nosso sentimento e das nossas impressões relativamente a esse golpe do destino. Se virmos nisso apenas um efeito, talvez nos sintamos tristes ao ver esse homem ser assim atingido. Se, pelo contrário, o considerarmos como causa do que se lhe seguiu, talvez possamos regozijar-nos com isso, porque, podemos afirmar, foi graças a esse seu destino que essa pessoa se tornou válida.






Deste modo, vemos modificar-se uma parte essencial dos nossos sentimentos ao considerarmos um acontecimento da vida como uma consequência ou uma causa. Não é portanto indiferente ver-se em tudo o que pode acontecer na vida de um homem como um simples efeito ou uma causa. Claro que, se a nossa observação se situar no momento em que o doloroso acontecimento acaba de ocorrer, ainda não nos é possível percepcionar aí nenhum efeito imediato. Mas, se a observação de casos deste género nos permitir formar uma ideia da lei do carma, esta pode então mostrar-nos que, se um acontecimento actual nos parecer doloroso, é porque nos aparece unicamente como o efeito daquilo que o antecedeu.

Mas também podemos considerar este acontecimento como um ponto de partida, pressentindo então que dele provêm efeitos que esclarecem a questão com uma luz completamente diferente! A lei cármica pode deste modo tornar-se fonte de consolação. Esta consolação não existiria se persistísssemos no hábito de considerar o acontecimento como um fim e não como o início de uma série de manifestações.

Para nós é portanto importante aprendermos a observar cuidadosamente a vida e a distinguir o que, nas coisas, corresponde a efeitos e a causas. Se realizarmos tais observações de forma verdadeiramente profunda, em toda a vida humana individual aparecer-nos-ão resultados que se expõem com uma certa regularidade e outros que nos parecem irregulares. É assim que aquele que observa a vida humana - e cujo olhar alcança mais longe do que a ponta do nariz - descobre nela relações notáveis. Infelizmente, hoje em dia, observamos os acontecimentos relativos apenas a períodos muito curtos, apenas de alguns anos; e não estamos habituados a estabelecer uma relação entre o que se passa ao cabo de um grande número de anos e aquilo que pôde apresentar-se anteriormente como causa. É por isso que, hoje em dia, muito poucas pessoas sabem relacionar o início e o fim da vida, ainda que esta relação seja extraordinariamente instrutiva.

Suponhamos que educámos uma criança durante os sete primeiros anos da sua existência e que não procedemos como habitualmente, que não partimos da crença segundo a qual, se alguém deve tornar-se um homem capaz na vida, deve ser desta ou daquela maneira, por forma a corresponder exactamente à nossa ideia do que deve ser um homem capaz. Porque, neste caso, teríamos desejado inculcar na criança, tanto quanto possível, tudo o que, na nossa opinião, deve justamente fazer dele um homem honesto. Se, no entanto, soubermos que se pode ser um homem de bem de muitas maneiras e que de modo nenhum é necessário fazermos a representação de como virá a sê-lo, segundo as suas próprias disposições naturais, aquele que ainda não passa de uma criança, podemos então dizer: Qualquer que seja a minha concepção de um homem capaz, é preciso que o homem que esta criança vai ser chamada a tornar-se resulte das melhores disposições que tenham sido retiradas dele - sendo talvez este o enigma que está por resolver! - E, a partir daí, poderemos dizer: Que importam todos esses princípios ou outros aos quais eu possa aderir; a criança deve, por si própria, sentir a necessidade de fazer uma ou outra coisa! Se eu quiser desenvolvê-la de acordo com as suas disposições individuais, tenho de tentar cultivar as necessidades que existem na sua natureza, resgatá-las para que antes de mais a criança sinta necessidade de agir de acordo com a sua própria necessidade. Vemos assim que existem dois métodos completamente distintos de actuar em relação à criança durante os sete primeiros anos da sua vida.






Se observarmos a sequência dessa vida, decorrerá um longo período sem que se manifeste claramente o efeito daquilo que incutimos na criança ao longo dos primeiros anos. A observação da vida mostra-nos, de facto, que os efeitos essenciais daquilo que foi depositado como um embrião no espírito infantil só se manifesta, de facto, em último caso, ou seja, no declínio da vida. Até ao fim da vida, o homem pode permanecer muito activo em termos espirituais, apesar de na sua infância ter sido educado a ter em conta a sua vida interior, aquilo que vive nele. Se nos abrirmos às forças interiores que existem nele, e que ajudámos a desenvolver, veremos surgirem os frutos disso na velhice sob a forma de uma vida espiritual rica. Pelo contrário, no caso de uma alma empedernida e empobrecida, e também consequentemente - porque, vê-lo-emos mais adiante, uma alma empedernida também actua sobre o corpo - nas fragilidades da idade, aparecem os erros que cometemos durante a infância. Eis aqui uma manifestação de certa forma regular da vida humana, da Lei de Causa e Efeito comum a todos os homens.

Poderíamos verificar relações semelhantes nos períodos mais próximos do meio da vida...

O modo como tratámos uma criança entre os sete e os catorze anos repercute-se nos efeitos que tem ao longo do penúltimo período da vida. Vemos pois as causas e os efeitos desenrolarem-se de forma cíclica, bem como em círculo. As causas mais antigas são aquelas cujos efeitos são os mais tardios. Mas não existe apenas este tipo de causas nem de efeitos na vida do indivíduo. Há um outro encadeamento que ocorre em linha recta a par daquele que é cíclico.

O exemplo da influência que podem exercer os treze anos sobre os vinte e três mostrou-nos que a relação de causa e efeito que é provocada na vida humana leva a que as experiências vividas pelo indivíduo sejam seguidas de efeitos que recaem sobre ele. Foi assim que o carma se cumpriu numa vida individual, mas não conseguiremos explicar a vida humana, se procurarmos as relações de causa e efeito apenas no seio dessa mesma vida. Em que se baseia a ideia que acaba de ser aflorada e como desenvolvê-la é o que as conferências que se seguem irão mostrar. Recordemos apenas que a ciência do espírito apresenta a vida compreendida entre o nascimento e a morte como a repetição das vidas humanas anteriores.

Rudolf Steiner com o modelo do Goetheanum.


O primeiro Goetheanum, Sede da Sociedade Antroposófica.
















O segundo Goetheanum







Ora, se tentarmos ver o que caracteriza esta vida compreendida entre o nascimento e a morte, podemos afirmar que é o facto de uma única e mesma consciência - pelo menos naquilo que ela tem de essencial - se estender por toda a duração da vida. Se vocês se lembrassem dos períodos decorridos na vossa vida, direis: «Existe, no entanto, um momento que não coincide com o do meu nascimento, mas que lhe é um pouco posterior, sendo aí que começam as minhas lembranças». É o que dirão todos aqueles que não são iniciados; que, por conseguinte, a sua consciência não recua ainda mais. Esse momento em que começa a lembrança representa no fundo alguma coisa de muito particular em todo o tempo que separa o nascimento da morte. (...) se não tivermos isso em conta, podemos afirmar que a vida entre o nascimento e a morte se caracteriza pelo facto de uma mesma consciência se estender a todo esse tempo.

Mesmo que, na vida comum, o homem não tenha o hábito de procurar nos períodos anteriores da sua vida as causas para uma coisa que lhe acontece numa idade avançada, poderá no entanto fazê-lo, tornando-se suficientemente atento a todas as coisas e buscando o seu significado. Poderá fazê-lo através da consciência de que dispõe enquanto consciência da lembrança. Se, com o auxílio desta faculdade da lembrança, o homem tentar viver interiormente a relação cármica entre os acontecimentos anteriores e posteriores, chegará ao seguinte resultado.

Dirá, por exemplo: «Apercebo-me que certos acontecimentos da minha vida não teriam lugar se isto ou aquilo não se tivesse passado num período anterior da minha biografia». Talvez ele diga: «É preciso que sofra as consequências da educação que recebi». Esta simples descoberta da relação entre já não o mal que tenha feito, mas os males que lhe tenham sido causados, e os acontecimentos posteriores, ser-lhe-á então muito útil. Ele encontrará mais facilmente o modo de reparar os danos de que foi vítima. O conhecimento das relações deste género entre as causas e os efeitos relativos a períodos biográficos diferentes que abarcam a nossa consciência comum pode ser-nos muito útil para a nossa vida. Mais ainda, se adquirirmos este conhecimento, talvez possamos fazer outra coisa. Sem dúvida que se um idoso olha para trás à procura das causas para acontecimentos ocorridos ao longo dos seus oitenta anos, causas essas que ele deverá procurar na sua mais tenra idade, é possível que tenha muita dificuldade em encontrar os meios para remediar aquilo que lhe foi feito, e toda a inclinação sobre isso não lhe servirá de muito. Mas se ele se instruir mais cedo sobre essas coisas e se analisar as faltas que foram cometidas em relação a si, por exemplo, se, desde os quarenta anos, procurar remediá-lo, terá seguramente ainda tempo para encontrar alguns remédios.









Vemos portanto que devemos retirar ensinamentos não só do carma mais imediato, mas também do carma, em geral, e da relação interna de necessidade que ele representa. Isso pode ser um apoio para a nossa vida.

O que faz então uma pessoa que, aos quarenta anos, tenta evitar os efeitos negativos de danos que, quando tinha doze anos, lhe foram causados ou que ele próprio causou? Tentará reparar o mal que fez ou de que foi alvo bem como prevenir por todos os meios o efeito daí decorrente. Ele substituirá mesmo de alguma maneira, através de um outro efeito, aquele que devia ter-se manifestado se não tivesse intervindo. O conhecimento do que se passou quando tinha doze anos leva-lo-á a uma determinada acção aos quarenta. Ele não a teria praticado se não tivesse reconhecido o que lhe aconteceu aos doze anos. O que fez então este homem graças à retrospectiva da sua vida de outros tempos? Conscientemente, ele fez seguir a uma causa um efeito específico. Pretendeu obter o efeito que agora levava a que se produzisse. Isto mostra-nos o modo como a vontade pode intervir no desenvolvimento das sequências cármicas e, através de uma verdadeira criação, substituir os efeitos cármicos que, sem ela, teriam intervindo. Se considerarmos esta relação que, efectivamente de modo consciente, a nossa consciência estabelece entre uma causa e um efeito na biografia, podemos dizer que, para o homem cujo caso apresentámos, o carma ou a necessidade cármica penetrou na sua consciência; ele próprio provocou de alguma maneira um efeito cármico (in Reencarnação, Planeta Editora, 2008, pp. 23-30).





Continua


sexta-feira, 24 de agosto de 2012

O Presente da Águia (ii)

Escrito por Carlos Castaneda









«[Pablito] Tinha dito que nosso ser total consiste em dois segmentos perceptíveis. O primeiro é o corpo físico conhecido, que todos podemos perceber; o segundo é o corpo luminoso, um casulo que só os videntes conseguem perceber, um casulo que nos dá a aparência de ovos luminosos gigantescos. Don Juan tinha dito também que uma das metas mais importantes da feitiçaria é alcançar o casulo luminoso; uma meta que é conseguida pelo uso sofisticado do sonhar e por um empreendimento rigoroso e sistemático a que ele dava o nome de não-fazer. Definia o não-fazer como um acto pouco familiar, que envolve todo o nosso ser, ao força-lo a se tornar consciente do seu segmento luminoso.

(...) Don Juan explicou-me que o corpo sonhador é às vezes chamado de "o duplo" ou "o outro", porque é uma réplica perfeita do corpo do sonhador. É basicamente a energia de um ser luminoso, uma emanação esbranquiçada e fantasmagórica, que é projectada pela fixação da segunda atenção numa imagem tridimensional do corpo. Don Juan explicou que o corpo sonhador não é um fantasma; é tão real quanto qualquer coisa com que lidamos no mundo. Disse que a segunda atenção é inevitavelmente levada a focalizar em nosso ser total como um campo de energia, e que transforma essa energia em qualquer coisa apropriada. A coisa mais fácil é, naturalmente, a imagem do corpo físico com o qual já estamos perfeitamente familiarizados em nossa vida diária, por meio do uso da primeira atenção. O que canaliza a energia do nosso ser total a produzir qualquer coisa que esteja dentro dos limites de possibilidades é conhecido como vontade. Don Juan não sabia dizer quais eram esses limites, a não ser que em seres luminosos os parâmetros são tão amplos que é bobagem tentar estabelecer limites; dessa forma, a energia de um ser luminoso pode ser transformada, por meio da vontade, em qualquer coisa».

Carlos Castaneda («O Presente da Águia»).


«Na verdade, a realidade fisica não existiria se não houvesse intenções. A intenção activa a correlação não-local e sincronizada no cérebro. Sempre que há conhecimento ou percepção da realidade física, as diferentes regiões do cérebro mostram uma "fase e frequência a circunscreverem-se", afastando-se dos padrões luminosos de neurónios específicos em diferentes partes do cérebro. Esta é uma sincronização não-local que ocorre a uma frequência de cerca de quarenta hertz (quarenta ciclos por segundo). Esta sincronização, também chamada encadeamento, é um requisito da cognição. Sem ela, não veríamos uma pessoa como uma pessoa, uma casa como uma casa, uma árvore como tal ou um rosto numa fotografia como sendo um rosto. Talvez víssemos apenas pontos brancos e pretos, linhas dispersas, manchas de luz e escuridão. De facto, os objectos da nossa percepção registam-se apenas como sinais electromagnéticos ligados-desligados no nosso cérebro. A sincronização, organizada pela intenção, converte pontos, manchas, linhas dispersas, descargas electricas e padrões de luz e escuridão num todo, uma entidade criadora que fez um quadro do mundo como uma experiência subjectiva. O mundo não existe como quadro, mas apenas como esses fragmentos de impulsos ligados-deligados, esses pontos e manchas, esses códigos digitais de descargas eléctricas aparentemente casuais. Através da intenção, a sincronização organiza-os em experiência no cérebro - um som, uma textura, uma forma, um paladar e um cheiro. O leitor, enquanto inteligência não-local, "rotula" essa experiência, e, de repente, verifica-se a criação de um objecto material na consciência subjectiva.

O mundo é como um borrão de Rorschach, que convertemos num mundo de objectos materiais através da sincronização orquestrada pela intenção. O mundo que se lhe depara é observado e, perante o desejo ou a intenção de observar algo, o sistema nervoso existe quer como entidade dinâmica (em constante mutação), quer como um campo caótico e não-linear de actividades num estado de não-equilíbrio (actividade instável). De forma sincronizada, a intenção organiza estas actividades altamente variáveis, aparentemente caóticas e sem relação num universo não-local, num sistema altamente ordenado, auto-organizador e dinâmico, que se manifesta simultaneamente como um mundo observável e como um sistema nervoso através do qual esse mundo está a ser observado. A própria intenção não tem origem no sistema nervoso, embora seja orquestrada através dele. No entanto, a intenção é responsável por algo mais do que a cognição e a percepção. Toda a aprendizagem, recordação, raciocínio, dedução de conclusões e actividade motora são precedidos pela intenção. Ela é a base estruturadora da criação».

Deepak Chopra («Os Sete Princípios da Realização Espiritual»).







4. O intento é a força que move o primeiro anel de poder

Don Juan explicou que o intento não se refere a ter uma intenção, ou a querer uma coisa ou outra, mas a uma força imponderável que faz com que tenhamos atitudes que podem ser descritas como intenção, desejo, volição e assim por diante. Definiu-o como uma condição inata, proveniente da própria pessoa, como o hábito produzido pela socialização ou uma reacção biológica, mas que é melhor representado por uma força particular, íntima, que possuímos e usamos individualmente como a chave que faz com que o primeiro anel de poder se mova de formas aceitáveis. O intento é o que dirige a primeira atenção a focalizar emanações da Águia dentro de um certo âmbito. E o intento é também o que comanda o primeiro anel de poder a interromper ou parar seu fluxo de energia.

Don Juan sugeriu que eu pensasse no intento como numa força invisível que existe no universo, desconhecida de si mesma e ainda assim agindo sobre tudo - força que cria e mantém os desnates.

Afirmou que os desnates devem ser recriados incessantemente, a fim de serem impregnados de continuidade. Para recriá-los toda a vez com o frescor necessário para formar um mundo vivo, temos de usar o intento deles toda a vez que os construímos. Por exemplo, temos de ter o intento da "montanha" em toda a sua complexidade para que seu desnate se torne completo. Disse que para um espectador, comportando-se exclusivamente com base na primeira atenção, sem a interferência do intento, a "montanha" pode parecer um desnate inteiramente diferente. Pode talvez parecer como uma "forma geométrica" ou uma "mancha amorfa de coloração". Para que o desnate "montanha" seja completa, o espectador tem de ter o intento dela, quer involuntariamente, através da força compulsória do primeiro anel de poder, quer deliberadamente, através do treinamento do guerreiro.

Ele notou três maneiras pelas quais o intento vem a nós. A primeira e mais comum é conhecida pelos videntes como "intento do primeiro anel de poder". É um intento cego que nos vem puramente ao acaso. É como se tivéssemos sido postos em seu caminho, ou como se o intento tivesse sido posto no nosso. Inevitavelmente encontramo-nos presos em suas malhas sem termos a menor ideia do que nos está acontecendo.

A segunda maneira de nos depararmos com o intento é quando ele nos vem por sua própria conta. Isso exige um grau considerável de determinação, um senso de propósito da nossa parte. Só com nossa capacidade de guerreiros nos conseguimos colocar voluntariamente no caminho do intento, acenar para ele, por assim dizer. Don Juan explicou que sua insistência em ser um guerreiro impecável nada mais era que um esforço para deixar o intento saber que ele se estava colocando no seu caminho.

Don Juan dizia que os guerreiros chamam a esse fenómeno "poder". Então, quando falam em ter poder pessoal, referem-se ao facto de o intento chegar a eles voluntariamente. O resultado disso, dizia ele, podia ser descrito como uma facilidade em encontrar novas soluções - ou a facilidade de afectar os acontecimentos ou as pessoas. É como se as possibilidades desconhecidas previamente pelos guerreiros se tornassem evidentes de repente. Assim, um guerreiro impecável nunca planeia nada com antecedência, mas seus actos são tão decisivos que parecem ter sido planeados em detalhes previamente.






A terceira maneira de encontrarmos o intento é a mais rara e a mais complexa das três; ocorre quando o intento nos permite que nos adaptemos a ele. Don Juan descrevia esse estado como o verdadeiro momento de poder - a culminação dos esforços de toda uma vida em busca da impecabilidade. Só os guerreiros supremos o atingem, e enquanto permanecem nesse estado o intento permite que eles o manipulem à vontade. É como se o intento se tivesse fundido nesses guerreiros, e ao fazer isso os tivesse transformado numa força pura e ilimitada. Os videntes chamavam a esse estado "o intento do segundo anel de poder" ou "vontade".


5. O primeiro anel de poder pode ser detido por um bloqueio funcional da capacidade de reunir desnates

Don Juan disse que a função de não-fazer é criar uma obstrução na focalização habitual da nossa primeira atenção. Os não-fazer são, nesse sentido, manobras destinadas a preparar a primeira atenção para o bloqueio funcional do primeiro anel de poder ou, em outras palavras, para a interrupção do intento.

Ele explicou que esse bloqueio funcional, que é o único método de utilizar sistematicamente a capacidade latente do primeiro anel de poder, é uma interrupção temporária que o benfeitor cria na capacidade de reunir desnates dos seus discípulos. É uma intromissão artificial; uma invasão deliberada e forçada à primeira atenção, designada para empurrá-la além do verniz superficial dos desnates familiares; uma intromissão atingida por meio da obstrução do intento do primeiro anel de poder.

Disse que para levar a cabo essa interrupção o benfeitor trata o intento como um processo, como se ele fosse um fluxo, uma corrente de energia que pode eventualmente ser cessada ou reencaminhada. Avisou repetidas vezes que se tem de reconhecer que uma interrupção dessa natureza é um choque de tal magnitude que pode forçar o primeiro anel de poder a parar completamente a qualquer hora; uma situação impossível de conceber nas nossas condições normais de vida. É impensável que possamos refazer, intelectualmente, os passos que demos ao consolidar nossa percepção, mas é viável que sob o impacto dessa interrupção possamos ser colocados numa posição perceptiva muito semelhante à de nosso começo, quando os comandos da Águia eram emanações que ainda não tínhamos impregnado de significado.

Don Juan disse que qualquer procedimento que o benfeitor possa suspender para criar essa interrupção tem de estar intimamente ligado com o seu poder pessoal; o benfeitor não utiliza nenhum processo para conduzir o intento, mas através de seu poder pessoal o move e o coloca ao alcance do aprendiz.



Carlos Castaneda em estado de consciência não-intensificada.



No meu caso, don Juan atingiu o bloqueio funcional do primeiro anel de poder por meio de um processo complexo, uma combinação de três métodos: a ingestão de plantas alucinogénias; a manipulação do corpo; e a manipulação do próprio intento.

No início apoiou-se muito na ingestão de plantas alucinogénias, aparentemente em vista da inflexibilidade do meu lado racional. O efeito delas foi tremendo, mas ainda assim retardou a interrupção que ele procurava. O facto de aquelas plantas serem alucinógenias fez com que minha razão aceitasse reunir todos os recursos disponíveis para continuar mantendo as rédeas do controle. Fiquei convencido de que podia explicar com lógica tudo o que estava sentindo, juntamente com as proezas inconcebíveis que don Juan e don Genaro costumavam realizar, para criar as interrupções, como distorções perceptivas causadas pela ingestão dos alucinogénios. Por outro lado, contudo, não havia meio possível de eu poder ter escapado ao efeito do bloqueio do primeiro anel de poder, que don Juan tinha programado atingir.

Don Juan disse que o efeito mais notável das plantas aluginogénias era o que eu interpretava, sempre que as ingeria, como uma sensação peculiar de que tudo à minha volta exalava uma extraordinária riqueza. Via cores, formas, detalhes que nunca tinha visto antes. Ele utilizou essa condição da minha habilidade elevada de perceber, e com uma série de ordens e comentários me forçou a entrar em um estado de agitação nervosa. Ele então manipulou meu corpo e me fez trocar de um lado a outro da consciência direita e esquerda, até criar visões fantasmagóricas ou cenas extremamente reais com criaturas em três dimensões que positivamente não podiam existir neste mundo.

Explicou que quando a relação direita entre o intento e os desnates que construímos é quebrada, nunca mais pode ser restaurada. Daí por diante adquirimos a capacidade de captar uma corrente que ele denominava "intento fantasma", ou intento dos desnates que não estão presentes no momento ou no lugar da interrupção, mas que tornam o intento delas acessível a nós, através de algum aspecto da memória.

Afirmou que com a suspensão do intento do primeiro anel de poder nós nos tornamos receptivos e maleáveis; um nagual pode então introduzir o intento do segundo anel de poder. Don Juan estava convencido de que as crianças se encontram em uma posição de receptividade semelhante; sendo desprovidas do intento, estão prontas a assimilar qualquer intento acessível a seus mestres.

Depois de um período de ingestão contínua de plantas alucinogénias, don Juan cortou totalmente o uso delas. Atingiu, no entanto, novas e maiores interrupções em mim ao manipular meu corpo e me fazer mudar os estados de consciência, combinando tudo isso com manobras do intento. Através de uma combinação de comandos mesmerizadores, ele criava uma corrente de intento fantasma e eu era levado a sentir os desnates familiares como coisas inconcebíveis, que só eu estava presenciando, sem a concordância de qualquer outra pessoa da terra. Ele chamou esse conceito de "vislumbrar a imensidão da Águia".







Don Juan explicou que a concordância que temos um com o outro sobre a existência de nossos desnates, além de ser uma combinação, é também um elo de associação. Esse elo é baseado no carácter compulsório do primeiro anel de poder. Exigindo uma concordância nossa em relação à construção fiel dos desnates, o primeiro anel de poder cria em nós não só a certeza de que esses desnates são objectos como também nos dá a certeza de que são absolutamente homogéneos entre os membros da nossa espécie. Esse elo de associação não precisa ser reiterado. Uma vez convencidos de sua existência, ele se torna uma base de apoio para nós durante toda a nossa vida.

Don Juan guiou-me magistralmente através de inúmeras interrupções do intento, até que fiquei convencido, como observador, que meu corpo mostrava o efeito do bloqueio funcional do primeiro anel de poder. Ele disse que podia ver uma capacidade invulgar na minha concha luminosa, em volta da região das omoplatas. Descreveu-a como uma pequena cavidade rugosa que se formava exactamente como se a concha luminosa fosse uma capa de músculos sendo contraída por um nervo.

Para mim, o efeito do bloqueio funcional do primeiro anel de poder era conseguir apagar a certeza que eu tinha na minha vida toda de que o que meus sentidos percebiam era "real". Entrei tranquilamente num estado de silêncio interior. Don Juan disse que o que dá aos guerreiros essa extrema incerteza que seu benfeitor sentiu no fim da vida, essa resignação à derrota que ele próprio estava sentindo, é o facto de que um vislumbre da imensidão da Águia nos deixa sem esperança. A esperança é o resultado de nossa familiaridade com nossos desnates e a ideia de que podemos controlá-los. Em tais momentos só o caminho dos guerreiros nos pode fazer perseverar em nosso esforço de descobrir o que a Águia ocultou de nós, mas sem esperança de jamais compreender o que descobrimos.


6. A segunda atenção

Don Juan explicou que o exame do outro eu devia começar com a aceitação de que essa força do primeiro anel de poder que nos cerca é uma verdadeira fronteira física e concreta. Os videntes as descreveram como parede de névoa, uma barreira que pode ser sistematicamente  levada à nossa consciência por meio do bloqueio do primeiro anel de poder; e então pode ser penetrada através do treinamento do guerreiro.

Ao penetrar na parede de névoa, entra-se num extenso estado intermediário. A tarefa dos guerreiros consiste em atravessá-la até alcançar outra linha divisória, que eles têm de penetrar a fim de entrarem propriamente no outro eu da segunda atenção.


Don Juan disse que ambas as linhas divisórias são perfeitamente distinguíveis. Quando os guerreiros penetram na parede de névoa sentem que seus corpos estão sendo torcidos, ou sentem um intenso tremor dentro da cavidade de seus corpos, basicamente à direita do estômago ou pelo meio do corpo, da direita para a esquerda. Quando penetram na segunda linha sentem um estado agudo na parte superior do corpo, como o som de um pequeno galho seco sendo partido em dois.

As duas linhas que cercam as duas atenções e as selam individualmente são conhecidas pelos videntes como linhas paralelas. Selam as duas atenções porque se estendem até o infinito, nunca permitindo seu cruzamento, a não ser que sejam perfuradas.

Entre as duas linhas há uma área de consciência específica, que os videntes chamam de limbo ou mundo entre as linhas paralelas. É um espaço real entre dois enormes âmbitos de emanações da Águia, emanações essas que estão dentro das possibilidades humanas de consciência. Um é o âmbito que forma o eu da vida diária, e o outro é o que forma o outro eu. Como o limbo é uma área de transição, os dois âmbitos de emanações se sobrepõem lá. A fraccão do âmbito com o qual estamos familiarizados, que se estende sobre aquela área, prende uma porção do primeiro anel de poder; sua capacidade de construir desnates nos força a perceber uma quantidade deles no limbo que são quase iguais aos da nossa existência diária, só que parecendo bizarros, insólitos e torcidos. Assim, o limbo tem características que não mudam arbitrariamente cada vez que se entra nele. Há no limbo aspectos físicos que se assemelham aos desnates da nossa vida diária.

Don Juan afirmou que a sensação de peso que se sente no limbo é devida à carga crescente colocada na nossa primeira atenção. Na área logo atrás da parede de névoa, ainda nos podemos comportar como nós mesmos; é como se estivéssemos num mundo grotesco porém ainda reconhecível. À medida que nos aprofundamos para longe da parede de névoa, torna-se progressivamente mais difícil reconhecer seus aspectos ou comportar-se em termos que nos são familiares.

Explicou que a parede de névoa se podia parecer com qualquer coisa, mas que os videntes optaram pela definição que consome menos energia: visualizar esse limite como uma parede de névoa não envolve esforço algum.

O que existe além da linha divisória é conhecido pelos videntes como o outro eu, ou o mundo paralelo; e o acto de penetrar através de ambos os limites é conhecido como "cruzar as linhas paralelas".

Don Juan achava que eu captaria esses conceitos com mais firmeza se ele me descrevesse cada esfera de consciência como uma tendência específica de percepção. Disse que na esfera da consciência da vida diária estamos indissoluvelmente emaranhados nas tendências perceptivas da primeira atenção. Do momento em que o primeiro anel de poder começa a construir os desnates, o modo de construí-los se torna nossa tendência normal de percepção. Romper a força que ata a tendência perceptiva da primeira atenção é quebrar a primeira linha divisória. Nossa tendência perceptiva normal então passa para a área intermediária entre as linhas paralelas. Continua-se a construir desnates quase normais por algum tempo. Mas quando se aproxima do que os videntes chamam de segunda linha divisória, a tendência perceptiva da primeira atenção começa a diminuir, perdendo a força. Don Juan disse que essa transição é marcada por uma súbita incapacidade de lembrar ou de perceber, através do auto-exame, o que se está fazendo.








Quando a segunda linha divisória é alcançada, a segunda atenção começa a agir sobre os guerreiros que estão fazendo a viagem. Se são inexperientes, sua consciência fica vazia. Don Juan afirmou que isso acontece porque eles se aproximam de um espectro das emanações da Águia que ainda não tem uma tendência perceptiva sistematizada para eles. Minhas experiências com a Gorda e a mulher nagual além da parede de névoa foram um exemplo dessa incapacidade. Viajei para o outro eu, mas não pude dar conta do que tinha feito, simplesmente porque minha segunda atenção ainda não tinha sido formulada e não me permitiu lidar com coisa alguma que tinha percebido.

Don Juan explicou que se começa a activar o segundo anel de poder forçando a segunda atenção a acordar de seu estupor. O bloqueio funcional do primeiro anel de poder realiza isso. Então a tarefa do mestre é recriar a condição que iniciou o primeiro anel de poder, a condição de saturação do intento. O primeiro anel de poder foi colocado em movimento pela força do intento, que nos foi dada por quem quer que nos tenha ensinado os desnates. Como meu mestre, ele estava-me dando então um novo intento que iria criar um novo meio perceptivo.

Don Juan disse que se leva toda uma vida de disciplina incessante, que os videntes chamam de intento inflexível, para preparar o segundo anel de poder a construir desnates vindos do outro âmbito das emanações da Águia. Aperfeiçoar a tendência perceptiva do eu paralelo é uma proeza de valor incomparável que poucos guerreiros realizam. Silvio Manuel era um desses poucos.

Don Juan aconselhou-me a não tentar deliberadamente aperfeiçoar isso. Se viesse a acontecer, seria um processo natural que se desenvolveria sem grande esforço de minha parte. Explicou que a razão dessa indiferença reside na consideração prática de que aperfeiçoar essa tendência faz com que se torne mais difícil rompê-la, pois a meta que os guerreiros almejam é a capacidade na liberdade final da terceira atenção (in ob. cit., pp. 354-365).